Primeira Impressão 53

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| Julho de 2020 |

pi primeira impressão

A PANDEMIA E O DISTANCIAMENTO SOCIAL IMPUSERAM A ESTA EDIÇÃO DA PI SER A PRIMEIRA, DE SUA JÁ LONGA TRAJETÓRIA, PRODUZIDA COM ENTREVISTAS E IMAGENS OBTIDAS REMOTAMENTE.“ÚLTIMO”, COM SUAS VARIAÇÕES, É O TEMA QUE INSPIRA SUAS REPORTAGENS

DORES, AMORES, LEMBRANÇAS, CONQUISTAS


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EDITORIAL

E

UMA EDIÇÃO HISTÓRICA

sta edição 53 da Primeira Impressão cumpre um marco histórico, neste dramático semestre inicial de 2020: é a primeira produzida totalmente a distância, imposição que se fez tão necessária em tempos de pandemia, como o atual, embora seja rotineiramente rejeitada no Jornalismo, quando executado em condições normais. Nunca, antes, na história do curso, a produção de uma revista-laboratório precisou, como agora, submeter-se a condições que contrariam o melhor fazer-jornalístico, em nome do fazer-jornalístico possível nas circunstâncias em que toda a humanidade vive. No mundo ideal, uma publicação dominada pelo gênero “reportagem” tem entre seus requisitos o aprofundamento do tema e a realização de en-

trevistas presenciais entre o (futuro) jornalista e as fontes de sua apuração. Em especial para esse segundo, a presença do repórter junto aos entrevistados lhe permite ir além das respostas que recebe às perguntas que apresenta – avançando para as reações pessoais de seu interlocutor e para a percepção do ambiente em que o contato se realiza. Daí o até então justo jargão profissional tão ao gosto dos mais experientes e tão recorrente nas salas de aula: “lugar de repórter é na rua”. No mundo real imposto ao planeta a partir do final de 2019 e, ao Brasil, desde os meses iniciais deste ano, a preservação da vida tornou inviáveis a sala de aula convencional e algumas das práticas corriqueiras do trabalho da imprensa – entre elas, as entrevistas frente a frente e os repórteres nas ruas. Nesse reaprender mútuo e permanente

que marca o ambiente educacional e o próprio Jornalismo, impôs-se rever disposições profissionais antes tão rígidas. A PI 53 é o resultado desse aprendizado. Embora seu tema seja “último” (e suas variáveis em gênero e no plural), esta é a primeira edição realizada sob tais e tão severas condições, como poderá ser percebido também na leitura dos textos breves em que os/as autores/as contam como produziram seus conteúdos para a revista: as “Impressões de repórter”, constantes ao final de cada reportagem. Compartilhamos agora o resultado desta fascinante experiência. Esperamos ter cumprido as expectativas – do curso, da Universidade e, principalmente, de quem receber um exemplar desta histórica edição. Nikão Duarte

Professor editor de texto

KELLEN DALBOSCO

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DIVULGAÇÃO / VIDA URGENTE

ÍNDIC 06

Perda e recomeço

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CE

# 5 3

10

A dor da última semana

14 Pela última vez, “Alô, Harmonia!”

18 Véspera de mudança

22 “Meu sangue é palestino”

26 As últimas lembranças de um amor adolescente

30 O último de 77, o primeiro de 78

J U L H O / 2 0 2 0

34 O último alento no velho casarão

38 O Gre-Nal que a América aguardava

42 Feito inédito e presente na memória

46 O último a ser escolhido

50 A última aula

54 Transição para o desconhecido

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Diza faz do último momento com o filho Thiago uma motivação em defesa da vida TEXTO DE LETÍCIA GUINTANI DA COSTA

N

o auge dos seus sessenta e poucos anos, Maria Edi de Moraes Gonzaga, a Diza, afirma estar apressada e um pouco ansiosa. A ansiedade, na verdade, é pela vida. A pressa? Por uma transformação na cultura do trânsito, o que move seu trabalho há mais de 20 anos, através do Vida Urgente e da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga. A história nem tão inédita assim, precisa de todas as suas versões para destacar a vida de uma mulher transformada após a partida prematura de um filho. Na madrugada de 20 de maio de 1995, Diza perdeu seu Thiago para o trânsito. Com 18 anos de idade recém completados, o jovem partiu após aceitar uma carona. O motorista perdeu o controle do veículo e chocou-se contra um contêiner em uma das avenidas de Porto Alegre, capital gaúcha. “Vida Urgente” era o que repetia ao retirar Thiago do asfalto naquela madrugada. Foi logo após os primeiros dias da partida do filho que Diza sentiu a necessidade de fazer algo que pudesse evitar a perda de outros jovens. A frenética escrita do livro “Thiago Gonzaga - Histórias de Uma Vida Urgente”, nos primeiros meses após sua partida, para Diza, foi como uma obra sem filtro. Já são 17 edições - que ao completar dez anos da primeira publicação, em 2006, ganhou um novo capítulo. Arquiteta, mestre em escrever memoriais de obras, a mãe de Thiago jamais imaginou ser escritora, e afirma que essa nunca foi a sua pretensão. A verdade é que por meio da escrita, ela encontrou uma forma de sobreviver em meio à tanta dor. Nenhum esboço em uma prancheta ou mesmo uma esA Praça da tratégia de marketing é capaz de Juventude Thiago explicar o que foi a idealização de Moraes Gonzaga, do Programa Vida Urgente e inaugurada no ano da Fundação Thiago de Moraes de 2000, tornouGonzaga. Diza lançou o projeto se um memorial, um ano após o acidente do filho, para que se possa em maio de 1996. Nada foi plahomenagear jovens nejado, nem mesmo o públicoque perderam a -alvo fora definido - amigos da vida no trânsito família, vizinhos de bairros ou residentes da capital gaúcha. O fato é que após abandonar literalmente sua carreira de arquiteta, entregando os projetos aos colegas de trabalho, Diza transformou-se em uma ativista do trânsito, o que a tornou conhecida no mundo pelo seu trabalho humanizado. Mãe de seis filhos - sendo três adotivos, ela contou com o apoio do marido Régis, professor, que reforçou as aulas de matemática para dar conta da renda familiar para que a esposa pudesse enfrentar essa

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PERDA E


DIVULGAÇÃO / VIDA URGENTE

RECOMEÇO

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Contato com a Thiagarada faz a diferença Congressos. Palestras. Seminários. Muitas premiações. O projeto de Diza Gonzaga já viajou o mundo, conquistando muitos prêmios ao longo dos anos. A mãe de Thiago chama a atenção para as viagens internacionais e a premiação conquistada em Moscou, na Rússia. Para ela, parece inimaginável chegar aonde chegou com o Programa Vida Urgente e a Fundação Thiago de Moraes Gonzaga. Mesmo com tantas conquistas e participações em eventos importantes para a causa, o lugar preferido da ativista, é estar no meio da Thiagarada - jovens da idade 8 PRIMEIRA IMPRESSÃO

DIVULGAÇÃO / VIDA URGENTE

empreitada de corpo e alma. A criação do Programa Vida Urgente implicou em uma série de escolhas para Diza. Além de abdicar da profissão, a ideia era trazer um pouco do Thiago para esse projeto. A logomarca do Vida Urgente, por exemplo, tem muito de Thiago. O desenho foi projetado por Diza. No começo, se enxergava algo com asas de um pássaro. No entanto, a dor era tanta, que ao escrever “Vida” com auxílio de uma régua com letras normógrafas, “Urgente” veio para chamar a atenção, em uma espécie de carimbo. Dureza. O jeitão do filho trouxe, sem qualquer pretensão, o que faltava para tocar a vida de tantos jovens com maior sensibilidade: a borboleta, símbolo tradicional do Programa, que surgiu a partir do apelido que a mãe dava para o filho. “Thiago ora queria cursar inglês, ora Taekwondo, isso me fazia chamá-lo de pesquisador borboleta. Costumava dizer que ele estavas sempre borboleteando. Hoje vejo que foi muito adequado. Borboleta, um ser frágil que atravessa oceanos, é também um símbolo de transformação, tudo a ver com a filosofia do Vida Urgente”, destaca a ativista. Thiago era especial. Com um tom emocionado, a mãe o define como um guri solidário, amoroso e bem humorado. Sempre preocupado em ajudar os outros. Além disso, Diza conta que o filho era daqueles que perdia o amigo mas não perdia a piada. Com 1m78 de altura, nem ela escapava. “Até com minha altura brincava, já que perto dele, com meu 1m59, era pequenininha, imagina”, enfatiza.

do filho, ou até mesmo A borboleta é uma história vem depois. Antes disso, Leite e mais novos, todos curio- marca registrada do a voluntária Natacha Gastal, também do sos por conhecer a sua Vida Urgente. Símbolo Grêmio Estudantil, levaram o Vida Urgente à história. O Espaço Vida de transformação e tudo Pelotas. Diza conta que, ao chegar no Teatro Urgente nas Universi- a ver com Thiago, um 7 de abril, ficou surpresa com a quantidade dades e nas Escolas, é pesquisador borboleta de jovens de 14, 15 anos, junto de tantas destinado para levar autoridades, interessados em ouvir a sua mensagens de conscientização aos história. Ela descreve como um momento lindo, de realimais jovens. O projeto conta, in- zação. Voluntária de Diza Gonzaga desde 2001, Natacha clusive, com apoio de voluntários, Gastal voltou a atuar do lado da ativista em 2007, como responsáveis por levar a mensagem profissional de Relações Públicas, onde está até hoje. aos seus municípios, espalhados por Ela conta que o trabalho se tornou uma experiência todo o Brasil. “Sempre que estou intensa e inspiradora. “Ela não para quando o assunto é imersa nesse campo, penso que se salvar vidas. Poder acompanhá-la na Fundação Thiago tivesse uma Diza, um Pedro ou uma Gonzaga é um grande privilégio. Cresço muito como Maria, talvez meu filho estivesse pessoa e me desenvolvo como profissional todos os dias, conosco até hoje”, pontua. fazendo da causa Vida Urgente também a minha forma Entre tantos encontros, Diza de contribuir para um mundo melhor”, destaca. destaca um em especial: o momento em que encontrou parceiros que A praça da juventude seguiram muito além do voluntariado nos espaços de educação. Thiago também tem sua marca em Porto Alegre. Um deles, é o governador Eduardo Projeto aprovado por unanimidade na Câmara dos Leite, voluntário de Diza em uma Vereadores, a Praça da Juventude Thiago Gonzaga foi palestra no Colégio São José, em inaugurada no ano de 2000, na Rua Porto Alegre, no Pelotas. Na época, era presidente bairro Medianeira. A escultura do artista plástico Hidalgo do Grêmio Estudantil. O ano não se Adams não é a única referência aos jovens que perderam sabe ao certo, afinal, foram muitos a vida no local. Diza Gonzaga sentiu que precisava de encontros. O fato é que esse encon- algo a mais, para que as pessoas que passassem por lá tro trouxe muitas outras parcerias, 20, 30 anos depois, entendessem quem foi Thiago. como o convite para ser diretora Nada de herói farroupilha. Nem jogador de futebol. institucional do Detran, mas essa O pouco tempo de vida do filho de Diza não o deixou


escolher se seria alguém importante, ou apenas um guri mais discreto e reservado. A ativista então optou por transformar a Praça em um memorial que pudesse homenagear os jovens que perderam a vida na guerra que é o trânsito - é assim que Diza define. Por ano, 50 mil brasileiros perdem a vida no trânsito - e esse não é um número exagerado. Só é considerado vítima de acidente de trânsito quem passa pelo mesmo que Thiago. Pessoas que morrem no hospital ou por outra causa - como parada cardíaca, por exemplo, meses depois, não entram para a estatística, o que traria números ainda maiores. Com a criação do memorial, Diza Gonzaga reuniu nomes de muitos jovens que também perderam a vida no trânsito, em forma de placas. Jovens filhos de pais que frequentam os grupos da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga, oriundos de várias partes do Rio Grande do Sul e de outras regiões do Brasil, como São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Já são 14 placas inauguradas na Praça da Juventude. “A homenagem é também uma forma de chamar a atenção para essa guerra que não condecora, mas que mata muito”, salienta a ativista.

Parceria por um trabalho humanizado Conhecendo Diza Gonzaga desde sua adolescência, enquanto

presidente do Grêmio Estudantil, sabe-se lá se o governador Eduardo Leite poderia imaginar que estaria comandando o Estado do Rio Grande do Sul um dia. O certo é que o espírito de liderança vem de tempos, e a luta da ativista com o trânsito não caiu no esquecimento de Eduardo. O convite para comandar a direção institucional do Detran no Rio Grande do Sul chegou no início de 2019. A nomeação foi anunciada em março daquele ano. Já em setembro, ocorreu o lançamento da escola pública de trânsito. Na solene, em menção à Diza, o governador explicitou sua vontade de contribuir para a existência de um trânsito mais humanizado e a preservação da vida. À frente de um grande movimento que é o Detran, a ativista afirma não ter vontade de realizar campanhas sobre sinalização no trânsito. “Não são máquinas que circulam nas ruas, são vidas”, destaca. Recentemente, Diza lançou o Movimento Empatia no Trânsito. Para ela, o trânsito se resume a colocar-se no lugar do outro. É preciso pensar no pedestre, no ciclista, no motorista. O trânsito, além de tudo é também um lugar privilegiado, pois é onde se encontram os pobres, ricos, seja a pé, de bicicleta, de BMW ou até mesmo em uma carroça. O trânsito é de todos. Consequentemente, um lugar onde menos se respeita, com buzinas, ultrapassagens proibidas, entre tantos outros casos que resultam em acidentes de trânsito. Diza costuma dizer que o carro é uma armadura medieval. Quem está no volante sente uma segurança anormal para fazer o que não se faz na rua normalmente. Empatia no trânsito tornou-se um movimento que conversa com as pessoas sobre o respeito. “Quando vejo o Eduardo falar sobre esse tema, fico imensamente feliz. Essa é a mensagem que eu quero passar. E mais: quero que perpasse por todo o governo, não somente na causa em que luto”, pontua a ativista. A ansiedade que se contava no início dessa história tão conhecida, é pelo avanço e por um trabalho mais humanizado. O maior desejo de Diza Gonzaga é

viver para enxergar a mudança da cultura do trânsito. Não através da multa ou da fiscalização, mas sim, a forma que as pessoas se tratam no trânsito que o tornará mais gentil, humano e fraterno. A transformação é necessária, afinal, a vida não pode esperar. A vida é urgente. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Escrever sobre o último momento de alguém é desafiador. Mas falar sobre o recomeço de uma mãe como a Diza - uma história que já teve as suas versões, foi uma experiência e tanto. Conhecendo melhor a história de Thiago, da Fundação e do “Vida Urgente”, tive a oportunidade de exercer um olhar mais sensível, com a expectativa de trazer essa história como um verdadeiro recomeço, de uma mãe que luta por uma causa para preservar a vida. Tem algo mais bonito? Enfrentamos os desafios de uma reportagem à distância em meio à uma pandemia. Percebi que é possível encontrar detalhes que caracterizam o jornalismo literário mesmo com uma entrevista por telefone quando se tem emoção e boas histórias. A reportagem me fez pensar sobre as transformações que precisamos enfrentar para ter mais empatia e humanização no trânsito. A matéria pode ser um incentivo para uma mudança de comportamento. Não importa quanto tempo passe e quantas versões precisem, a história de Thiago e Diza sempre se fará presente e atual.” DIVULGAÇÃO / VIDA URGENTE

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“E

la só tá te esperando, depois ela vai embora”. Foi assim que Maria Cristina Chagas, também conhecida como Tina, que trabalha em um asilo, convenceu seu irmão Rafael Costa Chagas, a viajar de Criciúma para Pelotas a fim de visitar a mãe, Dulce Praxedes, que estava no hospital. Às 4 horas do dia 17 de fevereiro, Rafael e seu cunhado Antonio entraram no carro com destino à Santa Casa de Misericórdia de Pelotas - em Canoas ambos iriam fazer uma parada para dar carona a Maria Antônia Costa Chagas, a irmã mais velha de Rafael. Maria Antônia, de 50 anos, aposentada, só era

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chamada assim por sua mãe. “Ela tinha um jeito único de falar meu nome, era MariAntônia que só ela conseguia falar”, relembra Antônia, emocionada. Durante os 350 quilômetros que separam Canoas de Pelotas sucederam-se anedotas de lembranças da mãe enferma, mas o principal sentimento presente no carro era a esperança. “Eu sabia que era um caso muito difícil, conta Antônia. Antonio Mandagara, de 47 anos, é o cunhado, porém, pode ser

Dulce momentos antes da realização da cirurgia, em sua última foto com vida


ARQUIVO PESSOAL / SILVIA LETÍCIA COSTA CHAGAS

A DOR DA ÚLTIMA SEMANA Filhos relembram os momentos derradeiros da vida de sua mãe TEXTO DE JOÃO PEDRO CHAGAS

considerado como um irmão para todos. Ele e Tina se conheceram ainda no colégio em Jaguarão (RS), cidade natal de ambos. Mudaram-se no ano de 2004 para Criciúma (SC) por causa do desemprego e para terem uma chance na música. “Hoje, eu sou eletricista, mas na época que a gente veio pra cá eu tocava numa banda”. Se a banda não fez sucesso, o casamento continua firme e forte. “A Dona Dulce era uma segunda mãe pra mim. Eu perdi a minha mãe e me agarrei muito à ela”.

Na chegada a Pelotas , ninguém sabia onde ficava o hospital. Uma ligação para Maria Regina Costa Chagas resolveu o impasse. A irmã de Rafael e Antônia estava hospedada em Pelotas durante todo o período da mãe doente. “Eu falei pra mãe que só saia de Pelotas junto com ela. Felizmente, a Eliza (amiga de sua sogra) nos deixou ficar na casa dela”. Ela conta que a mãe vinha reclamando de dor e cansaço nos últimos dias antes de ir para o hospital, pelas pedras localizadas na

vesícula. “O médico (em Jaguarão) falou que havia duas possibilidades de remoção das pedras, um método era uma cirurgia com corte e outro método era uma endoscopia que empurraria as pedras que estavam obstruindo o canal.” Optou-se pela cirurgia sem corte.

O começo do fim O dia 13 de fevereiro ainda amanhecia quando Regina e seu marido Leandro rumaram a Pelotas levando a sogra para fazer a endoscopia marcada. Durante a viagem tinha muita expectativa e tensão no carro. Na chegada ao hospital, a idosa sentia um misto de nervosismo e ansiePRIMEIRA IMPRESSÃO 11


dade. “Ela tava com bastante medo. Ela nunca tinha passado por isso”, recorda a filha. O procedimento médico começou às 10h e durou por volta de duas horas. Segundo o médico, ocorreu conforme o planejado. “Ele chegou e apertou a barriga dela, perguntou se tava tudo bem e deu alta para ela”, relembra Regina, presente no momento da alta. Por volta das 18h30 da quinta-feira, o trio retornou a Jaguarão para a recuperação em casa. Durante a noite, Dulce Praxedes, reclamou de muita dor na barriga. Às 5h do dia seguinte ela não aguentou de dor e retornou ao hospital.

