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Revista-laboratório do Curso de Jornalismo Unisinos São Leopoldo/RS - Nº23 - JUL 2005
É REAL Histórias de vida, como a do transformista Jair Rangel, se aproximam de narrativas do cinema
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Tudo é ficção. Será?
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) – Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO – Reitor: Aloysio Bohnen. Vice-reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Desenvolvimento: Ludger Teodoro Herzog. Diretora de Graduação: Emi Maria Santini Saft. Diretora de Pesquisa e Pós-graduação: Ione Bentz. Diretor de Educação Continuada: Vicente Sant’Anna. Diretor de Pró-educação: Roberto Haleva. Diretor de Recursos Humanos: Vanderlei de Souza. Diretor de Finanças e Informações: Célio Wolfarth. Diretor de Marketing:
Rogério Delanhesi. CURSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – Coordenador Executivo do Curso de Ciências da Comunicação e da Habilitação em Jornalismo: Edelber-
to Behs.
Dandara Rangel, fotografada por Tiago Coelho
A revista Primeira Impressão é uma publicação da disciplina de Projeto Experimental em Jornalismo Gráfico, em parceria com a Agência Experimental de Comunicação (AgexCOM). E-mail: primeiraimpressao@icaro. unisinos.br PROFESSORES EDITORES – Textos: Miro Bacin (mbacin@mercurio.
Transpor a linha da realidade e ingressar no mundo da ficção é, aos olhos sonhadores do ser humano, uma barbada. Pensar no sentido contrário é que são elas. Compreender o núcleo de uma peça imaginada por alguém e representada por muitos torna-se um exercício de interpretação que depende da subjetividade de cada um dos leitores. É Real , título de capa da Primeira Impressão, faz esse trocadilho com textos: a personagem Dandara Rangel, famosa em Porto Alegre, é uma representação daquilo que não é. Mostramos Dandara, em suporte masculino (Jair Rangel), e vendemos outra coisa que não aquilo: ela é fonte de uma reportagem sobre transformistas e drag queens. Na verdade, uma transposição do tema abordado pelo filme Priscilia, a rainha do deserto. A imagem da capa é senha para a realidade interna da revista, com matérias que buscam, nas telas do cinema, referências no social. É um exercício tão prosaico quanto complexo. Parece fácil, mas não é. Como colar temáticas tão díspares - feitas para fluir a imaginação de quem as lê - com comportamentos reais? Vidas imaginadas com vidas do nosso cotidiano? A Primeira Impressão propôs esse exercício neste semestre. Cada aluno pensou em um filme e gerou uma pauta, seguindo casos reais. Um pulo da ficção para a realidade; das telas para o cotidiano. A revista é, igualmente, uma forma de apresentarmos a realidade em forma de ficção. Dá-se a narrativa fílmica, passa-se à realidade e cobre-se com imagens reconstruídas, que fazem referência ao acontecimento e que provocam a imaginação num jogo de transposições do real para o imaginado.
MIRO BACIN THAÍS FURTADO Professores-editores
unisinos.br) e Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br), coordenadora da AgexCOM. Fotos: Jacqueline Joner (diehl@unisinos.br) REPORTAGEM E EDIÇÃO – Alunos de 2005/1 – Turma 23: Alfeo Pozza Jú-
nior, Aline Weschenfelder Silva, Anita Vasconcellos Thorell, Catrine Eisinger, Cleo Marciano Meurer, Cristiano Mata Quintela da Silva, Cristiano Zanella, Cristiano Zang Borba, Daniel Gomes de Oliveira, Débora Priscila Rabelo, Elisane Andréia B. Meneghete, Eliseu Demari, Fabiano Baldasso, Fernanda Souza da Silva, Helene Krenzinger Otton, Jorge Gurski, Lenise Saldanha Rodrigues, Leonardo Flores Redaelli, Luciene Leszczynski, Luis Francisco Oliveira da Silva, Marcele Saffi Duarte, Marcos Juliani Pintos, Pedro Augusto Pereira Júnior, Rafael Rodrigues Bohrer, Sandro Rosa Vinciprova, Suzana Julieta Castro da Silva, Tariq Mohd Hassan Saleh, Tatiana Schallenberger, Théo Valter Knetig, Thiago Gamba, Tiago Schmitz, Vanessa da Costa Bueno e Vicente Lester Barth Borba – Turma 63: Anderson Hartmann, André Roberto R. Aguirre, Anita Vasconcellos Thorell, Atila Luis Pereira, Cláudia Fabiane Cambraia, Danielle Joana Titton, Diana Indiara Ferreira Jardim, Fernanda Hespanhol, Filipe Limas, Gláucia Rita Civa, Grazielle Corrêa de Araujo, Jéferson Cristiano Cardoso, Jessica Feiten, Letícia Lopes Machado, Luana Baldissera Nondillo, Luciane Andréia Pereira Ramos, Luciano Nagel de Mello, Marcelo Ricardo Fiori, Priscila de Azambuja Saraiva, Rafael Luiz Lorenzato, Renata Gonçalves Germano, Robson Francisco Nunes, Samuel Lucas Bizachi e Silvana Porto Alegre Schmidt Monitora: Priscila Azambuja Saraiva FOTOGRAFIA – Grupo de Fotografia da Unisinos: alunos Ana Júlia Fortes,
André Pares, Angela Alegria, Cândida Lucca, Denise Silveira, Elcion Secco, Pablo Escajedo, Pedro Martins Karam, Rita Coronel, Tiago Coelho e Zeca Brito, além dos alunos da disciplina. Monitor: Pablo Escajedo. Digitalização das imagens: funcionário Gustavo Diehl (Laboratório de Fotografia). Tratamento digital das imagens: professor Fernando Schmitt. PRODUÇÃO GRÁFICA E EDITORIAL (AGEXCOM) – Apoio, organização do lançamento e distribuição: funcionária Taís Flores da Motta, estagiárias de
Relações Públicas Cristina Carvalho e Martina Möller, sob orientação da professora Helenice Carvalho. Projeto gráfico e diagramação: funcionário Marcelo Garcia. Diagramação: estagiários de Jornalismo Guilherme Santos e Patrícia Fachin. PUBLICIDADE – Os anúncios publicados nesta edição foram vencedores de uma seleção entre trabalhos executados pelos alunos da disciplina de Redação Publicitária III, dos professores Ângelo da Cruz, Daniela Horta e Sérgio Trein. A finalização foi feita pelos próprios alunos vencedores David Feiten, Newton Facchini e Vicente Lovera, sob orientação dos professores, com apoio do estagiário Fernando Togni (direção de arte) da área de Publicidade e Propaganda da AgexCOM, sob orientação da funcionária Haradia Moraes e das professoras Angélia Najar e Simone Cunha. Agradecimento: Cláudio Cesar Furtado Impressão: Gráfica Palotti
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| Í N D I C E | Os repórteres da Primeira Impressão encontraram pessoas que viveram histórias semelhantes às contadas nas telas do cinema. Confira que filmes são esses: 06 | Closer - perto demais | | Mar a dentro | 10 13 | Shine - brilhante | | Meu nome é Rádio | 16 20 | Filadélfia | | Central do Brasil | 24 29 | O que é isso, companheiro? | | Blade Runner | 33 36 | Pelé eterno | | Mentes que brilham | 39 42 | O nome da rosa | | Vivendo no limite | 46 51 | O dia depois de amanhã | | Uma onda no ar | 55 58 | Vivos | | Nosso querido Bob | 63 66 | O resgate do soldado Ryan | |4|
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70 | Boogie nights - prazer sem limites | | O preço de uma escolha | 74 79 | Diários de motocicleta | | Patch Adams - o amor é contagioso | 83 86 | Quando um homem ama uma mulher | | Party Monster| 90 94 | Priscilla, a rainha do deserto | | Legalmente loira | 100 103 | O sexto sentido |
| IMPRESSÕES DE REPÓRTER | 107 Os alunos contam suas experiências durante a produção das reportagens | NA WEB | Confira mais textos dos alunos no site www.portal3.com.br
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Sentimentos em trânsito Quatro jovens se envolvem uns com os outros, mas não ao mesmo tempo. Cada um experimenta à sua maneira. Vivem o diferente em busca de uma opção TEXTO
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VANESSA BUENO
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PEDRO PEREIRA | FOTOS
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PABLO ESCAJEDO
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que estava tudo bem, ele se afastava”, relata. Para o advogado João, 42 anos, as relações estão “coisificadas”. “Não se diz mais “ficar com alguém”, se “diz pegar alguém”. “Nos tornamos objetos”, comenta. O advogado, que já traiu e foi traído, confessa ser vítima de uma sociedade machista, em que os amigos cobram conquistas amorosas. “Já perdi muitas mulheres maravilhosas porque tinha necessidade de sair e conquistar outras”. “Às vezes, traímos sem entender o porquê”, interpreta Tombini. Roberta, 19 anos, universitária, encara o começo de relacionamento como um desafio. Conversa com “o paquera” e, quando fica em dúvida se vai conseguir conquistar, começa a provocar. De-
Closer perto demais SINOPSE
P
aulo* amava Maurício, que amava Teo, que amava Diana, que amava Paulo. Maurício ficou sozinho, Paulo namora Teo e Diana está com Valter, que não tinha entrado na história. O texto acima parafraseia o poema Quatrilho, de Carlos Drummond de Andrade, escrito em 1930. A história, vivida por jovens universitários, em 2004, mostra um retrato das relações amorosas contemporâneas. Era início de ano letivo, Diana, 19 anos, acabara de chegar de Salvador para cursar faculdade no Rio Grande do Sul, sua terra natal. Arrumou-se. Tinha festa de boas-vindas para os bixos. Diana foi com Paulo, 20 anos, colega de aula por quem tinha se encantado. Paulo também se encantou, mas não sabe bem o porquê. “Talvez o cabelo vermelho”,diz. Na festa, Diana bebeu muito e acabou ficando com Maurício, 19 anos, amigo de algum tempo da internet. Paulo não ficou sabendo, e, ao levar Diana para casa, acabou beijando-a. Diana não lembrou, Paulo ficou chateado. “Quando eu bebo muito, parece que tenho um tipo de amnésia. Não recordo absolutamente nada no dia seguinte”, justifica. Paulo ficou com Maurício, depois com Diana e voltou a ficar com Maurício. As vidas estavam cruzadas. A menina de cabelos vermelhos gostava de Paulo e ele gostava dela, mas o destino os misturava a outras pessoas. Paulo sentia-se confuso. Tinha vontade de ficar com Teo, 19 anos, mas Teo ficou com Diana. Paulo conta que se sentiu incomodado e indeciso: Diana ou Teo? “Não existe regra para os relacionamentos. É preciso saber preservar o outro. Algumas pessoas têm envolvimentos passageiros, o que demonstra insegurança”, diz o psiquiatra Nélio Tombini, da Santa Casa de Porto Alegre. Diana sentia isso em relação a Paulo.“Quando eu achava
O filme Closer cobre quatro anos na vida dos personagens: Dan (Jude Law), um escritor frustrado que escreve obituários de jornal para sobreviver, envolve-se com Alice (Natalie Portman), uma stripper americana, após um acidente. Eles se apaixonam, ou assim acreditam, e Dan escreve um romance inspirado pela moça. No entanto, Dan acaba atraído pela fotógrafa Anna (Julia Roberts), que a princípio o rejeita. Essa rejeição enfurece Dan que, numa armação, acaba jogando-a acidentalmente para o dermatologista sexualmente obcecado Larry (Clive Owen). Os relacionamentos farão com que aconteça um troca-troca de casais onde o motor é a atração sexual mal-direcionada. Baseado numa peça teatral homônima é uma analise mordaz, divertida e honesta dos relacionamentos modernos. A direção é de Mike Nichols com o roteiro assinado por Patrick Marber.
pois de atingir seu objetivo, tudo perde a graça. Ela sempre tenta manter “uma distância segura”, não se envolve demais com a pessoa e, quando percebe um grande envolvimento, simplesmente deixa de falar com o “ficante”. É o “tipo Dom Juan, conquista e depois abandona”, analisa Tombini. Estão sempre interessados em testar seu poder de sedução e quando conseguem o que querem, saem em busca de um novo um parceiro ideal. “Morro de medo de me machucar numa relação”, diz reconhecendo sua insegurança. Felipe, 31 anos, médico, sente-se atraído por mulheres independentes e considera isso importante. Conta que na volta de uma viagem a São Paulo conheceu uma atendente da companhia aérea e não conseguiu tirá-la da cabeça. Na hora do embarque viu o seu nome no crachá. Durante o vôo não parava de pensar nela. Ao chegar em Porto Alegre, pegou o telefone da companhia e ligou pedindo pela moça sem obter sucesso. Então, deixou o seu telefone. Ela ligou. Durante cinco meses, ficaram se vendo. Tudo acabou porque, segundo ele, surgiu um novo interesse. O médico assume a dificuldade para criar vínculos.“Depois de quatro, cinco encontros, em que já fomos a todos os restaurantes e já conhecemos vários motéis, perde a graça”, explica. Apesar disso, tem o sonho de casar e ter filhos. “Quero envelhecer ao lado de uma mulher”. Para Nélio Tombini, o que todos os indivíduos procuram é alguém para preencher seus vazios. “O ser humano tem dificuldades com a solidão.” Os personagens iniciais desta reportagem atestam o que o psiquiatra diz. Paulo deixou Diana, que deixou Teo, que há nove meses namora Paulo. Diana está com Valter, que não tinha entrado na história, há oito meses. (*) Os nomes dos entrevistados foram trocados
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Além das limitações Ao contrário do escritor Ramón Sampedro, que inspirou o filme Mar adentro, o fato de ser tetraplégica não impediu a escritora Luciana Scotti de enfrentar seus problemas e optar pela vida TEXTO DE
U
FERNANDA SOUZA E LUCIENE LESZCZYNSKI FOTOS DE ANGELA ALEGRIA
ma jovem, recém-formada em Farmácia e no começo de sua carreira profissional, depois de mais um dia de trabalho, quando se preparava para sair, sofre um desmaio e é levada para o hospital. Depois de realizados exames, descobre-se que ela teve um derrame cerebral gravíssimo. Ela sobreviveu, mas está com praticamente todos os movimentos comprometidos. A história poderia ser roteiro de um filme como Mar adentro — vencedor do Oscar 2005 na categoria Melhor Filme Estrangeiro —, mas é a vida da paulista Luciana Scotti que, aos 22 anos, teve sua vida paralisada de repente por causa de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Tetraplégica e muda, Luciana poderia ter desejado morrer, mas optou encarar a guerra entre a vida e a morte. Hoje, nove anos depois do acidente, a jovem suplantou suas dificuldades. É doutoranda em Cosmetologia pela Universidade de São Paulo (USP) e está escrevendo seu terceiro livro. Sem Asas ao Amanhecer foi o primeiro, que Luciana escreveu com o movimento de apenas um dedo. Depois veio A Doce Sinfonia de seu Silêncio. Nos livros, a autora relata um pouco da sua experiência, que preferiu encarar mais como uma vitória do que como um sofrimento. “Quem lê meu primeiro livro notará diversos trechos amargurados, inclusive desejando morrer, dizendo que a vida tinha acabado, que não era mais bela. Foi nos primeiros anos, após meu Acidente Vascular Cerebral. Eu vivia em depressão”, conta Luciana. Ela entende que ninguém
fica tetraplégico de repente e “continua a viver numa boa”. “É um baita choque, um baque”, confessa e diz que teve muita sorte por ter uma família maravilhosa. “Me envolvi de novo no trabalho, que começou a fazer sucesso, descobri a internet, fiz novos amigos, enfim, voltei a viver”, declara. Casos de deficiência física, principalmente os ocorridos após uma tragédia, abalam profundamente o sistema emocional de uma pessoa. A depressão e a vontade de abandonar a vida são sentimentos que podem se manifestar mais ou menos intensamente, dependendo do reconhecimento que se faz da situação. De acordo com a presidente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), a psicanalista Lúcia Serrano Pereira, alguém que ficou tetraplégica e muda com 22 anos, devido a um acidente orgânico, não tem como evitar um tempo traumático, resultado da dificuldade de elaborar esta intervenção brutal sobre o corpo. A psicanalista afirma que o efeito depressivo, associado ao traumático, não deixa de ser um momento inicial dessa elaboração. “Surpreendente seria se não houvesse momento depressivo”, acrescenta. No entanto, é preciso que a pessoa reconheça esta depressão para poder superá-la. A ajuda e compreensão da família e dos amigos terão importante papel nessa superação. Uma controversa decisão sobre a vida ou a morte nos casos em que as limitações físicas acarretam muito sofrimento é a prática da eutanásia. A polêmica esteve presente na mídia, na primeira metade de 2005, a partir do caso | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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SINOPSE
Mar adentro RamĂłn Sampedro (Javier Bardem) sofreu um acidente na juventude, ficando tetraplĂŠgico e preso a uma cama durante 28 anos. Ele luta para ter o direito de pĂ´r fim Ă sua prĂłpria vida, o que lhe causa problemas com a Igreja, a sociedade e atĂŠ mesmo seus familiares. Dirigido por Alejandro AmenĂĄbar, a obra ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
da estadunidense Terri Schiavo, de 41 anos. O marido, detentor da guarda de Terri, decidiu e ganhou na justiça o direito de retirar o tubo de alimentação que a mantinha viva, jĂĄ que ela se encontrava em estado vegetativo hĂĄ 15 anos e sem chances de recuperação, desde que sofreu uma parada cardĂaca. No dia 31 de março Terri morreu, apĂłs 14 dias de inanição. A psicanalista LĂşcia nĂŁo estranha a polĂŞmica sobre o tema, jĂĄ que a relação com a morte pode ser muito diferentemente elaborada de pessoa para pessoa. “A famĂlia ĂŠ um conjunto, nĂŁo ĂŠ uma entidade homogĂŞnea e cada um pode pensar de forma absolutamente singular a este respeito. Um filho pode escolher abreviar o sofrimento de um pai e outro, apesar deste sofrimento, pode escolher evitar a perda a qualquer custoâ€?, contextualiza. Para a psicanalista, cada um deve opinar quando interpelado por condiçþes limites que envolvem a relação com o outro, mas alerta para que as situaçþes sejam pensadas “caso a casoâ€?. Ela lembra as singularidades culturais como fator determinante no enfrentamento da morte. “Como no JapĂŁo antigo, onde em algumas aldeias os velhos eram levados para morrer no alto da montanha mais prĂłxima, uma orientação religiosa pode se posicionar de uma forma, enquanto uma outra postura pode ter outra posiçãoâ€?, finaliza. No Brasil a prĂĄtica da eutanĂĄsia ĂŠ proibida. Embora a lei nĂŁo trate especificamente desta prĂĄtica, a punição para
ela estĂĄ prevista no artigo 121 do CĂłdigo Penal, que ĂŠ o mesmo que pune crimes de homicĂdio com pena de seis a 20 anos de reclusĂŁo. O parĂĄgrafo 1Âş ĂŠ o que se refere Ă eutanĂĄsia, citando que se o crime for cometido por motivo de relevante valor moral, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Em paĂses como Espanha, Holanda, BĂŠlgica, Uruguai e ColĂ´mbia, a prĂĄtica ĂŠ permitida, mas cada um tem suas especificaçþes como vontade do paciente deixado em testamento, concordância dos familiares ou sendo eutanĂĄsia passiva (veja quadro). Nos Estados Unidos a legalização varia conforme o Estado. Alguns permitem a eutanĂĄsia passiva para pacientes em estado vegetativo, outros autorizam o suicĂdio assistido. A Igreja CatĂłlica condena a eutanĂĄsia como uma lei que atenta contra a dignidade humana. Em 1980, o Vaticano divulgou uma declaração sobre o assunto onde existe a proposta do duplo efeito e a da descontinuação de tratamento considerado fĂştil. Para a doutrina espĂrita, a qual crĂŞ na reencarnação do espĂrito para o cumprimento de uma nova etapa de evolução, e conforme a vice-presidente da Federação EspĂrita do Rio Grande do Sul, GlĂĄdis Pedersen de Oliveira, a interrupção da vida ĂŠ um atentado Ă s “leis divinasâ€?. “Quando o espĂrito reencarna, vem Ă vida, tem um prazo estipulado para esta experiĂŞncia. HĂĄ um planejamento que ĂŠ anterior a vinda deste espĂrito para vida fĂsica. EntĂŁo, este prazo tem que ser respeitado, a morte tem que ser naturalâ€?, explica. Luciana Scotti ĂŠ contra a eutanĂĄsia, mas nĂŁo condena as pessoas que desejam ter uma “boa morteâ€?. “Se a morte ĂŠ um alĂvio para um sofrimento longo e inevitĂĄvel, ĂŠ bem vinda. Se uma pessoa sofre anos em cima de uma cama pode escolher entre viver ou morrerâ€?, afirma. No entanto adverte que ĂŠ uma decisĂŁo delicada. “Eu mesma vivi trĂŞs anos sobre uma cama em profunda depressĂŁo e hoje procuro viver intensamente. É difĂcil estabelecer um limite entre um suicĂdio bobo e uma dor realmente digna de morte. O importante ĂŠ saber que toda dor passa. A pessoa em depressĂŁo deve lutar, sair da cama, deixar o tempo passar. Todos nĂłs temos problemas, a vida nĂŁo ĂŠ fĂĄcil para ninguĂŠm, devemos lutar, deixar o tempo curar as feridas. Foi o que fizâ€?, aconselha a escritora. ›
Tipos de eutanåsia Ativa - tirar a vida da pessoa a pedido dela, por meios direto, como Ê o caso dos filmes Mar adentro e As Invasþes Bårbaras. Passiva - quando se ajuda uma pessoa a morrer tirando parte do seu tratamento. Duplo efeito - neste caso a morte Ê acelerada como uma conseqßência indireta das açþes mÊdicas que tentam aliviar o sofrimento do paciente terminal.
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QUANTO
AO CONSENTIMENTO DO PACIENTE:
Voluntåria: a morte Ê provocada atendendo a um pedido do paciente. Involuntåria: quando a morte Ê provocada contra a vontade do paciente. Não voluntåria: neste caso a morte Ê provocada sem que o paciente tivesse manifestado seu desejo em relação a ela.
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Sinfonia da realização
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TEXTO
DE
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MARCELO FIORI
E
JÉFERSON CARDOSO | FOTOS
ébora tem dez meses de existência. Fica agitada, inquieta, mas logo silencia no colo do pai, que caminha sem direção certa dentro de casa. Ele envolve a bebê nos braços e sussurra uma cantiga. Ela gosta. Acalma-se. Acaba dormindo. Essa cena é rotineira na casa do músico e professor Édison José Kniphoff da Cruz, 43 anos, que ao lado da esposa, a professora Cláudia Silviana, cria os filhos Débora e Vítor, de cinco anos. O menino tem o hábito de deitar no chão da sala para ouvir a aula que o pai dá na peça ao lado, onde funciona o Departamento Musical Cruz. Quando viaja ao litoral, a família também vive música, apesar de o carro não ter aparelho de som. Durante a viagem, canções são alternadas: ora ligam o radinho de pilhas, ora rezam o terço. Ou cantam. Débora ouve quietinha. Boa parte da vida de Édison é dedicada à música, mas ele também trabalha no estúdio fotográfico da família e na Escola Técnica Estadual Portão, onde leciona a
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DE
RITA CORONEL
disciplina de Educação Artística. Foi no ambiente escolar que Édison começou a gostar de música. Na década de 60, seu pai, Dolivar, era diretor da Escola Estadual de Portão Velho, em cujo pátio alunos ensaiavam para a missa da Comunidade Santo Antônio. O então menino ainda não estudava, mas acompanhava o pai nos ensaios. Nesse aspecto, ele vivenciou o mesmo que David Helfgott em Shine brilhante: ambos entraram na música por influência dos pais. Nessa época surgiu a atração pelo primeiro instrumento. “Lembro que uma pessoa fez uma apresentação de cítara na escola e aquilo me marcou muito”, recorda. Dolivar deu um tamborzinho para o filho participar dos desfiles de 7 de Setembro. Em vez de tocar, o menino chorava. Tinha medo dos foguetes que estralavam no céu da Pátria. Passava o tempo e a paixão foi se intensificando. Aos 13 anos, decidiu entrar no seminário. Freqüentou durante cinco anos a Escola Vocacional São José, em Gravataí. Es-
A vida de Édison Cruz é marcada pela música desde a infância. A paixão é tão forte que até a sala de sua casa virou academia
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tudava muito a música sacra, que lhe impregnou a alma. superou dificuldades, desenhou novos sonhos e enconNo final da década de 70, já tocava órgão nas missas. Em trou a realização pessoal. Ela, que sempre o amparou e in1979, assistiu a uma fascinante apresentação do pianista centivou, até dedilha uma canção volta e meia. O casal vai Valdeci Farias. Ficou tão eufórico que naquele dia decidiu: a concertos e sorve chimarrão ao som de música erudita. “Vou estudar música”. É na expressão serena do marido que Cláudia enconEm função de muitos afazeres e das inquietações da tra razões para apoiá-lo. “É evidente que a música para adolescência, Édison enfrentou uma fase turbulenta no ele é um prazer. Sinto que o Édison se realiza tocando. Ficomeço dos anos 80. Estudava até a madrugada, ensaiava ca muito feliz quando apresenta uma peça bem tocada”, no órgão do seminário e ainda presidia o Grêmio Estuobserva. Segundo ela, o casal contempla a música como dantil. “Eu tinha aquele imum meio de relaxar. As cargas pulso de querer mudar o de estresse que ambos adquimundo, fazer acontecer. rem em sala de aula acabam Além de administrar o grêse esvaindo pela melodia. “A mio, ajudava até a capinar o música é um dos elos que pátio”, lembra. une nossas vidas”, define Ao concluir o seminário, Cláudia. Se uma canção conShine - brilhante é um filme emocionante não sabia se continuava na tasse a vida do esposo, sensique retrata a história de um homem que descarreira religiosa. Ansiedade bilidade seria o título. “Ele é de criança era apaixonado por música. A e insegurança, somados a muito sensível principalmente obra relata a dura batalha de David Helfgott uma rotina desgastante, frapor causa da música.” para se tornar um músico virtuoso. Por ser gilizaram seu sistema nerÉdison hoje exercita múobcecado pelo piano, David acaba surtando. voso. Ele foi submetido a sica praticamente só nas auEntretanto, o amor por uma mulher faz o tratamento numa clínica las do curso que leciona na personagem superar seus problemas psíquipsiquiátrica. “Não tive neacademia que possui em cos e voltar a tocar. Duas paixões em um só nhuma doença mental, mas casa. “Minha vida agora é tohomem. Um relato perfeito de como o amor tomei medicamentos e fiz car com os alunos, que me pode vencer qualquer coisa. sonoterapia. Era estresse”, estimulam. Quase não gosto argumenta. Perda de memóde tocar sozinho.” Fábio Becria, sono e fome eram efeitos ker é um dos que domina o do tratamento. De novo aparece a semelhança com Shine, teclado graças às orientações do professor. Ao observar porque o protagonista sofre, na adolescência, um surto Édison tocando, o vê como um espelho que o anima a psíquico em virtude dos obsessivos ensaios ao piano. desenvolver suas destrezas. “Ele é um amigo muito imDepois de deixar a carreira religiosa e iniciar o curso portante, um incentivador. Trocamos idéias, ouço conde Letras na Unisinos, decidiu-se definitivamente pela selhos. É um estímulo para eu aperfeiçoar as habilidamúsica. Em 1984, Édison entrou na Faculdade Palestrina des”, avalia o tecladista. de Porto Alegre. “Tudo o que eu aprendia era na base do Repartir seu conhecimento e dedicar-se ao próxiesforço, da dedicação.” A saúde debilitada não o desesmo é outra característica do professor, um católico de timulou. Ao contrário. Fez com que superasse a si inesgotável fé. Há 25 anos, puxa os cantos nas missas próprio. Passados cinco anos, ele obteve o diploma de Lida Igreja Santo Antônio. “A semana sem missa não cenciatura Plena em Educação Artística com Habilitação tem a mesma graça. Fica aquele vazio. A missa me dá em Música. “Entrei na faculdade praticamente para mais vigor, renova os ânimos”, expressa. Édison tamaprender a tocar piano, mas fiz a licenciatura para poder bém dedica-se ao trabalho voluntário numa escola do dar aula.”, explica. No ano seguinte à formatura, virou seu bairro. “Fico uma hora por semana com as criprofessor da faculdade e lecionou a disciplina de História anças. Pego aquelas cantigas de roda e toco pra elas. É da Música, que sempre adorou. muito gratificante”, conta. Édison toca piano por prazer, por realização. Já foi inEm casa, quando chateado e estressado, o professor tegrante da Orquestra Camerata e da Orquestra Infantonão ouve música. Prefere o silêncio, mas não fica plenaJuvenil da Fundarte - ambas de Montenegro. Fez mais de mente desligado: “Diz-se que o silêncio faz parte da músi20 cursos na área da música. Chegou a iniciar o curso técca. Uma pausa é uma nota”. Ele é eclético, mas prioriza as nico de piano, mas teve de parar com a chegada dos filcanções clássicas porque “dão mais chão para o dia-a-dia". hos. Ele ainda alenta o sonho de voltar: “Quero estudar Quando toca, as notas e as letras projetam nele imamúsica sempre, mesmo com idade avançada”. gens da saudade. Se está sozinho, lembra-se de familiares, No filme, David Helfgott encontra a pessoa que lhe de amigos. Até sente vontade de visitar a terra natal. Se compreendeu e incentivou a tocar novamente apesar dos acompanhado dos alunos, abstrai-se mesmo dando aula. problemas mentais. Édison passou por situação semelA imaginação fica à deriva: tanto pode abrir as gavetas do hante. Quando conheceu Cláudia, sentiu um novo fôlego passado, como pode chegar a lugares nunca antes visitasoprar sua alma. Ao ser envolvido pela melodia do amor, dos. É a magia da música. SINOPSE
Shine - brilhante
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É normal ser diferente As portas do mercado de trabalho e da sociedade nem sempre estão abertas para os portadores de deficiências TEXTO
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HELENE OTTON E TATIANA SCHALLENBERGER ARTE DIGITAL DE ZECA NETO
e acordo com a Organização Mundial da Saúde, os portadores de deficiência são pessoas com necessidades específicas resultantes da “perda ou anomalia de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica”. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, cerca de 24,5 milhões de brasileiros são portadores de algum tipo de deficiência, seja ela fìsica ou mental, o equivalente a 14,5% da população. Entre eles, estima-se que 9 mi-
lhões estejam em idade de trabalhar, mas apenas um milhão têm alguma atividade. Isso significa que, enquanto a taxa oficial de desemprego no mercado de trabalho brasileiro oscila em 12 %, a taxa para pessoas portadoras de alguma deficiência chega a 90 %. Hoje a sociedade está em processo de preparação e solução deste problema, buscando a aceitação destas pessoas no meio produtivo. O artigo 93 do Decreto federal número 3.298, assinado em 20 de dezembro de 1999, determina que as empresas que ti-
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| I N C L U S Ã O | verem de 100 a 200 empregados devem destinar 2% das vagas para os portadores de deficiência. Para empresas com 200 a 500 funcionários destinam-se 3%, de 500 a 1.000 são 4%, e acima de 1.000 são 5%. No entanto, a maioria não está cumprindo esta exigência. Quando se fala em deficiente mental, o imaginário popular remete às pessoas problemáticas e confusas, que jamais poderão ser incluídas na sociedade. Para muitos, não passa pela cabeça vê-los atuando no mercado de trabalho. Segundo Edialeda Stimamiglio, 46 anos, coordenadora do Sistema Nacional de Empregos Sine, muitas empresas somente buscam portadores de deficiência para preenchimento de vaga, quando passam pela fiscalização do Ministério do Trabalho. “Oferecemos vários currículos para análise. As empresas colocam muitos empecilhos para não contratarem deficientes. O concorrente à vaga pode ter vários cursos técnicos e até saber inglês, porém para empresa, nunca é o suficiente”, reitera. O Sine emitia uma negativa para que as empresas pudessem justificar junto ao Ministério do Trabalho que a vaga foi aberta, mas não havia candidato portador de deficiência. Porém, ao perceber que isto era apenas uma estratégia da empresa, passou a não emitir mais esta negativa. Nos cadastros do Sine são encontrados portadores de deficiência qualificados, com segundo grau completo, cursos técnicos, com noções básicas de inglês, que não ultrapassam o contrato de experiência, de quatro meses. “A sociedade abre mão deles e não eles da sociedade”, diz Telmelita Moreira, 50 anos, socióloga responsável pelo atendimento das Pessoas Portadoras de Deficiência. “Meu filho não permanece muito tempo em um emprego por ser considerado dispersivo. Ele fez vários cursos, é muito inteligente, porém um pouco imaturo e infantil”, conta Jane Maria Wagner, 55 anos, mãe de Egberto. “O Egberto é um caso que me sensibiliza. Todos os dias ele vêm ao Sine em busca de uma vaga. Ele é ca|18|
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pacitado, fez diversos cursos, entre eles: informática, curso técnico de eletrônica, eletricista predial, entre outros, mas as empresas não têm paciência com ele”, afirma Telmelita. Em São Leopoldo, há uma escola que dedica atenção máxima e exclusiva para 132 alunos com necessidades especiais. “Todos com o objetivo de trabalhar e ultrapassar barreiras, como preconceito, descrédito, baixa auto-estima e falta de oportunidades.
Estes alunos têm provado e comprovado para suas famílias, amigos, colegas de trabalho e para a sociedade em geral que são capazes, que são responsáveis e que têm valores”, ressalta Mariluci Saraiva, 32 anos, diretora da Escola Estadual Especial Aracy de Paula Hofmann. Dos 132 alunos, 86 são menores de 18 anos. A idade mínima para ingressar na escola é a mesma prevista na Lei de Diretrizes e Bases - LDB, que rege a edu-
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cação no país: seis anos. A escola dá ênfase à construção de um processo de aprendizagem significativo e eficaz, dando condições para que os alunos desenvolvam suas potencialidades e tenham autonomia de escolha. Para Mariluci, a escola propicia um olhar desmistificador da deficiência, permitindo a busca de um novo processo de aprendizagem significativo e eficaz, trabalhando com as diferenças, considerando as realidades
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vivenciadas por cada sujeito envolvido. Através de um desejo dos alunos de se cadastrarem para uma vaga de emprego, a diretora da escola buscou uma parceria junto ao Sine. Foram cadastrados 12 alunos, seis homens entre 18 e 22 anos e seis mulheres de 20 a 32 anos, aptos para serviços de jardinagem, babá, auxiliar de cozinha e produção. Entre eles, quatro já estao empregados. Alexandre Luís Bernardes, 27 anos, trabalha como
empacotador no Hipermercado Bourbon de São Leopoldo desde a inauguração, em dezembro do ano passado. “Ele sempre foi muito extrovertido, mas quando começou a trabalhar ficou mais alegre e menos ansioso”, comenta Juarez Luiz Bernardes, 52 anos, pai do rapaz. Alexandre Eloi Rinaldi da Silva, 18 anos e Maurício Koboldt, 24, também trabalham no Bourbon e Maurício Casagrande, 23 anos, na Top Service Company - Serviços e Soluções, ambos em São Leopoldo. A problemática dos portadores de deficiência tem tido uma crescente atenção das autoridades nos últimos anos, mesmo assim está longe de ser resolvida. Novos incentivos e a discussão entre uma lei que obrigue as empresas a contratar estas pessoas e uma política de ação afirmativa, onde se incentive as empresas a contratação dos portadores de necessidades especiais ainda está por ser analisada. Devemos ver as pessoas deficientes sob a ótica das suas qualificaçoes e nao sob as de suas restriçoes para o trabalho.
Meu nome é Rádio SINOPSE
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Baseado na história real do ex-jogador de futebol americano - James Robert “Radio” Kennedy , o filme mostra o preconceito sofrido pelos portadores de deficiência. Rádio (Cuba Gooding Júnior), como é conhecido, é um deficiente mental inicialmente discriminado pelo grupo de jogadores de futebol americano do time de sua cidade. Rádio descobre o lugar onde os jogadores são treinados por Harold Jones (Ed Harris). Rádio e Harold tornam-se amigos inseparáveis. O técnico permite que ele ajude nos treinos e participe de todas as atividades em relação ao time. Com o passar do tempo, os jogadores vão aceitando a presença de Rádio e o ajudando nas suas dificuldades. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Reflexos do preconceito Demissões sem justificativa continuam sendo impostas por patrões desinformados ou mal intencionados, que acabam privando muitos soropositivos de terem um emprego e uma vida social TEXTO
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ANITA THORELL E SAMUEL BIZACHI FOTOS DE SAMUEL BIZACHI
iscriminação consiste em diferenciar um indivíduo em relação a outros. Preconceito, como a própria palavra diz, é a pré-concepção ou pré-julgamento infundado sobre alguém e, muitas vezes, é formado sem ponderação ou razoabilidade. Apesar de ser uma obra de ficção, de ter sido filmado há mais de uma década e a milhares de quilômetros do Brasil, nada disso torna a situação vivida pelo protagonista de Filadélfia, Andrew Beckett (Tom Hanks), desvinculada da realidade atual brasileira. Mesmo numa época em que se esbanja informação sobre HIV e Aids, a discriminação e o preconceito continuam sendo as principais causas da morte social dos soropositivos. Ao longo de 1999, o uruguaio Jaime Quiroga Berdias, funcionário de um escritório em Porto Alegre, viu o entusiasmo habitual do chefe com seu crescimento dentro da empresa transformar-se em indiferença e até em boicote à sua atuação junto aos clientes. Jaime sabia ser soropositivo desde 1996 e, apesar do bom relacionamento com o patrão, optou |20|
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por não contar o resultado de seu teste. O que ele não sabia é que, durante um exame de sangue realizado em maio de 1999, um dos gerentes da clínica prestadora de assistência médica aos empregados do escritório havia revelado sua sorologia ao seu empregador. A partir daí, a relação entre Jaime e seu patrão mudou radicalmente, culminando com seu pedido de demissão. As histórias de Andrew Beckett e Jaime Quiroga Berdias têm suas diferenças e peculiaridades, mas não deixam de ser semelhantes. Ao contrário de Andrew, que no filme sobreviveu apenas para ver a vitória do processo movido contra seus antigos empregadores e logo faleceu, Jaime nunca adoeceu. Hoje, aos 41 anos, infectado pelo HIV há mais de uma década, continua em plena atividade. Atualmente, é o coordenador regional da Rede Nacional de Pessoas que vivem com HIV e AIDS, responsável pelo Núcleo de Porto Alegre. Neste trabalho, luta pelos direitos e pela qualidade de vida dos soropositivos, além de realizar palestras sobre prevenção à Aids.
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| J U S T I Ç A | Em 1991, dois anos depois mas sem contar para todo munde mudar-se para a capital gaúdo que eu tinha o vírus, porque cha para se casar com uma porjá tinha noção da alta rejeição da to-alegrense, Jaime começou a sociedade aos soropositivos”, retrabalhar em um escritório e lovela Jaime. go conquistou a confiança dos Mas ao longo de 1999, vápatrões. Mesmo não tendo carrias mudanças nas atitudes de teira assinada nos dois primeiros seu chefe e de alguns colegas de anos, devido à demora na liberatrabalho levaram-no a suspeitar ção do visto de permanência no que todos haviam descoberto No filme Filadélfia, Tom Hanks é Brasil, seus empregadores semsua sorologia. Foi através de Andrew Beckett, advogado de pre fizeram questão de pagar toconversas com uma amiga íntiuma grande empresa que se vê dos os benefícios a que tinha dima de dentro da empresa que num processo judicial ao ser dereito. Jaime entrou na empresa ele soube da reação do chefe no mitido por ter Aids. Depois de como office boy e em poucos dia da ligação feita pelo gerente procurar ajuda em nove escritórios meses passou a atuar como venda clínica médica. Mais surprede advocacia para defendê-lo no dedor de linhas telefônicas, atiso Jaime ficou quando teve coprocesso, finalmente encontra alvidade que mais trazia rendinhecimento do alerta dado por guém que aceita o serviço. O admentos ao escritório na época. seu empregador aos outros funvogado que o defende e acaba Jaime conta que, em meados cionários, segundo o qual ele vencendo a causa é Joe Miller de 1998, passou a viver seu meestava com uma doença gravís(Denzel Washington), que tamlhor momento no emprego. “Misima e corria o risco de falecer a bém teve de lidar com seus prenha relação com meu patrão era qualquer momento. “Não acreconceitos para vencer no tribunal. estável e amistosa”, diz. Segunditava que aquilo estava acontedo ele, seu chefe tinha plena cendo. Como uma pessoa quase confiança em seu trabalho. “Eu formada em nível superior, em efetuava pagamentos, fechava o caixa, fazia depósitos 1999, podia ter uma cultura tão pobre e ser tão ignoem contas de clientes, andava com cheques e dinheiro rante sobre HIV e AIDS, depois de todas as campavivo pelo centro e muito mais. Até a senha da conta nhas que já haviam sido publicadas na mídia? Fiquei do meu patrão e da mulher dele eu tinha para efetuar abismado”, conta. transações bancárias”, salienta o ex-funcionário. Além Nessa época, o escritório contava com apenas oidisso, ele afirma que colaborava em tarefas que não to funcionários, e o clima se tornou insustentável paeram de sua competência, mas que fazia questão de ra Jaime. “O ambiente de trabalho ficou péssimo. realizar. “Meu chefe estava na fase final da faculdade e Meu chefe praticamente ignorava minha presença, tinha muito trabalho fora do escritório. Então, eu ficanão me deixava atender clientes quando ele estava va com uma chave da sala e muitas vezes era o primeino escritório e não me dava serviço. Parecia que eu ro a chegar e o último a sair”, destaca. Em compensatinha traído a confiança dele. E os problemas não erção, ele lembra que não tinha do que se queixar em am só com ele. Uma colega, por exemplo, começou a relação ao salário e benefícios que possuía. Seu chefe fazer piadinhas, dizendo que eu era viadinho e por sempre o estimulava a participar de cursos de markeisso tinha HIV. Cheguei a discutir muito com ela, ting, informática ou outros eventos, como lembra Jaimas a maioria simplesmente se afastava de mim e me: “Ele me mandava para vários cursos de aperfeinão sabia como conversar comigo. Meu pedido de çoamento e sempre pagava tudo. Dava pra ver que ele demissão foi inevitável”, diz. investia em mim”. Mesmo tendo sido vítima de preconceito onde No início de 1996, Jaime descobriu que era portatrabalhava, Jaime decidiu não processar seu ex-chefe, dor de HIV, após ter mantido relações sexuais de rismas entrou na justiça contra a empresa que revelou co, ou seja, sem preservativos. Apesar do desespero sua sorologia. Mesmo com testemunhas que confirmainicial causado pelo resultado do exame, ele adminisvam sua denúncia, ele teve problemas no processo e trou bem a situação e buscou apoio em entidades não depois da primeira audiência acabou desistindo. governamentais. Primeiro, no Grupo de Apoio e Pre“Eu era muito inexperiente naquela época, e mivenção da Aids, Gapa, e, mais tarde, na Rede Nacional nha advogada queria apenas fazer um acordo para eu de Pessoas vivendo com HIV/Aids, (RNP). Ele afirma continuar recebendo o plano de saúde de graça duranque o contato com outros soropositivos o ajudou a cote algum tempo. Não concordei com ela, me desgastei nhecer melhor o vírus, a doença, seus direitos, o premuito durante o processo e desisti. Hoje, tenho muito conceito e a lidar com tudo isso no dia-a-dia. “Nunca mais consciência dos meus direitos e saberia lidar meme preocupei com a morte, mas, sim, com o que faria lhor com essa questão”, diz Jaime. na minha vida. Por isso, decidi continuar trabalhando, Apesar de não ter sido a responsável pela defesa SINOPSE
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de Jaime no processo contra a empresa que revelou cimento sobre prevenção nas empresas, o serviço sua sorologia, a advogada do núcleo porto-alegrense também fornece informações sobre direitos e deveda Rede Nacional de Pessoas que vivem com HIV e res de empregados e empregadores. AIDS, Maria Beatriz Pacheco, soropositiva desde 1997, Segundo o coordenador da CAT-HIV/Aids, Carafirma que o fato de Jaime ter sido deixado de lado e los Aleixo, qualquer pessoa que se sentir discrimiignorado pelo seu chefe configura falta grave do emnada no trabalho devido à sua sorologia pode propregador. “O contrato de trabalho é bilateral. Compete curar a Central. A partir daí, ela é encaminhada paao empregador fornecer trabalho ao empregado e este ra um encontro com os agentes, que avaliam o caso executá-lo”, explica a advogada. Para ela, só o fato de e marcam a chamada “mediação”. Nesta reunião, um empregado trabalhar normalmente há oito anos empregado e empregador buscam solucionar o pronuma empresa e, de uma hora pra outra, o empregablema antes que a questão vá parar num tribunal dor lhe tirar várias tada justiça. “Em torno refas gratuitamente já de 90% dos casos são representa um indício resolvidos a partir das de prova. mediações. Os que não Mesmo com as eviconseguimos soluciodências, a advogada não nar são encaminhados se espanta por Jaime ter para a Comissão de desistido do processo Direitos Humanos”, no meio do caminho. explica Carlos Aleixo. “Efetivamente, estes Quando passou a processos são muito ser discriminado no desgastantes. Aliás, o trabalho, Jaime não que mais desgasta é a sabia da existência da necessidade, socialmente Central de Atendiimposta, de nos esconmento ao Trabalhador dermos. Quando nos com HIV/Aids e não dão o diagnóstico, falam teve a oportunidade que não precisamos dide solucionar amigazer que temos o vírus. velmente a questão Isto gera uma mensapara poder continuar gem subliminar de que trabalhando. Assim a doença que temos é como outros soroposiuma vergonha. O sofritivos não sabem ainda mento que isto acarrehoje da CAT-HIV/Aids ta é inenarrável. Neste e continuam sofrendo momento, com este sozinhos com o prequadro de solidão, fraconceito no ambiente gilidade e confronto profissional ou com o com a possibilidade de medo constante de morte, a pessoa ainda que descubram sua passa a ser perseguida sorologia e os demiSem apoio: Jaime foi discriminado no trabalho em seu ambiente de tam por causa disso. trabalho. É terrível”, Casos semelhantes de revela Maria Beatriz. discriminação ao soroEmbora pouco dipositivo, como o aprevulgado, existe um serviço voltado para a solução sentado em Filadélfia, ocorrem no Rio Grande do de casos de discriminação contra trabalhadores soSul e no Brasil com muito mais freqüência do que ropositivos: a Central de Atendimento ao Trabalhase imagina. E, segundo as palavras de Jaime: “Todor Vivendo com HIV/Aids (CAT-HIV/Aids), que dos os soropositivos devem ir atrás de seus direifunciona desde 1998 e já fez mais de mil atenditos quando necessário. O preconceito só vai acamentos em todo o Rio Grande do Sul. Instalada no bar quando todas as pessoas aprenderem a nos requarto andar da Delegacia Regional do Trabalho, no speitar. Apenas temos uma doença crônica, assim centro de Porto Alegre, a central assinou oficialcomo várias outras pessoas. Alguns têm problemente, no dia 19 de abril de 2005, uma parceria mas de coração, outros têm câncer. Nós temos o com a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com vírus HIV e somos iguais aos outros. Temos os HIV/Aids. Além de promover palestras de esclaremesmos direitos”, desabafa. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Em tempos de internet, ainda são encontradas pessoas que preservam o hábito de se comunicar por cartas. Uma oportunidade para o sucesso e a felicidade
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SANDRO VINCIPROVA VICENTE LESTER FOTOS DE RITA CORONEL DE E
A
comunicação por cartas no Brasil resiste à concorrência de novas tecnologias disponíveis aos consumidores. O bom e velho jornal que o diga. No popular Diário Gaúcho, de Porto Alegre, as cartas representam a maioria das correspondências do veículo. São recebidas cerca de 50 para as mais variadas seções do jornal, enquanto os emails não passam de dois ou três. Em São Leopoldo, no jornal VS, das 50 correspondências entregues diáriamente pelos correios, 20% são de leitores. O uso da carta tal qual conhecemos hoje, foi utilizada na descoberta do Brasil. Com a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500, surgiu a primeira correspondência oficial ligada ao País, escrita por Pero Vaz de Caminha e enviada ao Rei de Portugal, a qual relatava com imenso entusiasmo o descobrimento da nova terra. Uma outra carta, que se pode dizer ser a
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Amor por escrito: Ivan e Maria de Lourdes trocaram 315 cartas e estão juntos há 38 anos
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Central do Brasil O filme Central do Brasil trata da história dos migrantes brasileiros e sua dificuldade de comunicação no contato com familiares. A personagem Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, passa o dia escrevendo cartas na Central do Brasil para familiares distantes, em geral, nordestinos. Dora acabando conhecendo a realidade do garoto Josué, vivido por Vinicius de Oliveira, que perde a mãe num acidente de carro, sendo acolhido por Dora.