O caso é mais grave que parece

JOÃO PEDRO CHAGAS

O túmulo onde descansa o corpo de Dulce no Cemitério Municipal em Jaguarão

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Uma cirurgia de emergência, foi feita às pressas na idosa, mostrou que as pedras que seriam deslocadas pela endoscopia arranharam as paredes do estômago e geraram uma pancreatite hemorrágica. Para Tina, o procedimento médico foi errado. “Muita gente falou pra mim que era pra eu processar o médico e o hospital que foi erro médico , que eles mataram a minha mãe, mas do que adianta, ela não vai voltar”. Dulce não sairia do hospital com vida. Aquela sexta-feira foi marcada pela apreensão. “Quando a Regina me ligou e falou que ela estava na UTI eu entrei em desespero, eu comecei a chorar de medo da minha mãe morrer”, relembra Antônia, com lágrimas nos olhos. A reação de Antônia foi parecida com a de todos os irmãos. Rafael relembra que os colegas de emprego começaram a ver que ele

ficava muito tempo no celular. “Eu estava desesperado com tudo que tava acontecendo”.

As despedidas “Eu tinha prometido ir pra Jaguarão quando a mãe fizesse a cirurgia para cuidar da dinda”, comenta Tina, a primeira filha de fora da cidade a visitar Dulce no hospital. A assistente de idosos chegou em Jaguarão na madrugada de sábado. “Era muito emocionante ver a minha própria mãe naquela situação”. Ela ficou todo o dia em Pelotas, na função das visitas, e então, à meia-noite, embarcou para Jaguarão a fim de cumprir a promessa feita. As visitas no hospital aconteciam três vezes ao dia, às 10h, às 16h e às 20h30. Para chegar onde Dulce estava precisava atravessar um corredor onde havia por volta de 20 macas, com pacientes da UTI em estado grave. Chegando lá, a cena não era fácil de se assistir. “A mãe tava toda entubada, cheia de fio, ela tava toda monitorada pelos aparelhos, não era uma cena fácil de ser ver”. Regina se refere ao respirador e das


sensações que teve vendo sua mãe. Ela falava pausadamente, com bastante dificuldade, mas o que ela mais reclamava era de muita dor. Domingo começou com a visita de Bia, apelido de Sílvia Letícia, filha mais nova de Dulce. Moradora de Jaguarão, ela trabalha no registro de imóveis da cidade. Ela e o marido se deslocaram naquela manhã para o hospital para ver como a idosa estava. Bia conta que a relação das duas era muito próxima. “Eu era muito apegada com a mãe, nossa relação era de muita amizade”. No caminho para chegar ao hospital, Daniel, marido de Bia, fez uma parada na rodoviária para buscar Antônia, que vinha de Porto Alegre. No hospital encontraram Regina. Lá, somente três pessoas poderiam ir à sala de espera da UTI e só uma por vez entraria para visitar o paciente internado. A dinâmica nas visitas era quase sempre a mesma: primeiro entrava Regina, que conta: “Eu entrava, via como ela estava e perguntava como ela estava se sentindo e depois avisava que tinha visita e quem tinha vindo ver ela”. Naquele domingo, Bia foi a primeira filha a entrar e relembra: “Eu fiquei muito abalada, era minha mãe e minha melhor amiga que estava numa cama de hospital naquele estado. Era horrível”. A segunda filha a entrar no quarto foi a mais velha, Antônia. Ela conta que tinha uma relação complicada com a mãe. “Ela me viu e a primeira coisa que fez foi perguntar pelo meu filho”. A aposentada fala que a relação da avó com o neto era muito próxima. “Ela se preocupava muito com ele. Toda vez que eu ligava, a primeira coisa que ela fazia era perguntar por ele”. Os 30 minutos da visita foram se terminando. Cada uma das filhas queria passar mais um pouco de tempo lá. No fim do dia, Bia e Antônia retornaram para casa. “Eu chorei muito no ônibus, fiquei devastada. Uma senhora desconhecida me consolou”, relata Antônia, muito triste. Durante a manhã do dia seguinte, segunda-feira, Dulce foi induzida ao coma e não voltou a acordar. “Ela foi sedada antes do horário de visita. Naquele momento eu tive muito medo dela morrer”.

O último dia Em Pelotas, havia muita expectativa, pois os médi-

cos ficaram de informar os resultados dos exames feitos na segunda para a família. “Infelizmente a gente não conseguiu pegar o horário da primeira visita “, conta Antônio. Ele, Rafael e Antônia estavam chegando próximos a Pelotas. “Foi uma viagem muito difícil para mim. Toda aquela situação e eu estava sem os dentes”, relembra o eletricista, Havia muita apreensão na chegada em Pelotas. O trio foi para um restaurante almoçar e esperar Regina voltar para o hospital com mais notícias. Antônia lembra a dificuldade para comer naquele dia. “ Eu comi muito pouco .Lembro que o total que eu gastei no restaurante foi R$ 3,50”. Quando Regina se encontrou com o grupo, não havia nenhuma novidade, pois os médicos passaram o boletim de informações para o período da tarde. O grupo que tinha recebido o acréscimo de Leandro, Eliza e Regina. Os seis ficaram na praça, relembrando a convivência com a mãe. Todos estavam muito emocionados. No horário da visita da tarde, Regina, Rafael e Antônia subiram para ver a idosa. Rafael estava muito ansioso e nervoso. Ele relembra aos prantos: “Quando eu tava falando com ela eu disse que ela podia ir, ela estava sofrendo muito e eu vi uma lágrima escorrer do olho dela”. Um paciente passou mal durante as visitas e o horário foi encerrado mais cedo. Passado o susto, Regina e Antônia foram falar com os médicos. Ambas relembram: “O médico nos deixou bastante esperançosas, falou que havia muitos procedimentos para se realizar, mas deixou claro que o caso era grave, porém era estável”. O grupo se encaminhou para a casa de Eliza, para fazer um lanche e retornar ao hospital. Rafael recorda que começou a sentir-se mal. “Eu lembro que me deu uma agonia, eu sabia que havia alguma coisa errada com ela. Hoje sei que foi a hora que ela passou mal”. No retorno ao hospital para a última visita do dia, Antônio, Antônia e Regina subiram, porém o horário das visitas atrasou. Naquele momento, Dulce estava tendo o infarto que tiraria sua vida. O médico liberou para todos os parentes a visita, pois iam fazer um procedimento de emergência para colocar um marca-passo no coração dela “Quando eu estava entrando no quarto eu ouvi o médico falando que ela havia morrido. Eu estava sozinha naquele momento. Eu lembro de sentir um vazio”, chora Antônia, ao lembrar . O restante do grupo entrou em prantos, todos choravam ao avisar os irmãos que não estavam presentes no hospital. Tina lembra: “Quando eu fiquei sabendo, eu entrei em choque. Antônio chorava igual um guri falando que ela não tinha esperado ele”.

Procedimentos finais O carro funerário de Jaguarão demorou cerca de três horas para chegar em Pelotas. Os familiares ficaram esperando na recepção do necrotério. “A espera para levar o corpo foi terrível, eu não consegui ver o corpo dela dentro do caixão”, fala Antônia. O corpo chegou ao cemitério por volta das quatro horas da manhã da quarta-feira. Os filhos e amigos foram chegando para o velório que durou até as 11 horas. “A memória que eu fico da minha mãe não é ela no hospital, não ela naquele caixão. Minha memória é dela feliz e saudável”, diz Tina, bastante abalada com a perda. A pior semana para essa família foi encerrada quando o coveiro fechou o túmulo. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Quando foi escolhido o tema o ‘O Último’, eu estava passando por um momento difícil. Fazia somente uma semana que tinha perdido minha avó, uma pessoa muito importante em minha vida. Por isso, resolvi homenageá-la nesta reportagem. Escrever sobre ela foi a maneira que encontrei de me recuperar, mas num processo muito difícil , pois tive que relembrar momentos tristes e doloridos para mim e minha família. Como repórter, foi complicado escrever sobre ela sem me emocionar. Algumas passagens narradas no texto foram particularmente difíceis, pois eu estava presente - e a função do repórter é relatar os fatos e não ser parte da história, mas ao mesmo tempo eu era parte dessa história. O desenvolvimento da reportagem foi muito prejudicado pela pandemia de COVID-19, que impossibilitou o deslocamento e a interação com os entrevistados, pois a maioria mora em cidades distantes.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 13


PELA “ALÔ,

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DANIEL MEDINA / ARQUIVO PESSOAL

Considerado por público e crítica o maior intérprete do carnaval de Porto Alegre, Carlos Medina conquistou o título em seis oportunidades


ÚLTIMA VEZ, HARMONIA!” Considerado o maior cantor da história do carnaval de Porto Alegre, Carlos Medina viveu seu desfile final em 2008 TEXTO DE RENAN SILVA NEVES

E

ra 1º de fevereiro de 2008. Um dia de calor na Capital gaúcha. Ao entardecer, diversos porto-alegrenses já se deslocavam ao Complexo Cultural do Porto Seco. Naquela sexta-feira, começaria mais um Desfile das Escolas de Samba de Porto Alegre. Porém, aquele não era um carnaval como qualquer outro. Às 22h55min, um grito de “Alô, harmonia” ecoou no sistema de som da Passarela do Samba, marcando o início do desfile da Escola Imperadores do Samba, a primeira a pisar na avenida. E com o fechamento da cancela e a marcação do relógio que simbolizam o final da apresentação da escola, às 23h50min, também se encerrava a trajetória de Carlos Medina no carnaval de Porto Alegre. Considerado por crítica e público o maior e melhor intérprete de samba-enredo do carnaval gaúcho, o cria-

dor do grito de guerra “Alô, harmonia” fechava seu microfone em um desfile pela última vez. Medina colecionou conquistas e admiradores em todos os lugares pelos quais passou. Porém, foi vestindo o manto vermelho e branco da Imperadores do Samba que o cantor encontrou seu verdadeiro “amor de carnaval”. E foi justamente defendendo a escola da Avenida Padre Cacique que encerrou sua trajetória.

Um apaixonado pelo mar vermelho e branco O carnaval de 2008 marcou o encerramento da quarta e última passagem de Medina pelos Imperadores. Uma trajetória que começou em 1982. Antes disso, o artista defendeu o canto da Tribo Carnavalesca Os Comanches e garantiu o status de revelação do carnaval após interpretar o samba “As alegrias da vida”, pela Academia de Samba Praiana, em 1980. Sonho antigo da direção da Imperadores, Medina foi contratado após o carnaval de 1981, quando defendeu a escola Acadêmicos da Orgia. Carlos Medina rapidamente se tornou ídolo da torcida da Imperadores. Porém, a primeira passagem foi encerrada em 1985, sem a conquista de títulos. Medina passou por Império da Zona Norte (1986) e União da Vila do IAPI (1987), até voltar para a vermelho e branco. Com enredo homenageando Paulo Roberto Falcão, veio o título do carnaval 1988. A segunda passagem foi mais curta, sendo encerrada após o carnaval de 1989. Em 1990 e 1991, Medina viveu momentos históricos, defendendo a União da Vila do IAPI. E é na “Vila”, no carnaval de 1991, que o artista passou a ter a companhia de seu filho, Márcio Medina, no seu grupo de trabalho no carnaval. Márcio foi companheiro de seu pai em todos os trabalhos no carnaval até 2008. “Meu pai nunca passou a mão na minha cabeça. Sempre foi muito exigente. A Vila foi um marco, pois, naquele ano foi formado um time forte para que a escola fosse campeã pela primeira vez. Quase conseguimos, pois veio um histórico vice-campeonato”, relembra Márcio.

A fase de ouro Medina “voltou para casa”, como ele gostava de dizer, em 1992. E foi naquele carnaval que o “clã” ganhou mais um integrante da família: o outro filho de Carlos, Daniel Medina, ingressou no time, tocando guitarra. “Meu pai criou algo absolutamente inédito no carnaval. Eu tocava guitarra com a palhetada de cavaquinho, dando um novo som a harmonia. Foi algo absolutamente inovador e que enfrentou certa resistência do mundo carnavalesco. Porém, o sucesso nas notas dos jurados ao longo dos anos e os títulos mostraram que ele estava certo”, destaca Daniel. Ao lado dos filhos, Carlos Medina se transformou na década de 1990 em um mito do carnaval de Porto Alegre. Veio o título de 1993 e o histórico tricampeonato em 1995, 1996 e 1997. A consagração extrapolou os limites do carnaval e surgiu o cantor de swing gaúcho (estilo semelhante ao samba-rock) Carlos Medina, que levava milhares de porto-alegrenses às casas noturnas para ouvir sucessos que eram tocados exaustivamente na extinta Rádio Princesa, tradicional emissora ligada ao samba e carnaval do Rio Grande do Sul. Naquele momento, jovens carnavalescos também escolheram torcer para a Imperadores do Samba. É o caso do radialista Alex Guimarães, que escolheu o pavilhão vermelho e branco da PRIMEIRA IMPRESSÃO 15


O carnaval de Porto Alegre apresenta uma rivalidade semelhante à do clássico Gre-Nal no futebol: Imperadores do Samba e Bambas da Orgia. Donas das duas maiores torcidas, as escolas protagonizam diversas disputas na Passarela do Samba. Medina, consagrado, já era um nome importante da história da Imperadores do Samba em 1997. E parecia inimaginável vê-lo vestindo azul e branco, cores da Bambas. Porém, uma proposta em maio daquele ano representou um dos momentos mais emblemáticos do carnaval gaúcho. “O convite para o pai defender Bambas da Orgia veio na hora certa, pois a escola estava há anos sem vencer o carnaval e viu na figura dele o fator propulsor para chegar à conquista”, relembra Daniel. Entretanto, para aceitar o convite, Medina ouviu a opinião dos filhos, que atuavam profissionalmente ao seu lado. “Foi difícil. Fui criado dentro da quadra de ensaios da Imperadores. Sou torcedor da escola. Quando o pai falou em Bambas, imediatamente falei que me sentiria estranho, mas que estaria com ele”, conta Márcio. Com os filhos ao seu lado, o convite foi aceito e Medina desembarcou em Bambas da Orgia para conduzir o canto da escola 16 PRIMEIRA IMPRESSÃO

A reconciliação Após cantar em duas escolas rivais da Imperadores, Medina voltou a Academia de Samba Praiana, 21 anos depois do desfile de 1980. Na escola, ficou entre 2001 e 2005, levando-a ao vice do carnaval de 2001. Um retorno à Imperadores parecia improvável. Torcedores

o acusavam de traição pelos anos nas escolas rivais. Logo após o desfile de 2005, surgiu uma proposta para retornar à Vila do IAPI. O acordo foi selado, porém, tudo mudou após um convite irrecusável. “Lembro que o pai me chamou e disse que voltaríamos para a Vila. Fiquei feliz. Porém, menos de uma semana depois, ele me ligou para dizer somente uma frase, que nunca mais esqueci: ‘Mudança de planos. Estamos voltando pra casa’. Lembro que me emocionei e já entendi do que se tratava”, relata Márcio. Em maio de 2005, Carlos Medina recebeu convite do então presidente Elbdes Rodrigues, o Turco, e acertou seu retorno à Imperadores do Samba. A festa de reapresentação reuniu quase duas mil pessoas na quadra da escola na avenida Padre Cacique. Era o início da quarta e última passagem de Medina na agremiação. Na mesma época, o cantor passou a dividir a carreira na música com uma batalha pela vida. Medina já apresentava problemas renais há alguns anos, e passou a fazer sessões de hemodiálise três vezes por semana. O artista também sofria de diabetes. Porém, a única mudança foi em sua resistência. “Percebíamos apenas que o pai passou a mostrar um óbvio desgaste físico após os ensaios e desfiles. Porém, a qualidade no canto jamais foi afetada”, lembra Daniel.

O último carnaval Depois de um desfile razoável em 2006 (3º lugar) e um resultado ruim em 2007 (8º lugar), a Imperadores do Samba começou o pré-carnaval de 2008 com boas notícias. Com o enredo “Olufiran, de Rei Carlos Medina: à esquerda, pela Imperadores do Samba, onde foi cinco vezes vencedor do carnaval; à direita, defendendo a Bambas da Orgia em 1999, quando foi campeão

ARQUIVO PESSOAL / MÁRCIO MEDINA

Desembarcando em território rival

no desfile de 1998, com o enredo “Barão das Catas Altas – Senhor das Minas Gerais”, levando a agremiação à quebra do tabu de oito anos sem títulos. Ele ainda defendeu a escola em 1999, até aceitar outro convite inesperado. Para o carnaval do ano 2000, o cantor se transferiu para o Estado Maior da Restinga, terceira maior campeã do carnaval de Porto Alegre e também considerada rival da Imperadores. A passagem pela “Tricolor da Zona Sul” de Porto Alegre durou apenas um ano. “Foi outra decisão difícil. Aquele carnaval foi trabalhoso, mas extremamente gratificante. O título não veio – a Restinga foi vice-campeã -, mas nossa parte foi bem executada”, conta Márcio.

ARQUIVO PESSOAL / DANIEL MEDINA

escola aos 14 anos, por conta de Carlos Medina. “Me apaixonei pela escola ao ouvir o Medina cantar. Sou Imperadores, por ouvir a voz dele naquele 1994. Não posso garantir que torceria para outra se ele estivesse defendendo outro pavilhão, mas admito que existe essa possibilidade”, diz. Porém, as atuações marcantes e os títulos da Imperadores do Samba nos anos 1990 contrastaram com dificuldades no relacionamento interno da escola. “O clima já não estava muito bom com o pessoal da Imperadores. Por alguns anos, foi possível seguir levando. Entretanto, houve um momento em que o pai achou melhor sair da escola, mesmo após ser campeão”, conta Márcio. E Carlos Medina encerrou sua terceira – e mais vitoriosa - passagem pela Imperadores do Samba justamente após um momento consagrador, com a conquista do tricampeonato no carnaval de 1997.


DANIEL MEDINA / ARQUIVO PESSOAL

a Mendigo, o Rei Negro que recebeu seu trono dos Imperadores”, a escola garantiu um dos melhores sambas daquele carnaval, de acordo com a crítica especializada. Medina estava empolgado. “A gravação daquele samba é uma das mais belas que já ouvi”, relembra Alex Guimarães. O refrão “Pronto pra voltar/Ao trono de Oranian, que é o seu lugar/Imperador chegou para dizer: Kaô Kabecilê!”, foi um dos mais cantados após o lançamento do CD do carnaval 2008. Entretanto, pouco antes do carnaval, algo abalou Medina. “O pai soube de um boato que queriam trocar de intérprete para 2009. Acabou contaminando não só a harmonia, mas até mesmo os demais segmentos”, relembra Daniel. Apesar de abalado e com a saúde enfraquecida, Medina foi um ponto positivo em um desfile problemático, como conta o jornalista Elias Costa, repórter da Rádio Gaúcha naquele carnaval. “Entrevistei o Medina várias vezes naquele pré-carnaval. O desfile foi cheio de problemas, dois carros alegóricos quebraram, a escola teve uma perda de pontos de pontos enorme e quase foi rebaixada. Porém, mesmo com todas as dificuldades, tanto pela sua saúde, quanto pelos problemas da escola, o Medina cantou de forma brilhante, como sempre, e garantiu suas notas 10”, conta. A tensão do desfile também foi sentida pelos torcedores. “Estava na arquibancada, acompanhando

Em seu último desfile, Medina levou seu microfone para o meio da torcida da Imperadores do Samba

também a transmissão de rádio. Comecei a ouvir que a escola estava cheia de dificuldades, que corria risco de rebaixamento. O único alento daquele carnaval foi a atuação do Medina”, recorda Alex. Na apuração, a Imperadores ficou em 13º lugar, escapando por detalhe do rebaixamento. As notas do quesito harmonia musical, comandado por Medina, foram essenciais para a permanência. Apesar do resultado ruim no desfile de 2008 e da saúde frágil, Medina nunca afirmou que queria deixar a escola. E a grande mágoa que levou consigo foi a sua última saída, definida já por uma nova diretoria. “O que mais doeu foi que nunca o comunicaram de seu desligamento. Um certo dia, ele ficou sabendo, pela imprensa, que a Imperadores havia contratado um novo cantor. Trouxeram outra pessoa sem nem o demitirem. E antes de honrarem os pagamentos alusivos ao carnaval de 2008, quitados somente após esta outra contratação. Ele nunca disse que queria sair”, lembra Márcio. “Foi lamentável como conduziram

a saída do Medina. O maior intérprete da história do carnaval de Porto Alegre não merecia ser tratado desta forma”, diz Alex. Questionada sobre a decisão de demitir o cantor após o desfile de 2008 e as críticas dos familiares em relação a forma que foi conduzido o episódio, a direção atual da Imperadores do Samba informou, em nota, que a definição foi do então presidente Luiz Carlos Amorim, falecido em 2015. “A saída de Carlos Medina foi uma decisão do então presidente Amorim. Não cabe a direção atual comentar sobre o fato e nem sobre às críticas endereçadas à agremiação”, diz a nota. A saída da Imperadores em junho de 2008 simbolizou o final da carreira de Medina no carnaval das escolas de samba de Porto Alegre. Apesar de viver um último desfile aquém do esperado, encerrou sua trajetória no carnaval com seis títulos (segundo maior campeão, atrás apenas de Sandro Ferraz, que segue em atividade) e diversas premiações individuais. Entre 2008 e o início de 2011, o artista optou por se dedicar à Banda Saldanha, grupo também ligado ao carnaval e que participava, na época, como bloco do Carnaval do Rio de Janeiro. Por complicações renais, Medina faleceu em 27 de março de 2011, aos 63 anos. É considerado um marco na história do carnaval porto-alegrense e é admirado por torcedores de todas as escolas. Seu tradicional “Alô Harmonia!” foi ouvido pela última vez num desfile de carnaval às 22h55min de 2 de fevereiro de 2008. Mas sua voz segue ecoando até os dias atuais. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “A ideia de contar a história do último carnaval de Medina surgiu do meu amor pelo carnaval de Porto Alegre. Antes de repórter, sou carnavalesco. Na construção da reportagem, percebi a representatividade de Carlos Medina. Todos os depoimentos foram carregados de emoção. Todos falaram com enorme saudade e com imensa alegria por relembrar os momentos da carreira do cantor. Em meio a pandemia de Covid-19, tive que modificar meu planejamento. Inicialmente, iria visitar todas as fontes e gravar em vídeo às entrevistas. Acabei realizando todas por telefone. Mesmo sem a imagem, as gravações das ligações são registros emblemáticos. Carregadas de emoção, as falas dos entrevistados simbolizam o quão Medina é querido pelo povo carnavalesco. Com os filhos - Márcio e Daniel -, músicos que atuaram ao lado do pai por anos, pude saber mais sobre os bastidores dos trabalhos. Com Alex Guimarães, vi como Medina é representativo para a torcida da Imperadores. E com Elias Costa pude ter noção sobre a forma que a imprensa especializada noticiava sobre o artista. Foi uma enorme satisfação poder falar sobre Carlos Medina. Minha mãe, apaixonada pela Imperadores do Samba, sempre foi fã dele. Cresci ouvindo os sambas de enredo e as músicas de swing gaúcho cantadas por ele. E apesar de ser torcedor da Imperatriz dona Leopoldina, escola que ele nunca defendeu, sempre o admirei e idolatrei. Eternamente, ‘Alô, Harmonia!’.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 17


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ARQUIVO PESSOAL / JANAÍNA FIORAVANTE

VÉSPERA DE

MUDANÇA O que marca o último dia antes de partir para outro Estado? TEXTO DE GABRIELA STÄHLER

A

mudança para outro Estado pode representar uma grande reviravolta na vida de alguém. O dia que antecede esse movimento é inesquecível para quem gosta de fortes emoções. Ansiedade, choro, felicidade, expectativas, sonhos, preocupações. A véspera da viagem fica na memória de quem parte e de quem fica. Às vezes, o último dia antes de partir é marcado pelo caos, principalmente quando se trata de mudanças às pressas. É o caso de Janaína Fioravante, de 24 anos, estudante de Marketing. A jovem saiu do calor de Manaus em agosto de 2019 para viver em Canoas com o namorado, com quem tinha um relacionamento a distância. Os dois se conheceram quando Janaína e a família passaram um tempo morando na cidade gaúcha. Janaína conta, com brilho nos olhos, sobre seus pais, a saudade de Manaus e sua relação com as irmãs, que não vê desde que partiu. Com bandana na cabeça e ar sonhador, a estudante relatou seu último dia antes de chegar em solo gaúcho. Ela já namorava com Michael, morador de

Canoas, e acabara de trancar a faculdade de Publicidade para ajustar sua rota profissional. Ela também tinha passado por uma demissão do emprego de assistente de marketing em uma concessionária. Fiquei chateada, tinha sido injusto, me passaram pra trás. Tava sentindo que era hora de sair da zona de conforto. Aí pensei assim: vou receber o dinheiro da rescisão, preciso decidir o que fazer da minha vida. Eu estava passando por um momento conturbado. No trabalho me sentia sã e, quando perdi o emprego, pensei que tinha acabado para mim. Com a decisão de sair da cidade, Janaína conversou com Michael, que se dispôs a ajudar no que podia. “Conversando com meu namorado, eu disse que a vida não estava indo pra frente, que preci-

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Mudança por amor Quem também mudou-se para o Rio Grande do Sul em nome de um relacionamento é Maria Emília Alves de Oliveira, de 51 anos, que morava em Juazeiro, na Bahia, cidade de clima seco e quente. Ela passou a morar com o namorado, em Esteio, em janeiro de 1997. Na época, a comerciante tinha 28 anos e precisava encarar uma mudança de qualquer forma. Ou se mudava com os pais, para uma cidade no interior do Estado, ou vinha para o Sul com o namorado, que sentia falta da família e queria voltar a viver na cidade natal. Foi uma cruel decisão, mas eu vim. Tinha curiosidade de conhecer o Sul, eu nunca tinha saído da minha cidade. Por gostar dele eu vim, experimentar. E estou aqui há 23 anos – conta, mostrando a animação que sentiu com a mudança. Para Maria Emília, o último dia em Juazeiro foi “cruel”. As amizades que ela iria sentir falta, a família que 20 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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sava sair dali”, conta. A partir daí, foram 27 dias de organização para sua chegada a Canoas. Ao falar da relação com o namorado, Janaína sorri e expressa gratidão ao dizer que ele tirou férias na sua primeira semana na cidade. Em seu último dia em Manaus, Janaína lembra de ter pesado as malas umas cinco vezes, com medo de ter que pagar a mais pelas bagagens e comprometer o orçamento já apertado. Eu trouxe duas malas despachadas, uma de mão e uma bolsa. Eu soquei o máximo de roupa, o máximo de coisa. Trouxe alguns livros que eu sentia que ia precisar, livros acadêmicos. Eu não sabia quando eu ia conseguir voltar a estudar. A despedida no aeroporto foi na companhia da mãe, das irmãs mais novas e do cunhado, que foi dirigindo. Com as duas irmãs mais velhas e o pai, a despedida foi antes, pois todos trabalhavam naquele dia. Para as caçulas, gêmeas de 15 anos, Janaína deixou dois cadernos para que elas pudessem escrever tudo que sentiam como se a irmã as estivesse lendo o tempo todo. As pequenas estavam mais sentidas, são muito apegadas a mim. Elas têm aquela mentalidade mais inocente, de criança. O que elas mais sentem falta é me ter perto para contar as coisas que elas não contam aos meus pais.

era tão próxima e o medo “Não foi uma decisão Com os pais, que já haviam se mudade uma nova vida em do dia pra noite”, do para outra cidade, a despedida foi por um local desconhecido conta Janaína sobre telefone. “Minha mãe disse: faz o que teu fizeram com que a des- a mudança coração mandar. Já fiquei mais segura”, pedida fosse mais triste. conta com uma gargalhada ao lembrar o “Ali era meu chão, era meu berço. alívio ao receber apoio em um dia de tanta ansiedade. Mas me arrisquei. Foi difícil, foi “Sempre o desconhecido assusta. Tu ter 28 anos e bem complicado”, relembra. nunca ter saído do círculo familiar é complicado”, O último dia na cidade foi de diz. Naquela época, a comerciante já morava com preparativos para a viagem. O casal o namorado há um ano. Eles estão juntos até hoje, veio de carro, trazendo tudo o que tendo duas filhas gêmeas adotivas, de 15 anos. podia para mobiliar a nova casa. Resumindo seu último dia na cidade em uma O que não conseguiram colocar no palavra, Maria Emília fala de sofrimento, com cerveículo eles venderam, como a gela- ta angústia na voz. “Eu vinha para o desconhecideira e o fogão. A viagem durou três do. Não sabia o que ia encontrar”, conta com um dias e o namorado de Maria Emí- ar de nostalgia. A comerciante se diverte quando lia, hoje marido, veio dirigindo. A lembra que pensou que nas terras gaúchas fadespedida oficial foi com os colegas zia frio o tempo todo. Hoje ela já gosta mais do de trabalho, que ajudavam o casal frio do que do calor e está bem adaptada. com as vendas de almofadas. Para matar a saudade da família, Maria Emília Eles foram lá abraçar a gente, vai a Juazeiro a cada três anos. “A gente se fala por choramos, foi uma coisa meio difí- telefone e vai matando a saudade”, diz com um sorcil. Minha irmã tinha viajado, não riso. “Gostaria que meus pais e irmãs tivessem aqui, tinha ninguém da família. Foi o co- pra gente se encontrar final de semana”. Nesse meio ração partido mesmo. Prometemos tempo, o que fica são as lembranças e o pé de serinos comunicar. Para alguns funcio- guela, que a comerciante plantou na frente de casa. nou até certo tempo, depois não A fruta é um lembrete de suas próprias raízes e uma tive mais contato - lamenta. forma de trazer um pouco da Bahia para o Sul.


GABRIELA STÄHLER

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Sempre me fascinou a determinação das pessoas que deixam a família, os amigos e o conforto do lar para encarar novos rumos em outro Estado. Por isso, para minha reportagem, decidi conversar com pessoas que chegaram ao Rio Grande do Sul e construíram uma nova vida. Ouvir Caroline, Janaína e Maria Emília foi uma tarefa diferente, por causa do isolamento social devido ao novo coronavírus. Foram chamadas de vídeo muitas vezes atravessadas por um sinal de internet instável ou ruídos aqui e ali. Porém, mesmo pela tela, pude sentir a emoção de quem sente falta da família, se surpreendeu com os novos caminhos da vida e encontrou um novo lar no Sul. As histórias ensinam que a coragem é fundamental para que novas oportunidades se abram, e que estar longe fisicamente da família é menos difícil quando se tem a internet. Uma história de amor pode ser o motivo da uma mudança, mas aprendemos que os ganhos e aprendizados vão muito além dos relacionamentos quando se decide recomeçar em outro lugar.”

Novo desafio profissional Também acompanhada de um amor gaúcho, a paulista Caroline Kandlbauer, de 31 anos, se mudou para Canoas há nove anos. Ela conta sobre o processo de mudança, enquanto se ouve ao fundo os dois filhos brincando na casa em que mora com o marido Matheus. Eles se conheceram na úmida cidade de São Vicente, em São Paulo, em 2004 e depois se mudaram juntos para a capital paulista. Anos depois, porém, o gaúcho voltou para o Rio Grande do Sul com a família. Por lá, Caroline terminou a faculdade, iniciou a carreira na área bancária e, um tempo depois, o casal decidiu reatar. Foi então que a assistente comercial iniciou a busca por um emprego no Sul. A oportunidade veio em uma rede bancária, com um bom salário, e ela decidiu partir em junho

de 2011. Matheus, que morava Caroline, Janaína em Porto Alegre, foi até São e Maria Emília Paulo para ajudar Caroline na partiram para viver mudança e os dois viajaram com amores gaúchos de carro. No seu último dia na cidade, Caroline lembra de algo inusitado: A gente arrumou todo o apartamento e precisava fazer hora. A gente foi para o Carrefour e ficamos dormindo no estacionamento, a manhã toda com o carro cheio de coisa. Eu esperei dar a hora e fui embora. A gente tinha uma viagem longa pela frente. A mudança não foi motivada apenas por amor ou um bom emprego. A assistente comercial também não gostava da vida na capital paulista. O estilo de vida de onde morava, o bairro Liberdade, também não lhe agradava. “O ritmo da cidade é diferente, o ritmo das pessoas. As pessoas de lá nunca estão satisfeitas, sempre querem mais. Prefiro uma vida mais sossegada”, conta. O último dia na cidade, além de descanso, foi dedicado à mudança. Caroline tinha um prazo curto para se mudar e começar no emprego. Por isso, não teve tempo de vender as coisas do apartamento. Com ar de tristeza, ela lamenta que não conseguiu se despedir da mãe, que morava no Litoral. Dois meses depois da mudança, em agosto, a mãe faleceu e Caroline retornou a São Paulo por alguns dias. A gente tava indo pra serra comemorar o ani-

versário do Matheus e eu soube que ela tinha morrido. Ela não tava doente, foi dentro de casa. Ninguém esperava. Eu voltei para o enterro dela e vi toda a família. Foi então que meu pai soube que eu tinha me mudado, não tinha falado para ele. Caroline, porém, considera que sua vida só começou de verdade quando se mudou para o Rio Grande do Sul. Para ela, o seu último dia em São Paulo marca um renascimento. Duas ou três vezes no ano ela volta ao estado para visitar os avós, que não podem viajar, mas conversa com eles pela internet sempre que pode. São muitas nuances, objetivos e trajetórias diferentes, mas quem chega ao Rio Grande do Sul encontra um novo lar e forma uma nova família. Dos estados em que nasceram e cresceram, ficam a saudade, os aprendizados e os parentes que a tecnologia consegue aproximar. n PRIMEIRA IMPRESSÃO 21


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“MEU SANGUE É PALESTINO” Há 19 anos no Brasil, Mahmoud relembra seus últimos momentos em Ramala TEXTO DE EMERSON DOS SANTOS

M Mahmoud, a esposa Najat e os filhos Elayan, Hala e Dalya em foto de estúdio poucos dias antes de Mahmoud deixar Ramala

ahmoud acabara de deixar Ramala. Ele e Fauzy Shaban, seu primo, partem em direção a Jericó, a cidade mais antiga do mundo. De lá, seu destino é Amã, a capital da Jordânia, mas o percurso será difícil. Em setembro de 2000, o líder oposicionista israelense Ariel Sharon (1928/2014) havia feito discurso reafirmando controle sobre os territórios palestinos - Ehud Barak, do Partido Trabalhista, era o Primeiro-ministro de Israel na época. Naquele mesmo mês, Sharon visitou a Mesquita de Al-Aqsa, local sagrado para o islamismo. Era uma afronta ao povo palestino. Deu-se início, assim, à segunda intifada. Os palestinos revoltaram-se contra a política de ocupação adotada pelo Estado de Israel mais uma vez. O exército israelense estava nas ruas da Cisjordânia. Mahmoud Aladdin Sharaka, 51 anos, é palestino e, hoje, vive tranquilamente em Sapiranga, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Mas em 18 de dezembro de 2000, ele percorria, possivelmente, os quilômetros mais difíceis de sua vida. Não somente pela distância - eram quase 25 quilômetros até Jericó e, dali, outros 43 até Amã -, mas também pela dúvida. Da Jordânia Mahmoud embarcaria em um avião rumo ao Brasil, a pedido do irmão mais velho, Taher, e deixaria sua família na Palestina. “Vivia uma vida normal [na

Palestina], dentro do possível. Era difícil, mas a gente se acostuma”, revela Mahmoud. No dia anterior ele havia ido ao mercado, pela manhã, e comprado alimentos para seus filhos. Depois, visitou alguns amigos para despedir-se e, mais tarde ainda, recebeu familiares em sua casa. Então, às 5 horas do dia 18, Mahmoud despediu-se de sua esposa, Najat Omar Ibrahim, de sua mãe, Aesha Youssef Ismail, e de seus irmãos. Os filhos estavam dormindo e ele não quis acordá-los. Beijou-os, apenas, e partiu. “Quem tem passaporte palestino, não consegue sair por Tel Aviv. Então, tinha que ir para a Jordânia”, afirma Mahmoud. E o único caminho era por Jericó. “Foi muito difícil. Os soldados israelenses nos paravam e nos revistavam”, disse. No percurso, eles tiveram que trocar de veículo algumas vezes e procurar estradas alternativas para tentar desviar dos soldados. De Jericó, foram mais dois quilômetros a pé, debaixo de chuva, sobre a lama e expostos ao frio, até a fronteira com a Jordânia. Em Amã, eles ficariam na casa de uma irmã de Mahmoud até o dia 24 de dezembro, quando ele embarcaria para o Brasil - ou deveria. Problemas na confirmação da passagem frustraram o embarque e quase fizeram com PRIMEIRA IMPRESSÃO 23


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guém podia sair. Ninguém podia entrar. Ficamos 40 dias sem poder sair de casa”, revela. E segue: “Foi muito difícil pra gente”. Mohamad, irmão mais novo de Mahmoud, ficou preso por dois anos, após atirar pedras em uma manifestação contra o governo israelense. Não à toa, a primeira intifada ficou conhecida, também, como guerra das pedras. “Não teve uma família que não sofreu”, afirma. O Exército de Israel passou a bloquear os caminhos com terra e pedras. “Antes disso, de Ramala para Jerusalém, eram 45 minutos. Naquela época, duas ou três horas ou, às vezes, não conseguia passar. Tinha que voltar para casa”, diz o palestino. O momento de tensão só teve fim após a assinatura dos Acordos de paz de Oslo, na Noruega, entre líderes palestinos e israelenses. “Depois do acordo, em 93, ficou muito calmo [em Ramala]”.

Mais de 10 mil quilômetros dali O mapa mostra os três pontos do percurso de Mahmoud até a Jordânia

que Mahmoud voltasse à Palestina. Porém, Taher, o irmão, providenciou outra passagem e o embarque aconteceu em 27 de dezembro de 2000.