mais importante da nossa história, foi escrita e deixada pelo então presidente da república Getúlio Vargas: “Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo para o caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. Algumas linhas deixadas e um tiro fatal. A carta é uma espécie de álbum de família, um diálogo familiar, da qual os sentimentos mais íntimos afloram. Alguns casos são verdadeiras obras literárias, como aquelas de Monteiro Lobato, Manoel Bandeira e Plínio Salgado, trocavam com amigos, parentes e colegas de profissão e, que, com o passar do tempo, viraram livros. Cartas de amor que se transformaram em um livro é uma história verídica vivenciada pelo químico Ivan Hoffmann e a professora Maria de Lourdes. Entre abril de 1967 e maio de 1971, trocaram o equivalente a 315 correspondências. A primeira começava assim: “Não tenho idéia de como receberás esta carta que escrevo neste momento, justamente pelo fato de ainda não nos conhecermos. Sou Ivan. Terei grande prazer em me corresponder contigo, se for do teu agrado...”. Sem conhecê-la, sem saber idade, feições, somente que era a filha mais nova de 12 irmãos, Ivan remeteu a carta. Maria de Lourdes ficou surpresa, mas muito feliz. |28|
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Um amor que perdura por 38 anos, entre namoro e casamento. Uma relação que teve como frutos dois filhos: Kelvin e Henry. O motivo de terem escrito tantas cartas e as publicarem está descrito no sentimento de amor e respeito que um sente pelo outro.“É realmente despertar sentimentos de amor entre as pessoas, trazendo aquela alegria, aquela felicidade. É importante também promover a união entre os casais, que hoje está tão fragilizada”, ressalta Ivan. O casal quase não usa mais as cartas para se corresponderam. Rendem-se a modernidade, do telefone e do e-mail. Mas quando um deles está longe, uma cartinha é motivo de reavivar as lembranças boas do passado.
A paixão que se iniciou na infância A acadêmica em Direito Lindamalia Rick Rovêda, 50 anos, confessa que é uma aficcionada pela comunicação por cartas, mesmo com as novas tecnologias. Lindamalia possui uma ligação com as cartas há mais de 30 anos. A primeira foi escrita aos 13 anos e, desde então, nunca mais parou. Nesse tempo, escreveu mais de 900 correspondências e recebeu um número incontável de outras de países como Alemanha e Itália, onde manteve contato com familiares. Devido à grande quantidade de correspondências, foi obrigada a se desfazer de muitos dos postais e das cartas. A paixão começou na infância, quando ajudava o avô alemão Paul Walter Rick Brumme a se comunicar com os parentes que permaneceram na cidade de Leipzig, na Alemanha. Devido às dificuldades de escrita do avô, Lindamalia colocou nas cartas a paixão pela língua portuguesa que herdou da mãe, Heloisa Rick Rovêda. As cartas remetidas para a madrinha Johanna Krchesmmann, irmã do avô, foram responsáveis pelo domínio da lín-
gua e da escrita em alemão. A universitária explica que a morte do avô fez com que se aproximasse dos familiares italianos, especialmente Nicanor e Oscar Rovêda, com quem trocam correspondências com mais freqüência. Ela destaca que as cartas ajudam a se manter atualizadas com os familiares paternos que moram na região de Milão, na Itália. “Quand ela fica muito tempo sem mandar cartas, os familiares imediatamente questionam os motivos da interrupção da comunicação”. Mesmo distante apenas 40 quilômetros, Lindamalia mantém contato com familiares gaúchos localizados em São Leopoldo, especialmente com a tia Maria Helena Rick, de 77 anos. Mesmo com o telefone que é usado para conversas rápidas e morando próximas, a sobrinha não deixa de escrever. “Elas são usadas para trocar segredos que não podem ser contados por telefone”, confidencia. A sobrinha Thuany Rick é sua provável sucessora deste tipo de comunicação, já que a jovem está sendo incentivada a escrever cartas, que facilitam o aprendizado da leitura e da escrita. O gosto pela leitura rendeu à Lindamalia o lançamento de um livro. Através do Sebrae lançou, em 2002, Micro e Pequenas Empresas do Brasil, que lhe rendeu o 5° lugar no Prêmio Nacional Novos Literários do Brasil, entregue pelo Sebrae. Atualmente está aguardando a edição de dois livros infantis que possuem títulos provisórios: O pássaro que não sabia voar e Amor do Sol pela Lua. A universitária sonha com um programa que por parte do governo que incentive o hábito de escrever cartas, o que facilitaria o desenvolvimento dos jovens brasileiros. Lindamalia acredita que as cartas nunca deixarão de existir, pois sempre haverá pessoas dispostas a manter em diálogo tradicional, por mais concorrência que exista.
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Brasil. Protestos, reivindicações e comícios tomavam conta das ruas do país. Na política externa, o Governo Brasileiro buscava firmar pactos de industrialização com novos parceiros, o que desagradava os países envolvidos na Guerra Fria. Internamente, as alianças populares cresciam a cada dia. A política brasileira se polarizava entre duas correntes: a esquerda nacionalista e a direita conservadora. Nesse misto de tensão e falta de unidade, o país é surpreendido por um golpe de estado, quando então é instaurado o primeiro Regime Militar, que duraria até o começo dos anos 80. Até hoje, não se sabe ao certo se foi um episódio isolado ou se foi um conjunto de fatores que contribuiu para a derrocada do regime democrático no país. Muitos dizem que a Revolta da Armada colaborou para isso. Entre os marinheiros que participaram do levante, está o gaúcho de Lajeado, Avelino Bioen Capitani. Ele conta que a Revolta surgiu como uma resposta da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil ao governo João Goulart. As exigências feitas por eles não eram atendidas. Reivindicavam o direito ao casamento, direito a andar à paisana e algumas questões relativas à promoção de carreira. “Todos começaram a se associar. Teve início uma luta muito longa, pois as reivindicações não eram atendidas. Muito pelo contrário, éramos cada vez mais perseguidos, gerando imensa insatisfação”, relata. Capitani conta que as duas correntes políticas que predominavam no Brasil começaram a se distinguir em 1964, ocasionando uma polarização na sociedade. Assim, a Associação também se politizou. “Ela vai entrar na política nacional, unindo forças juntamente com a sociedade civil”, enfatiza o ex-marinheiro. No dia 25 de março do mesmo ano, a Associação realiza uma festa em comemoração ao ani|30|
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TEXTO DE ALFEO POZZA JR ALINE WESCHENFELDER FOTOS DE ANGELA ALEGRIA E
O processo de redemocratização devolveu à sociedade brasileira a liberdade sindical e partidária. Mas a confiança nas lideranças dos partidos ainda é muito baixa para que o regime democrático no país seja consolidado versário da entidade. O intuito do festejo era mostrar a grandiosidade da associação, o que muitos entenderam como um ato de provocação ao alto comando da Marinha. “Um dia antes da comemoração alguns marinheiros são presos, mas o aniversário é mantido. Com a notícia das prisões, todos se rebelam e a Marinha fica praticamente sob o comando da associação. Um batalhão de fuzileiros tenta reprimir a rebelião, mas adere ao movimento”, conta. Após algumas negociações com o governo, o presidente João Goulart nomeia um novo ministro da Marinha e concede semianistia aos marinheiros rebelados. Dias depois, os militares tomam o poder. A Associação dos Marinheiros se refaz rapidamente e se apresenta como um dos focos de
resistência aos golpistas. “Em nenhum momento nós questionamos o governo de João Goulart. Queríamos apenas que ele modificasse o comando da Marinha e atendesse às reivindicações. Nós reafirmávamos o processo democrático”, diz. Capitani lembra que os marinheiros aguardavam uma ordem de resistência geral a ser dada pelo presidente João Goulart. “Para os marinheiros, a ordem era muito importante. Infelizmente não a recebemos até hoje”. Na tardinha do dia 1° de abril, o ex-marinheiro recebe a informação de que Brizola partira para o Uruguai, e Goulart já estava exilado no país vizinho. “Nesse dia vimos que não haveria mais nada a fazer”, diz. O Exército deslocou 15 mil soldados para combater os marinheiros, que ainda resistiam. “Ficamos frente a frente, diante de tanques, canhões e morteiros”. No comando do movimento, Capitani informa aos companheiros que aquele era o último foco de resistência do país. Ele lembra que muitos começaram a gritar e a chorar, imaginando que poderiam morrer diante do confronto que se aproximava. Mesmo assim, a resistência se manteve. Um coronel superior foi quem convenceu aquela massa a se entregar, impedindo um banho de sangue. Após o episódio, Capitani é preso, foge duas vezes, se asila no Uruguai e faz treinamento de guerra em Cuba. Apesar da fuga, muitos foram os dias que ele passou sob a tortura dos militares, enquanto preso. “Eles gostavam de uma tortura bem variada. Nos queimavam com cigarro, davam choque elétrico e nos faziam passar sede. Muitas vezes eles nos deixavam dois dias amarrados em uma mesa. Faziam esse tipo de jogo que eles faziam. Recebi muito soco também, a tal ponto que perdi quase todos os
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| D I T A D U R A dentes”, revela. Atualmente, Capitani trabalha em um partido político, único refúgio para quem não pôde construir a vida em seu país de origem, devido à perseguição implacável do regime ditatorial. Não foi apenas a Revolta da Armada que tentou tardar, e até mesmo evitar, a ascensão dos militares ao poder. Outros focos de resistência também se formaram em alguns estados do Brasil, como a Rede da Legalidade no Rio Grande do Sul. Arlete Arruda, professora da Unisinos, especialista em Ciência Política, avalia que esta resistência não tinha uma organização efetiva que pudesse combater os militares e impedir o golpe. “Não havia condições de enfrentar um regime militar sem que houvesse efetivamente um processo de resistência ou de luta estratégica”, destaca. Segundo ela, mesmo os grupos armados que surgiram em meados de 1968, esboçavam fragilidade. “Não havia um conjunto de forças. Esses grupos não tinham o apoio dos outros setores da sociedade”, explica. Durante o regime nãodemocrático implantado no Brasil, que se caracterizou pelo revezamento institucional e pelas diferentes facções militares que administraram a nação, muitos civis sentiam-se constrangidos ao serem abordados na rua. Muitos preferiam ficar do lado que consideravam o mais forte. João Batista de Oliveira, mesmo contrário ao regime, prestou concurso e ingressou na Brigada Militar. Essa foi a forma que encontrou para se proteger e evitar perseguições. Inserido no regime, João testemunhou acontecimentos que considera hoje atos de covardia e abuso dentro dos batalhões. “Um guri em colégio interno. Era assim que muitos se sentiam. Quando iam para a rua fardados, achavam que podiam tudo”, relata, se referindo ao abuso praticado pelo alto comando. Ele diz que esse tipo de atitude fez alguns policiais militares sentirem-se inferiores em relação ao comando, mas |32|
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Poder verde-oliva Através de Atos Institucionais os militares legalizavam ações políticas não previstas e até contrárias à constituição. Entre eles se destaca o AI-5 (Ato Institucional número 5) que reforça os poderes arbitrários do regime e concede ao exército o direito de determinar medidas repressivas específicas. Os meios de comunicação eram censurados pelo governo, o Poder Judiciário tinha as garantias eliminadas e era suspensa a aplicação do habeas corpus em caso de crimes políticos. O Ato também acabava com direitos individuais, cassava mandatos e acabava com os direitos políticos.
O que é isso, companheiro? SINOPSE
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Em 1964, o governo democrático brasileiro é derrubado por um golpe militar. Em dezembro de 1968, o Ato Constitucional nº 5 revoga a liberdade de imprensa e os direitos civis dentro do país. Um grupo de jovens organiza e seqüestra o então embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick. Entre os seqüestradores está Fernando Gabeira, que em troca da liberdade do embaixador, pede a libertação de presos políticos. Há um clima de tensão por parte dos seqüestradores, enquanto aguardam a resposta do Governo às suas exigências.
superiores ao resto da população, levando-os a agir de forma violenta e autoritária. A pressão em torno de João começou quando solicitou o pedido de afastamento à corporação. Conforme o ex-policial, era muito difícil conseguir sair do sistema, a menos que a pessoa estivesse desmoralizada. “Meus requerimentos pedindo exclusão eram sempre recusados”. Certa vez João foi preso por ter se envolvido em uma briga com um oficial durante uma abordagem. Ele diz ter sofrido tortura moral na prisão.“Fiquei 20 dias incomunicável, nem advogado entrava na cela. Me falavam que o rapaz que eu havia abordado estava me acusando de ter pegado dinheiro dele, não era verdade. À noite, me perturbavam. Queriam me desmoralizar. Quando não tinham mais o que fazer, resolveram me largar”. Ao voltar ao trabalho, João pediu novamente para sair. Foi aceito. Atualmente, trabalha como caminhoneiro, casado e pai de quatro filhas. Mas será que o Brasil realmente consolidou o regime democrático? E o período da ditadura é parte de um passado que muitos preferem não lembrar? Para a professora Arlete Arruda, do ponto de vista institucional, o Brasil tem, sim, uma democracia consolidada. Ela cita a liberdade sindical, a liberdade partidária, a liberdade de imprensa e a própria constituição, como conquistas importantes da sociedade a partir do processo de redemocratização. Por outro lado, ela acredita que há um índice muito baixo de confiabilidade nas lideranças dos partidos e também na figura do dirigente da nação. “O povo suporta até mesmo os déficits econômicos, mas ele não tolera mais a falta de confiança nos representantes políticos. Quando não existe essa confiança e essa esperança em nossos representantes, será que as pessoas vão desejar lutar pelo processo democrático? É difícil”, finaliza.
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Invenções têm mostrado a capacidade do homem de criar equipamentos como forma de prolongar seus sentidos e torná-lo dependente delas TEXTO
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CRISTIANO QUINTELA
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THÉO VALTER KNETIG | FOTOS
om o surgimento de novas descobertas, aplica-se o termo “nova tecnologia”, ou “tecnologia de ponta”, para expressar o que há de mais recente no mundo. Condicionado pela tecnologia, o homem não percebe o quanto é dependente dela. Na opinião da psicóloga Ana Cristina Blaskoski Carissimi, do Núcleo de Atenção à Criança e Adolescente em Idade Escolar, de Porto Alegre, é preciso buscar um equilíbrio em tudo o que se faz ou usamos, pois todos os extremos são prejudiciais tanto para o corpo quanto para a mente. Ela explica que não
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DENISE SILVEIRA
existem pessoas viciadas em tecnologia, pois não existe nenhuma doença com esse sintoma Na prática, há pessoas que passam a maior parte de seu tempo em frente ao computador e não encontram prazer em outras atividades. “Podem ser pessoas que no seu dia-a-dia apresentam dificuldades de manter um contato pessoal, uma amizade que não seja virtual”, afirma. Ana Cristina diz que a máquina é usada como um refúgio por indivíduos que podem apresentar alguns traços de imaturidade, insegurança, timidez, inibição e dificuldade de
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enfrentar seus problemas. Para o professor do curso de Engenharia da Computação e coordenador do Grupo de Robótica Inteligente da Unisinos, de São Leopoldo, Farlei José Heinen, a tecnologia deve ser usada apenas como uma ferramenta. “No momento que uma pessoa se torna dependente da tecnologia, ela perde sua ligação com o mundo real, sua capacidade de raciocinar e interagir de forma adequada com a sociedade”, alerta o professor. O fato da dependência das máquinas estar automatizando o homem, faz com que alguns repudiem as novas tecnologias. Para Ana Cristina, isso se deve ao medo que o homem tem do desconhecido e o fato de gostar de se sentir confortável com o que conhece. Para outros, celulares, computadores, televisões por assinatura são desnecessários, não por medo ou por falta de condições financeiras, e, sim, por opção. Ilka Wesoly, 70 anos, moradora do bairro Vila Floresta, em Porto Alegre, possui o que há de mais moderno para dar conforto ao ser humano: televisão, rádio, máquina de lavar roupas, telefone, celular e automóvel. “Quem não tem necessidade, tudo bem, mas a tecnologia é uma coisa que melhora a vida da gente”, justifica. Ilka diz que a televisão e o rádio servem apenas para se informar sobre o que está acontecendo no diaa-dia. Prefere jornais e revistas, pois segunda ela, instigam a imaginação, enquanto a televisão apenas coloca as coisas a sua frente, fazendo-a aceitar o que lhe é mostrado. Na visão de Farlei Jose Heinen, os avanços tecnológicos trouxeram grandes vantagens ao homem. O principal, segundo ele, foi o acesso à informação. “A internet aproximou as pessoas e agrupou o conhecimento humano em uma grande rede que pode ser acessada por todos. Mas essa informação não está de uma forma ordenada ou pronta para ser absorvida, cabe às pessoas determinarem o que é útil”. Para Ana Cristina, a correria do dia-a-dia faz com que o homem disponibilize pouco tempo para seus relacionamentos e, através do uso de celulares e mensagens eletrônicas, mantenha contato com quem convive, dando-lhe a sensação de estar sempre acompanhado. O medo perante a violência urbana é outro fator que faz dos equipamentos tecnológicos um refúgio. Segundo a psicóloga, há pais que presenteiam seus filhos com celulares, computadores e videogames, não para incluí-los no mundo tecnológico, mas para que não saiam de casa e fiquem sempre ao alcance dos seus olhos. “Acham que assim, elas não correm perigo nas ruas, pois temem a violência”, diz. Porém não devem esquecer, que a violência não vai sumir e é importante orientar os filhos quanto aos perigos que podem encontrar nas ruas. Farlei Heinen, não acredita na acomodação do
homem. Acha que o trabalho humano ganhará uma nova forma no futuro, mais intelectual, já que as máquinas farão o serviço pesado. Esse cenário tende a aproximar mais as pessoas, aumentando a interação. À medida que a humanidade evolui, a ciência busca alternativas para facilitar a vida humana. Hoje, uma das áreas em pleno avanço é a Robótica, ciência que trata do desenvolvimento, integração de técnicas e algoritmos para a criação de robôs. O especialista em Robótica Farlei Heinen conta que pesquisadores da área apontam o ano 2050 como uma provável data para a criação de um “Robô Universal”, uma máquina tão inteligente que será capaz de realizar nossas tarefas e aprender com as pessoas. Cientistas garantem que a Inteligência Artificial não vai atingir a grandeza do cérebro humano. Muitos, entretanto, continuam na busca de algo que atinja o mesmo patamar da mente humana. O que não pode ser esquecido é que muitas das tecnologias que servem ao homem hoje foram idealizadas há muitos séculos, como o helicóptero que tem um mesmo princípio de uma máquina voadora, projetada por Leonardo Da Vinci. O uso da tecnologia faz parte da evolução humana e faz o ser humano crescer como espécie. Está em todos os setores e atividades, desde roupas até na forma de nos comunicarmos. Na Globaltech - Feira de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada nos pavilhões da Fiergs, em Porto Alegre em maio deste ano, as inovações tecnológicas que se destacam, não são aquelas que estão distantes do público, mas sim, as que se estão em volta das pessoas. Como os robôs que circulam pelos pavilhões, os últimos modelos de celulares, apresentações de vídeos tridimensionais, casas interativas ou novas formas de se produzir alimentos. Tudo é palpável, está ao alcance dos olhos e das mãos. É a tecnologia já incorporada ao nosso cotidiano.
Blade Runner SINOPSE
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“Pena que ela não viverá, mas afinal, quem vive?” - A pergunta feita pelo detetive Gaff (Edward J. Olmos) remete ao universo frio e tecnológico do filme noir pós-moderno Blade Runner. A obra dirigida por Ridley Scott no ano de 1982 mostra uma versão sombria do não tão longínquo ano de 2019, onde seres geneticamente criados assumem funções humanas e são chamados de replicantes. Estes construtos, por sua vez, se revoltam contra a humanidade. O caçador de andróides Deckard (Harrison Ford) é convocado para resolver o problema. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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| T R A B A L H O | Época errada: Claudiomiro, craque do Inter nos anos 70, não teve oportunidade no exterior, realidade presente hoje na vida dos grandes jogadores
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esporte competição ocupa o lazer do ser humano desde os mais primórdios tempos. A emoção de uma vitória só é verdadeiramente descrita por seus protagonistas. O futebol, por sua imprevisibilidade, se tornou, no último século, o mais popular de todos os esportes de competição e, também, o mais praticado no mundo. Mais, de simples lazer, virou profissão. O filme Pelé é Eterno traz a com-
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pilação dos momentos de um dos principais responsáveis pelo futebol povoar hoje o sonho de praticamente todo menino. O futebol como profissão, contudo, é para poucos. Apenas três meninos, dos milhares que tentam realizar o sonho nas escolinhas dos grandes clubes, chegam à categoria profissional e , mesmo assim, não é garantia de sucesso. De acordo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), 87% dos jogadores profissionais do
Brasil ganham menos de R$ 500 mensais e 2% são realmente milionários e famosos. O Internacional tem hoje 1100 alunos nas escolinhas e 400 estão em uma lista de espera. Na medida em que os testes vão sendo realizados, de seis a sete jogadores , por ano, passam as integrar as categorias juvenil e Junior. Apenas dois ou três jogadores chegarão à equipe principal. Vinícius, Diego, Diogo, André são exemplos recentes que
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Para ser Pelé... Chegar ao topo da lista dos milionários do futebol nacional é para poucos. Apenas 2% daqueles que se profissionalizam conseguem fama e estabilidade financeira. Do outro lado, talento e força de vontade nem sempre são sinônimos de uma cerreira bem sucedida TEXTO FOTO
DANIEL OLIVEIRA ANDRÉ PARES
DE
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podem servir de alento àqueles que desanimam com a imensa fila que os aguarda. No Grêmio existe uma categoria especial para meninos entre 7 e 14 anos que abriga em torno de 900 inscritos. Dessas, 650 pagam mensalidade,150 o clube financia e ainda 100 carentes são mantidos com apoio do Banrisul. Os melhores são distribuídos em categorias(sub 10, 11, 12, 13 e 14). Em 36 anos , a Escolinha do
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FABIANO BALDASSO
Grêmio revelou muitos jogadores. Nos últimos dez anos, 38 chegaram ao grupo profissional. Os casos mais recentes são os de Eduardo Costa, atuando no futebol francês, e Ronaldinho, o Melhor do Mundo em 2005, eleito pela Fifa. A BMW branca reluzente com vidros escuros anuncia a chegada de Paulo César do Nascimento, o Tinga. Nos cinco metros que separam o estacionamento da entrada do vestiário do Beira-Rio, Tinga dis-
tribui dezenas de autógrafos. Entre um sorriso e outro atende um de seus dois celulares. O menino pobre que desejava dar uma casa nova para a mãe realizou o sonho. É hoje um dos mais bem pagos profissionais do futebol brasileiro. Seu vínculo pertence ao Sporting de Portugal e seu empréstimo ao Inter é de três anos. Aos 27 anos, a independência financeira de Tinga está garantida. Em 1990 ele foi aprovado para in| Julho de 2005 | Primeira Impressão
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2003, foi para Portugal integrar o Sporting de Lisboa. A cada contrato faturava alto, fazendo de Tinga um homem rico e bem sucedido. Ser grande jogador, hoje, é sinônimo de riqueza, mas nem sempre foi assim. Muitos craques da década de 70 não alcançaram esse status. Autor do primeiro gol do Estádio Beira Rio em 1969, Claudiomiro Straiss Ferreira, o “Bigorna”, é um desses grandes ídolos de um clube de ponta que continua tendo de trabalhar para se manter. Está hoje no Departamento Consular do Internacional. Claudiomiro entende os motivos para que isso tenha acontecido: “Não havia naquela época a abertura para o futebol internacional. Era difícil ter uma boa proposta para negociar um bom salário.” Mesmo tendo sido um grande jogador, Claudiomiro não se considera frustrado. “Tudo é época. Agora são outros tempos. De repente daqui há alguns anos talvez se ganhe muito mais do que hoje com futebol. Fico feliz quando vejo um garoto bom de bola ganhando bem.” Como qualquer esporte de massa, o futebol costuma dar visibilidade só aos vencedores, mesmo assim existem muitas histórias de fracassos e desilusões. O comentarista da rádio Bandeirantes, Cláudio Cabral, dirigente do Inter na década de 70, lembra de vários insucessos e considera muito difícil a realização do sonho do menino de entrar na escolinha de um grande clube e chegar aos profissionais. Um fator relevante são as comparações. Muitos se perderam no caminho por analogias indevidas com jogadores consagrados. “Daniel, lateral esquerdo na década de 90, tinha potencial, mas era comparado com Oreco, o melhor lateral que o Inter já teve, e isso acabou o derrubando”, lembra Cabral. Outro famoso caso do final dos anos 60: “Sérgio Galocha, o maior exemplo de projeto de craque que apareceu no Internacional. O colocamos como titular na época
dos mandarins(grupo político que comandava o clube), e sofremos muita pressão interna do clube, mas demos ao Galocha as condições para ele desempenhar seu futebol no time profissional”, garante Cabral. O futebol continuará tendo os craques, os ricos, os famosos, os jovens talentosos que não confirmam as habilidades nos profissionais. Também vai continuar sendo o sonho de dez entre dez meninos pobres que jogam a pelada na pracinha. O certo é que esse esporte já tirou muita gente do caminho do roubo, das drogas e da pobreza. A imprevisibilidade vai continuar sendo a principal característica e, exatamente por isso, a popularidade tende a aumentar. A cada dia, a cada jogo, a cada drible o torcedor continuará acreditando que poderá estar surgindo um novo craque. E cada menino que encantar com a bola nos pés, haverá alguém querendo que ele seja eterno. Eterno não. Só Pelé é eterno.
Pelé eterno SINOPSE
gressar na Escolinha do Grêmio. Até o início de 1997, Tinga era apenas mais um menino pobre, habilidoso e sonhador que tentava a sorte nas categorias de base. O dinheiro para a passagem da Restinga, bairro pobre da zona Sul de Porto Alegre, até o Estádio Olímpico era uma preocupação permanente. A mãe apoiava, mas sofria, pois do seu salário de empregada doméstica pouco restava para ajudar. Sua vida de jogador, seus passos para o estrelato estão presentes no seu dia a dia. A fama, a projeção na mídia, os autógrafos e as entrevistas são componentes importantes e prazerosos, mas não primordiais. “Eu queria era jogar bola e ganhar dinheiro para melhorar a vida da mãe”, resume. Há sete anos, quando foi chamado pelo técnico Hélio dos Anjos para o grupo de profissionais do Grêmio, o garoto, então com 19 anos, não imaginava que viraria ídolo tão cedo. Nos primeiros dribles encantou o torcedor, que passou a pedi-lo no time. O começo rendeu o primeiro bom contrato. Da ajuda financeira de R$ 400 que ganhava há um ano, passou a receber R$8 mil. Grandes festas? Carrão importado? Roupas de grife? Isso até veio na seqüência, mas a casa da mãe foi, conforme prometido, a primeira providência. O ano de 1997 não foi bom para o Grêmio e Tinga foi emprestado para o futebol japonês por seis meses. “Foi um dos momentos mais complicados da minha carreira. O dinheiro não servia pra nada. Não conhecia ninguém, não sabia a língua e não tinha nada pra fazer nas horas de folga. Só queira voltar para o Brasil”. Retornou e foi emprestado para o Botafogo, do Rio de Janeiro. Lá conquistou respeito e admiração nacional. Em 2000 voltou para o Sul e o então técnico Tite o colocou de titular. No ano seguinte, Tinga foi um dos mais importantes jogadores da campanha da conquista da Copa do Brasil e acabou sendo convocado para a Seleção Brasileira e, em
O Filme Pelé eterno exibe 400 gols, 3 mil fotografias, 2100 narrações de gols, 150 depoimentos e ainda 1500 manchetes de jornais de diversos países. O diretor Aníbal Massaini teve a idéia de realizar um documentário após Pelé ter ganho o título de Atleta do Século. Massaini começou então a coletar material sobre o jogador. Pelé eterno levou cinco anos para ser concluído. Foram coletadas 25 horas de imagens de gols e jogadas de Pelé. Dois dos mais famosos gols, dois foram recriados digitalmente, pelo fato de não terem sido encontrados. Pelé eterno é um registro histórico sobre o maior jogador de futebol de todos os tempos.
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Somos todos iguais? Conviver com a facilidade de aprendizado e com a discriminação é um desafio para os superdotados TEXTO
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ANDRÉ AGUIRRE
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FERNANDA HESPANHOL | FOTOS
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ELCION SECCO
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uem vê Matheus brincando com a irmã no saguão do prédio da PUC nem imagina as potencialidades cognitivas que o menino falante e brincalhão, de 14 anos, possui. Para Sheila da Silveira, lidar com a superdotação ou as altas habilidades do filho, no começo, não foi fácil. Como toda mãe atenta, começou a perceber que Matheus tinha ações que o diferenciava das crianças de sua idade. “Começou a falar tarde, mas quando começou falava tudo e com um vocabulário muito bom”, comenta. Com apenas um ano e oito meses, já sabia diferenciar os modelos e as marcas dos carros que via. A partir daí foi uma sucessão de surpresas. Aos três anos já lia. Na 3ª série perdeu meio ponto numa prova de matemática, porque fez o cálculo de cabeça e colocou somente o resultado final. A professora não aceitou. Hoje, freqüenta o Ensino Médio numa tradicional escola de Porto Alegre e, aos sábados, contrariando a concepção do que a maioria dos meninos de sua idade têm de diversão para o final de semana, se dedica ao estudo de japonês. O professor do Centro de Cultura Japonesa da PUC, Takeuchi Yuki, diz que o aluno mais
novo da turma do 6° semestre do curso sempre se destaca nas aulas “Ele surpreende todo mundo. Apesar de ser o menor, se comporta como se fosse adulto”, diz Yuki. Matheus conta com naturalidade algumas situações de discriminação já sofridas no colégio. “Na 6ª série, quando entrei no colégio, me chamaram de anormal, porque eu sabia mais do que eles. Eles é que não se interessavam por nada”, desabafa. Conta que em outras oportunidades foi repreendido pelos professores por questioná-los demais. Apesar da discriminação muitas vezes sofrida pelo filho, Sheila diz que preferiu não acelerar nenhuma fase da vida escolar de Matheus e questiona propostas pedagógicas conteudistas e com base na memorização. Segundo ela, este processo está ultrapassado e tem que ser reavaliado para que a escola se torne mais enriquecedora e desafiadora tanto para as crianças com altas habilidades como para as demais. Sheila, além de ser mãe de um menino superdotado, também tem mais uma ligação com o tema: ela é presidente da Associação Gaúcha de Apoio às Altas Habilidades (Agaahsd). A associação é vinculada ao Conselho Brasileiro de Superdotação. “Fazemos um trabalho voluntário. Todas nós somos profissionais, desempe-
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Mentes que brilham
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O filme aborda a vida de um menino superdotado, que vive com a mãe num bairro de classe baixa dos Estados Unidos. Apesar de observar no filho características cognitivas que o diferenciam das crianças da mesma, Dede Tate tenta educar Fred como uma criança normal. Porém, o filho tem dificuldades em se integrar na sociedade. Jane Griersm, que é psicóloga e diretora de uma escola para superdotados, conhece Fred e se encanta com sua inteligência e sensibilidade. Decide, então,
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convencer a mãe do menino a deixá-lo passar um verão sob sua guarda, alegando que nesse tempo ela incentivaria Fred a desenvolver suas altas habilidades. Nesse período, Fred assistiu às aulas de um curso universitário, enquanto a psicóloga observava-o e escrevia um livro sobre ele. Longe da mãe, Fred percebe que o mais importante não é provar às outras pessoas que sua inteligência é diferenciada e que, na realidade, seu desejo é ser amado como qualquer criança normal.
nhamos e temos o nosso trabalho fora da associação”, explica. A Agaahsd promove palestras mensais em sua sede para esclarecer e discutir os temas que estão emergentes na área. Também faz um trabalho junto aos órgãos públicos, assessora as Secretarias de Educação, promove palestras de esclarecimento do tema onde for necessário, além de trabalhar na busca dos direitos das pessoas com altas habilidades. “Estamos sempre batalhando, porque se fala muito da deficiência e se esquece que as pessoas com altas habilidades também têm necessidades educacionais especiais”, fala.
Talentos fora do comum Pessoas que apresentam desempenhos acima da média em qualquer campo do saber, que possuem interesses diferenciados e facilidade na apreensão de conhecimentos podem ser consideradas superdotadas. São portadoras de talentos fora do comum. Na escola são questionadoras ou simplesmente ficam tímidos e se comportam de uma forma diferente dos demais colegas. Geralmente, percorrem outros caminhos para chegar a solução dos problemas. Essas e muitas outras são as características observadas em crianças com altas habilidades. Profissionais como a psicóloga Mara Regina Nieckel da Costa, da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (Faders) , orientam os pais no sentido de que eles entendam que uma criança superdotada é uma criança igual às outras, que necessita de carinho, afeto, atenção e cuidados. Segundo Mara, a proposta da Faders é oferecer serviços que ajudem famílias e escolas a mudar o olhar sobre pessoas superdotadas, oferecendo possibilidades de cana-
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lização das potencialidades através da participação de programas que valorizem suas altas habilidades. Para ela, o superdotado é um ser humano mais atento do que os demais, nada passa despercebido no convívio social. “São pessoas muito sensíveis. Comparamos estas pessoas com esponjas, pois sugam todo o conhecimento que está a sua volta”, explica. Mara ainda destaca que nem sempre a criança superdotada é precoce. “Muitas vezes a superdotação se vê mais pela diferença no ponto de vista qualitativo do que propriamente pela antecipação desses comportamentos”, diz. Segundo um estudo de prevalência feito em 2001, o percentual de crianças com altas habilidades de Porto Alegre e região metropolitana é de 7,78%. Na pesquisa, foram avaliados alunos de 7ª e 8ª séries de escolas estaduais, munici-
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pais e particulares. Os instrumentos da pesquisa foram feitos pela equipe técnica da Faders em parceria com a Agaahsd. Estudos também comprovam que a superinteligência tem relação a carga genética, somada a um ambiente familiar saudável que contribui para o desenvolvimento produtivo das altas habilidades. Por outro lado, tem-se que destacar que há muitas crianças que moram em bairros pobres da periferia das cidades que são superdotadas. Muitas se destacam na área esportiva, por exemplo. Porém, acabam tendo suas potencialidades sufocadas pelo contexto sócio-econômico em que vivem. Há situações em que, mesmo que a criança se destaque em áreas especificas do conhecimento, pode apresentar deficiências em outras áreas: um simples andar de bicicleta pode se tornar algo muito difícil
de ser alcançado. Por isso que os testes de Q.I. não abrangem a avaliação total das potencialidades de uma criança, que pode possuir altas habilidades em outro campo que não seja o cognitivo. Engana-se quem pensa que o perfil de uma criança com altas habilidades é aquele de uma pessoa magrinha, que usa óculos que se isola do meio social. Essas preconcepções acabam criando mitos de que as crianças superdotadas não precisam de ajuda e colocam sobre seus ombros a difícil tarefa de se posicionar num mundo que não está preparado para entendê-las. Sobre essa questão, Matheus possui uma opinião bem firme: “Eu não sou diferente. Eu despertei e os outros não despertaram. Talvez todo mundo tenha esse poder, mas nem todo mundo sabe usufruir dele de modo correto”, diz.
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CLEO MEURER E
ELISEU DEMARI | FOTOS DE
PEDRO KARAM
Fascínio p O município de Morro Reuter e se positivo do combate ao analfabeti
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pelos livros us 5 mil habitantes é um exemplo smo através do incentivo à leitura
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anhã de sábado na pequena Morro Reuter, cidade da Encosta da Serra Gaúcha. Na praça central, centenas de crianças se reúnem em torno das festividades de aniversário do município. As apresentações artísticas mostram livros, o que lá não é novidade. Morro Reuter é a cidade do livro. De acordo com o IBGE, o segundo lugar no ranking nacional de alfabetização está garantido, ficando atrás apenas do município catarinense de São João do Oeste. Desde a sua emancipação, em 1992, Morro Reuter vem realizando uma série de ações que tornaram a leitura mais que um hábito, uma mania entre os seus moradores. O apreço especial pela leitores percebe-se logo na chegada à cidade. Junto ao trevo de acesso, na BR-116, um obelisco com 11 metros de altura diz ao visitante que ali é terra de leitura. A obra representa 72 livros empilhados. “Morro Reuter não é a cidade que mais lê, mas é onde cada vez se lê mais”, diz a vice-diretora da Escola Estadual João Wagner, Carla Cristine Wittmann Chamorro, 38 anos, explicando o grande interesse da população pelos livros. Dados mostram que 98,4% da população acima de dez anos é alfabetizada. “O município promoveu pequenas ações envolvendo primeiro os professores e depois a comunidade”, lembra. Em dez anos na condição de secretária municipal de Educação, Carla ajudou a consolidar uma política de incentivo à leitura. Ela elaborou e manteve projetos como Leitura Compartilhada, no qual os funcionários da Prefeitura reservam meia hora por semana, durante o expediente, para livros, revistas e jornais, e Amando Alfabetizar, no qual professores voluntários tentam convencer pessoas de todas as idades a se engajar na luta pela erradicação do analfabetismo no município. Ao contrário do que acontece em muitas administrações, Morro
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Reuter não sofreu qualquer abalo com a mudança nos cargos nas mais recentes eleições municipais. A atual secretária de Educação, Andréia Laux Ternus, 28 anos, orgulha-se do projeto, mesmo não sendo de autoria do seu partido: “Foram lançadas as sementes. Toda a pessoa tem vontade para algo novo, que lhe faz bem, mas isso precisa ser incentivado”.
Biblioteca tem atendimento informatizado Morro Reuter é cercado por cinco escolas municipais, que possuem bibliotecas bem estruturadas e incentivadas pela Biblioteca Erico Verissimo, no Centro da cidade, local referência para a população. Dividida em várias salas, todas batizadas com nomes de personagens do famoso escritor gaúcho, conta com um acervo próximo de 10 mil livros e com uma tiragem mensal média de 400 unidades. O atendimento é informatizado, com mais de mil habitantes cadastrados. Se determinado assunto não consta nas estantes, os leitores recorrem à pesquisa na rede: a Biblioteca disponibiliza um terminal com acesso grátis à internet. Na sala Capitão Rodrigo, a estudante do primeiro semestre de Educação Física, Anelise Sturm, 17 anos, busca dados para a realização de um trabalho sobre anabolizantes: “Não há livros sobre o tema aqui, então venho pesquisar na internet”. Mas Anelise não deixa de fazer leituras periódicas. Machado de Assis é o seu autor preferido: “Tudo o que ele produziu é muito bom”, avalia. Perto dali, Luana Vieira Bauer, 8 anos, diverte-se com uma história em quadrinhos da Turma da Mônica. “Gosto de ler todos os dias. Lá em casa tem uns 400 livros, por aí”, conta. Sua mãe, a bibliotecária Noeli Meireles Vieira, 34 anos, corrige: “São uns 150 livros, mas não deixa de ser uma boa quantidade”.