Ramala Ramala está localizada na Cisjordânia, território majoritariamente habitado por árabes e reivindicado pelo Estado da Palestina. Mahmoud e sua família viviam em Jalazone, um campo de refugiados ao norte de Ramala, desde que seus pais tiveram que se deslocar para lá no episódio que ficou conhecido como Nakba. Nakba, em árabe, significa catástrofe e remete ao êxodo palestino que aconteceu em 1948, após o estabelecimento do estado judeu. Mais de 700 mil palestinos foram forçados a deixar suas casas naquele período. Mahmoud nem era nascido na época, mas ouviu de seu pai que Bayt Nabala, a vila onde este vivia, fora destruída, o que o obrigou a refugiar-se em Jalazone. Além disso, Ramala fica 15 quilômetros ao norte de Jerusalém, o foco das disputas entre israelenses e palestinos. O status de Jerusalém está em disputa desde a criação de Israel e a guerra que a acompanhou. Israel anexou a parte oriental da cidade, localizada na Cisjordânia, em 1967. A Organização das Nações Unidas (ONU) considera Jerusalém Oriental apenas ocupada, já que o território também é reivindicado pelos palestinos. É lá que estão a Mesquita de Al-Aqsa, o Muro das Lamentações e a Igreja do Santo Sepulcro. Em Ramala, Mahmoud viveu a primeira intifada. Entre 1987 e 1993, os palestinos manifestaram-se contra a ocupação israelense pela primeira vez. A partir dali, tudo mudou. “Quando aconteceu a intifada, todos participaram. Jovens, mulheres, crianças. Não era algo que pertencia a um grupo político. Era o povo palestino”, disse. Ele conta que o governo de Israel fechou o território palestino naquela época. “Nin-

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“No Brasil, talvez seja melhor. É mais aberto. Tu consegue sair.” Assim, Mahmoud encarou a ida ao país sul-americano como uma oportunidade. Taher, seu irmão, era casado com uma brasileira e já morava no país há algum tempo. Em 1986, Taher visitou a Palestina e convidou o irmão mais novo para atravessar o Oceano Atlântico consigo. Mahmoud tinha 17 anos à época e não sabia ainda, mas sua jornada teria início 16 anos depois. Ele tentou tirar o visto brasileiro em 1988 e, depois, em 1991. Em nenhuma das vezes teve sucesso. Foi somente em 2000 que sua solicitação foi aprovada. O palestino chegou ao Brasil, então, em dezembro daquele ano, com visto de três meses. De início, ele entrou no país como turista. Três meses depois, Taher lhe perguntou: “Tu quer ficar ou voltar?”. Mahmoud decidiu ficar. Ele telefonou para sua esposa e pediu a ela que encaminhasse a documentação para que também viesse ao Brasil. O processo foi demorado e, apenas em 25 de dezembro de 2002, dois anos após a chegada de Mahmoud, sua esposa desembarcou no país. Junto a ela, as filhas Hala e Dalya e os filhos Elayan e o pequeno Yousef. O quinto filho do casal, Karim, nasceria em terras tupiniquins. Hoje


eles têm 24, 22, 20, 18 e 16 anos de idade, respectivamente.

“A família é tudo” Dalya Sharaka tinha apenas cinco anos quando deixou a Palestina em 2002. Apesar disso, ela não esconde o carinho pela terra natal. “Minha relação com a Palestina é de muita gratidão e muito amor. Eu defendo muito o país onde nasci”, afirma. E isso deixa Mahmoud muito feliz. Ele não esconde: “Somos palestinos, árabes e muçulmanos. Conversamos sobre isso sempre que temos oportunidade.” Mahmoud revela que mantém conexão com seus primos e irmãos que estão na Palestina. “A família é muito presente na cultura muçulmana. A família é tudo.” Eles também frequentam os jantares da Sociedade Árabe Palestina, em Sapucaia do Sul, a fim de manterem-se mais próximos da cultura de seu povo. Além disso, Mahmoud diz que a família costuma assistir à programação árabe de televisão,

em transmissão original. O que ele está assistindo no momento é a série “Guardião de Jerusalém”, em tradução livre, que traz a biografia do arcebispo sírio Hilarion Capucci (1922-2017) que, mesmo católico, defendeu a causa palestina. A série é exibida pelo canal pan-arabista Al Mayadeen. Ainda assim, ele declara: “Temos muito amor pelo Brasil.” Hoje, Najat e o filho Karim estão em Ramala. Ela retornou à Palestina 17 anos depois de deixar a região. Ele, por vontade própria, está conhecendo suas origens e a terra onde seus pais e seus irmãos nasceram. Devido à pandemia de Covid-19, eles estão em quarentena, como grande parte do mundo, mas felizes. O retorno ao Brasil está previsto para junho e, tão logo regresse Karim, seus irmãos pretendem ir à Palestina também, assim como Mahmoud: “Tenho planos para ir visitar minha família lá. Nunca sai da minha cabeça [isso]. Tenho que visitá-los.” Há 19 anos ele deixou Ramala, antes do sol nascer. E mesmo seguindo àquilo que escolheu para si, conta que não houve um dia sequer, até hoje, em que não desejasse estar na Palestina. Foi assim que o cantor Mohhamed Assaf, em uma de suas composições, descreveu com precisão o sentimento palestino: “Mantendo meu juramento, seguindo minha religião. Você vai me encontrar na minha terra… Meu sangue é palestino.” Agora, Mahmoud promete certificar-se de que 18 de dezembro de 2000 não tenha sido, de fato, seu último dia em Ramala. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Foi desafiador, mas conseguimos. Nesse semestre, produzimos uma revista em meio à pandemia de Covid-19 que colocou um terço da população mundial sob isolamento social, segundo a agência France Presse. Durante esse período tivemos que, muitas vezes, escolher entre o ideal e o possível para fazer Jornalismo. E o possível foi sempre pautado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. A reportagem que escrevi traz a história do palestino Mahmoud e, apesar de vivermos a apenas 10 quilômetros de distância, foi o WhatsApp que nos possibilitou uma conversa. Aliás, é em momentos como esse que percebo o quanto nossas vidas são ditadas, cada vez mais, pela internet, já que minha pauta surgiu no Instagram. Foi na descrição do perfil de Dalya, onde ela exaltava o orgulho que tem de ter nascido na Palestina, que encontrei uma história. Foi assim que cheguei até seu pai, Mahmoud. O que fica disso tudo? Que o Jornalismo é essencial à sociedade, principalmente em momentos de crise. E que, existindo pessoas dispostas a contar histórias, o Jornalismo se adaptará e permanecerá.” EMERSON DOS SANTOS

“Guardião de Jerusalém”, em tradução livre, série exibida no canal pan-arabista Al Mayadeen PRIMEIRA IMPRESSÃO 25


FREEPIK

AS ÚLTIMAS LEMBRANÇAS

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sistema límbico — área cerebral responsável por administrar as emoções de cada indivíduo — libera dopamina quando se está apaixonado. A substância provoca sentimentos durante os pensamentos na pessoa amada. Porém, há chances da paixão cessar e o caminho dos “pombinhos” seguir rumos distintos. Exatamente como aconteceu com L. e F. em um passado não muito distante. A pedido de L., por receio de que possa causar constrangimento em seu atual relacionamento, serão utilizadas apenas as primeiras iniciais de cada nome. O jovem açougueiro de Canoas contou com a colaboração das mães para juntar o casal. Os dois anos de felicidade acabaram por iniciativa dele, que era músico numa banda de pagode. Apesar disso, é só elogios à primeira namorada. Já F., estudante de Sapucaia do Sul à época, garante ter se apaixonado de cara pelo rapaz que quase desmaiou no primeiro encontro. Tinha certeza que aquele seria o grande amor da sua vida. Mas não foi. Com o coração arrebentado pela frustração, conseguiu seguir em frente para novas aventuras. Também garante ser grata ao garoto que lhe fez juras na adolescência. Uma história comum de dois jovens, que se apaixonaram antes da maioridade, conviveram, fizeram promessas jurando eternidade, mas ficaram pelo tempo.

Passada uma década do término, os dois mantêm uma amizade sincera, algo nem sempre rotineiro após tanto sentimento envolvido e recordam um amor que poderia ter sido contínuo, mas esbarrou em escolhas.

A versão dela: cumplicidade entre as mães, calculadora e o desastroso primeiro encontro Recém-radicada em Rio Grande, distante 317 quilômetros da capital gaúcha, por questões profissionais, ainda se ambientando na cidade litorânea — e a nova rotina — F., jornalista formada pela PUCRS no início deste ano, anda pelo novo apartamento. Entre uma mordida e outra num sanduíche feito na hora, com o sorriso no rosto que lhe é característico, acompanhada da Paçoca, sua cachorrinha há cinco anos, recorda 2008, quando abriu o seu coração para L. — Achei ele interessante — recorda. A distância nunca foi um problema para ela. No auge da adolescência, morava com o pai em Sapucaia do Sul, mas todos os finais de semana se deslocava até Canoas. Aos 14 anos, já praticamente com uma rotina estabelecida depois dos cinco dias de aula, em uma casual ida para fazer compras em um minimercado, no bairro Rio Branco, logo na entrada do município, soube do jovem dois anos mais velho, que estava interessado nela. O açougueiro do estabelecimento comercial tinha uma vantagem: a amizade entre as mães, futuras sogras: — A mãe dele vendia Avon e Natura e a minha comprava dela. Um dia nós fomos buscar algumas encomendas, conversa vai e vem e ela insistia que eu conhecesse o filho dela. Depois eu fui saber que era por pedido dele — conta, se divertindo. Num breve toque do celular hoje em dia, salva-se um número de telefone, um perfil de rede social e um contato é criado. Mesmo em franco desenvolvimento, a tecnologia ainda não era tão disseminada há alguns anos. No modo mais roots possível, uma mãe passou para a outra o contato, através do visor de uma calculadora: estava criado o elo. — Era aquela calculadora que desligava sozinha.

DE UM AMOR ADOLESCENTE Após quase uma década do término, casal recorda relação afetiva frustrada TEXTO DE SAIMON BIANCHINI

Ela perdeu o meu número! Ele ficou “p” da vida por isso — exclama. A sorte parecia contra os pombinhos. Quis o destino que no primeiro encontro — atualmente popularizado como date — tudo desse errado. A Orla do Guaíba foi escolhida como palco para trocarem as primeiras palavras a sós. Porém, o nervosismo do garoto pesou contra o momento. — Ele passou mal no meio da orla. Tive que correr para acudi-lo. Fomos embora — relembra. Afinal, quem nunca teve um sustinho básico perto da pessoa amada? Logo, não demorou muito para aflorar o sentimento. A paixão era sustentada com intensas mensagens de texto. Trocaram alianças de PRIMEIRA IMPRESSÃO 27


compromisso: para selar de vez o sentimento à altura do campeonato. E assim foi por quase dois anos. Até que um dia, para a surpresa da garota apaixonada, ela conheceu o gosto amargo da desilusão amorosa: ele colocou o ponto final de forma inesperada, frustrando o coração dela pela primeira vez. — Eu sei que a gente terminou e eu saí chorando. É isso que eu lembro — lamenta, dizendo que, pelo trauma, deve ter criado um bloqueio, e desta forma, esquecido os acontecimentos. E como dilacerou o sentimento daquela mulher então com 16 anos: para agravar a situação, meses depois, quando tinha ido morar com a sua mãe justamente perto do antigo namorado, trabalharam no mesmo local: no único shopping de Canoas à época. Uma tortura diária para alguém em franca recuperação sentimental: cruzar todos os dias com a pessoa amada. — Eu escrevia cartinhas para ele, mas não entregava! — confessa. O destino tratou de levar F. para novos amores, novas experiências e novos namorados. Mesmo tendo reencontrado L. em diversas oportunidades, nunca uma recaída aconteceu. Pelo contrário, nasceu uma sincera amizade posteriormente. — Ele é uma pessoa maravilha! — ressalta.

Precisão, lembranças e a motivação para o término: a versão dele L. é dois anos mais velho que F. Ela mesma aponta que ele tem recordações mais precisas sobre alguns episódios da convivência. Em linhas gerais, os fatos descritos são felizes, com divergências nas lembranças, porém nada que afete o combo do amor. Não há reclamação. Segundo o ex-açougueiro, hoje supervisor de logística, a responsável pela união dos pombinhos foi a mãe dela. — Um belo dia ela apareceu com a mãe. O interesse foi fácil, né? Apareceu com aquele sorrisão enorme — relembra. Entre os corredores de um mercado de pequeno porte, o cupido fez o seu trabalho. No caso, a ex-sogra foi a responsável por juntar o casal juvenil. — Nesse mesmo dia, ela ligou para o mercado e pediu meu telefone. Era um sábado — recupera o 28 PRIMEIRA IMPRESSÃO


KATEMANGOSTAR / FREEPIK

rapaz, que garante que o primeiro beijo não foi na frente da mãe. Diferentemente dos dias atuais, a comunicação não era tão facilitada. Mas como diz o velho ditado popular: quem quer, dá um jeito, não é mesmo? — Começamos a conversar, passamos a semana toda trocando mensagens. Pena que não existia Whatsapp na época, isso quase me faliu — descontrai. A versão de L. é mais direta: o primeiro encontro e o primeiro beijo foram na casa dela. Um jantar com a mãe dela, sempre ela, foi feito para os dois ficarem mais próximos. — Ali ficamos pela primeira vez — aponta. Relembrado por F., o encontro no Gasômetro não foi como planejado. O quase desmaio, de acordo com ele, foi causado por “uma queda de pressão”, afinal, quem não se abala perto de quem se gosta? Com o passar dos dias, tudo foi ficando mais sério entre os dois. Não há um momento destacado por eles que tenha sido determinante para o início do namoro. Rolou. Nada programado. Quando se atentaram, estavam apaixonados e conectados num relacionamento. — Foi muito bom, éramos bem jovens, fomos nos conhecendo e conhecendo coisas novas — salienta. O único fato lamentado por L. não chega a ser uma reclamação, apenas recordação: F. brinca até hoje por ele ter sido o único namorado a terminar com ela. — Vive me jogando na cara — em tom descontraído. A maturidade que se aproximava dos adolescentes com o passar do tempo também serviu para separá-los. Com dois anos de convivência e menos de 20 anos de idade, o ciclo foi encerrado. — Eu era muito guri. Na época, tocava em grupo de pagode, não queria muito ficar ‘preso’ — justifica. A popularidade que se apresentava ao garoto atraía muita gente. Para “não fazer nada de errado”, a opção foi por ficar solteiro. Assim, ele garante “nunca ter aprontado”. — A conversa eu não lembro. Lembro que foi na minha casa — diz L. Passada uma década, mais maduro, com bagagem de vida e outras experiências, ele relata já ter se arrependido em alguns momentos sobre o término. Principalmente,

pela boa relação que ambos mantêm até os dias atuais. — A gente sempre se deu muito bem. Ela é uma pessoa fora de série — resume. Ao mesmo tempo, tudo que viveu a partir da separação é celebrado. Ele queria viver a vida e conseguiu. — Ela é muito importante (na minha vida). Foi minha primeira namorada — destacou.

E o último beijo? É consenso entre os dois que a convivência deixou mais pontos positivos do que negativos. Mesmo que a vida tenha levado os dois para outras pessoas, cidades e caminhos, a relação é sadia e os contatos, frequentes. — Temos uma amizade muito boa. Há uns meses saímos para tomar uma cerveja juntos. Foi muito bom, rimos bastante — comprova L. Curiosamente, F. diz ter ampliado o leque de amizades, inclusive, com outras namoradas de L. Tem até uma boa relação com a ex-esposa dele: — A gente mantém contato, conversamos todas as semanas — revela. Possivelmente pela amizade ter superado o relacionamento acabado, nenhum dos dois lembra o último beijo. Garantem veracidade, sinceridade e jamais reprisado o amor juvenil: — A sensação foi boa — relembra L. — Eu lembro as coisas boas e divertidas — destaca F. L. e F. são exemplos do amadurecimento pessoal que uma relação pode gerar. Apesar dos desencontros, conseguiram transformar o carinho nutrido numa parceria. Trocaram o amor pelo companheirismo. Cientificamente também há explicação: os sistema límbicos de L. e F. deixaram de produzir dopamina um pelo outro e passaram a liberar mais ocitocina, o hormônio da amizade. Assim, a ligação é mantida de uma forma diferente. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “As particularidades impostas a essa reportagem foram agravadas pela pandemia de covid-19. Dentro das limitações de trabalho por conta da doença, conseguimos explorar com as fontes o máximo possível de acordo com o contexto vivido pela sociedade. A dificuldade de não poder identificá-las foi um desafio na composição da matéria. Por outro lado, a boa relação entre os ex-namorados foi um facilitador com as fontes. A distância do fato prejudicou a recordação, tema central da publicação. Tentei aproveitar, dialogando com o leitor, um sentimento de recordação nele: paralelamente com a leitura, rememorar o último beijo com um amor antigo. Não há um momento estabelecido ou combinado, com isso, poucos devem lembrar, mas apenas o exercício de recordação da relação já resgata o sentimento nostálgico. Logo, uma das premissas do resultado final era diretamente de resgate sentimental: propor algo reflexivo e que marcasse quem acompanhasse a reportagem, fazendo a diferença no cotidiano do leitor, fundamento básico do Jornalismo Literário.”

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O ÚLTIMO DE 77, O PRIMEIRO DE 78 Uma das histórias do folclore do futebol gaúcho, permeada por duas tradicionais equipes, pela efervescência do torcedor e por um elenco inesquecível TEXTO DE KÉVIN SGANZERLA

KÉVIN SGANZERLA

Raquete (com o uniforme azul) foi jogador e treinador do alviazul e, após pendurar as chuteiras, voltou aos gramados para atuar no Esportivo Máster

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ARQUIVO / CLUBE ESPORTIVO

Em pé: Edegar, José, Raquete, Espinosa, Barão e Toninho Fronza. Agachados: Eraldo, Adilson, Celso Freitas,Dilvar e Rubem

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m “crime” em Pelotas, outro em Bento Gonçalves. Uma taça destruída, um corte na cabeça e uma atuação de gala. Uma decisão que, após uma verdadeira epopeia, foi parar no Beira-Rio, em Porto Alegre. O time que marcou época, e construiu a tradição do Clube Esportivo Bento Gonçalves, edificou a conquista da Copa Governador do Estado em 1977, mas só conseguiu levantar a taça e colocar o nome do clube novamente no hall dos campeões em fevereiro de 1978, no primeiro jogo da temporada. O grupo, que se sagrou campeão, contou com atletas que estamparam os seus nomes na centenária história do Esportivo. Muitos deles se enraizaram em Bento Gonçalves para a eternidade. Alguns ainda circulam pela Avenida Osvaldo Aranha, próximo ao Estádio da Montanha, a “velha” casa alviazul, antes azul e branca, hoje com suas cores indefinidas pelas pichações e pela pintura se deteriorando. Localizada a poucos metros da antiga casa do Esportivo, a padaria Favaretto é um dos locais onde Leopoldo Benatti, o Raquete, de 68 anos, ex-lateral-esquerdo, direito, zagueiro, um legítimo defensor do alviazul, frequenta seguidamente, assim como outros ex-atletas do clube.

É nessa padaria, cujo Renato Portaluppi era funcionário na adolescência, que Raquete estufa o peito e fala orgulhosamente dos feitos do Esportivo daquela época. “Tínhamos um time aguerrido, um conjunto muito forte, um grupo muito fechado, unido. O Esportivo, onde nós íamos, os caras tinham um respeito muito grande”, salienta. Raquete é o segundo jogador da história do Clube Esportivo que mais vestiu a camisa alviazul. Entre 1971 e 1984, o ex-jogador, que foi lançado ao futebol profissional pelo técnico Ênio Andrade, atuou em 434 partidas pelo clube, número impensável para um atleta que atua no interior na atual conjuntura do futebol gaúcho. Ele não era a exceção. Muito pelo contrário, Raquete foi uma das provas que não se tratava de simples raízes. Elas eram profundas, muito firmes, e que perduram até hoje. Dentre todos esses jogos, o ex-jogador foi escalado como zagueiro para dar conta dos atacantes da tradicional equipe Xavante na final em 1978, no Beira-Rio.