No interior do município, as bibliotecas estão situadas junto às escolas. Todas, a exemplo da Erico Verissimo, possuem nomes de escritores. Por causa da localização, não são apenas os estudantes que têm acesso aos acervos, mas toda a comunidade. “Elas estão sempre abertas durante a semana, inclusive à noite”, garante a vice-diretora da Escola Municipal Professor Edvino Bervian, Jolásdica Schorr, 61 anos, a “Profe Jô”, como prefere ser chamada. O município não se preocupa apenas em disponibilizar livros. Os alunos são recebidos em um ambiente agradável, com instalações e concepções temáticas. As crianças têm à disposição salas com muita cor, desenhos, móveis menores e almofadas. É peculiar aos municípios, em geral, realizarem grandes promoções, destacando suas principais características econômicas e culturais. Morro Reuter, para não fugir à regra, criou a sua consagrada Feira do Livro anual. Na última edição, em outubro de 2004, foram comercializados mais de 15 mil livros. A “cidade dos livros” tem um paradoxo: conta com apenas uma livraria, instalada em frente à Praça Municipal. Luciane da Rosa Vasconcelos, 25 anos, proprietária da Livraria Lumar, oferece livros infantis, clássicos, best-sellers, além de aceitar encomendas. Costuma participar da Feira do Livro, quando é grande a demanda por leitura. O esforço inicial da prefeitura e o engajamento da comunidade resultaram, no final de 2004, no Prêmio Fato Literário (oferecido por RBS e Banrisul), um reconhecimento dos gaúchos, alcançado através de votação popular. “É um orgulho para todos nós. Quando saímos do nosso município e falamos ‘eu sou de Morro Reuter’, todos já associam a cidade aos livros, à leitura”, comemora a secretária Andréia. O prêmio mostrou aos profissionais da educação a importância de sustentar o bom trabalho. “Sentimos a responsabilidade de
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mantermos esta prática e de evoluir também.”, argumenta a diretora e professora da Escola Municipal Tiradentes, do distrito de São José do Herval, Ana Maria Gonçalves Ferreira, 28 anos, que viaja diariamente 34 quilômetros — de Novo Hamburgo até Morro Reuter — para lecionar. “Sinto muita felicidade em trabalhar num município como esse”.
A terra da leitura acabou indo parar nas páginas de um livro: Morro Reuter de A a Z, obra de Carlos Urbim, 57 anos, que retrata todas as facetas históricas e atuais do município. Após um convite feito pela então secretária Carla Chamorro e pelo ex-prefeito José Paulo Sabá Meyrer, Urbim instalou-se na cidade por 40 dias para acompanhar o cotidiano da população. Para isso, a primeira ação desenvolvida foi mobilizar os estudantes a participarem de uma gincana cultural, evento que visava recolher histórias, fotografias e documentos antigos – um material indispensável para o escritor iniciar suas pesquisas. “Não saía de casa sem bloco de anotações. Fui a kerb (festa tradicional alemã), churrascadas, filei almoços e jantares, estive em festa de aniversário, assisti à inauguração do primeiro supermercado, convivi com os moradores o máximo que pude”, lembra. O trabalho de Urbim é reconhecido pela comunidade e seu nome entrou para a história da cidade. “O melhor que pode acontecer é Morro Reuter se tornar exemplo para o Estado e para o Brasil”, completa. A notoriedade de Morro Reuter e sua atração pelos livros não param por aí. O assunto foi tema de matéria da conceituada revista National Geographic Brasil, em sua edição de março de 2005, além de reportagens em veículos internacionais.
SINOPSE
O nome da rosa Em meados do século XIV, em plena Idade Média, um experiente monge franciscano e seu noviço assistente chegam a um mosteiro, localizado em remoto ponto do norte da Itália. Neste lugar, será realizado um conclave para definir questões da Igreja. Misteriosos assassinatos acontecem, chamando a atenção do protagonista William de Baskerville (vivido pelo ator Sean Connery) e do jovem Adso (Christian Slater), que iniciam uma investigação para desvendar os casos de forma científica, refutando a severa opinião dos colegas religiosos
que afirmam tudo tratar-se de obra do demônio. O filme O nome da rosa, do diretor francês Jean-Jacques Annaud, foi produzido em 1986, a partir do romance de mesmo nome do escritor italiano Umberto Eco. O suspense retrata uma época em que as bibliotecas eram ambientes proibidos e o conhecimento era restrito aos mosteiros e aos integrantes da nobreza. Ideologias que dividem o poder da Igreja são evidenciadas, ao mesmo tempo em que se busca lentamente a solução dos crimes. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Tempo é vida Agilidade e rapidez são fundamentais para o atendimento dos homens que comandam o Samu | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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TIAGO SCHMITZ
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CHICO SILVA | FOTOS
m uma guerra contra o tempo, eles andam no limite da velocidade, do cansaço e do estresse para promover o tão importante primeiro socorro. A equipe da Primeira Impressão acompanhou parte da rotina de enfermeiros, técnicos e motoristas do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), de Porto Alegre. Entre um atendimento e outro, falaram do estresse da rotina e do convívio diário com a morte dentro e fora dos hospitais. “Peguei um baleado na cabeça agora, sujou toda a ambulância”. O papo descontraído da equipe do Samu é interrompido por esta frase, no início da madrugada de mais um domingo. O enfermeiro chega tranqüilo, mas indignado porque o paciente parecia ser uma “pessoa do bem” e sofrera um assalto na vila onde morava. “Não sei se ele vai durar muito tempo vivo”. O bate-papo continua na sala da enfermagem, enquanto alguns funcionários descansam em pequenos quartos improvisados no local a espera de uma ocorrência.
DE
ANA FORTES
O médico responsável e as telefonistas de plantão ficam na sala de Regulação, onde é feito o primeiro contato com o Samu. O médico, em questão de minutos, é quem decide se é necessário enviar a equipe para o local e, também, se vai alguém junto. Por volta das 3h30min da madrugada, o único ruído é de uma televisão ligada na salinha da equipe. Uma das técnicas queixase de dor nas costas. Ao atender um paciente cardíaco no quarto andar de um prédio, no Centro, acabou machucando a coluna. “Descemos as escadas com a maca”, conta a outro colega, mas logo pede para ficar quieta, pois precisa descansar. O silêncio é interrompido às 5h08min. Uma das equipes é chamada para atender um ferido por espancamento, na Avenida Bento Gonçalves. Os olhos arregalados não escondem o cansaço. O motorista e um técnico se deslocam até o local com agilidade. A vítima de 16 anos, moradora do Morro da Tuca, sofreu ferimentos na cabeça, nas mãos e nas pernas.
O sangue já está seco e o jovem treme. Ele deita na maca e algumas medições de pressão, batimentos cardíacos e análise dos ferimentos são feitas pela equipe. Depois de passar tudo via rádio para o médico da Regulação, o paciente é encaminhado para o Pronto-Socorro (HPS). No caminho, o cheiro de álcool é forte dentro da ambulância e o técnico logo pergunta. “Bebeu alguma coisa hoje?”. O jovem tinha bebido samba (cachaça com Coca-cola). A expressão do técnico não revela surpresa, parece ser mais um caso de rotina. Durante o percurso, a ambulância balança e a equipe acaba prestando serviço informal psicológico ao paciente. “Estou passando por dificuldades, é a terceira vez que tenho problema na cabeça”, reclama. O plantão de 12 horas ininterruptas está quase no final, o ferido é encaminhado ao hospital e o motorista resmunga: “Quando a gente pensa que vai descansar um pouquinho, vem uns jaguaras desses para atender”. “A maioria dos casos atendidos
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nas madrugadas envolvem álcool”, afirma Fabiana Lindenmayer da Fontoura, 34 anos, enfermeira de plantão. Há três anos no Samu e há oito em hospitais, ela confessa que lidar com a morte já não é mais tão difícil. “Quando optamos por essa profissão, já sabemos que é complicado”. Fabiana é casada, tem dois filhos e optou por trabalhar à noite para ficar mais tempo com a família. Sem vícios e muito reservada, ela não parece se abalar com situações adversas. “Temos que ter certa frieza para agir rápido”, justifica. Dinorá Cenci, 33 anos, é uma enfermeira bem humorada, que trabalha no Samu há 10 anos. Mendigos, moradores de rua e alcoólatras são recolhidos por sua equipe nos plantões noturnos pelas ruas de Porto Alegre. A enfermeira conta que etilista é muito comum de atender. Outros simulam crises convulsivas porque querem ir para o hospital comer. Dinora é sensível ao confessar que respeita as necessidades de cada um: “Estão precisando de atenção, de alguém que faça alguma coisa por eles”, diz. Para Dinorá, por mais que fa-
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Vivendo no limite SINOPSE
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Que sentimentos passam pela cabeça de um ser humano obrigado a lidar com os limites entre a vida e a morte diariamente? Martin Scorsese, diretor de Vivendo no limite, mergulhou no mundo dos paramédicos novaiorquinos e esquadrinhou a vida cotidiana de homens e mulheres que enfrentam, cara a cara, o desespero de pessoas à beira da morte. O filme é estrelado por Nicolas Cage, no papel do paramédico Frank Pierce, cansado e estressado pelos plantões inacabáveis, em que ele e um parceiro socorrem famílias carentes em apartamentos humildes, sem-tetos perdidos e vítimas da violência e drogas nas ruas escuras e sujas. A história acompanha a vida de Frank durante dois dias e três noites de plantão, mostrando paralelamente a angústia, a culpa, a alternância de sentimentos em questões de minutos e toda carga emocional que disso resulta e que, inevitavelmente, conduz Frank a um colapso espiritual. Um filme pesado e com ótima atuação de Cage, mostrando que a vida de paramédico não é muito diferente da vida de enfermeiros e técnicos aqui no Brasil.
ça parte da rotina, é sempre difícil enfrentar a morte, principalmente quando envolve crianças. A enfermeira jamais esquece de um atendimento a um incêndio quando duas crianças morreram carbonizadas. Os pais e uma filha sobreviveram. “A mãe ficou descontrolada quando soube, me coloquei na situação dela”, desabafa. Em outro atendimento, ela teve
que socorrer um menino de 16 anos que havia perdido as pernas ao ser atropelado por um ônibus. “Ele me pediu para não morrer e me contou segredos sobre a gravidez da namorada”, relembra. Mãe de dois filhos, um com dois e outro quatro anos, ela sabe que é complicado se ausentar do trabalho. “Se não vou, a ambulância pára.”
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| E M E R G Ê N C I A | “Convulsão na Gregório Perez, bairro cavalhada”, informa uma voz cansada pelo rádio do técnico em enfermagem Ilson Melo. Uma última tragada no cigarro, um breve sorriso e o anúncio: “vamos?” A partida é rápida. Em menos de um minuto a equipe está a postos dentro da ambulância. O tempo estimado para o atendimento de urgência é de oito minutos. “Todos de cinto?” O motorista engata a primeira, liga a sirene e o veículo sai pelas ruas da cidade. Mesmo presos ao cinto de segurança, a sensação de andar em uma ambulância não parece ser confortável. A velocidade, a sirene, a tensão, o não saber o que vai encontrar se tornam angustiantes. No local do atendimento, mais uma mistura de tensão e velocidade. Ilson pega o equipamento e vai ao encontro da vítima. Na humilde casa, com uma expressão de dor deitado à cama, está um padeiro de 40 anos. Em volta do paciente, nervosos, estão o irmão e um amigo da família. Perguntam diversas vezes o que está acontecendo. O técnico faz alguns testes breves para saber a consciência do paciente. “Está tudo bem”, afirma. O padeiro
apenas teve um pesadelo. Nada demais. Talvez estresse. Um susto, somente um susto. A maioria dos funcionários da noite usa e abusa da combinação cigarro-café- chimarrão-cocacola. A idéia é se manter acordado. Na geladeira, Coca-cola. Sob a mesa, garrafas térmicas de café: “Cada equipe tem seu kit de mantimentos”, diz um motorista de ambulâncias ao entrar na sala. A rotina estressa qualquer um e, muitas vezes, o sono atrapalha nos atendimentos. Para diminuir a ansiedade e o estresse, as enfermeiras Dinorá e Fabiana concordam que um atendimento psicológico para eles seria importante. “Somos psicólogos de nós mesmos”, lamentam. A direção do Samu concorda, mas alega falta de recursos. Humanos como os pacientes que vão deitados nas macas. Pessoas que, como qualquer outra, erram, sofrem e choram. Mas estas, em especial, ajudam. Quando o destino decide pela morte, elas tentam superar. “Sempre penso que da próxima vez vai ser melhor, qualquer erro que cometemos sempre levamos como lição para que não aconteça mais”, conclui Dinorá.
Agilidade em todos os lugares O Samu é um programa que tem como finalidade principal prestar auxílio móvel a população em casos de emergências, buscando assim diminuir o número de óbitos e tempo de internação. Não há restrição de atendimento. Seja em condomínios de luxo ou em vilas humildes, eles estão preparados para prestar o auxílio rápido e ágil. Lançado em setembro de 2003 pelo Governo Federal, o Serviço de Atendimento ampliou a cobertura de dez milhões de habitantes, em 14 municípios, para mais de 45,7 milhões de brasileiros em 15 estados, em pouco mais de um ano de operações. Em Porto Alegre, onde o serviço nasceu há dez anos, os números impressionam. Desde junho de 2004, quando todo o processo foi informatizado, mais de 88 mil chamadas foram atendidas. Dessas, cerca de 33 mil vezes as ambulâncias foram acionadas.
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Sinais da Terra Filme norte-americano antecipa fenômenos climáticos que poderão tornar-se realidades localizadas, com conseqüências imprevisíveis (e terríveis) para a humanidade TEXTO
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CRISTIANO ZANELLA E LEONARDO REDAELLI FOTO DE LEONARDO REDAELLI
irigido pelo alemão radicado nos Estados Unidos Roland Emmerich (Soldado universal, Stargate, Indepence day, Godzilla) e lançado nos cinemas de todo o mundo em 2004, o filme O dia depois de amanhã causou alguma polêmica ao abordar (antecipar?) fenômenos climáticos pouco comuns até então - em especial a onda gigante que inunda a cidade de Nova Iorque e que, meses depois, atingiu países da Índia, causando a morte de mais de duzentas mil pessoas e destruição sem precedentes. Ficção ou realidade, o fato é que produção hollywoodiana permanece como objeto de estudo por parte de meteorologistas, biólogos, geólogos e ambientalistas, preocupados com a degradação do meio ambiente e com os próximos capítulos da vida na Terra. Em O dia depois de amanhã, uma nova Era do Gelo é provocada pelo superaquecimento global, causando o derretimento das calotas polares, desorganização nas correntes marítimas e finalmente o congelamento de todo o hemisfério norte do planeta. Um verdadeiro show de efeitos especiais de alta qualidade - digno dos melhores espetáculos do cinema catástrofe norte-americano, como “Inferno na torre” (74), “O Dia Seguinte” (83) e “Twister” (96) - completam a produção que, em muitas seqüências, segundo o crítico Marcelo Coelho, da Folha, tem “a beleza de um pesadelo”: neve caindo em Nova Deli, chuvas com pedras de granizo gigantes em Tóquio e tornados arrasadores em Los Angeles, que derrubam o famoso edifício da Capitol Records e destróem os letreiros das colinas de Hollywood. O meteorologista e biólogo, Eugenio Hackbart, coordenador/meteorologista-chefe da Rede de Estações de Climatologia Urbana de São Leopoldo, afirma que a única vinculação com a realidade que se pode extrair do filme é a indiscutível relação de causa e efeito que existe entre a ação humana na natureza e as mudanças no clima global. “O desaparecimento da Corrente do Golfo, granizos gi-
gantescos e temperaturas despencando dezenas de graus em segundos, com congelamento instantâneo de pessoas e objetos, são fenômenos que se resumem à ficção”. Também classifica o filme como “uma terrível aula de ciências. O exagero e a sua pouca consistência proporcionam diversão, mas não uma reflexão sobre as mudanças climáticas em curso. Um documentário sobre clima no Discovery Channel traz, em poucos minutos, mais elementos para uma conscientização do espectador do que as duas horas de O dia depois de amanhã. A realidade pode ser tão cruel como o filme. Sobre as ondas tsunamis e efeito estufa, o geólogo e professor da Unisinos, Marco Antonio Fontoura Hansen, esclarece que as tsunamis, ondas gigantes, foram provocadas por forças interiores, pela movimentação da Terra como um todo, ou seja, não é um fenômeno climático. Já o efeito estufa está ligado à industrialização, que se iniciou na década de 40, quando tivemos uma ampliação na queima de combustíveis fósseis: primeiro o carvão, agora o petróleo e as quei2 madas, gerando excessiva liberação de CO na natureza, que provoca o efeito estufa. Hansen afirma que a Terra não faz mais a troca da irradiação solar com o exterior. Então, acontece o derretimento das calotas de gelo, tanto nas altitudes quanto nas latitudes, gerando o aumento do nível do mar, uma ascensão lenta e gradual. Segundo ele, os habitantes de diversas repúblicas da Oceania estão tendo que se refugiar em outros lugares, porque o nível do mar ascendeu além do limite. Há um progressivo desaparecimento de ilhas, causando clara perda de biodiversidade. Hansen lembra “Waterworld”, outro blockbuster norte-americano, onde, no futuro, um novo dilúvio acontece e os sobreviventes vivem em cidades flutuantes. Ainda assim, O dia depois de amanhã serve como um alerta para desastres climáticos que, se hoje são ficção, amanhã poderão tornar-se realidades localizadas, com conseqüências imprevisíveis para os seres humanos atingidos. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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A madrugada de 28 de março de 2004 não será esquecida tão cedo pela população do litoral norte gaúcho e do sul de Santa Catarina, em especial os habitantes dos municípios de Torres e Passo de Torres. Em poucas horas, as duas cidades foram parcialmente destruídas pelo furacão Catarina, identificado como 01.L Noname, pelo Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos, e como 1-T Alfa, pelo Met Office da Inglaterra. Na tragédia, duas pessoas morreram e mais de 20 mil casas e prédios foram destruídos ou danificados.
“É inacreditável que as pessoas ainda acreditem que o Catarina se tratou de um ciclone extratropical. Foi um furacão! Ciclones extratropicais acontecem a toda hora no Atlântico Sul. São eles que provocam o vento minuano no nosso inverno e garantem a umidade para a queda de neve nas áreas mais altas do estado. O Catarina foi algo completamente distinto, um ciclone de natureza sim tropical, mas que pela força dos seus ventos (acima de 120 km/h) está classificado como um furacão”, afirma Eugenio Hackbart. Segundo um dos
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mais respeitados meteorologistas do estado, o episódio serviu de alerta para os institutos meteorológicos e para a população, deixando claro que os furacões são fenômenos surpreendentes e extremamente violentos, e que o Rio Grande do Sul não está livre deles. Também deixou escancarado que, diante do mero risco de repetição de um furacão, é urgente a capacitação tecnológica e profissional dos centros meteorológicos brasileiros, e que é fundamental que a imprensa valorize os alertas meteorológicos, reiterando o seu conteúdo a todo mo-
mento quando da eminência de uma situação de risco. “Fomos o único instituto no Rio Grande do Sul a alertar para a gravidade do Catarina. A situação era tão grave que fizemos algo jamais imaginado: ligamos para o nosso concorrente local, a RBS, e repassamos a eles a informação de que tínhamos recebido do Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos a confirmação de que o ciclone na nossa costa era um furacão. Demos o primeiro alerta 30 horas antes do Catarina atingir o litoral, e no total emitimos oito boletins de emergência, seguindo o padrão adotado pela meteorologia norte-americana. Infelizmente, as pessoas foram levadas a crer que não seria nada demais”. O professor faz um desabafo: “Na maior emissora de rádio de Porto Alegre, o meteorologista da estação debochou de nossas previsões e do nosso parceiro, o Instituto Climaterra, de Santa Catarina, que advertiam para a gravidade do fenômeno. Grandes empresas de assessoria meteorológica de São Paulo, como Climatempo e Somar, informavam em seus sites que não havia motivo para alarme, pois se tratava de um ciclone extratropical com ventos de 70 a 80 km/h. No Jornal da Band da véspera, a apresentadora da previsão do tempo, preparada pela Somar Meteorologia, disse que se tratava de um “furaquinho” bom para surfar. Certamente os surfistas não foram pegar onda logo depois, pois teriam morrido. Naquelas quarenta e oito horas nosso ritmo de trabalho foi caótico, tensão como nunca vivemos em mais de vinte anos de Climatologia Urbana. Tiramos muitas lições do episódio”. No mês de março de 2005, 409 municípios dos 496 municípios do Rio Grande do Sul encontravam-se em situação de emergência devido à estiagem, quando o nível de água nos solos gaúchos estava abaixo do nordeste brasileiro. Em muitas dessas localidades houve racionamento de água, uma situação até então inimaginável e até absurda para seus habitantes. Segundo Eugenio Hackbart, não se pode atribuir a seca de 2004/2005 às mudanças climáticas globais. Um levantamento histórico, realizado por colaboradores da Rede de Estações de Climatologia Urbana, conseguiu resgatar dados climáticos do Rio Grande do Sul desde o começo do século XIX, e com base nestas informações, pode-se afirmar que secas e enchentes são recorrentes no estado. “Um período seco costuma ser seguido por outro muito chuvoso, e vice-versa”, explica. Fato comum ou não, durante o último ano, o estado foi vitimado por uma das piores secas de sua história, o que acarretou grande prejuízo aos produtores gaúchos. “E o Sudeste do Brasil está debaixo d'água”, lembra Marco Hansen. Segundo ele, já existem no estado diversas áreas em processo de arenização, que em breve serão praticamente inabitáveis, principalmente devido ao mau uso do solo. “Todo esse processo está ligado ao aumento da população no planeta Terra. A taxa de crescimento positivo da população hoje é de 2,33 habitantes por segundo. A cada dois segundos temos cinco novos habitantes sobre o | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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globo terrestre, descontado todas as taxas de mortalidade. mado mercado, do qual os países em desenvolvimento Conseqüentemente, se exige mais alimentos, mais ar, terpoderão se beneficiar. No anexo 1 do Protocolo há uma ra e recursos hídricos. Estes seres vão morar, precisam escláusula que prevê que os países desenvolvidos façam a paços, se deslocar, precisam transporte, mais queima de redução, não os países em desenvolvimento, como o Bracombustível, mais indústrias. A Revolução Industrial musil”. Ele afirma que se os países desenvolvidos não atindou para sempre a relação entre o homem e a natureza”. girem suas metas, deverão adquirir cotas de seqüestro de Hansen diz que o déficit hídrico acumulado durante os carbono ou unidades de redução de emissões dos países últimos anos e a estiagem não totalmente revertida podeem desenvolvimento. Esta é uma questão relevante, pois rá sim trazer problemas futuros. os países em desenvolvimento serão estimulados por fiO dia depois de amanhã causou péssima impressão na nanciamentos internacionais a atuarem numa nova ativiCasa Branca ao ridicularizar o governo americano, que no dade, que é a limpeza e seqüestro de carbono. Estas nefilme, assim como na vida real, se gociações serão realizadas por recusa a assinar o Tratado de Kioagências certificadas pela ONU, to, alegando que o mesmo seria que terão o condão de estipular o uma catástrofe para a economia do quanto uma empresa vai poder ter país. Um dos campeões da poluide cotas por sua atividade. Os fição, junto com China, Rússia e Jananciamentos irão incentivar propão, o país do presidente não eleijetos ambientais, como por exemto George Bush não participa do plo o reflorestamento, o tratamenDevido à ação predatória do hoTratado, uma iniciativa que une to de água, energia eólica”. Carvamem na natureza, a Terra sofre 141 países para a preservação da lho lembra que a humanidade vai alterações climáticas radicais, que vida no planeta. Firmado em feveter que se re-orientar: “Nós temos modificam drasticamente a vida reiro de 2005, o Tratado de Kioto que mudar, caso contrário a vida no planeta. Com o hemisfério visa a diminuição da emissão de na Terra se tornará inviável”. norte em processo de resfriamengases poluentes na camada de ozôE como será o amanhã? Resto, antecipando uma nova Era nio, para ao menos tentar reverter ponda quem souber... Embora seGlacial, milhares de sobreviventes a instabilidade já causada no meio. ja difícil prever o que o meio amrumam para o sul. Porém, o paEugenio Hackbart ressalta que biente reserva para o futuro, alguleoclimatologista Jack Hall (Deno Tratado é de fundamental impormas considerações podem ser feinis Quaid) segue o caminho intância: “Não será a solução, mas tas baseadas em dados de simulaverso, e parte para Nova Iorque, ainda não desenharam um instruções computadorizadas, que já que acredita que seu filho Sam mento internacional melhor. Ele já apontam uma tendência para um (Jake Gyllenhaal) ainda está vivo. é realidade, saiu do papel, com iniclima mais seco e quente nas próciativas em diversos países de coximas décadas. mércio de crédito de carbono. DeSegundo o professor Eugenio, fender o meio ambiente não é apenas um dever de todos, é inquestionável que ação humana influencia o clima, mas é uma necessidade para todos. Se os governantes não em grande parte o aquecimento do planeta nos últimos priorizam a preservação ambiental em suas agendas, cres50 anos é atribuído à maior atividade solar. “Se observarce em importância as iniciativas da sociedade civil organimos gráficos comparativos da temperatura média do plazada, como as ONGs”. neta com o nível de atividade solar nos últimos mil anos, Délton Winter de Carvalho, advogado especialista veremos enorme semelhança. E nos últimos 50 anos a em causas ambientais e professor da Unisinos, afirma atividade solar aumentou muito. Dizem que é a maior em que a não assinatura dos Estados Unidos, apesar do país mil anos, justamente coincidindo com o aumento da temter participado das negociações, sem dúvida alguma é um peratura do planeta observado nas últimas décadas”. retrocesso, pela sua importância no cenário político inDiante dos dados, o futuro é incerto. Sobre as ternacional. “E demonstra a política unilateral que eles condições de habitabilidade na Terra para os próximos tem praticado nos últimos anos, reflexo das últimas 50 anos, Hackbart afirma: “Também gostaria de eleições. Entretanto, o Tratado de Kioto é extremamente saber...”. As espectativas de Marco Hansen também importante por ser o primeiro passo que gera uma obrinão são animadoras: “O planeta é uma nave espacial gatoriedade política dos países não poluírem o meio amque está limitada a um número máximo de pasbiente, ou reduzirem as emissões de gases na atmosfera. sageiros. E se nós extrapolarmos este número, o que O Protocolo prevê que os países desenvolvidos devam reacontecerá? A Teoria Maltusiana mostra que este cresduzir as emissões, entre 2008 e 2012, até o índice que os cimento exponencial é um dos problemas que a Terra mesmos se encontravam em 1990, menos 5,2%. Ou seja, terá que normatizar, regular de alguma forma. Temos uma meta extremamente ambiciosa. Há um compromeum compromisso para com as gerações futuras, e pretimento internacional que é positivo. Muitos países, obcisamos unir esforços para a manutenção da vida na viamente, não conseguirão atingir isto, e aí entra o chaTerra”, finaliza o professor. SINOPSE
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Ondas solidárias
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Rádio integra a comunidade em torno de um ideal comum: a valorização e o desenvolvimento da sociedade
o Brasil, segundo retratou, ela mesma, de resolver. gistro do Ministério "O que fizemos foi dar visibidas Comunicações, lidade ao problema e deixar que desde 1998 foram as pessoas envolvidas dissessem autorizadas para funcionamento qual seria o destino da cadeira", 2.331 rádios comunitárias. Até conta Roberto Gross, um dos fun17 de dezembro de 2004, havia dadores e atual diretor da rádio. ainda 8.388 processos em andaPoucos dias depois a cadeira já mento. Uma realidade pouco alservia para algum profissional terada este ano. ajudar a comunidade do bairro a As comunidades atingidas cuidar de seus dentes. por uma rádio com esse perfil "A rádio está sempre em cima têm a chance de ouvir sua próde quem manda", diz Gross, que TEXTO DE CRISTIANO BORBA pria voz, como os moradores do garante não ser de partido algum, E THIAGO GAMBA bairro de Monte Alegre, na cidaapenas busca fazer o bem para a FOTOS DE CÂNDIDA LUCCA de de Viamão, região metropolicomunidade do seu jeito e com a tana de Porto Alegre. ferramenta que possui. Sua voz é A Rádio Aracoupama 87.9 FM - Associação Rádio conhecida nos gabinetes dos políticos da cidade. "A AraComunitária, União e Paz do bairro Monte Alegre coupama incomoda as autoridades", garante Gross. O que está no ar há quase um ano fazendo o que o governo é veiculado por ela é levado a sério tanto pela comunidade deveria fazer. A frase parece meio batida, mas é bem quanto por seus representantes. assim que ela é encarada. De problemas como um buClaro que a grande maioria das questões levantadas raco na rua à falta de energia elétrica, a rádio fala direpela rádio tem como pano de fundo um problema social tamente para os que têm de ouvir. Muitos casos são ou um drama pessoal. Mas nem sempre é assim. Quanresolvidos antes do previsto. do chega o final de semana, a poeira levanta no bairro Quem procura a rádio logo vê que ela é a última Monte Alegre. A Aracoupama promove festas até o rainstância para a solução de algum tipo de problema. iar do sol. "O que queremos é promover o lazer e o enDias atrás, a comunidade viveu uma discussão singutretenimento à comunidade, pois defendemos a cultura, lar: para onde iria a doação de uma cadeira de dentisos costumes e as tradições", afirma Gross. Assim, seta? A rádio colocou a questão no ar e a comunidade gundo ele, as minorias que se vêem ameaçadas de per-
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der a sua identidade têm o amparo da rádio. Quem escuta, considera a rádio um espaço democrático. A dona de casa Joice Oliveira, 42 anos, a Aracoupama ajuda muita gente. "Ela nos defende e nos ajuda", resume. Gross é apoiado por 15 voluntários em várias frentes, da locução de programas à produção. O dinheiro vem dos comerciantes sob a rubrica de "apoiadores culturais", além de pequenas doações dos moradores. É pouco, é verdade, mas sustenta alguns gastos da emissora. Mesmo com a influência direta sobre a sua comunidade, a Aracoupama não pode ser confundida, segundo seus coordenadores, com uma emissora vinculada à Prefeitura de Viamão ou a qualquer partido político. Gross faz questão de frisar que não há partidos políticos gerenciando editorialmente a rádio. Por outro lado, afirma que, em tempos de campanha política, a Aracoupama abre espaço igual para que todos vendam suas idéias. O sócio-fundador da emissora tem uma vida identificada com as causas sociais. Foi membro diretor por dois mandatos da fiscalização da Merenda Escolar em Viamão e membro do Conselho de Pais e Mestres da Escola Municipal 20 de Setembro. Gross chegou a ocupar sete cargos comunitários, entre eles o de delegado do Orçamento Participativo Municipal e Estadual, estratégia de gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), que está no governo da cidade há dois mandatos. Atualmente Gross é membro do Conselho Municipal de Transporte, órgão também vinculado à Prefeitura petista de Viamão.
Uma onda no ar SINOPSE
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Baseado em uma história real, o filme Uma onda no Ar conta a história de jovens de uma favela carioca, que montaram uma rádio no intuito de promover entretenimento e informação à sua comunidade, além de propiciar um canal aberto as discussões do cotidiano da mesma. No percurso, mostra como funciona o rigoroso controle da justiça, bem como a apreensão do material que eles possuíam. E o conseqüente embate entre diferentes formas de poder, que amparadas pela lei, estão comprometidas em vetar, discriminar e proibir rádios de fins comunitários.
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Fome de viver Três décadas depois de um sério acidente aéreo em que permaneceram 72 dias na Cordilheira dos Andes, os sobreviventes José Luis Coche e Álvaro Mangino (foto acima) contam como convivem com as memórias da tragédia TEXTOS
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ANDERSON HARTMANN
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REPRODUÇÕES REVISTA MANCHETE (1973)
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rinta e dois anos depois do acidente aéreo que envolveu um grupo de jovens da alta sociedade uruguaia, seus amigos e familiares, José Luis Coche Inciarte, um dos sobreviventes, não destoa em nada dos pacatos moradores do bairro em que vive na antiga Montevidéu, capital do Uruguai. O representante comercial de 55 anos de idade, casado e pai de quatro filhos, ainda tem muito presente o ônus da experiência do canibalismo que marcou sua vida. As mesmas três décadas também foram difíceis para Álvaro Mangino, 50 anos, empresário, casado e pai de três filhos. Nesta entrevista, eles falam com exclusividade para a Primeira Impressão sobre o drama pelo qual passaram em meio a Cordilheira dos Andes e sobre os anos que decorreram desde a tragédia. A demora no resgate, a falta do que comer e o desespero obrigaram o grupo a fazer coisas inacreditáveis. Impensável em terra firme, o canibalismo – ato de um animal devorar outro da mesma espécie ou da mesma família – foi uma das únicas saídas para que eles se mantivessem vivos nas insuportáveis temperaturas que atingiam a casa dos vinte graus negativos. |60|
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Para se aquecer, procuravam ficar agrupados, utilizavam as vestimentas encontradas em meio aos destroços e dormiam dentro do que sobrou da aeronave. Conseguiam acompanhar as buscas através de um receptor de rádio ligado às baterias do avião, que mesmo depois da queda, permanecia intacto. Acompanharam, assim, as alternativas de resgate de que foram alvo. Visualizaram por três vezes aviões sobrevoando a área, mas em nenhuma delas foram vistos. Na segunda semana, souberam do pior: as buscas haviam cessado. Pouco depois, no décimo sétimo dia – como se não bastasse a angústia da espera – foram vítimas de uma avalanche, que fulminou mais oito companheiros. “Estava deitado numa maca dependurada no teto da aeronave para os feridos. Senti um tremor. Um segundo depois, me vi espremido entre a neve e todas as malas que a gente usava para cobrir o buraco que se abriu na fuselagem. Minha perna quebrada não me permitia ajudar os outros, por mais que eu tentasse. Fiquei horrorizado, quase sem enxergar nada, só via um manto de neve que cobria todos nós. Alguns se libertaram e abriram buracos com as mãos para ajudar
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Registro: após o resgate, várias reportagens foram feitas sobre o acidente. Acima, a revista Manchete mostra o encontro de Roy Harley com sua mãe
os outros. Ficamos três dias e três noites soterrados por toneladas de neve”, lembra Mangino. Dos 45 passageiros e tripulantes que embarcaram em Montevidéu, restavam apenas 19. À medida que o tempo passava, os sobreviventes encontravam, um a um, os corpos dos companheiros mortos. Corpos que não seriam enterrados, velados, sepultados ou cremados. Corpos que lembravam mais carne do que vida, mais energia do que feição. Com a ajuda de dois estudantes de medicina que integravam o grupo, os que ainda resistiam à morte selecionavam partes nutritivas como intestinos, miolos, fígado e pedaços do pulmão. Os partiam e enterravam o que restava na neve. A escolha do cadáver que seria consumido primeiro foi muito difícil. Preferiam preservar os de parentes ou pessoas próximas, escolhendo aqueles desfigurados pelas queimaduras e ferimentos. Na falta de utensílios apropriados, utilizavam os crânios como pratos e os ossos maiores como talheres. No entanto, Coche era um daqueles que repudiava a idéia de comer carne crua. Quando decidiu aderir ao canibalismo, preferiu fritá-la ao calor do sol, sob a fuselagem.
“Quando o canibalismo foi praticado, não questionamos mais o assunto. O pacto íntimo entre todos os sobreviventes foi um grande passo para podermos honrar e defender nossas vidas”, conta Coche “A decisão e a execução foram as etapas mais difíceis. Discutimos todas as formas religiosas que se possa imaginar. Foi a escolha entre viver ou morrer. Naquela situação, não tínhamos mais opções”, desabafa Mangino, como se ainda carregasse alguma culpa. Para Coche, o canibalismo foi a única maneira de sobreviver, a última alternativa. “O cérebro obriga a mão a executar a ordem e a boca a se abrir, mesmo quando estas se negam. Quan| Julho de 2005 | Primeira Impressão
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| D R A M A | do o canibalismo foi praticado, não questionamos mais o assunto. O pacto íntimo entre todos os sobreviventes foi um grande passo para podermos honrar e defender nossas vidas”, conta Coche. A falta do que comer fez com que alguns deles chegassem a pesar metade do que pesavam antes do acidente. Os 45 kg que Coche emagreceu não lhe fizeram perder as esperanças, tampouco abandonar seus companheiros. A força de vontade dele e dos outros 15 sobreviventes do acidente aéreo foi determinante para que se mantivessem vivos. A relação da realidade com o filme Vivos, lançado em 1992, foi amplamente questionada pelos entrevistados. Coche e Mangino afirmam que a união do grupo foi fator determinante para a sobrevivência de todos. “O mais importante não foi dito e nem explicado. Só sobrevivemos porque cada um desempenhou um papel importante dentro do grupo, conforme suas próprias possibilidades. Foi um trabalho em equipe. Não tivemos líderes”, afirma Mangino. “O filme tinha duas horas e era baseado em um livro de 570 páginas, escrito por um inglês pouco tempo após o nosso resgate. A realidade é uma história de 72 dias com 16 protagonistas. Tudo ficou superficial e longe da realidade que vivemos”, esclarece Coche. Segundo ele, as cenas do acidente foram bem trabalhadas no cinema, apesar de não as ter bem claras em sua mente. “Estava com meus olhos cerrados, apenas aguardando minha morte”, confirma. É difícil reconstituir o instinto. O tabagismo foi o principal motivo de tensão. Aqueles que tinham controle de si mesmos conseguiam racionar a comida e o fumo. Mas Coche, dono de um olhar inoportuno e dependente de dezenas de cigarros por dia, foi desencadeador de muitos desentendimentos. Mesmo sendo um dos mais estimados por todos, usava como justificativa o nervosismo que
SINOPSE
Vivos
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Era 12 de outubro de 1972. Um bimotor da Força Aérea do Uruguai, fretado por um time amador de hugby, saiu de Montevidéu, no Uruguai, em direção a Santiago, no Chile, onde o grupo disputaria um campeonato. Um alerta de mau tempo provocou um pouso forçado em uma pequena cidade na parte argentina da cordilheira. Na manhã seguinte, a viagem continuou, mas não por muito tempo. Na tarde daquela fatídica sexta-feira 13, o avião chocou-se contra as montanhas de neve em função do mau tempo, matando instantaneamente 13 dos 45 passageiros e tripulantes. A película reproduz, em 127 minutos, parte da angústia vivida na vida real pelo grupo nos 72 dias que estiveram perdidos nos Andes.
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“A verdade é que preferimos ver o acidente não como uma tragédia, mas como um milagre. Durante 30 anos não falei sobre o assunto”, salienta Mangino a falta de nicotina causava em seu corpo para constranger alguns de seus companheiros em favor de alguns cigarros. O resgate foi difícil. Três rapazes se afastaram do grupo e escalaram uma alta montanha dos Andes para procurar ajuda. Quando alcançaram o topo, vislumbraram outros dois picos, que certamente os levariam a algum lugar. Acabaram decidindo que um deles voltaria para o avião. Seria a única forma de continuar o trajeto com alimentos suficientes. Os outros dois enfrentaram a íngreme cordilheira até encontrar socorro. Hoje a tristeza virou exemplo. “A verdade é que preferimos ver o acidente não como uma tragédia, mas como um milagre. Durante 30 anos não falei sobre o assunto”, salienta Mangino. Para Coche, valores e princípios como o amor e a amizade os ajudaram a vencer todos os obstáculos. “Também me calei por 30 anos, a dor me impedia de falar. O tempo foi o melhor remédio. Crescemos como homens, o que nos faz sentir orgulho de pertencer à raça humana. Aprendemos a viver o amor e a lutar também por nossas vidas”, revela. A mensagem deixada hoje por Coche e Mangino pode parecer simples, mas levando em consideração as circunstâncias e a vulnerabilidade a que estavam expostos naquela situação, nada era tão simples assim. “Hoje, tentamos passar para as pessoas valores que nos permitiram sobreviver. Se tivermos que escolher uma palavra para transmitir o que pensamos que nos salvou, essa palavra é atitude. Fazemos as pessoas lembrarem de pequenas coisas que sempre escapam da memória e que, no entanto, foram as que se mostraram como as mais importantes: o amor por nossas famílias, por nossos amigos. Foi nisso que nos agarramos para viver um dia depois do outro”, desabafa Mangino. É pela alegria que sentem quando estão com suas famílias que conseguem apagar da memória, mesmo que momentaneamente, as trágicas lembranças. Nos dias atuais, a dupla ministra palestras sobre motivação em empresas e organizações, auxiliando a superar adversidades, administrar crises e trabalhar em equipe. O acidente pode até ser considerado destino, uma fatalidade. O que fazer depois é escolha: o livrearbítrio que Deus não anulou.
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Além do consultório A relação do paciente com o terapeuta pode romper os limites do tratamento. Algumas pessoas tentam invadir a vida do analista. Cabe a ele saber administrar a situação | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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TEXTO DE ATILA PEREIRA, LUCIANO NAGEL E SILVANA SCHIMIDT FOTOS DE ELCION SECCO
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ma sala aconchegante, uma cadeira macia. Esta pode ser a discrição de um consultório mágico onde temos espaço para entrar e deixar todos os nossos problemas. É assim a visão de muitos pacientes quando vão consultar seus psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Pessoas que têm problemas vão à procura de tratamento a espera de soluções. O que muitas vezes acontece, no entanto, é que o paciente não consegue se desligar daquele que representa a solução dos seus problemas: o terapeuta, e acaba se tornando dependente. Muitos episódios são ocasionados em virtude da procura insistente e inconveniente de pacientes por médicos. Assim acontece no filme Nosso querido Bob, com Bill Murray no papel de um homem extremamente inseguro. Bob é um estereótipo de muitos pacientes. O psicólogo José Novôa Fin, de Porto Alegre, afirma nunca ter passado pela situação de ter um paciente o perseguindo, assim como no filme. Não pessoalmente, mas por telefone sim. E geralmente por questões cotidianas, rotineiras, como o que dizer para o chefe, ou para contar como se portou diante de uma briga com o namorado. “Digamos que por insegurança”, afirma Fin. A situação que Fin viveu que mais se aproxima do filme aconteceu durante o aniversário de um amigo . Ele conta que estava na festa e o celular tocou, perto das 23h. “Era uma paciente que havia brigado com o namorado e queria saber se aquilo que ela havia falado para ele era correto ou não.” O psicólogo ficou conversando com a paciente até que ela se acalmasse. “Neste caso, ela poderia ter esperado até o outro dia para conversar comigo, mas não conteve a ansiedade e precisou ligar mesmo sendo tarde da noite.” Ele conta de
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uma outra paciente que sempre ligava antes de ter crises de pânico “Ela me telefonava para que eu tentasse acalmá-la, o que não deixa de ser uma dependência”, afirma. A atitude de procurar o psicólogo em horários não combinados é considerada normal pela maioria dos especialistas. “Por um lado, toda a manifestação do paciente, dentro do âmbito terapêutico, pode ser considerada normal. Não pensamos no normal como um leigo pensaria. Digamos que, se o paciente consegue se mostrar o máximo possível, mesmo que não seja em situações ditas normais, melhor o conhecer-mos para poder atuar no sentido de aliviá-lo do seu sofrimento”, argumenta Fin. Em outros tempos, antigas escolas e psicólogos atuavam de maneira diferente. Freud atendia de cinco a seis vezes por semana, cada paciente. É claro que os tempos eram outros, a vida tinha outro ritmo. Hoje isso seria difícil e muitas vezes financeiramente inviável. Mas, por outro lado, a análise não passava de dois anos. De um modo geral, quanto mais vezes se puder fazer análise, melhor e mais rápida a evolução. “Grande par-
te dos pacientes consultam de uma a duas vezes por semana, mas é senso comum que o ideal seria no mínimo duas vezes. Até para não se prolongar o tratamento por anos. É claro que isto é um investimento considerável, então é preciso que haja uma necessidade real, um sofrimento que disponha a pessoa a este sacrifício financeiro”, acrescenta o psicólogo. Para ele, a dependência de um paciente durante um tratamento é fundamental para que seu distúrbio seja curado. “Durante o tratamento, essa dependência aparece em todos, em maior ou menor grau. Contamos com essa possibilidade para podermos trabalhar e entender a função desta relação de dependência que esta pessoa em particular estabelece em seus relacionamentos. Se o vínculo é sempre patológico e doentio, ele vai se repetir na relação analítica. E precisamos que apareça para podermos trabalhar. Agora, é diferente esta dependência ser estimulada e manipulada pelo analista. O que não seria ético”, completa. Em relação ao filme Nosso querido Bob, Fin considera que o personagem é um grande exagero. “O filme
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faz a caricatura de um quadro psiquiátrico, mas imagino que seria bem complicado. Não é a toa que a família do terapeuta não sentia tanto, e até achava linda a situação. Para o analista, era complicado, até porque o paciente usava, conscientemente, a família do analista para atingi-lo, para chegar até ele. Ele era o objetivo da atuação do Bob, e não sua família. De outra parte, um terapeuta também não trabalharia da forma como o médico do filme o fez. É apenas um filme”, diz. É característico de diversas estruturas de personalidade tentar “tirar” o analista se sua função e aproximá-lo na tentativa inconsciente de anulá-lo. Isto pode ocorrer com personalidades públicas, atores. “Ainda bem que não passei por alguma situação parecida”, brinca o psicólogo. A psicóloga Simone Justo Ritter, de São Leopoldo, salienta que, dependendo da linha de tratamento a que o paciente é submetido, há um vínculo muito grande entre paciente e terapeuta, principalmente na linha psicanalítica. Durante o tratamento vai se desenvolvendo uma ligação muito forte entre as duas pessoas, um processo que se chama de transferência, através do qual o paciente, por algum tempo, se torna mais dependente do terapeuta. Gradativamente vai se trabalhando essa dependência para que aos poucos o paciente a perca totalmente. A situação que acontece no filme, de o paciente ir atrás do seu médico em férias na casa de campo, é muito rara de acontecer. Por isso são feitas várias combinações já no início do tratamento, que incluem local do atendimento, tempo da sessão, número de encontros semanais, sigilo e férias. O paciente com funcionamento neurótico costuma se adaptar a estas combinações, buscando o seu terapeuta em horários diferentes em casos realmente emergenciais, quando ele não se sinta bem. O terapeuta sempre coloca-se a disposição do paciente fora do horário das sessões em casos em que a pessoa esteja em risco de suicídio ou com uma situação muito séria. A psicóloga fala que acontece de pacientes ligarem para ela por não se
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encontrarem bem ou por estarem inseguros com suas atitudes. Pacientes muito dependentes demandam uma atenção grande por parte do terapeuta, principalmente no início do tratamento, pois precisam rever através da sua relação com o terapeuta toda uma relação mal elaborada da sua vida pregressa. A família tem uma importância muito grande no tratamento, pois dará suporte para o paciente em caso de crise ou de uma simples férias do seu terapeuta. Esta insegurança normalmente está relacionada às relações primárias com as figuras parentais e ao quanto elas foram adequadas ou não.