A Copa Governador do Estado de 1977 A Copa Governador do Estado surgiu em 1970 para dar sobrevida aos clubes do interior, enquanto que a Du-

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pla Grenal disputava o Campeonato Brasileiro. O Esportivo foi campeão logo em 1973, com Ênio Andrade como treinador, o qual, anos depois, se sagraria campeão brasileiro pelo Inter e pelo Grêmio. No dia 26 de outubro de 1977, o leopoldense Laone Luz, aos 30 anos, fez a sua estreia como treinador no Esportivo, no primeiro jogo pela Copa Governador do Estado. Ele tinha um diferencial e tanto. Anteriormente, Laone era jogador e, ao mesmo tempo, preparador físico da equipe. “Eu parei de jogar no Esportivo em 1977. Eles me convidaram para treinar. Já contava com a amizade do grupo e já tinha o grupo na mão”, comenta. Com sete vitórias, dois empates e apenas uma derrota, o Esportivo estava novamente classificado à final do torneio. Pela frente estava o Grêmio Esportivo Brasil, de Pelotas, da apaixonada e efervescente torcida xavante. Todos de férias, menos os finalistas.

O “crime” de Rubem

Adílson Benfica da Rosa atuou no Esportivo entre 1973 e 1983

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minutos do segundo tempo, fez o gol que deu a vitória por 1 a 0 ao Esportivo, desta forma, garantindo a vantagem do empate no jogo de volta.

O ‘crime” de Osmar O ex-atacante do Brasil, Osmar Lima, de 71 anos, atualmente coordenador técnico do time feminino do Grêmio, havia chegado recentemente no clube de Pelotas. E foi ele o responsável por dar o troco no Esportivo. No jogo de volta, os nervos em Bento Gonçalves extrapolaram de vez. O Estádio da Montanha estava arrebatado de torcedores em uma quinta-feira, dia 15 de dezembro. A confiança pela vitória e pelo título era eloquente. Entretanto, na etapa derradeira, Osmar, aos quatro minutos, cometeu o “crime”. “Lembro vagamente. A bola sobrou na área e bati com o pé esquerdo. O jogo era truncado. Quem fazia o gol ia ganhar, pois o campo era muito feio”, comenta. Aos 20 minutos, o atacante Lambari, do Esportivo, e o zagueiro Sommer, do Brasil, foram expulsos. Os nervos estavam aflorados, dentro e fora de campo. O estopim foi logo depois. Das inúmeras pedras arremessadas ao gramado, uma delas foi lançada do pavilhão social com uma parábola certeira no alvo: a cabeça do atacante Osmar. O motivo, porém, não foi só pelo gol. “Joguei oito anos no Caxias”, enfatiza o atacante do Brasil. A rivalidade entre Esportivo e Caxias, o conclamado “Clássico da Polenta”, portanto, também estava presente Laone Luz fez as na decisão. “Foi uma pedra que funções de jogador, bateu, cortou a cabeça e sai do preparador físico, jogo. Na hora que bateu, tonteei, técnico e supervisor cortou e sangrou”, conta Osmar. no Esportivo REPRODUÇÃO / PIONEIRO

ARQUIVO / CLUBE ESPORTIVO

“Um canhoto nato”, como descreve Raquete. O ponteiro esquerdo Rubem Wojahn, que atuou no Esportivo entre 1975 e 1983, fez o “crime” no jogo de ida diante dos olhares de centenas de torcedores xavantes que,

como de praxe, lotaram o Estádio Bento Freitas, em Pelotas. O jogo foi marcado para uma segunda-feira, dia 12 de dezembro de 1977. Dois meses atrás, o Brasil havia conquistado a vaga para disputar a elite do futebol brasileiro sobre o próprio rival, o Pelotas. Ao lado do lateral-esquerdo do Esportivo, Valdir Espinosa, falecido em 2020, o técnico Laone dissertou ao grupo, durante a preleção, de como o time deveria se comportar em campo naquele confronto. No Grêmio, Espinosa havia enfrentado o time xavante inúmeras vezes em Pelotas. “Comentei que podíamos reverter a situação caso tivéssemos uma atuação firme e segura, principalmente no início do jogo. Tradicionalmente o Brasil vive pela força da torcida. Sempre, independente do adversário, eles saem marcando em cima, saem apertando”, explica. Empurrado pela fanática torcida xavante, o Brasil pressionou o Esportivo nos primeiros minutos. Porém, os visitantes, bem indigestos pelos olhares do torcedor rubro-negro, conseguiram segurar o poderio ofensivo adversário. O time da Serra Gaúcha não só freou a pressão do time da casa como também surpreendeu. Rubem, aos 18


Cláudio Milton Cassal de Andrea foi presidente do GE Brasil em 1977

A taça virou bola

Show de Adílson

A vitória do Brasil por 1 a 0 no jogo de volta forçou uma partida de desempate, marcada para o domingo, dia 18 de dezembro, no Estádio Cristo Rei, em São Leopoldo. O presidente do Brasil na época, Dr. Cláudio Milton Cassal de Andrea, de 81 anos, relata que o local não contava com a segurança necessária e com condições para receber a decisão. “O idealizador da decisão ser realizada no estádio do Aimoré, em campo neutro, foi do vice da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), Miguel Edson Alves, que garantiu que tinha vistoriado o estádio durante a semana. O que talvez não esperasse era o número de torcedores xavantes que se mobilizaram para acompanhar o clube”, ressalta Cláudio. Era um domingo escaldante. De dentro do vestiário, o grupo do Esportivo observou a chegada do torcedor xavante que, em poucos minutos, pintou não só as arquibancadas, mas também o gramado de preto e vermelho. Uma verdadeira invasão rubro-negra. O Brasil entrou em campo. O Esportivo, por sua vez, temendo a “saúde” dos atletas no meio de toda aquela confusão, permaneceu escondido. Devido às péssimas condições do estádio, os torcedores foram movidos de uma arquibancada para outra visando a segurança do jogo. Mas, no fim, confronto nenhum saiu. A decisão da arbitragem pelo cancelamento da partida, devido à falta de condições, provocou a ira do torcedor xavante que, em um ato de fúria, derrubou o alambrado do estádio.

A final foi concretizada só no dia 02 de fevereiro de 1978, no primeiro jogo da temporada. Esportivo e Brasil entraram em campo, no Estádio Beira-Rio, com a presença do Governador Sinval Guazzelli. Apesar do torcedor xavante também ter comparecido em uma maioria esmagadora, a pressão foi limitada pela magnitude do Beira-Rio. O fator da torcida e da confusão ficou de lado, sobrando somente o futebol. “Foi só o futebol, e no futebol o Esportivo era realmente melhor do que o Brasil. E o resultado comprova isso”, comenta Laone. Antônio Fronza, de 64 anos, mais conhecido como Toninho Fronza, havia se recuperado de uma lesão e, de cara, foi titular na decisão. “O jogo foi tranquilo, lá e cá. Tivemos a sorte do Adílson estar inspirado. A vitória veio ao natural, sem muita reação do Brasil. Foi uma conquista maravilhosa depois de todas as confusões”, ressalta o ex-atleta, que foi o que mais vestiu a camisa do Esportivo na história do clube.

ARQUIVO PESSOAL / CLÁUDIO MILTON CASSAL

Laone, com suas credenciais de 118 jogos no comando alviazul, resume de forma enfática o fato, com um tom conclusivo e de nostalgia: “a velha Montanha”.

Diante da postura do árbitro, o vice-presidente da FGF confirmou a transferência da final para o Estádio Santa Rosa, em Novo Hamburgo, para que fosse realizada no mesmo dia. “O mais grave é que não tinha sido feita uma solicitação à Brigada Militar para dar segurança. O árbitro se negou a começar o jogo”, salienta o ex-presidente do Brasil. Alguns aficionados do Brasil chegaram antes mesmo que os ônibus dos clubes e da própria delegação da Federação. “Os torcedores estavam dentro do gramado. No meio de campo estavam a taça e as medalhas. Os torcedores do Brasil estavam brincando de jogar bola com a taça e estavam atirando as medalhas de um lado para outro”, relata o ex-treinador alviazul. O jornalista Paulo Sant’Ana, que esteve presente na decisão, defendeu a torcida rubro-negra das acusações: “Chutar as taças e jogar longe as medalhas foi pouco. Eu nunca tinha visto uma desorganização igual”, disse na época, na RBS TV.

Adílson Benfica da Rosa, que faleceu em 2005, marcou a sua passagem pelo Esportivo. “Foi um dos melhores jogadores que passou por aqui. Um meia com uma categoria extraordinária, inteligente, era habilidoso. Sabia fazer gols, batia bem na bola. Era um cara que não falava muito, mas tinha uma liderança no silêncio”, comenta Raquete. Inspirado, Adílson balançou as redes por três vezes no Beira-Rio. A vitória por 3 a 0 decretou a conquista do bicampeonato da Copa Governador do Estado que, posteriormente, seria novamente conquistada pelo Esportivo em 1980, tornando-o o maior campeão da competição. O último jogo, o de desempate, da Copa Governador do Estado de 1977, que foi, ao mesmo tempo, o primeiro jogo de 1978, resultou em uma das diversas conquistas que constituíram a fase áurea do alviazul. O título sobre a forte equipe do Brasil foi uma das provas que tornou o Esportivo, da década de 1970 em diante, um clube temido e respeitado no futebol gaúcho e brasileiro. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Decifrar minuciosamente os fatos de um ocorrido que você não presenciou e tentar detalhá-los é um desafio e tanto, ainda mais quando se trata de uma história de mais de 40 anos atrás. Mas há algo que torna toda essa epopeia muito mais atrativa e prazerosa de ser relembrada: a memória dos que entraram em campo, e não somente o que está descrito em livros ou jornais. As lembranças se tornam frágeis com o tempo. Mas se há, ao menos, uma pitada de memória daqueles fatos, se pode comprovar que também há importância neles constados nas vidas dessas pessoas. Infelizmente, esse enredo folclórico do nosso autêntico futebol gaúcho não foi relembrado em uma mesa redonda de um bar, onde ocorre a famosa “resenha”. A pandemia nos limitou ao telefone, praticamente. De qualquer forma, não impediu de que essa história, que se esvaiu ao longo do tempo, fosse relembrada e colocada a devida proporção de sua importância, não somente para o Clube Esportivo, mas para os amantes do futebol. Esse relato comprova algo de extrema importância: o futebol gaúcho não se resume à Dupla Grenal. Lembre-se disso.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 33


Despedida da casa tricolor aconteceu em 2013 e deixa saudades aos seus amantes TEXTO DE FABRÍCIO SANTOS

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futebol começou no Rio Grande do Sul nos últimos anos do século XIX. As primeiras bolas entraram pelo Porto de Rio Grande e pela fronteira com o Uruguai. A Capital do Estado tem sua história futebolística contada em diferentes palcos e por equipes distintas. “Venho do bairro da Azenha, bairro do Monumental…”. Com essa frase, retirada de uma música da torcida organizada do Grêmio, o Estádio Olímpico, um dos mais importantes na história do Rio Grande do Sul e do Brasil, balançava, esperando a semana toda por aquele momento, o cimento e as paredes do Estádio recebiam as vozes das almas copeiras que estavam ali alentando, gritando e cantando em busca da felicidade - a vitória tricolor.

O “Velho Casarão” foi inaugurado em 19 de setembro de 1954, localizado no Largo Patrono Fernando Kroeff, n.º 1 - Bairro Azenha, em Porto Alegre/RS. O estádio foi projetado pelo arquiteto Plínio Oliveira Almeida e considerado na época o maior estádio particular do mundo, com capacidade para 46.000 espectadores, segundo o Cadastro Nacional de Estádios. Logo no primeiro jogo, o Grêmio venceu o Nacional de Montevidéu por 2 a 0, com gols de Vítor Brás da Silva, aos 20 e 37 minutos. Mas só em 1980 é que o Olímpico foi totalmente concluído, com o fechamento do anel superior. No dia 21 de junho daquele ano, uma 34 PRIMEIRA IMPRESSÃO

LUCAS UEBEL / GRÊMIO

O ÚLTIMO ALENTO


NO VELHO CASARÃO PRIMEIRA IMPRESSÃO 35


partida amistosa contra o Vasco -Nal válido pelo Campeonato Brasileiro daquele da Gama marcou este momento ano encerraria o ciclo de histórias do Olímpico. Mas e mais uma vez trouxe alegria ao as condições do gramado da nova casa, a Arena do seu torcedor, pela vitória contra Grêmio, impediram que as três primeiras rodadas do o time carioca por 1 a 0. Campeonato Gaúcho de 2013 ocorressem lá. O primeiro estádio gremista Portanto, oficialmente, o Velho Casarão encerrou foi a Baixada, cujo terreno foi ad- seus trabalhos no dia 17 de fevereiro de 2013, com quirido em 1904, exatos 50 anos uma vitória do tricolor por 1 a 0 contra o Veranópoantes da inauguração do Olímpico. lis, pelo Campeonato Gaúcho daquele ano, com gol A segunda casa dos gremistas so- marcado pelo zagueiro Werley. O jogador relembreviveu por 58 anos, contando his- bra com carinho o sentimento mútuo pela torcida tórias de alegrias e tristezas. Teve gremista. “A torcida sempre jogou junto com time, seu maior público em 26 de abril de sabíamos que jogando no Olímpico dificilmente per1981, quando recebeu um público díamos, nosso time de 2012 era muito forte ali.” de 98.421 almas, para acompaSegundo ele, a ficha de ter marcado o último nhar o duelo contra a Ponte Preta, gol da história de um estádio com tanto peso só pelo Campeonato Brasileiro. caiu depois. “Nunca imaginei que faria o último Ao todo, o Estádio Olímpico gol do estádio, na verdade pensei que último jogo Monumental recebeu 1767 jogos, seria o Gre-Nal no ano anterior, mas em 2013 ainda com 1159 vitórias, 381 empates jogamos alguns jogos no Olímpico. Fiquei muito e 227 derrotas. O Grêmio mar- feliz por ter feito o último gol de um estádio tão cou 3510 gols e sofreu 1306, com marcante e com tantas histórias bonitas”, relemum saldo de 2204 gols. O maior bra. Werley ainda comenta que todos tinham dúviartilheiro do estádio foi Alcin- das se aquele jogo realmente seria o último. do, com 129 gols em 186 jogos. “Só tenho que agradecer a Deus por ter Sua principal característica era me levado para um clube e uma cidade onde a força física e sua intimidade eu fui muito feliz, jamais esquecerei do Grêcom o gol adversário. Alcindo mio e do Rio Grande do Sul”, diz Werley. é o maior artilheiro da história Para os torcedores, esse sentimento de gratidão do Grêmio com 264 gols. também perpetua. Não somente ao jogador que fez Mas a despedida de casa tal- o último gol, mas também ao jogo e a todas as históvez não tenha sido ao rias que o Estádio Olímpico carrega. Evelyn melhor estilo da torcida Evelyn tinha o Haag, de 22 anos, relembra com carinho tricolor. Em 2012, foi Olímpico como sua aquele momento. “Minha primeira lembrananunciado que o Gre- segunda casa ça foi olhar para a avalanche e imaginar que

ARQUIVO PESSOAL / EVELYN HAAG

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provavelmente aquela seria a última do Olímpico”, destaca. A avalanche era a marca da torcida gremista e do estádio, os torcedores desciam correndo a arquibancada inferior, local destinado a torcida organizada, a cada gol do Grêmio. Na Arena ela foi proibida, após um acidente no jogo contra a LDU do Equador na segunda partida da nova casa tricolor. Por isso, o Velho Casarão tinha uma sensação ainda mais especial. “Era como se fosse uma segunda casa, sempre senti que o Olímpico era o coração do Grêmio, o estádio tremia enquanto a torcida alentava, era um sentimento muito especial”, comenta Evelyn. “O sentimento era de que o Olímpico era o coração e a torcida o sangue, um não funcionava sem o outro. Eu acompanhei a última década do Velho Casarão, sempre captei de pessoas mais velhas que aquele local era único, e é até hoje”, lembra. Fernando Baretta, de 26 anos, acredita o jogo contra o Veranópolis não teve tanta emoção quanto o Gre-Nal de despedida, o maior clássico do Estado. “Sinto que faz parte da história, porém acredito que a grande representatividade, onde foi nostálgico, envolveu emoção, foi no Gre-Nal de despedida mesmo. Neste jogo houve silêncio, ninguém saiu do estádio após o jogo. Contra o Veranópolis, por ser mais um improviso, não teve tanto simbolismo. Acho que quando se pensa em despedida, me lembro mais do Gre-Nal que deste jogo”, destaca. A relação da maioria dos torcedores com o estádio Olímpico é de nostalgia. Para Fernando, o estádio representa boa parte de sua infância. “Comecei a frequentar direto em 2005/2006, era uma atmosfera incrível, um bairro bacana. Estádio raiz, social, geral, cadeiras superiores, campo de treinamento dentro do pátio. Era incrível”, relembra o torcedor. Ele também destaca a atmosfera da torcida dentro do Casarão. “A época que eu acompanhei era gigante. A torcida não tinha interesses. O que importava era o Grêmio. Foram anos, principalmente em mata-mata, brasileiro também, que o Grêmio, com times medianos, fazia campanhas espetaculares no Olímpico, muito motivado pela força da torcida”, conta. O tricolor Emanuel Zankoski,


FOTOS LUCAS UEBEL / GRÊMIO

dado do Estádio Olímpico para a Arena. “Confesso que no início era difícil fazer uma comparação. Faltava o sentimento de pertencimento. Porém, com o passar dos anos, a torcida gremista soube se adaptar e transformou a Arena num caldeirão, assim como era no Olímpico. Hoje, não vejo muita diferença. Dentro da Arena, atmosfera e o sentimento são os mesmos como eram no Velho Casarão”. Essa atmosfera é a marca da torcida gremista, que foi exaltada pelo assessor. “A torcida do Grêmio sempre foi o diferencial desse clube, seja no Olímpico, seja na Baixada ou seja na Arena. Não importa o estádio. O amor e a garra dessa torcida estão acima de tudo. A torcida faz a história”, afirma. Em outubro de 2013 começou a demolição do Estádio, que foi envolvido na negociação da nova casa gremista. A ideia inicial era implodir o local, mas o uso de explosivos poderia acarretar impactos ambientais, então a empresa responsável irá demolir por inteiro a estrutura do Estádio. Porém, a situação ainda depende de uma série de acordos, como a conclusão das obras do entorno da Arena. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER de 33 anos, tinha no Estádio Olímpico sua segunda casa. “O Olímpico foi um local que eu me sentia em casa. Em 2005 me mudei pra Porto Alegre e fui morar no bairro Menino Deus, a poucas quadras do estádio, e era ano da série B (segunda divisão do Campeonato Brasileiro). Após, me mudei para a Coriga, na esquina com o Olímpico, então por diversas vezes ia assistir aos treinos, dar uma volta ou fazer o que fosse no velho casarão. Até o último jogo eu sempre estive lá, com muitas alegrias vividas. O Olímpico tinha alma, era uma sensação totalmente diferente de qualquer outro estádio”, relembra. Para ele, aquele jogo final teve um sentimento de nostalgia, a todo o momento vinha à cabeça que aquele era o último jogo, a despe-

dida. “O mais marcante do dia foi o pós-jogo. Quando o juiz apitou o final da partida ninguém se moveu, não era um dia comum, a torcida ficou lá, cantando, chorando, entregando a devida homenagem que o Monumental merecia. Foi momento único de minha história como torcedor. “A torcida fazia o Olímpico pulsar e os adversários tremerem”, completa. O sentimento em torno do Estádio Olímpico não é exclusivo de jogadores e torcedores. Márcio Neves, de 47 anos, é assessor de imprensa do Grêmio desde 1999. Para ele, a sensação de que o Casarão era sua segunda casa, também existe. “Cresci lá dentro acompanhando meu pai e meu avô. Trabalhar lá era como realizar um sonho. Um orgulho e uma honra muito grande poder percorrer cada canto daquele estádio repleto de histórias e lembranças desde sua inauguração em 54”, destaca. O jornalista diz que ter participado do jogo é como transformar a história em arte. Poder fazer parte da história daquele jogo de despedida, como testemunha ocular. “Quando nos demos conta, acabou. Foi muito estranho. E é até hoje”, comenta. Ele ainda descreve como é a sensação de ter mu-