Relação fora de controle O psiquiatra porto-alegrense Alberto*, de 42 anos, afirma que já vivenciou uma situação muito difícil com uma de suas pacientes. Ele se formou em medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro há 12 anos. Mudou-se para o Rio de Janeiro quando ingressou na faculdade. Depois de formado, atuou como médico neurologista e logo seguiu na área da psiquiatria. Há cinco anos, Alberto teve um envolvimento com uma de suas pacientes. “Quando vi, já estava sem grana, sem mulher e numa depressão terrível”, comenta. Essa jovem, de 24 anos, estudava moda na Itália
Nosso querido Bob SINOPSE
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O filme Nosso querido Bob conta a história de um homem que é totalmente neurótico e dependente. Bob (Bill Murray) entra em desespero quando seu psiquiatra, Dr. Leo Marvin (Richard Dreyfuss), um renomado terapeuta, decide entrar de férias. Bob não suporta a idéia de ficar sem terapia e vai até a casa de campo, onde seu médico está passando férias. Bob acaba por se intrometer na vida pessoal de seu médico, quebrando todas as regras da relação médico-paciente.
e estava fazendo um intercâmbio no Brasil. Ele realizava a consulta duas vezes por semana - nas segundas e quartas-feiras em seu consultório localizado na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, em pleno coração da zona sul do Rio de Janeiro. “Ela era bonita, alta, magra, modelo, bem do tipo italiana mesmo, com olhos esverdeados. Falava até pelas mãos, como todos os italianos”, ressalta o psiquiatra. Segundo Alberto, logo no início das consultas, ele havia notado algo de diferente nela, mas não sabia explicar o que era. “Era muito engraçado. Sempre depois da consulta ela se despedia com dois beijinhos e ainda largava um sorriso”, comenta. Uma coisa que o intrigava era o fato que, depois de três, quatro meses de consultas semanais, não conseguia descobrir qual o motivo que trazia a jovem a seu consultório. Nessa época, era casado com uma bela médica veterinária de 38 anos. A descoberta do motivo que a levava ali, duas vezes por semana, veio à tona quando Alberto já estava num envolvimento mais que profissional: ela estava apaixonada por ele. Segundo o médico, a relação com sua paciente durou cerca de um ano. Na época, Alberto pediu o divórcio e quase largou a profissão. Ele e a paciente passaram a morar praticamente juntos, dividiam as despesas e até viajaram para Europa. Depois de mil maravilhas, Alberto caiu na realidade. Teria terminado ali um casamento com sua ex-mulher de anos por causa de uma aventura, de um relacionamento passageiro com uma de suas pacientes. Depois de um ano estudando no Brasil, a jovem voltou à Itália onde segue sua vida e carreira de modelo. O médico psiquiatra casou novamente e tem dois filhos. Neste ano, Alberto passou uma temporada no Rio Grande do Sul. “Depois de dois anos trabalhando direto, meu analista mandou eu tirar férias”, desabafa Alberto, que também faz análise uma vez por semana. (*) O nome do entrevistado foi trocado | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Luz, câmera, O cinema sempre teve a necessidade de demonstrar ao espectador a dura realidade dos campos de batalha. A cada nova produção, maior é a proximidade dos filmes com os fatos, mesmo que esses tenham uma visão romanceada da guerra TEXTO
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m grupo de soldados avança contra os tanques e a infantaria nazista. O sibilar das bombas, seguido de estrondos cada vez mais estarrecedores, acusa a destruição de tudo o que está ao redor. Tiros roubam a vida de milhares de soldados que, ao mesmo tempo em que procuram se defender, precisam derrotar o inimigo. Isso é ficção. Mas também foi realidade. Quando se assiste a filmes de guerra, fica o questionamento sobre a veracidade daquelas cenas. Será que histórias como aquelas realmente aconteceram? O horror da guerra retratado na tela grande por mais que revele o sofrimento, a morte e a crueldade — personagens de todo conflito —, não deixa de ser um simulacro do factual. Ainda assim, é difícil não comparar o cinema com a realidade, pois quase todos os filmes aproxi|66|
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DE RAFAEL LORENZATO E RENATA GERMANO FOTO DE RITA CORONEL E PEDRO KARAM
mam-se, nem que seja por pequenos detalhes subjetivos à concepção do projeto, da legitimidade da natureza humana. Entretanto, por mais autênticos e violentos que uma película de ficção ou um documentário possam parecer, a cinematografia sempre apresentará uma versão romanceada do real. Até mesmo porque é impossível que o espectador, em uma sala escura ou no conforto de seu lar, experimente, com a mesma força que somente a vivência proporciona, os horrores pelos quais passam os militares enviados a outros países em missões de guerra ou de paz. Tom Hanks, em O resgate do soldado Ryan, interpreta John Miller, um professor que é obrigado a abandonar a família e tornar-se Capitão do Exército, no qual passou a responder por tarefas que não lhes eram familiares e pelo comando de um pelotão igualmente inexperiente. No filme, como na
vida real, inúmeros soldados, desacostumados que são à logística da guerra, vão para a linha de combate sem o preparo e a instrumentação necessários. O presidente da Associação de Veteranos da Força Expedicionária Brasileira (FEB) em Porto Alegre, José Conrado de Souza, considera que isso sucedeu com os brasileiros que foram para a Itália durante a Segunda Guerra Mundial. “Nós fomos lutar contra os soldados considerados, na época, os melhores do mundo. O brasileiro não estava afeito a essas coisas, e a grande maioria era gente do interior, da enxada, que foi convocada. E teve gente que foi e nem sabia o que era uma guerra.” Cada pessoa reage à guerra de uma forma, mas uma opinião parece ser unânime: a sensação de desamparo que um soldado em território estrangeiro sente é quase indescritível. A percepção de perder um companheiro de batal-
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fogo! ha. De sentir medo. De estar em uma situação de total desconforto material e espiritual, abandono que somente a guerra é capaz de causar a uma pessoa. Desamparo pelo qual milhares de brasileiros passaram durante a Segunda Grande Guerra. Quando os navios brasileiros foram afundados pela marinha alemã, o governo brasileiro, que na época tinha como chefe de estado Getúlio Vargas, acabou cedendo às pressões e declarando guerra contra a Alemanha. Nisso, mais de 25 mil soldados foram convocados para integrar a FEB. Dentre eles estava Conrado, hoje com 84 anos. “Foram 239 dias, suportando montanha, neve, lama, frio, chuva, língua diferente, costumes diferentes, bombas e tudo o que uma guerra pode, de horroroso, proporcionar a uma pessoa”, conta o veterano. Situações como essas são retratadas em O resgate do soldado Ryan com autenticidade, o que inclusive é observa-
do por Conrado, que considera o filme a produção mais verdadeira em termos de guerra: “O filme é a realidade pura”, afirma. O resgate do soldado Ryan também reproduz com autoridade a problemática do instinto de sobrevivência. Quando em guerra, o ser humano experimenta um desconforto que perpassa as emoções e desemboca no impulso de defesa, pois, face ao inimigo, a necessidade de supervivência fala mais alto. A partir de então, o soldado passa a matar não por maldade, mas por autoproteção e resguardo dos companheiros de batalha. “Na hora do combate, você não vai levar ninguém para compadre. É aquilo ali: ou mata, ou morre”, enfatiza Conrado. Em um cenário de tamanha desolação, o medo acaba sendo relegado a um segundo plano. Primeiramente desabituados aos trâmites da guerra, os combatentes acabam familiarizando-se com a morte, che-
gando, muitas vezes, a se fortalecer com a situação. “Medo a gente sempre tem e procura se preservar”, lembra Conrado. Em contrário, muitos soldados não conseguem superar os temores e acabam morrendo por falta de reação.
A realidade se afasta da ficção No cinema, as histórias se passam em um intervalo de tempo que está longe de ser fidedigno. Para o espectador, todo o drama e terror que a premissa traz são exibidos em um recorte de poucas horas, enquanto, para o soldado da vida real, a experiência da guerra perdura por um período muito maior. Isso colabora para reforçar a distância entre a platéia e a narrativa, visto que o assistir não é tão forte quanto o vivenciar. O Sargento Adílson da Silva Machado, que
SINOPSE
O resgate do soldado Ryan Sob a perspectiva de um pelotão de soldados americanos, o filme O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg, narra a trajetória de um grupo de militares, comandados pelo Capitão John Miller (Tom Hanks), que têm por missão salvar o soldado James Ryan do campo de batalha, pois ele seria o único filho vivo de uma mãe de quatro militares. A narrativa começa com a histórica invasão do Dia D, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial, e depois segue além da praia, conforme os homens
embarcam na perigosa missão de resgatar Ryan. O Capitão Miller passa então a guiar seus homens por detrás das frentes inimigas, colocando, muitas vezes, a vida de todos em risco. Diante de tantos obstáculos, os homens questionam as ordens superiores: por que oito homens devem arriscar suas vidas para salvar apenas um? Cercados pela brutal realidade da guerra, cada um procura sua própria resposta como forma de triunfar em relação a um futuro incerto com honra, decência e coragem. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Memória: Conrado lembra dos amigos que perdeu na Segunda Guerra Mundial
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esteve na missão de paz enviada pelo Brasil ao Haiti, ressalta esse aspecto: “O cheiro podre das pessoas mortas é muito forte, e isso os filmes não têm como mostrar. Isso só ao vivo”. Por outro lado, mesmo com essa clara diferenciação proposta pela ficção entre cinema e realidade, a diegese, como explica o teórico francês de cinema Jacques Aumont, representa a história compreendida como um universo fictício, cujos elementos se combinam para formar uma realidade paralela. Sua acepção acaba, portanto, sendo mais ampla que a da própria história: é também tudo o que a narrativa evoca para o espectador. Na ficção, tudo sempre acaba. E geralmente bem. Quando, na realidade, uma guerra nunca pode ter um final feliz. Se em O resgate do soldado Ryan o protagonista da história aparece com toda sua família, em uma situação de privilégio financeiro, o mesmo não acontece com todos na realidade. O veterano Conrado conta a história de um de seus companheiros de batalha, um herói de guerra de 1ª classe - daqueles cujo mérito é individual - que morreu bêbado e como indigente na sarjeta, em São Paulo. Sem dinheiro, dignidade ou reconhecimento público pela nobreza de seus atos, o pracinha foi encontrado com a medalha no bolso. Ficção ou realidade, o fato é que é muito complicado conviver com as ruínas psicológicas da guerra. O processo de aceitação é longo, doloroso, permeado de fases de resignação ou de revolta. Como afirma Conrado: “Nós fomos desacreditados para morrer e voltamos com a bandeira da vitória, da democracia”.
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Volúpia, tesão, pessoas bonitas e que estão sempre prontas para o sexo, essa é a imagem que os filmes pornôs passam. A atriz Princyany Carvalho conta que a realidade não é bem essa TEXTO
ROBSON NUNES FILIPE LIMAS DE PABLO ESCAJEDO DE
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FOTOS
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er artista de cinema faz parte da fantasia de muitas pessoas em alguma época da vida. Às vezes nos imaginamos sendo grandes astros. Mas e os filmes pornôs? Você já pensou em fazer? Para seu espanto, ou não, essas produções são tão comuns quanto os chamados filmes convencionais. O universo pornográfico tem nos dias de hoje uma grande procura, graças a forte exposição da sexualidade por parte dos meios de comunicação. Na maioria das vezes, quando alguém se torna artista pornô, é por acaso. E foi isso que aconteceu com a gaúcha de São Sebastião do Caí, Tatiane da Silva, que prefere ser chamada pelo nome artístico, Princyany Carvalho. Aos 23 anos, ela já é uma das principais atrizes do cinema pornô nacional, com mais de 70 filmes produzidos. “Há três meses que eu parei de filmar”, comenta Princyany, que explica que agora só faz filmes norte-americanos e que quer parar definitivamente no fim deste ano, quando pretende se mudar com o marido para a Bahia. Lá ela sonha em abrir um negócio próprio, comprar uma casa e construir a sua vida. A carreira de Princyany teve iní-
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cio em 2003, quando a garota, então com 21 anos, foi convidada por um ator para participar de um filme só com atrizes gaúchas. Princyany conta que na época ela e sua irmã estavam passando muitas dificuldades, pois sua mãe, que sustentava a casa, havia falecido. Ela trabalhava como caixa de um supermercado e a irmã, como empregada doméstica. “Quando a minha mãe morreu, a gente até passou fome.” Quando recebeu a proposta, ela não pensou duas vezes. “Eu só pensei na minha família e no bem estar dela”, conta. Mas essa firmeza na decisão não significa que as coisas tenham corrido tão facilmente. Princyany não era mais virgem, mas suas experiências sexuais
até aquele momento tinham sido apenas com namorados. Ela explica que nunca foi garota de programa e que a primeira vez que fez sexo num filme não foi muito agradável. “Foi muito horrível”, conta ela, em meio a risadas nervosas, explicando o porque. “Eu não sabia nada, é estranho transar com um monte de gente te olhando.” O filme só afetou sua vida pessoal cerca de um ano após a gravação, quando chegou às locadoras de São Sebastião do Caí. Princyany se mudou para São Paulo, onde estão as produtoras de filmes pornôs, cerca de dois meses antes do filme chegar a sua cidade. Mas mesmo morando longe ela sentiu o preconceito e a reação negativa da população de
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Boogie nights Boogie nights - prazer sem limites, mostra como Eddie (Mark Wahlberg), um rapaz de 17 anos, é convidado para ser ator pelo cineasta Jack Horner (Burt Reynolds). Então sua vida muda drasticamente, ele se torna “Dirk Digller” e começa uma carreira de sucesso no mundo das produções pornôs por ter “talento” pra coisa. Ele entra em um mundo cercado de mulheres, sexo e drogas. De um garoto inseguro,passa a ser um homem arrogante, que tem sua carreira interrompida pelo envolvimento com drogas. É quando ele conhece o sabor da derrota. Tudo que havia conquistado entra pelo ralo e o que antes era um ídolo do cinema pornô se transforma agora em um garoto de programa.
sua cidade quando esteve novamente lá. “Um monte de gente me xingava na rua. Me chamavam de vagabunda, perguntavam se eu não tinha vergonha na cara.” E os que ela acreditava serem seus amigos também a renegaram na época. "Eles viravam a cara, cuspiam no chão.” Mas ela diz que o tempo tratou de mudar algumas dessas coisas. Muitas das pessoas que deram as costas para ela na época agora a procuram quando está na cidade para tirar fotos e pedir autógrafos. Ela mesma comenta divertida essa contradição. “Mesmo cuspindo no chão, as pessoas alugam todos os lançamentos que chegam aqui.” Depois do primeiro filme estourar, Princyany fechou um contrato de oito meses com a produtora Sexxxy Brasil, uma das três maiores do país. Ela evita falar em valores, mas garante que ganhou o suficiente para viver apenas dos filmes. “Os contratos são fechados por produção. Neste contrato de oito meses eu recebia por cena e mais um valor por mês.” Ao término do contrato, ela decidiu não renová-lo e passou a fazer filmes para outras produtoras
brasileiras e norte-americanas, cobrando o que acha justo pelo seu trabalho. “Como agora sou conhecida, peço o valor que eu quiser, e eles pagam”, garante orgulhosa. O fato de muitas vezes nos filmes pornôs os atores não utilizarem preservativos e as pessoas praticarem sexo com diversas outras acaba passando uma imagem de promiscuidade. De acordo com Princyany, isso é apenas uma aparência, pois, na prática, muitos cuidados com a saúde são tomados pelas produtoras e pelos atores. Antes de começar uma gravação, todos precisam passar por diversos exames, como de HIV, para evitar contágios com doenças. As atrizes são as que mais sofrem nestas produções. Princyany conta que é comum as atrizes terem feridas no colo do útero, devido a cenas mais violentas e ao fato de a maioria dos atores terem pênis muito grandes. “Tem que ir ao ginecologista sempre.” Outra prática que costuma causar dor nas atrizes é o sexo anal, muito explorado nessas produções. Princyany explica que são tomados alguns cuidados com a higiene e outros para evitar dor. “É feita uma ducha pra limpar o local e são usados cremes e xilocaína, aí quase não se sente dor.” Uma curiosidade sobre a experiência dela com essa prática é que, em seu primeiro filme, Princyany teve que fazer sexo anal sem nunca tê-lo experimentado com namorados. “Foi horrível”, explica. Os filmes têm o propósito de excitar o espectador e por isso parece que os personagens estão tendo muito prazer. Mas não é assim que as coisas funcionam. Princyany é categórica ao afirmar que tudo o que se vê nos filmes é fingimento. “Eu nunca senti prazer nas gravações”, conta ela, que diz ter uma vida sexual normal fora das telas. Segundo ela, as atrizes dificilmente sentem algum prazer na hora das filmagens. No caso dos atores, ela conta que a maioria precisa usar Viagra para segurar a ereção por bastante tempo. Isso acontece por vários motivos, entre eles, o fato de muitos não consegui-
rem se excitar com atrizes com as quais já atuaram muitas vezes. Filmes pornôs mexem com a fantasia e a libido das pessoas, que procuram este gênero por motivos distintos. Segundo o terapeuta sexual Carlos Eduardo Carrion, de Porto Alegre, o primeiro motivo é a curiosidade. “Como a vida sexual é uma coisa privada, sempre houve a curiosidade de saber como os outros fazem.” O médico ainda comenta que os outros motivos são aprender algo sobre sexo e o prazer de assistir esse gênero. Carrion salienta que é uma ilusão achar que se vai aprender algo através dessas produções. “Os filmes pornôs se encarregam de dizer como o sexo não deve ser.” Ele explica que isso acontece porque os filmes mostram coisas irreais, como homens que transam por horas sem gozar, mulheres que gozam o tempo todo e se esquecem de algo muito importante, o afeto, que inexiste nestes filmes.
Ator por acaso O músico sapucaiense Jair Catedral teve uma experiência inusitada para a maioria das pessoas: foi figurante em um filme pornô. O filme se passou em uma boate de Novo Hamburgo e mostrava uma festa de carnaval. Segundo ele, o filme não tinha nenhum roteiro. Jair foi convidado por seu irmão, segurança da boate, a participar do filme. “As atrizes e os atores não são pessoas normais, são profissionais. Os homens são bem dotados e as mulheres conseguem transar a noite toda com vários homens”, conta ele. Um fato engraçado que ele recorda é com relação ao ator principal do filme, que era alto e parecia viril. “Ele estava fantasiado de capeta, e tinha uma atriz vestida de capeta também, mas o cara não conseguia uma ereção”, diz. Esta foi a única experiência de Catedral, que não pensou em seguir carreira na área. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Uma opção A decisão de ter ou não um filho pode causar traumas ou ser encarada com naturalidade. Irene, Jaqueline e Patrícia viveram essa experiência TEXTO
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CLÁUDIA CAMBRAIA E DIANA JARDIM FOTOS DE ZECA BRITO
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Irene, 74 anos “Ao todo foram treze abortos, mas foi por necessidade”, justifica Irene*. A luta “honesta e dificultosa”, como avalia, começa na década de quarenta, quando, com dois filhos de colo e o marido tuberculoso, descobre que está grávida. Não há condições para alimentar mais uma boca. A solução é recorrer aos agiotas. O empréstimo é de vinte mil-réis - o equivalente hoje a cerca de 1 mil reais - para pagar Dona Josefina. A auxiliar era obstetra de um conhecido hospital de Porto Alegre coloca uma sonda que destila gotas no útero de Irene. Antônio Ayub, ginecologista e obstetra responsável pela maternidade do Hospital Santa Clara, em Porto Alegre, explica que essas gotas têm em sua composição diversas substâncias e, com freqüência, soda caustica, provocando não só aborto como, muitas vezes, infecção generalizada, podendo levar a esterilização da mulher. Irene tem sorte. Não sente dor e, apesar da tontura, veste-se e vai trabalhar. “Ninguém precisava saber o que estava acontecendo comigo”, enfatiza. Ela não fica estéril. Engravida, tem mais filhos e aborta outras 12 vezes. Em uma das vezes que abortou a “dor na boca do útero” foi fruto de uma gestação interrompida quase no quinto mês. Os restos do feto que permanecera em seu corpo só foram retirados quando ela foi internada na Santa Casa. Era dia de Nossa Senhora Medianeira. Um padre levava a imagem da santa, leito por leito, rogando a cura dos encamados. Nervosa, Irene delira e vê Nossa Senhora mostrando seus filhos. Em seguida, enxerga dois fetos manchados com gotas de sangue. “Eu jurei pra Nossa Senhora que era o último aborto.” A promessa foi em 1962, quando Irene já tinha cinco filhos. Então, ela fez o tratamento das gotas por três meses seguidos e nunca mais engravidou. Hoje sente remorso quando vê uma criança chorando, porque lembra dos filhos que não deixou nascer. Na época não existia anticoncepcional. Camisinha existia, mas meu marido nunca quis usar. “Minha preocupação sempre foi de não botar filho no mundo para pedir dinheiro em praça.” |76|
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Jaqueline, 36 anos Jaqueline* procurou uma clínica de aborto em um bairro nobre de Porto Alegre. “Eu fiz uma ecografia e o médico disse que eu não podia mais tirar.” Ela estava com quase três meses de gravidez, o aborto seria um procedimento arriscado. Mas Jaqueline encontrou uma clínica no centro da cidade. “Um lugar que não era muito confiável nem para tomar injeção”, descreve. O médico confirmou o risco que ela correria, mas concordou em por fim aquela gestação. Antônio Ayub explica que, no Brasil, como é proibido fazer aborto licitamente, as mulheres acabam fazendo na clandestinidade. E a clandestinidade é que gera, aí sim, morbidade e mortalidade. “É muito arriscado fazer auto aborto. As mulheres colocam agulhas de crochê, agulhas de tricô, usam soluções que as famosas parteiras passam como segredo”, conta o médico. Ter um filho sozinha, ainda mais do exnamorado, não estava nos planos de Jaqueline. Como ele também não desejava a criança, deu os oitocentos reais para pagar o aborto. Jaqueline foi para clínica disposta a por fim àquela gravidez, enquanto sua irmã ligava incessantemente com a esperança que desistisse. Jaqueline tirou a roupa e deitou na cama ginecológica. O médico pegou um instrumento de plástico parecido com uma faca e explicou que ia furar a bolsa para induzir um aborto espontâneo. Ela conta que ouviu “uma força de dentro” dizendo: “Tu vais te arrepender! Deixa essa criança nascer! Ela quer viver!”. Levantou, pediu desculpas e saiu explicando que não queria mais abortar. Além do medo de morrer e pegar uma infecção, Jaqueline reconhece que começou a pensar no bebê que carregava na barriga. “Eu cheguei a escutar o coração da criança e isso foi me envolvendo.” Hoje tem um filho de cinco anos de idade. Depois do que aconteceu, encontrou conforto na doutrina espírita e não acredita que cogitaria o aborto novamente. Inclusive revela a vontade de ter mais um bebê.