“Este semestre está sendo um desafio. Com a pandemia, tivemos que nos adaptar e procurar outros meios de garantir uma reportagem de qualidade e com bom conteúdo. A tecnologia se tornou uma aliada nesse processo, pois permitiu que a gente se “aproximasse”das fontes mesmo em casa, como recomenda a Organização Mundial da Saúde. Nesta reportagem tive a oportunidade de escrever sobre a história de um dos estádios mais importantes do Rio Grande do Sul. O Estádio Olímpico Monumental do Grêmio. Contar a relação de amor e pertencimento, pois muito torcedores consideravam o“velho casarão, como era carinhosamente chamado, como sua segunda casa, é um grande desafio. Poder conversar com Werley, o jogador que marcou o último gol no estádio, funcionários e torcedores do tricolor, me deu condições de realizar esta matéria com clareza e propriedade dos sentimentos vivenciados por cada personagem que contou a sua parte na história do Estádio. Foi um privilégio poder deixar registrada esta história nas páginas da revista Primeira Impressão.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 37


O GRE-NAL QUE A AMÉRICA AGUARDAVA Última disputa também foi o primeiro clássico entre Grêmio e Internacional pela Libertadores

ARQUIVO PESSOAL / ANDREI GAMALHO

TEXTO DE ISABELLE WRASSE

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ogos entre Grêmio e Internacional, consagrados ao longo de mais de 100 anos de rivalidade como “clássico Gre-Nal”, assumem expressão ainda maior quando se realizam de forma inédita. Foi assim no mais recente enfrentamento entre os dois times, realizado na véspera da suspensão das atividades esportivas, causada pela pandemia do coronavírus. Tudo porque a última partida entre os dois foi também a primeira numa disputa da Copa Libertadores da América, a mais importante competição futebolística do continente. É sobre essa condição histórica, sobre o que sentiram ou presenciaram que se manifestam os torcedores da dupla. “Esse jogo se tornou o meu favorito”, diz Guilherme Estulano, de 22 anos, estudante de Jornalismo e gremista. “É estranho ter esse sentimento, mas considero esse como o maior Gre-Nal da história. Mesmo na Copa Libertadores, a grandeza do jogo me surpreendeu. O fato de os times estarem na competição juntos, e se enfrentando, o transforma em uma partida histórica”. O Gre-Nal 424 trouxe o ineditismo do jogo, apesar de não ter sido válido por fase eliminatória. Visivelmente emocionado ao lembrar, Guilherme detalha, eufórico, aquela noite: “O que vi no estádio é emo-

cionante. Apesar de não haver um vencedor, o resultado foi justo. As duas torcidas estavam cantando o tempo todo, o ambiente era inesquecível. Se alguém tivesse imaginado o roteiro do jogo antes de acontecer, não seria possível dizer que teria toda essa emoção. Foi uma honra estar presente naquele momento”, declara o estudante. “Foi o último jogo antes de a competição ser cancelada. O que vi em campo foi de um nível excelente, apesar da confusão. Vou me lembrar desse jogo mesmo que passe uns 50 anos”, garante. O jogo ao qual Guilherme se refere, aconteceu no dia 12 de março de 2020, na Arena do Grêmio, quando mais de 53 mil pessoas estiveram presentes – sexto maior público do novo estádio gremista. Os colorados, mesmo em menor número, também relembram o jogo, com euforia. Para Andrei

ARQUIVO PESSOAL / GUILHERME ESTULANO

Gamalho, de 22 anos, que agora reside na Argentina, a distância não foi o problema. Mesmo com apartamento já alugado, Andrei adiou a ida ao país vizinho por conta do jogo. Viajou a Porto Alegre sem ingresso, mas com a certeza que participaria do jogo. “Foi muito especial, o melhor em que já estive. Vou ao estádio desde criança, meu pai sempre me levou. Participo das torcidas do Internacional, e mesmo morando longe, não tinha como não estar presente”, afirma. Em 2020, a Copa Libertadores, interrompida logo após o clássico, cumpre sua 61ª edição, com 20 participações gremistas e 13 coloradas. O Grêmio, ao lado do São Paulo, é o clube brasileiro com maior número e há três anos seguidos chegou pelo menos até a semifinal da competição. Já a conquistou por três vezes. Já o Inter chegou à semifinal pela última vez em 2015, e já ergueu a taça duas vezes. “O jogo foi eufórico. A torcida do Internacional, principalmente durante a briga, se animou”, avalia Andrei, referindo-se à confusão que marcou o final da partida. O jovem relata que, por vir sem ingresso, teve que comprá-lo na hora, o que o deixou sem dinheiro durante o jogo. “Ficamos no estádio até muito tarde, e como eu estava sem dinheiro por causa do ingresso, não comi nada por muito tempo”, relembra, com bom humor. “Foi muito marcante para mim em todos os sentidos. Como não sabemos ao certo quando terá o próximo clássico, é mais um motivo para ficar marcado na história”. O jogo valia a liderança do grupo, além dos três pontos na disputa na competição. Mas, apesar de toda a expectativa no primeiro clássico Gre-Nal da história pela Copa Libertadores da América, Grêmio e Internacional ficaram no 0x0. Muito além do futebol, o jogo ficará marcado pela confusão generalizada entre os jogadores nos minutos finais, o que rendeu oito expulsões, quatro para cada lado. No dia seguinte, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) decidiu suspender a competição, frente à pandemia do novo coronavírus. “Foram 85 minutos de um clássico inesquecível. Estudado, jogado e brigado. Porém, a confuPRIMEIRA IMPRESSÃO 39


são desmoralizou o nosso Gre-Nal perante o continente. Esperamos uma vida inteira para o enfrentamento na Libertadores e recebemos isso de presente”. É assim que o jornalista Leonardo Oliveira, da Rede Brasil Sul de Comunicação, descreve o jogo. Apesar de triste pelo ocorrido, Leonardo elogia a forma como os dois times se apresentaram. “Foi o enfrentamento mais honesto que tivemos nos últimos tempos. Grêmio e Internacional poderiam sair vencedores. A dupla desponta como favorita na competição. Espero, honestamente, que isso se confirme na bola”, afirma.

O jogo com a bola rolando Para todos os torcedores, o jogo trouxe uma carga emocional diferente. O Grêmio estava defendendo uma invencibilidade de 12 jogos (a última derrota ocorreu em 2014), além de jogar perante sua torcida. O Gre-Nal 424 parecia totalmente controlado durante 85 minutos. Até então, o clássico se manteve em ambiente saudável e um jogo de tirar o fôlego. O Inter do técnico Eduardo Coudet prometia mais intensidade e volume ofensivo. Foi assim que dominou o segundo tempo, colocando uma bola na trave. Já o Grêmio, experiente e com um trabalho de longo prazo do técnico Renato Portaluppi, foi mais contundente no início da etapa inicial e depois arrefeceu. A entrada de Jean Pyerre na etapa final foi um alento para a torcida gremista. 40 PRIMEIRA IMPRESSÃO

ARQUIVO PESSOAL / GUILHERME ESTULANO

Eufóricos, os gremistas lotaram a Arena. Mais de 50 mil estiveram presentes no maior clássico gaúcho

Os torcedores citam esse como um dos melhores clássicos já vistos. O colorado Guilherme Massena, de 25 anos, empreendedor e cofundador da empresa Dobra, afirma que o jogo é inesquecível. “Por morar em Montenegro, existe uma preparação para o dia. Minha semana foi organizada com base no Gre-Nal. O Internacional deveria ter saído vitorioso”, afirma, sorrindo. Guilherme relembra com emoção o fato de ter ido ao estádio Beira-Rio e saído de lá para a Arena com a torcida colorada. “Porto Alegre muda quando tem Gre-Nal. Durante o trajeto, a torcida cantava, pulava, estávamos todos emocionados. O Internacional estava jogando bem durante o jogo, uma pena a confusão final. O clima Gre-Nal mexe com as nossas emoções”. Mas quando o cronômetro entrava nos minutos finais, Jean Pyerre dominou a bola no meio e tocou para Pepê. O atacante disparou pela direita de ataque, dis-

putou no corpo com Moisés, caiu e ganhou a lateral, mas sofreu contato do adversário por trás. No chão, levantou-se partindo para o bate-boca. Foi o suficiente para começar uma briga generalizada que resultou em quatro expulsos de Grêmio e de Internacional.

A história dos clássicos O primeiro clássico Gre-Nal foi também, o primeiro jogo da história do Internacional. E o Grêmio, sem se preocupar com o fato, aplicou uma goleada por 10 x 0. O colorado venceria seu primeiro clássico apenas no sétimo confronto entre os clubes, em 1915, pelo placar de 4 x 1. O Grêmio se manteve na frente do Internacional em vitórias desde os primeiros anos até 30 de setembro de 1945, quando, após a vitória colorada pelo placar de 4 x 2, o Internacional o ultrapassou no número de vitórias e desde então mantém esse feito. Em 1948, o Internacional faria o seu maior marcador frente ao Grêmio, com uma vitória de 7 x 0. O Grêmio, no entanto, permaneceu 40 anos sem ser goleado pelo seu rival (entre 1954 e 1994) e durante o mesmo período, aplicou seis goleadas no adversário: 4 x 1 em 1959, 5 x 1 em 1960, 4 x 1 em 1963, 4 x 0 em 1968, 4 x 0 em 1977 e 4 x 1 em 1990. Fazendo jus ao embate Gre-Nal, o Internacional


ARQUIVO PESSOAL / GUILHERME MASSENA

aplicou quatro goleadas no tricolor gaúcho entre 1994 e 2014 pelos placares de 4 x 1 em 1994, 5 x 2 em 1997, 4 x 1 em 2008 e novamente 4 x 1 em 2014. Porém, a mais recente goleada no clássico foi aplicada pelo Grêmio, vencendo o jogo em seu estádio em 2016, por 5 x 0. Quanto aos “Gre-Nais dos séculos”, assim batizados pela importância da disputa então em jogo, o primeiro ocorreu em 1988, na semifinal do Campeonato Brasileiro, onde os dois times puderam medir suas forças além das fronteiras do Rio Grande do Sul. O Internacional saiu vencedor com dois gols do icônico Nilson. Vinte e dois anos depois, e já no atual milênio, ocorreu o mais recente “Gre-Nal do século”, com os dois clubes duelando pela fase de grupos da Libertadores. “O clássico transcende a verdadeira rivalidade”. É assim que Iron Luiz Milagres, de 28 anos, residente em Vitória (ES), bacharel

em Direito, jornalista por atuação e colunista do portal “Deus me Dibre”, de Minas Gerais, se refere ao jogo. “Como espectador e amante do esporte, vi um jogo intenso e com uma qualidade muito acima do que estamos acostumados a acompanhar. A dupla gaúcha proporcionou um espetáculo de futebol. A parte ruim ficou por conta da confusão. Não sou gaúcho, mas consigo sentir a energia que este jogo emana. É, sem dúvidas, o clássico que mais me agrada”, reflete. Em toda essa história, foram marcados 1.137 gols até o Gre-Nal 423, travado no estádio Beira-Rio, pelo Campeonato Gaúcho, em fevereiro. As vitórias do Inter nos clássicos já somam 156, enquanto as do Grêmio, 133. Os empates chegam em 134, com 585 gols do colorado e 552 gols gremistas. Copa do Brasil, Campeonato Brasileiro, Gauchão e Copa Sul-Americana: em todas essas competições, o clássico Gre-Nal sempre reserva histórias. Curiosidade: a única vitória colorada na Arena do Grêmio foi em 30 de março de 2014, na final do Campeonato Gaúcho. O time, então treinado por Abel Braga, venceu por 2 a 1, com dois gols de Rafael Moura. Desde então, foram cinco vitórias gremistas e seis empates na Arena. Antes do sorteio dos confrontos pela fase de grupos da Libertadores, a Copa Sul-Americana era até então, a única competição internacional a receber jogos da dupla. n

Guilherme Massena e seus amigos no Beira-Rio, à espera de se deslocarem o estádio gremista

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Foi incrível escrever essa reportagem. Como uma amante do futebol e torcedora, é muito bom ouvir e sentir como um único jogo é capaz de mexer com todas as nossas emoções. Ouvir os torcedores das duas torcidas me fez perceber como a nossa rivalidade é importante aqui no Estado, e como a nossa paixão por futebol se mantém firme. Já como aluna de Jornalismo, ouvir as pessoas no meio de uma pandemia é algo que com certeza ficará marcado. Foi difícil ter que trocar o contato presencial, tão importante às práticas jornalísticas, por entrevistas a distância. Mesmo assim, foi ótimo escrever sobre aquilo que envolve todos os tipos de sentimentos.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 41


okohama, 30 de junho de 2002. A cidade japonesa e a data citada remetem a lembranças emblemáticas sobre um feito inédito até hoje no futebol. Um dia especial e histórico para os brasileiros. Do outro lado do mundo, nessa data, a Seleção Brasileira comandada pelo gaúcho Luiz Felipe Scolari, o Felipão, vencia a Alemanha por 2 a 0 e conquistava seu quinto título na Copa do Mundo. Até hoje, nenhuma outra seleção conseguiu este feito. Foi o último título mundial conquistado pelo Brasil. Uma final de Copa do Mundo, por si só, é um evento inesquecível, que fica marcado na história. Para a servidora pública federal Bárbara Cristina Klein dos Santos Masu, que tinha 19 anos na época, o penta foi ainda mais especial. Nascida em Montenegro-RS, a brasileira estava entre as 69.029 pessoas que acompanharam de perto aquela final, no Estádio Internacional de Yokohama. Bárbara morou no Japão entre 2001 e 2005, na cidade de Matsusaka, província de Mie, a cerca de 420 quilômetros do palco da grande final. Ela só pôde ir ao estádio na decisão porque sua folga semanal no trabalho coincidiu justamente com a data histórica. Além disso, conseguir um ingresso para a decisão não era uma tarefa fácil. Coube à cunhada de Bárbara na época, que residia em Tóquio, adquirir o ticket para a gaúcha. Durante os 90 minutos da partida histórica, a torcedora desfrutou de cada lance, cada detalhe do duelo entre Brasil e Alemanha. “Esse foi o único jogo de futebol que assisti no estádio até hoje. Foi muito emocionante”, ressalta. A edição de 2002 da Copa do Mundo foi a primeira realizada no continente asiático e sediada por dois países (Japão e Coreia do Sul). Antes do Mundial, a Seleção Brasileira passava por um momento turbulento, com trocas no comando técnico e correu sérios riscos de ficar fora da Copa. A classificação só foi confirmada na última rodada das Eliminatórias, com uma vitória sobre a Venezuela, no Maranhão. Em 2001, Felipão substituiu Emerson Leão na casamata brasileira. Naquele ano, a Seleção Brasileira não convenceu e foi eliminada nas quartas de final da Copa América pela modesta Seleção de Honduras. Criticado por não convocar o atacante Romário, o treinador gaúcho levou o Brasil à Copa e bancou atletas de sua confiança, como Vampeta, Luizão e Edílson. Além disso, recuperou outros craques, como Ronaldo e Rivaldo, e conduziu a Seleção Brasileira ao penta, com uma campanha impecável. O Brasil venceu as sete partidas que disputou naquele Mundial. Na estreia, os comandados de Felipão superaram a Turquia por 2 a 1. Depois, goleadas sobre China (4 a 0) e Costa Rica (5 a 2). Nas oitavas de final, o Brasil derrotou a Bélgica por 2 a 0. O jogo das quartas de final foi um dos mais complicados, com vitória brasileira de virada sobre a Inglaterra, pelo placar de 2 a 1. Na semifinal, a vítima foi, novamente, a Turquia. Dessa vez, a equipe treinada por Felipão venceu por 1 a 0. E na grande decisão, o Brasil fez 2 a 0 na Alemanha para conquistar o quinto título mundial. A gaúcha Bárbara recorda que, em determinados momentos da final, dava mais atenção ao telão do estádio do que ao campo de jogo em si. “Eu 42 PRIMEIRA IMPRESSÃO

não estava acostumada a ver jogos, então em alguns momentos ficava assistindo pelo telão ao invés de acompanhar a partida que se desenrolava na minha frente. Lembro que estávamos apreensivos no primeiro tempo, pois não saía gol. A maioria esmagadora do público estava torcendo pelo Brasil”, conta. A aflição do primeiro tempo foi substituída por emoção e explosão de felicidade na segunda etapa, quando o ótimo goleiro alemão Oliver Kahn soltou a bola nos pés de Ronaldo, relembra Bárbara. “Quando saíram os gols, todo mundo só chorava e se abraçava. Não parecia real que o Brasil seria o único na época que, além de tetra, seria pentacampeão mundial. No

Artilheiro da Copa do Mundo de 2002, Ronaldo comemora o primeiro gol sobre a Alemanha na grande final

MATTHEW ASHTON / GETTY IMAGES

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TEXTO DE MATEUS FRIEDRICH


FEITO INÉDITO E PRESENTE NA MEMÓRIA Brasil conquistou seu último mundial de futebol em 2002

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ARQUIVO PESSOAL

Gaúcha Bárbara Masu acompanhou de perto o último título mundial conquistado pela Seleção Brasileira

final da partida, caiu uma chuva de papel picado sobre nós e alguns tsurus (ave sagrada do Japão) feitos de origami”, detalha.

Uma sinergia entre jogadores, torcida e jornalistas Assim como Bárbara, o jornalista da Rádio Gaúcha, José Alberto Andrade, também assistiu ao jogo decisivo entre Brasil e Alemanha de uma das cadeiras do Estádio Internacional de Yokohama. Apesar de ter cruzado o mundo para reportar a Copa, Zé Alberto, como é popularmente conhecido, foi mais um torcedor

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brasileiro na grande final. Até a fase semifinal daquele Mundial, o jornalista gaúcho atuou como repórter de torcida, do lado de fora dos estádios, na Coreia do Sul. Dois dias antes da decisão, embarcou para o Japão a fim de acompanhar a equipe brasileira. No dia da grande final, como não tinha vaga na tribuna de imprensa do estádio, Zé Alberto se posicionou em uma cadeira de torcedor, sem a necessidade de fazer entradas ao vivo na transmissão da Gaúcha. Com a bola rolando, o repórter se sentiu em uma condição muito próxima daquilo que é a condição de torcedor, como o próprio destaca. “Agi como torcedor. Foi uma raríssima vez que

tive essa oportunidade e costumo dizer: foi o primeiro jogo de Copa do Mundo que vi no estádio e, nesse jogo especificamente, o lado torcedor foi muito forte, embora, claro, o lado profissional estivesse ligado”, salienta. “Se o Brasil fosse campeão, eu ia ter trabalho, dependia do título brasileiro para fazer um trabalho muito mais qualificado. Nunca escondi que tenho uma afeição pela Seleção Brasileira que é muito forte. Tenho nela meu time do coração. E aquele jogo contra a Alemanha foi algo fantástico”, acrescenta Zé Alberto. De acordo com o jornalista da Rádio Gaúcha, a união do grupo de Felipão e a energia po-


sitiva transmitida entre atletas, torcedores e profissionais de imprensa foram determinantes para a conquista do pentacampeonato. “O que a Seleção Brasileira tinha de mais especial era uma sinergia muito grande. A convivência daqueles jogadores entre eles e com a torcida, que podia ficar nos hotéis da Seleção (hoje isso não existe mais), e com a mídia, que multiplica a imagem que a Seleção está deixando, era muito boa”, relembra. Para Zé Alberto Andrade, o jeito de trabalhar do técnico Felipão se encaixou naquilo que a equipe precisava. Um dos momentos mais marcantes da conquista, para o repórter, foi nas quartas de final, quando o Brasil virou contra a Inglaterra com gols de Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho. “A gente via, naquele jogo, que o Brasil estava pronto para ser campeão. Quando ganhou da maneira como ganhou, terminando a partida com 10 jogadores (Ronaldinho havia sido expulso), a Seleção Brasileira mostrou que seria campeã”, enfatiza. Durante a cobertura na Coreia do Sul, o jornalista gaúcho se encantou com a mobilização do público local, que tomava as ruas da capital Seul e lotava uma praça em frente à Prefeitura Municipal para assistir aos jogos em um telão. “A Fifa, vendo aquilo que aconteceu na Coreia, com um milhão de pessoas em uma praça vendo o jogo, decidiu criar a ‘Fan Fest’, que permanece até hoje como atração nos mundiais”, complementa. Na volta ao Brasil, o jornalista teve seu carro arrombado e os bandidos levaram sua máquina com todas as fotos tiradas no Japão e na Coreia.

“Não tenho registros do jogo da minha vida”, lamenta.

Muito trabalho a 18.820 km de Yokohama

ARQUIVO PESSOAL

No Japão e na Coreia do Sul, os brasileiros não tinham problema com o fuso horário. Entretanto, no Brasil, as partidas eram transmitidas durante a madrugada, e muitas pessoas trocavam o dia pela noite para acompanhar a Copa do Mundo. O jornalista gaúcho Carlos Gustavo Soeiro Guimarães, atualmente com 41 anos, tinha uma rotina bastante específica durante o Mundial de 2002, quando trabalhou como produtor na Rádio Gaúcha. Ele lembra que viveu o fuso japonês aqui no Brasil. Carlos Guimarães “iniciava” seu dia às 20h, quando acordava e se preparava para trabalhar às 22h. Só voltava para casa pela manhã e dormia ao meio-dia. “Foram 45 dias de um fuso horário virado, eu respirava Copa do Mundo 24 horas por dia. Essa era minha primeira Copa na imprensa. Perdi peso, perdi vida social nesse período, mas foi uma cobertura fascinante, inesquecível. Mesmo que muito trabalhosa e difícil, foi muito gratificante”, ressalta. Além de muito trabalho em Porto Alegre, Carlos Guimarães revela momentos de diversão durante a programação. “Lembro que recebíamos músicos no estúdio. Um deles – não vou citar o nome – levou um cooler cheio de cerveja para o estúdio na madrugada e começou a distribuir para o pessoal, inclusive para quem estava trabalhando”, conta. Na Copa de 2002, a Seleção Brasileira atraía muito mais o público do que atualmente. Isso se deve a alguns fatores, de acordo com o jornalista gaúcho. “O torcedor era mais apaixonado pelo time brasileiro. A Seleção se afastou nos últimos tempos. Hoje, o Brasil joga mais no Catar, no Emirates Stadium (Inglaterra) do que aqui no País. A Seleção Brasileira perdeu conexão com seu povo. Atualmente, muitos jogadores não têm mais aquela identificação com seus clubes, como ocorria antigamente. Em 2002 os jogos ocorriam durante a madrugada, era uma particularidade. Porém, depois disso, o apelo foi se perdendo”, observa.

Uma Copa cada vez mais valorizada Atualmente mestrando em Comunicação em Portugal, o gaúcho Fernando Rocha viveu intensamente cada lance da Copa do Mundo de 2002. Hoje casado, Nando Rocha, como prefere ser chamado, começou a namorar sua esposa em abril daquele ano (a Copa ocorreu em junho). Para ele, aquele Mundial foi especial de uma forma familiar. “Assistíamos aos jogos com amigos na madrugada, não tínhamos ainda assumido compromisso. A família dela não sabia, alguns amigos sabiam, outros não... Eram outros tempos”, frisa. Nando revela que sempre torceu muito pela Seleção Brasileira e havia sofrido com a perda do título na final de 1998. Colorado, o gaúcho de Gravataí minimizou o fato de o técnico Felipão ter forte ligação com o Grêmio, maior rival do Internacional. “Eu achava que a Seleção Brasileira tinha muito a cara gaúcha, então tinha orgulho de ver a seleção jogando em 2002. Além disso, reunir meus pais, os amigos, a namorada (que hoje é esposa) e os familiares para assistir às partidas, hoje é ainda mais especial e importante, pois estou longe deles”, completa. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Apesar das adversidades enfrentadas durante a produção da reportagem, foi muito gratificante colaborar com a edição da revista que ficará marcada, para sempre, como a “PI realizada em meio à pandemia”. Particularmente, falar e escrever sobre futebol é sempre especial para mim. Quando o assunto principal é Copa do Mundo, fico ainda mais entusiasmado. Relembrar os detalhes do pentacampeonato mundial conquistado pela Seleção Brasileira e contar histórias de pessoas que estiveram lá no Japão acompanhando a final contra a Alemanha foi uma oportunidade extraordinária. Além disso, conversar com jornalistas renomados do Estado, como José Alberto Andrade e Carlos Guimarães, serviu para reforçar a decisão correta que fiz ao escolher o Jornalismo como profissão. Eu tinha apenas cinco anos de idade quando o Brasil conquistou a Copa do Mundo pela última vez. Antes de realizar esta reportagem, lembrava de poucos detalhes do Mundial. Portanto, para mim, a produção deste conteúdo foi uma experiência enriquecedora em todos os aspectos.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 45


Zion chegou no canil acompanhado de 17 filhotes vítimas de abandono. Foi o último das ninhadas a ser adotado 46 PRIMEIRA IMPRESSÃO


O ÚLTIMO A SER ESCOLHIDO Ao contrário das histórias contadas pelo cinema, a realidade de cães que estão para a adoção é mais cruel e menos assistida TEXTO DE KELLEN GUARAGNI DALBOSCO

O KELLEN DALBOSCO

calor do sol em uma típica tarde de outono disputa espaço com o frescor das sombras feitas pelos eucaliptos que cercam o terreno. O convidado especial saiu há pouco tempo de sua habitação com pouco menos de dois metros quadrados e entra com dificuldade no cercado à beira do açude. Os brinquedos, que servem para o treinamento de cães, não chama a sua atenção, ele se limita a caminhar com a diagnosticada dificuldade e farejar uma possível saída. Rolha, um cão com nome engraçado, mas que combina perfeitamente com o personagem – basta uma associação de seu porte físico com o objeto feito de cortiça utilizado para vedar garrafas de vinho – está às vésperas de completar quatro anos de morada no cubículo bem construído do canil da Sociedade Protetora de Animais (SPA) Bicho Feliz, de Garibaldi – Rio Grande do Sul. A porta de metal que guarda o espaço é aberta pelo menos duas vezes ao dia pela cuidadora Lovani Barbieri, para as refeições e, outras, para um passeio em um espaço cercado restrito aos cães mais idosos do local. O olhar triste e apático de Rolha, que lembra vagamente o semblante de um animal da raça Beagle, mas PRIMEIRA IMPRESSÃO 47


com as marcas de vira-lata cravadas em seu dorso, não faz jus ao nome da entidade que o acolheu. A idade do cão idoso não tem como ser medida com precisão, mas ele está sob os cuidados da entidade há cinco anos. É o cachorro mais velho da Bicho Feliz. Conheceu o antigo canil, mas nunca uma família de adotantes. O humor incerto, os tratamentos que levam a ele a necessidade da compra de remédios – três por dia, para retenção de líquidos, articulações e coração – e a ração especial com valor elevado dificultam a sua adoção. Além do canil, ele é personagem conhecido na clínica veterinária que acompanha os cães da entidade. A última vez que passou alguns dias no espaço foi para tratar de uma doença respiratória que gerou forte tosse e respiração pesada. Lembrado pelos erros de grafia de seu nome, que já geraram boas risadas pelos profissionais da clínica, ele é sempre recebido com brincadeiras e bom tratamento. Na mesma tarde em que calor e frio disputavam as atenções conforme se atravessava a sombra e se caminhava em direção ao sol, Rolha ganhou uma companheira do dormitório. Uma cachorra ainda sem nome, resgatada dos maus-tratos, como a maioria dos animais sob tutela da entidade. Agora, ela aguarda um lar, assim como os vizinhos que podem ser observados através da grade de metal que forma uma das paredes do espaço. O cão de olhos tristes, nome engraçado e com a sina de ser o último a ser escolhido, também.

Do resgate, uma nova chance Era um inverno atípico, e qual inverno não é nestes tempos de aquecimento global e “clima maluco”, como exclamam os senhores que dividem os bancos das praças. Mas em 2015, a estação mais fria do ano estava, de fato, gelada. Os Campos de Cima da Serra marcavam temperaturas negativas e as regiões mais baixas do Rio Grande do Sul experimentavam os termômetros próximos a zero. Antes que a primavera aflorasse naquele ano, uma história ainda sem fim foi começou a ser contada. O vento Minuano começava a soprar pelos campos e o frio ultrapassava as camadas de roupas e paredes de concreto e gelava pe48 PRIMEIRA IMPRESSÃO

les e casas inteiras. Entre os cerca de 30 mil habitantes de Garibaldi, município da Serra Gaúcha, alguém viu o cachorro que perambulava pela periferia com uma fratura na pata e um machucado no olho, sobrevivendo nas ruas. Embora os filmes com temática canina desenhem uma ideia de que os cães guardam lembranças claras de seus donos e memórias complexas até mesmo de vidas passadas, o pós-doutorado em Biologia e a especialização em Etologia Canina deram a Gustavo Agostini a propriedade para discordar dos arranjos do cinema. Autor de um livro que aborda a psicologia canina, ele explica que a genética dos cães é capaz de guardar memórias hormonais que ditam seu comportamento diante da lembrança de um trauma. Uma freada, por exemplo, pode causar medo extremo em um cão com histórico de atropelamento. Mesmo sem lembrar o porquê e sem possuir a capacidade de lidar de maneira complexa com seus traumas, realizando sinapses cerebrais especíO atual canil da ficas, os cães reaSPA Bicho Feliz é gem instintivao lar de Rolha há mente e podem quatro anos. É ali gerar emoções que ele espera a primárias como chance da adoção raiva, alegria, tristeza, aversão e surpresa. Rolha foi descrito como dócil e amigável na época de seu resgate, mas o passar dos anos pode ter mudado seu humor e a reatividade. O cão idoso não tem consciência que sua casa poderia ser melhor e nem que poderia ter uma família. Agostini explica que os cães aceitam os lares que lhe são impostos, por ser a realidade que conhecem e por possuírem alta capacidade de adaptação, mas que nem por isso um ambiente de canil deixa de ser depressivo para eles. Atualmente, o canil que abriga Rolha cuida de mais 41 cães da SPA Bicho Feliz. O terreno espaçoso no interior da cidade já teve uma quantidade maior do que as quatro dezenas atuais. São animais abandonados ou vítimas de maus tratos que chegam e saem do local semanalmente. Nos melhores casos, são adotados, ganham uma nova chance e uma família que os ajude a reconstruir sua história e formar novas memórias. Nos piores, esperam em sua casa de tijolos e janela de metal um

final que não se assemelhe ao de Rolha, aguardam ir para alguma casa antes da velhice, quando as chances de adoção diminuem consideravelmente.

O dia da adoção Quando o telefone toca o pelo do braço arrepia e a respiração pesa: é problema. Mas nada poderia preparar os voluntários para aquele dia: 18 filhotes com cerca de 20 dias de vida foram abandonados nos fundos de uma residência que havia deixado de ser o lar de uma família que se mudara. O chão batido e um sofá velho e rasgado abrigava duas cadelas e suas ninhadas. A negação das crias por parte de uma das mães e a desnutrição da outra fizeram com que os filhotes fossem levados e amamentados com mamadeiras até os 60 dias. Mas mal a independências dos filhotes batia na porta, a má sorte não a deixava abrir. Foi a primeira leva de doenças que, desta vez, vitimou dois dos 18 cachorrinhos que dividiam, então, o espaço embaixo de uma casa antiga, sede da entidade protetora dos animais de Garibaldi. Era o auge do inverno de 2019 quando o diagnóstico dos veterinários anunciou a incidência de parvovirose, uma doença que ataca as células do intestino, causando diarreia e perda de sangue. Dois dos filhotes não resistiram ao surto. Era meio-dia de um dia frio e chuvoso que finalizava uma semana igualmente úmida e molhada. As más condições do espaço que guardava os filhotes era


IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Escrever não é tarefa fácil. O Jornalismo é uma arte, assim como a Literatura, que aqui empresta os seus trejeitos para um texto. No momento em que esta revista for lançada, faltará um ano para a minha formatura e colocar histórias no papel agora me parece mais difícil do que em meu primeiro dia de aula. Diferente da Literatura, o Jornalismo tem um compromisso com o fato, e desde que assumi a subjetividade como parte do meu trabalho, caminhar na linha tênue entre sentimento e razão tem sido frequente. Fã de ouvir e contar histórias, decidi escrever sobre personagens que não podiam compartilhar as suas. O desafio passou pelo exercício sobre psicologia canina. O importante auxílio do Doutor Gustavo Agostini permitiu que as palavras desta reportagem fossem amparadas pela ciência, enquanto a devoção de Luana Meneghetti e Lovani Barbieri fizeram com que elas existissem. Este texto é dedicado a Young, a Cacau, a Doguinho, a Pérola, a Cheddar e a Otto, que são amor em nossa casa. E, também, a todos os voluntários e organizações que fazem com que estes encontros aconteçam.” KELLEN DALBOSCO

mais um entre os diversos fatores que pioravam as condições de saúde da ninhada cerca de um mês após se curarem da parvovirose. A ida desesperada ao veterinário mostrava que agora os filhotes enfrentavam uma doença mais desafiante que a primeira, mas que graças ao olhar aguçada das cuidadoras, revelou o diagnóstico precoce de cinomose e um tratamento rápido. A doença, altamente infecciosa, ataca o sistema nervoso central e as células sanguíneas dos cães e levou os agora 16 filhotes para uma saga de idas e vindas da clínica veterinária. Zion, um cãozinho com olhos verdes e pelagem arrepiada, que corre até cansar e atirar-se exausto no chão, esconde um passado de duas doenças e uma longa estadia no canil. Ele, que chamava a atenção por preferir ficar sozinho do que juntar-se às brincadeiras dos demais filhotes, viu um por um dos parceiros de jornada serem adotados, enquanto ficava para trás. No mesmo sábado de sol forte em que Rolha, o cão com nome e

forma engraçados, travava uma batalha para farejar uma saída do cercado à beira do açude, Zion partiu do canil para uma nova casa, agora com duas crianças e um sofá para deitar com a família. Ele não divide mais a casinha com Garota, uma cachorra que se atira e rola no chão para não voltar para os limites da cerca. Agora ele é cão de guarda do irmão mais novo da casa, e não sai do lado do caçula até que o mais velho retorne de seus afazeres, como conta a matriarca da família.

A realidade

Zion foi o último dos cachorros da ninhada a ser escolhido, mas tirou a sorte grande e não faz mais parte dos 41 cães que dividem o canil da SPA Bicho Feliz atualmente. No Brasil, o número de animais grandes demais para o pátio, os que não se adaptaram ao filho caçula da família, ou que fizeram xixi no sofá e irritaram a família ou, ainda, os que não couberam nos planos da viagem de final de ano e acabaram abandonados pelas ruas, chega a quatro milhões. No final de 2008 estreava no Brasil o filme “Marley & Eu”, uma daquelas histórias estreladas por grandes nomes do cinema e que emocionava a sala inteira com a história de vida de partida do cachorro da família. Uma das frases mais espalhadas nos meses que sucederam o filme dizia que não importavam as condições financeiras dos tutores ou a formação intelectual: a quem desse o seu coração a um cachorro, ele lhe entregaria o dele.

Na linha de frente da SPA Bicho Feliz e diretora do Departamento Municipal de Proteção dos Animais de Garibaldi, Luana Meneghetti, já perdeu as contas de quantas histórias como as de Zion e Rolha passaram pela entidade e não sabe o que esperar das que ainda virão. Não são raras as vezes que não come durante o dia ou que passa a noite acordada em busca de soluções para o enfrentamento às práticas de abandono e maus tratos. Foram diversos títulos que se seguiram à história contada no filme. Na vida real, uma das consequências foi o aumento da adoção, escassa, e a compra de cães da raça labrador, como a do filme, e a réplica do nome Marley em cães. Há quem culpe a cultura de um povo, há aqueles que julguem a falta de empatia e há, também os que exigem o fim da compra de animais e pedem mais adoção. Não há fórmula que solucione o abandono animal no Brasil, nem leis que sejam capazes de atuar com vigor na punição de quem maltrata e abandona cães e gatos. n PRIMEIRA IMPRESSÃO 49


“Sou uma sobrevivente”, conta Preta, como Roseli também é chamada, sobre as dificuldades que venceu até a noite de formatura 50 PRIMEIRA IMPRESSÃO


TEXTO DE GUILHERME PECH

H

á quem diga que o fim é sempre melhor que o começo. A emoção do último momento de uma trajetória de luta, de anos a fio, não cabe no peito. Pegar o diploma e se tornar, enfim, pedagoga, é apenas a parte final do processo. O mais interessante da história está na caminhada até o topo da vitória. É assim, levando em conta todo esse trajeto, que se torna um vencedor. Uma vencedora, no caso de Roseli Maria Alencastro Dickmann, de 43 anos, a Preta, como é chamada pela família e amigos desde a infância, pelo seu bronzeado constante. Certa vez, Walt Disney disse que quem pode sonhar, pode fazer. E foi persistindo no sonho de ser pedagoga que Preta concluiu sua faculdade em setembro de 2019.

Após uma trajetória de sacrifícios e desafios, a pedagoga Roseli Dickmann relata a emoção de completar a faculdade e realizar seu sonho de estudar

A ÚLTIMA AULA Na última aula do curso, Roseli carregava a emoção de quem era, como ela mesma diz, a menina pretinha que sonhava que esquecia os cadernos em casa para chegar ao final, vencendo os inúmeros obstáculos. Naquele importante momento, que muito representa para sua vida, ela lembrou cada palavra de incentivo, do orgulho que estava causando aos seus pais e familiares. Inclusive, para si própria, sentindo-se uma vencedora de fato.

Trajetória de propósitos

DARDO PRODUTORA

Preta conta que vem de uma família humilde de quatro irmãos - três irmãs e um irmão - da Região das Missões, do município apelidado de “terra da hospitalidade”, Porto Lucena. Junto com as irmãs, Roseli começou ainda adolescente a trabalhar fora, sempre em casas de família, cuidando de crianças e de afazeres domésticos. Em geral, quem mais podia pagar, explica ela, eram as professoras. Com isso, Roseli parou de estudar quando estava na sétima série. O motivo não foi por obriPRIMEIRA IMPRESSÃO 51


DARDO PRODUTORA

gação do pai, mas, sim, por vontade dade de ensino, em 2006. de trabalhar para adquirir suas Cerca de um ano após a conpróprias coisas ainda na adoles- clusão do EJA, Roseli decidiu que cência. Mesmo assim, a vontade de iria cursar o magistério na Escola voltar a estudar permanecia. Estadual 25 de Julho, em Novo O desejo de voltar a estudar Hamburgo. Ela relata que chegou repercutia até mesmo quan- até a ir ao local para fazer a insdo Roseli estava dormindo. “Eu crição, mas naquele meio tempo chegava a sonhar que voltava a veio o segundo filho, Gustavo. Por estudar e esquecia os cadernos”, conta disso, interrompeu o que relata, em um misto de alegria e ainda não havia começado. emoção. Ela casou nova, aos 16 anos, e um ano depois foi morar Sem desafios, não em Novo Hamburgo, no bairro há vitória efetiva Canudos. Era a década de 1990. A partir dali, passou a trabalhar Em 2012, Roseli começou a em chácaras, com as mesmas ati- trabalhar em uma chácara em vidades anteriores. Depois de oito Lomba Grande, zona rural de anos casada, teve o primeiro filho, Novo Hamburgo. Durante sete Lucas. Quando ele completou qua- anos, ela e a família moraram na tro anos, ela decidiu que voltaria chácara do patrão. E foi em 2016, de fato para os estudos. Guiada com o exemplo da amiga Denise pelo objetivo, Preta ingressou no Gamarra, de 42 anos, moradora de supletivo EJA - Educação de Jo- Lomba Grande, que Roseli teve a vens e Adultos, no Colégio Marista iniciativa para continuar a realizar Pio XII, em seu município. seu sonho. Denise havia ingressado Assídua nas aulas e com filho no curso de Pedagogia na Unipequeno em casa, Roseli confessa versidade Anhanguera, em Novo que a rotina era extenuante. Como Hamburgo, através de uma bolsa o marido, Ilaércio, trabade estudo do programa lhava à noite, Lucas fica- Roseli junto com Educa Mais Brasil. Com va com uma cuidadora a amiga e colega a ajuda da amiga, Preta paga, enquanto Preta ba- Denise Gamarra, também fez a inscrição talhava para cumprir sua na noite do convite para o pedido de bolsa. meta. Assim transcorreu aos professores “Foi numa segunda-feira; até completar a modali- homenageados na terça-feira de manhã,

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já tinha vindo a resposta que eu tinha ganhado a bolsa”, detalha. Após estar inscrita na Universidade, realizou um vestibular e logo começou a cursar o Ensino Superior e uma nova etapa de sua vida.

Esforço que compensa Roseli explica que o começo do curso foi bastante difícil - como começos geralmente o são -, já que não possuía muita familiaridade com as tecnologias do computador, como digitar e postar relatórios. Ainda assim, foi buscar ajuda com familiares para aprender, além do apoio recebido no grupo de estudo de suas demais amigas do curso. Nesse intervalo de tempo, também passou por uma cirurgia no joelho, após o rompimento de um ligamento. Outro grande desafio na vida acadêmica de Roseli foi o primeiro estágio de seu curso. “Eu chorava à noite, achando que não ia conseguir”, conta, com a voz entrecortada de emoção. Muitas vezes nesse período, ela se sentia perdida; precisava elaborar aula e não sabia por onde começar. A amiga Denise, salienta Preta, a ajudou muito também nesse processo. “Ela é um exemplo de superação. Uma mulher de fibra que passou por muitos obstáculos, que não foram fáceis, mas sempre com muita garra e força de vontade”, observa Denise. Ela explica, ainda, que Preta, além de amiga, foi uma colega prestativa e generosa com todas da sala de aula. Roseli relembra a luta contra o desânimo. “Quando pensei que não ia conseguir continuar mais, meu cunhado Lairton e minha irmã Roselaine estiveram na minha casa e me incentivaram muito”, comenta. Nesse instante, Lairton, que também fez faculdade, dirigiu-se para ela e disse: - Preta, comadre, o momento vai chegar. Vai


DARDO PRODUTORA

No momento em que pegou o diploma para se tornar pedagoga, Roseli lembrou-se das palavras de incentivo que recebeu e do orgulho aos familiares

ter vontade de desistir. Mas não desiste, isso vai passar. E passou, revela ela, apesar de todas as dificuldades que teve. “O momento chegou”, acrescenta, lembrando-se da noite de formatura. Roselaine enfatiza que a irmã é um exemplo. “Nos emocionamos muito ao presenciar a Preta realizando o seu sonho, foi lindo demais, e também ao ver o quanto é querida pelas pessoas que enfrentaram essa batalha com ela, como colegas e professores, além da família e dos amigos”. Para o filho mais velho, Lucas, a história da mãe é de superação e persistência. O caçula, Gustavo, também reforça o exemplo de Roseli: “Mesmo com todos os problemas, ela persistiu, o que poucos conseguem. Levo esse ensinamento comigo sempre”. Sua trajetória sempre rendeu admiração e elogios por parte das colegas de classe. Preta sempre foi uma das alunas mais assíduas e pontuais da sala, valores que ela cultiva na vida e busca passar para os filhos. Ao fim do curso, Roseli já dominava as tecnologias necessárias para os trabalhos online, chegando a ajudar e a ensinar algumas colegas que tinham dificuldade a postar seus relatórios.

A grande dificuldade Em 2017, faltando pouco menos de dois anos para Preta concluir a Pedagogia, um desafio ainda maior interpôs-se no caminho: um sério acidente de moto, que a levou a ficar 27 dias no hospital, sendo três deles na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Com a situação, Roseli esteve à beira da depressão. “Meu médico me diz hoje que eu sou uma sobrevivente”, declara, emocionada.

A emoção de realizar um sonho Roseli destaca que todo esse aprendizado leva para a vida e ninguém pode tirar. “Eu tracei uma meta, um sonho que tinha. Não sei ainda se um dia vou exercer a profissão, mas consegui ir até o fim dessa meta. Talvez sirva de exemplo pra alguém”. Além disso, para ela, sua formação vai além do diploma adquirido. “Agora posso usar o que eu aprendi e ensinar outras pessoas, especialmente as crianças. Posso dizer que me sinto capacitada”, declara, e acrescenta: “Não é só um papel, um certificado, que define tudo isso”. Um dos momentos mais recompensadores de toda essa caminhada foi quando Roseli observou a presença de seus pais em sua pequena festa de formatura. Ela lembra, com a voz carregada de emoção, quando a mãe entrou no salão de festa, com toda sua humildade, carregando uma embalagem de presente que Preta não esperava - um anel de formatura, já que ela havia optado, por questões financeiras, a confraternizar com seus entes queridos, em vez de comprar o objeto. E é com gratidão a Deus e à vida por ter chegado aonde chegou que Roseli ensina: “nunca é tarde para realizar seus sonhos, basta querer”. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Escrevi esta matéria tentando empregar nela a mesma emoção que senti ao ouvir a história da Preta. Não é sempre que temos a oportunidade de conhecer um caso assim, que só rende admiração e orgulho para quem conta e para quem ouve. Nesta edição especial e histórica da Primeira Impressão, o fazer-jornalístico, como sempre, se adaptou às circunstâncias. As entrevistas com a Roseli foram, por isso, a distância, através de áudios, de textos e de imagens. Pude sentir o que é o valor de lutar por um sonho, e que dificuldades, falhas e desafios fazem parte da vida humana, em toda sua complexidade. E é exatamente isso que dignifica o nosso caminho. Pude perceber, também, o quão sério e responsável é o trabalho de um repórter como intermediador e contador de histórias. Essa é uma daquelas que merece ser contada.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 53


DEBBY HUDSON / UNSPLASH

Não há relatos que diga que é fácil ou que existe um manual de instruções de como fazer a transição para além da infância 54 PRIMEIRA IMPRESSÃO


TRANSIÇÃO PARA O DESCONHECIDO Últimas lembranças da infância TEXTO DE LUANA ELY QUINTANA

E

ntre o primeiro e o último instante da vida humana, existem etapas que se cumprem: infância, adolescência, adultez, velhice. Essa trajetória costuma ser de 80 anos para as mulheres e de 73 para os homens, no Brasil - e de 73 e menos de 70 no mundo, respectivamente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e a Organização Mundial da Saúde. De acordo com o dicionário de língua portuguesa Michaelis, o termo “infância” é um substantivo feminino que significa “período da vida, no ser humano, que vai desde o nascimento até o início da adolescência”. E como se percebe a mudança? Não há relatos, na história da humanidade, que diga que é fácil ou que existe um manual de instruções de como fazer a transição para além da infância corretamente. Cientificamente falando, esse momento é dado após a puberdade, como constata a psicóloga Lígia Heck, com 32 anos de profissão, que compara o fim da infância ao sofrer. Ela explica que o “ser adulto” é, comumente, considerado quando a pessoa passa a trabalhar e a se sustentar sozinha. Mas dentro da psicologia ainda há etapas que conferem essa fase. PRIMEIRA IMPRESSÃO 55


“Há mudanças no corpo das pessoas, como a puberdade, que acontece graças à ação de alguns hormônios, e que marcam essa transição da vida. Existem ciclos que se fecham para que outros se abram, é natural. Entrar na adolescência e na vida adulta envolve perdas, seja de nossos pais, avós ou amigos, mas as pessoas precisam administrar isso e pensar que, sempre que perdemos algo, automaticamente ganhamos outra coisa em troca”, esclarece Lígia. Não existe um estalo do universo que se ouve e pensa “puxa, eu cresci”, nem existe um corredor com longas paredes de cor amena, com placas sinalizando onde se deve ir e um letreiro ao lado de uma gigantesca porta com os

dizeres “sua nova jornada começa aqui, entre”. A vida não é um jogo de videogame, onde se pode escolher o destino de si mesmo e optar em cruzar a porta da infância ou optar por continuar jogando bola com os amigos na rua. Como em todo “grande momento” da vida, uma brisa fria o acompanha. Uma brisa que percorre a espinha e faz o corpo inteiro arrepiar. O medo do que vem pela frente, do que é incerto e desconhecido sempre vai existir. O pensamento que se tenta evitar tão claramente sobre decepções que virão a surgir, sonhos que muitas vezes vão falhar e pessoas queridas que, inevitavelmente, irão partir está sempre presente, pois é natural do ser humano sofrer por antecedência.

Natal

Dezembro apenas começava mas os enfeites já se espalhavam pela casa de Carolina, em Campo Bom. A pequena menina cheia de cachos castanhos no cabelo cantava e rodopiava em volta de sua mãe para ajudar a preparar o presépio e a árvore de Natal, que em pouco tempo chegaria. No tão esperado dia, o seu tio Carlos se tornava Papai Noel, como de costume. Dona Sílvia, sua mãe, não saía da cozinha para finalizar o tão famoso e ansiado pudim gelado da família Rangel. Em volta de uma árvore velha, Carolina e seus primos corriam e brincavam noite adentro enquanto os adultos bebiam e conversavam. Mas logo Carolina percebeu que aos poucos, com o passar dos anos, a família foi aumentando, as crianças foram crescendo, inclusive ela mesma. Sem nem ao menos notar, o convívio com os parentes foi diminuindo e conforme o Natal de um novo ano se aproximava, a noite de ceia era mais ‘exclusiva’. A casa que sempre estava enfeitada até o teto, pouco a pouco se tornara vazia. A famosa sobremesa “A gente não nota, de pudim gelado já não era mas é uma coisa que mais feita. O presépio já não muda gradualmente, era mais arrumado, as crianaté percebermos ças em volta da árvore já não que a nossa infância mais brincavam enquanto os passou voando diante adultos bebiam e riam. dos nossos olhos”, diz “A gente não nota, mas Carolina Rangel é uma coisa que muda gradualmente, até percebermos que a nossa infância passou voando diante dos nossos olhos”, conta Carolina Rangel, de 21 anos, atualmente morando sozinha a 296 quilômetros de distância de seus pais, em Palmeira das Missões, por conta da faculdade. “Muitas vezes eu me achei madura o suficiente para acreditar que a minha infância tinha já acabado, quando na verdade não tinha. A gente acha que pode escolher esse momento porque tem a vontade louca de querer crescer logo, mas a gente não entende como o mundo e as coisas funcionam”.

Férias de verão

RODOLFO MARQUES / UNSPLASH

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Em meados de junho, a temperatura alta e a onda de calor já começam a aparecer na Itália. Assim, a temporada de férias escolares vai se aprochegando devagar e se ajeita para permanecer até setembro. Lívia passava o mês de julho inteiro com seus avós, na praia de Ostia, perto do antigo porto de Roma. A pequena casa onde Lívia e sua família ficavam pertencia a seu avô Giorgo, e tinha uma vista linda para o mar. Era tão próxima a ele que se podia descansar à noite, ao som das ondas quebrando na praia. Os avós e a garotinha iam todas as manhãs e todas as tardes para a beira da praia construir castelinhos de areia e tomar banho nas águas do mar Tirreno. O próximo mês chega e com ele a viagem às montanhas de Dobbiaco, comuna norte italiana da região do Trentino-Alto Ádige, província de Bolzano, também. A diferença de cenários é que seu avô paterno faleceu, e há oito anos já não prepara mais, diariamente, café da manhã para ela. “Agora os verões são bem diferentes do que eram


“Agora os verões são bem diferentes do que eram antes, eu me sentia mais livre”, diz Livia Zaccagnini

KALISA VEER / UNSPLASH

antes, eu me sentia mais livre, eu não precisava estudar o tempo inteiro, ou trabalhar”, recorda Livia Zaccagnini, de 23 anos, que ainda mora com seus pais e sua irmã mais nova em Roma, na Itália.

Crescer parecia ser uma grande aventura Durante o processo de desenvolvimento humano é natural o desejo por novas fases, o certo interesse por independência, novos relacionamentos, lugares para se viajar. É natural a saudade do colo dos pais, da infância perdida, das perdas que aconteceram, dos amigos que seguiram outros caminhos e animais que já não fazem mais companhia. O desenvolvimento e o crescer humanos são processos de muitas mudanças, pois a vida é dinâmica. A romantização do crescer é posta em filmes, como é o caso de De Repente 30, onde a protagonista, interpretada por Jennifer Garner, está descontente com sua própria idade. Em seu 13º aniversário, ela faz um pedido: se tornar adulta, e, ao acordar na próxima manhã, o pedido se concretizou. Pouco a pouco ela percebe as muitas pessoas que

perdeu ao longo desses anos que nem viveu e, também, nota que nem tudo que imaginava que seria mágico realmente se tornou mágico. A nuance dos momentos que decorrem pela vida até a chamada “adultez” passa correndo, como um atleta que anseia vorazmente pela linha de chegada em um campeonato. É, nada mais, nada menos, que um vulto. Como aquele breve suspiro, que se tem antes de dormir, e que quando o solta já se pode notar os primeiros raios de sol de uma nova manhã entrando pela janela. Já Peter Pan só queria pensar em coisas boas e voar. Recusava-se a crescer. Porque crescer parecia doloroso demais para quem vive com os dois pés metidos nos sonhos. Imagine, viver em um mundo de sereias, piratas e fadas! Isso soa muito mais empolgante do que estudos, contas e emprego. O que você achava que seria quando crescesse? Manu Silva, de 20 anos, sonhava que seria uma cantora famosa e moraria em uma mansão bem grande. Vinicius Oliveira, de 23 anos, achava que a vida seria mais fácil. Arthur Hübner Prestes, de 22 anos, pensava que teria um carro, um emprego fixo e moraria em outro país. Laura Lemos Fank, de 20 anos, não se via mais morando na casa dos pais e seria mega independente. Ingo Alexandre, de 23 anos, achava que arrumar um emprego que pagasse R$ 10 mil mensais seria fácil. Alisson Santos, de 21 anos, pensava que crescer seria muita moleza. “Crescer não é como costumava ser. Esse é o refrão de uma música que escrevi uma vez... Quando eu era criança, tudo que eu queria era crescer. Ser mais velho conferia um status elevado, responsabilidade e poder sobre algumas coisas. “Só que, conforme eu fui crescendo, percebi que era um pouco mais difícil lidar com certas coisas”, conta Gustavo Alencar, de 21 anos. n

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Escrever sobre infância foi algo bem divertido de fazer, pois trouxe muitas lembranças boas. Ouvir outras pessoas falando sobre as experiências que tiveram também foi bem prazeroso. O fato de não podermos ter um contato face a face com os entrevistados, por conta da pandemia, foi um grande obstáculo, porque parece que falta alguma coisa, aquela liberdade e conexão que se tem no momento da troca de experiências, mas a tecnologia disponível no momento facilita a comunicação, inclusive com pessoas do mundo inteiro. Tanto que isso me permitiu ter uma entrevistada muito especial, diretamente da Itália. Acho que o mais interessante foi ver como as pessoas, independentemente de culturas e línguas, possuem similaridades nas suas impressões de não se ser mais criança e em como as histórias, de alguma maneira, acabam se assemelhando, mesmo que a quilômetros de distância. “ PRIMEIRA IMPRESSÃO 57


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS Cep: 93022-750. Telefone: (51) 3591.1122 Site: www.unisinos.br ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR ACADÊMICO E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: Alsones Balestrin PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Sérgio Eduardo Mariucci GERENTE DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO: Paula Campagnolo COORDENADORES DO CURSO DE JORNALISMO: Micael Behs

pi primeira impressão

REDAÇÃO TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: revistaprimeiraimpressao@gmail.com

Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte (luizfd@unisinos.br)

Reportagem e Fotografia Atividade Acadêmica: Jornalismo Literário/Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Emerson dos Santos, Fabrício Santos, Gabriela Stähler, Guilherme Pech, Isabelle Wrasse, João Pedro Chagas, Kellen Guaragni Dalbosco, Kévin Sganzerla, Letícia Guintani da Costa, Luana Ely Quintana, Mateus Friedrich, Renan Silva Neves e Saimon Bianchini FOTOS DE CAPA: Arquivo pessoal e Divulgação Vida Urgente

ARTE E PUBLICIDADE Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Cybeli Moraes

Editoração PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Garcia

Anúncios ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Robert Thieme SUPERVISÃO TÉCNICA: Larissa Schmidt ATENDIMENTO: Carolina Schmidt Cecconello DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Eduardo Xavier César REDAÇÃO: Lea Kunh

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A Mundo + Limpo é uma cooperativa formada por mulheres que une o empoderamento feminino à sustentabilidade. A cooperativa arrecada o óleo utilizado em casas e empresas e confecciona materiais de limpeza, sabões e velas aromáticas com esses resíduos. A partir da venda de tais produtos, as cooperativadas têm a possibilidade de contribuir com a renda familiar e conquistar maior autonomia financeira.

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Diante do cenário que estamos vivendo, é de extrema importância que se evite ao máximo a exposição permanecendo em casa. Faça sua parte no combate ao coronavírus (Covid-19). Muitas pessoas estão na linha de frente nessa luta. Nós estamos realizando nossas atividades em ambiente virtual para que, assim, possamos garantir a excelência acadêmica da universidade na formação de nossos alunos, além de presevar a saúde e o bem-estar da comunidade universitária e de seus familiares. Somos alunos, professores, pesquisadores, colaboradores e parceiros que criam um ambiente favorável à transformação por meio do conhecimento. Envie sua foto utilizando a #UniEmCasa e compartilhe seu momento, mostrando que somos uma “rede”, dando suporte e, juntos, desafiamos o amanhã.


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