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Patrícia, 23 anos Muitas jovens ficam grávidas de relacionamentos não estáveis e têm que decidir se estão preparadas para serem mães em plena adolescência. A universitária Patrícia*, com 17 anos, passou por esta situação. Hoje, com 23 anos, avalia que a decisão por não ter um filho foi a melhor naquele momento. “Eu era apaixonada por meu namorado, mas ele não me assumia.” Patrícia tomava anticoncepcional, mas não regularmente. No carnaval de 1997, a menstruação não veio. Foi ao ginecologista e descobriu que estava grávida.”Bah! Daí eu cai no choro, não esperava. Fiquei em estado de choque.” A primeira decisão foi fazer um aborto. Patrícia contou com o apoio da irmã. Juntas buscaram informações sobre clínicas com amigas que já haviam abortado. A preocupação era que os pais não ficassem sabendo da gravidez, porém o pai descobriu escutando na extensão do telefone a conversa dela com a irmã. “O que mais me doeu foi ter magoado meu pai. Ele ficou três meses sem falar comigo.” A falta de cumplicidade do namorado e a possibilidade de ter que interromper os estudos influenciaram na decisão. “Pensei: uma pessoa que não tem muita consideração comigo vai ser o pai do meu filho.” A irmã e o namorado dividiram o valor de mil reais cobrado pela clínica para realizar o procedimento. Numa manhã de sexta-feira, Patrícia e a irmã foram na clínica onde iria fazer o aborto. O namorado foi em uma festa na noite anterior e não pôde ir junto. Enquanto a irmã estacionava o carro, ela ficou esperando em frente ao prédio comercial onde se localiza a clínica. “Neste momento, chegou uma mulher, parecia um anjo, falou para eu não ir à clínica, porque ela tinha acabado de deixar a filhinha dela lá. Eu não sabia nem o que fazer, estava chorando, desesperada.” A clínica, segundo Patrícia, parecia um consultório de ginecologista. Na sala de espera, estavam outras mulheres lendo revistas como se aguardassem um atendimento de rotina. No momento do procedimento, o médico pediu que ela se vestisse. “Ele disse que não iria fazer nada contra minha vontade, já que eu não conseguia nem falar direito de tanto chorar”. Patrícia explicou que queria fazer o
aborto, mas era muito dolorida aquela situação. O médico a acalmou e deu um beijo na sua testa. “É tudo que lembro”. Quando acordou, quarenta minutos depois, estava em outra sala já vestida. Sentiu cólica e tontura. Patrícia avalia que na época sentiu-se confusa e culpada, ficando deprimida por ter deixado tudo acontecer. “Sinceramente, fiz porque não queria que meu filho tivesse um pai que não me amava.” Hoje sua atitude seria outra. “Meu atual namorado me respeita, me ama, praticamente moramos juntos.” O casal faz planos de ter dois filhos, mas agora os cuidados dela são maiores. Logo depois do aborto, Patrícia foi ao seu ginecologista e constatou que não terá problemas em engravidar. Segundo Ayub, o aborto antes de 12 semanas de gestação, com vacco-aspiração e com ajuda de drogas modernas, é o procedimento mais seguro da história de medicina. “Este tipo de informação está disponível a todo mundo e, por razões ideológicas, os movimentos contrários à descriminalização do aborto não gostam que seja divulgado.” O ginecologista Ayub declara que, segundo estudos suecos, os filhos indesejados em comparação com os planejados apresentam desvantagens. “A criança, além de ter o direito de nascer, tem o direito a pais que a queiram. Tem direito a várias coisas que são ou não atendidas, no caso de crianças indesejadas.” Ayub critica as pessoas que são contra o aborto, mas a favor da pena de morte. A pesquisa dos professores Steven Levitt, da Universidade de Chicago, e John Donohue III, da Universidade Stanford, mostra que a redução de 30% de criminalidade nos EUA deveu-se à legalização do aborto, em 1973. Os pesquisadores basearam-se no princípio de que a maioria das mulheres que optam pelo aborto são menores de 20 anos, solteiras, com pouca educação e recursos, o que envolveria a criança em um ambiente propenso à delinqüência. (*) Os nomes das entrevistadas foram trocados
SINOPSE
O preço de uma escolha
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O filme conta a história de três mulheres de diferentes épocas que tiveram o dilema de fazer ou não um aborto. 1952 - Claire, viúva, descobre que está grávida. Passando por dificul-
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dade financeira, introduz uma agulha de tricô na vagina. 1974 - Barbara é casada, trabalha, está voltando a estudar quando descobre que está grávida pela quinta vez. Escolhe reorganizar a
vida e ter mais uma criança. 1996 - Christine é jovem, solteira e engravidou do professor que é casado. O aborto é permitido por lei e ela decide pela interrupção da gestação.
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DE
SUZANA CASTRO
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O continente latino-americano, marcado pela dominação desde os tempos do descobrimento, ironicamente, proporciona um ritual de passagem e um espírito de liberdade aos viajantes brasileiros. Nunca se volta o mesmo
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sta é uma história de pessoas diferentes e semelhantes ao mesmo tempo. Uma história que pode ser ficção e realidade. Pessoas que saem em busca de algo, cheios de certezas e também, contraditoriamente, dúvidas. Esta é a história de Adriano, Maria Helena e Luiz Felipe. Pessoas que têm profissões diferentes e residem em lugares diferentes, mas com algo semelhante - a busca por uma sensação de liberdade, simbolizada por uma viagem pela América Latina. A mesma sensação que levou um jovem chamado Ernesto Guevara de la Serna, juntamente com seu amigo, Alberto Granado, a realizar uma
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aventura pelo mesmo continente nos distantes anos 50. Entretanto, Adriano, Maria Helena e Luiz Felipe também buscaram, em suas viagens, uma liberdade, porém não necessariamente com os mesmos objetivos do que os dois amigos. Morador da cidade de Novo Hamburgo, Luiz Felipe Fonseca da Rocha, 25 anos, estudante de Ciências Biológicas, fez o que ele chama de “viagem espiritual”. Em dezembro de 2003, percorreu de ônibus, juntamente com um amigo, vários estados brasileiros até chegar ao Acre. Por lá, conviveu com uma comunidade ligada a uma doutrina que une o espiritismo, xamanismo indí-
gena e o cristianismo, e utiliza bebidas para fins medicinais e espirituais difundidas entre os índios da Amazônia (Peru, Brasil, Bolívia, Colômbia e Equador). Luiz conta que queria aprender a vida em comunidade e conhecer mais sobre as bebidas medicinais. “Foi um caminho espiritual”, completa o jovem, que trabalha com pesquisas etnobotânicas e medicina indígena. Segundo ele, sua meta era ver a riqueza cultural do continente e realizar o sonho de trilhar estes caminhos. “Meu amigo não agüentou a pressão e resolveu voltar. Eu decidi atravessar a fronteira rumo ao Peru. Entrei em um barco e segui adiante”, revela. O sociólogo Alcido Arnhold, 51 anos, professor e mestre em História da América Latina e pesquisador do Instituto Humanitas da Unisinos, explica que a riqueza de culturas do continente é muito grande. “A diversidade das culturas milenares latino-americanas são, em grande parte, desconhecidas pelas gerações atuais”, diz. Para ele, as populações do continente ainda não valo-
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rizam o que se tem de melhor. O professor concorda que a América Latina transmite um sentimento de liberdade, mesmo em contradição com a sua própria história de submissão e dependência do século 15 aos dias de hoje. A viagem de Luiz Felipe continuou até as cidades históricas do império Inca, Cuzco e Machu Pichu, e depois rumou à Bolívia, país onde ele ficou impressionado não só pela beleza e cultura de lugares como o Lago Titicaca, mas, também, pela extrema pobreza. O jovem estudante conta que se sentiu espiritualmente livre passando pelos lugares como andarilho, porém confessa que se ficasse muito tempo começaria a absorver a dura realidade do lugar. “Para se ter uma sensação de liberdade, devemos ser como andarilhos e não fixar residência”, ensina ele, que regressou ao Brasil em fevereiro de 2004 e percorreu, no total, cerca de 15 mil km. O caso de Luiz Felipe, o de sentir-se preso em sua realidade e a necessidade de viajar sozinho, é compreensível quando ainda se é jovem,
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e, geralmente, começa-se a descobrir o mundo. O psicanalista e professor Charles Elias Lang, 40 anos, coordenador do projeto de pesquisa sobre Clínica Psicanalítica, na Unisinos, diz que uma viagem é um rito de passagem na vida de um ser humano, principalmente aquele mais jovem. “Hoje, as pessoas não têm mais certos rituais definidos que demarcam nossa passagem de uma fase da vida para a outra, como a da adolescência para a fase adulta”, diz ele. A valorização de antigos eventos como a crisma, baile de debutantes e ida ao Exército, tradicionais ritos de passagem que marcavam a vida do ser humano, não existe mais. Viajar nem sempre precisa ser uma busca ideológica ou espiritual. Muitas vezes, uma aventura através do continente vira pano de fundo para o simples fato de se divertir e conhecer a geografia dos lugares. É o caso da médica anestesista Maria Helena Groth, 48 anos, conhecida pelos amigos por Lena. Ela experimentou sua primeira grande aventura em uma moto, juntamente com o namorado, percorrendo 6 mil
km até Santiago do Chile. A viagem iniciou-se em uma tarde quente de fevereiro, de 2003 e totalizou 13 dias entre a ida e a volta. “Para não ficar cansativo, viajamos 500 km por dia e, à noite, preferimos descansar, optando sempre pelo dia para recomeçarmos a viagem”, recorda Lena. Como dica, a médica diz que a cada 120 km era necessária uma parada para alongar o corpo e tomar um cafezinho. Mas que mesmo assim era ótimo, pois ela odeia subir em um avião. “A sensação de liberdade que uma moto proporciona aliada à paisagem é inigualável”. Ver a Cordilheira dos Andes foi uma experiência inesquecível. “Foi a coisa mais maravilhosa que vi na vida”, classifica. Para o professor Arnhold, a viagem de Lena serve como exemplo do crescente número de pessoas que começam a redescobrir o continente latino-americano. “Devido à globalização, as pessoas têm tido acesso, via meios de comunicação, a importantes lugares históricos da América Latina. Isso contribui para o incremento das economias locais destas regiões”, explica. Segundo Arnhold, | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Diários de motocicleta SINOPSE
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O filme Diários de motocicleta (2004), do diretor Walter Salles, baseado nos diários de Ernesto Guevara de La Serna e Alberto Granado, conta a mudança de visão dos dois jovens argentinos em relação ao continente e a transformação de Ernesto no futuro líder revolucionário Che Guevara. Ficção ou realidade, quando fizeram aquela jornada, em 1952, numa velha motocicleta, os dois amigos procuravam por uma América Latina que só conheciam através dos livros. Na viagem, em que percorreram 8 mil km de Buenos Aires a Caracas, Granado e Guevara conheceriam as injustiças e desigualdades sociais que assolavam o continente.
Aventura: Luiz Felipe chegou a Machu Picchu por rotas alternativas
há 20 anos, poucas pessoas falavam em Machu Picchu, Cuzco ou Lago Titicaca. Os povos dessas regiões estavam completamente à margem do mundo. Hoje, com a internet, esse quadro mudou, embora grande parte dessas populações ainda viva sob intensa marginalização social e econômica. Há casos em que uma viagem serve como mudança de visão social e política a respeito do contexto do continente. Como no caso de seu ídolo, Che Guevara, uma viagem feita à Goiânia para o 1º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 2001, impulsionou ainda
mais a militância política de Adriano de Almeida Pires, 25 anos, estudante de Filosofia e natural de Ijuí. Ele, que já tinha atividade política e mantinha contato com outros jovens de esquerda, ampliou sua visão do meio em que vivia nos tempos de estudante de Ensino Médio. “Em Goiânia tive contato com pessoas que me mostraram uma nova realidade”, lembra Pires, que também esteve em encontros com movimentos estudantis em outros estados. Hoje, ele faz parte do gabinete do prefeito da cidade de São Leopoldo e atua junto a diversas atividades sociais, políticas voltadas para a juventude.
O contato cada vez maior com outras populações em diferentes lugares só contribui para uma reflexão acerca do mundo em que se vive. Segundo Arnhold, os movimentos sociais estão, hoje, mais organizados e com a globalização, eles conseguem discutir não apenas os problemas locais, mas, também, questões mais amplas do continente latino-americano. O professor Lang explica que uma viagem funciona como um divisor de águas, alterando para sempre a maneira como a pessoa passa a agir com seus semelhantes e como enxerga o mundo ao redor.
Quero viajar! Se aventurar de moto ou carro por alguns países da América Latina requer certos procedimentos para a viagem não virar um incômodo: Não leve muito dinheiro. Prefira cheques e principalmente cartões de crédito. A Carteira Nacional de Habilitação é aceita em todos os países da América do Sul e do mundo, à exceção de Grécia e Rússia (para estes, deve-se |82|
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tirar uma autorização especial no Brasil). Brasileiros estão isentos de visto para permanência de até 90 dias como turista em praticamente todos os países sul-americanos (exceção à Guiana). Países como Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile aceitam a Carteira de Identidade, mas os outros exigem o passaporte. Bolívia, Peru, Equador, Venezuela e Colômbia são alguns países que exigem o certificado internacio-
nal de vacinação contra a febre amarela. Outros países podem exigir outras vacinas,portanto o melhor é informar-se. Menores de 12 anos precisam da autorização de ambos os pais. Se o menor viajar com apenas um dos pais, é necessária a autorização do outro. As autorizações são obtidas nos postos do Juizado de Menores. Fonte:www.tiaiara.com.br
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Grupo de estudantes de Novo Hamburgo leva alegria a hospital e é exemplo para os jovens brasileiros
médico norte-americano nos estudantes aliados muito fortes Hunter “Patch” Adams para o tratamento das doenças. foi chamado de louco Muitas vezes não é fácil convenquando começou a utilicer um paciente a aceitar uma orzar acessórios engraçados, como nadem médica. Porém, quando eles riz e maquiagem de palhaço, no luvêem uma pessoa jovem, de nariz gar de medicamentos no tratamento de palhaço e jaleco entrar no quarto de pacientes. para brincar com eles pedindo que Muitos são portadores de doennão desanimem nunca, eles logo ças sem cura, mas a “terapia do rimudam de idéia. so”, como é conhecido esse proceMarlon Alexander Pires,16 anos, dimento, ajudou a combater dores é um dos mais animados com o trae a afastar os pensamentos negatibalho voluntário. Ele participa há vos de quem está à beira da morte. quase dois anos do projeto e diz que E mais, elevou a auto-estima. é muito gratificante conseguir tirar Após a utilização da técnica por um sorriso das pessoas. Cada vez Pach Adams, o mundo começou a que alguém sorri, é como se os adoTEXTO DE DÉBORA RABELO conscientizar-se da importância do lescentes ganhassem um prêmio. E LENISE RODRIGUES carinho e da solidariedade, não No momento em que os estuFOTOS DE PEDRO KARAM apenas em ocasiões de tragédia, em dantes entram nos quartos, não há E RITA CORONEL que a dor é inevitável e a ajuda como os pacientes ficarem indiferuma súplica, mas também em moentes. A emoção toma conta. Aquimentos de relaxamento. No Brasil, o maior exemlo não é mais um hospital e eles não são mais plo de grupos que utilizam a “terapia do riso” são doentes. Nunca estiveram. os Doutores da Alegria, de São Paulo. No Rio Os Amigos da Alegria são “doutores palhaços”. Grande do Sul vários grupos desenvolvem trabalho Usam jaleco branco, põem um nariz vermelho semelhante ao do médico Patch. (sim, um nariz de palhaço!) e pintam o rosto. Uma Os estudantes do Colégio Santa Catarina, de festa. O suficiente para animar, por alguns instanNovo Hamburgo (RS) alegram pessoas que estão tes, pessoas que, até o momento, estavam merguinternadas no Hospital Regina, instituição localizalhadas na tristeza de suas doenças. Como tratada a poucos metros da escola. O grupo Amigos da mento básico eles receitam 50 risadas diárias e Alegria, coordenado por Regina Cândida Sühr,43 uma piada a cada 10 minutos. A “consulta” é enanos, freira da Congregação da Ordem de Santa Cacerrada com o que eles chamam de “terapia do tarina, faz visitas semanais ao Hospital. São alunos aperto de mão”, quando todos os presentes no do Ensino Fundamental, Médio e Técnico em Enquarto são convidados a cumprimentar-se. fermagem que dedicam parte do seu tempo a levar É um santo remédio: o sorriso sai fácil das fialegria dos que passam por momentos difíceis. sionomias cansadas e fragilizadas pela dor e renova Com este objetivo de transformar o ambiente as esperanças de melhorar. Mesmo que as pessoas do Regina num espaço mais humano, proporcionão tenham fé, passam a acreditar em milagres. A nando um momento de descontração e alegria aos freira Veleda Margarida Costa, 69, do Convento pacientes, realiza-se o trabalho. O humor é recurso Nossa Senhora da Saúde, está internada para uma fundamental para ajudar a tolerar os medos inevicirurgia no joelho e foi uma das pessoas que mais táveis de uma internação e, talvez, de uma luta pegostou da visita dos jovens. Ela diz que se sente la vida. A transformação do ambiente de saúde é bem com a presença dos Amigos da Alegria: “Eles um desafio para os profissionais que atuam na nos enchem de ânimo”, avalia Margarida. O trabaárea. A busca pelo sentido da vida deve ser sempre lho dos voluntários é tão sério que se torna quase uma meta. Ela só é alcançada através de solidarieuma obrigação visitar pacientes. É os mais sério dade no trabalho e amor com os pacientes. Os hospara alguns que tomar a sua medicação. Eles espepitais não precisam ser um lugar frio e um ponto ram a semana toda para receber os estudantes em final em alguns casos. Podem ser, realmente, um seus quartos e, por alguns instantes, esquecem que local de tratamento que inicia na mudança de espíalí é um quarto de hospital. rito até o seu estado físico. Não há prêmio de loteria acumulada que valha Muitas pessoas consideram esse tipo de atitude mais do que o carinho expressado pelas pessoas inadotada pelo Colégio Santa Catarina, em conjunto ternadas. Eles expressam a alegria de uma criança, com o hospital Regina, um ato de loucura. Mas isso é tamanha é a satisfação que demonstram. um pensamento de quem está por fora da realidade Vilmar Scherer, 45 anos, filho de uma paciente interna do local. As enfermeiras e os médico vêem com isquemia cerebral, diz que o riso só atrai coi|84|
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sas boas e faz a pessoa sentir-se bem. Ele fica o tempo todo ao lado da mãe, Thereza Scherer no quarto 148, no segundo andar do Hospital Regina, a espera de um milagre que alivie sua dor. A ação dos alunos contribui para que este alívio chegue o mais rápido. Apesar da falta de mobilidade e de não poder falar, Thereza Scherer se emociona com a contribuição dos alunos. Os olhos mareados de alegria é o pagamento do dia para os estudantes.
SINOPSE
Patch Adams Hunter “Patch” Adams não é só o personagem de um filme. O amor que o médico norte-americano dedica às pessoas acabou servindo de inspiração para o filme Patch Adams - o amor é contagioso. Patch tem 57 anos e nasceu numa base militar. Seu pai era soldado e foi morto em combate. Esse acontecimento fez com que ele, aos seis anos, decidisse lutar pela paz. Aos 18 anos Hunter foi internado em um hospital psiquiátrico, após tentar o suicídio.Ele não aceitava viver num mundo tão desumano e por isso decidiu tirar a própria vida. Foi no hospital que tomou a decisão de cursar medicina e lutar pela igualdade social. Na universidade Patch foi duramente criticado por sua “alegria excessiva”. Por outro lado, o então residente, acabou conquistando a amizade de pacientes e enfermeiras do hospital mantido pela universidade. Logo que terminaram de cursar a faculdade Patch e um grupo de amigos fundaram o Gesundheit! Institute que tem uma visão socio-político radical substituindo avareza e competição com generosidade, compaixão e interdependência. A instituição não recebe ajuda do governo americano. Após o filme, estrelado pelo ator Robin Willians, Patch ficou conhecido e suas palestras são assistidas por milhares de pessoas em todo o mundo.
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Vício solitário |86|
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alcoolismo é um problema conhecidamente masculino. No imaginário popular, o homem tem o vício e a esposa ou companheira vai segurando a barra da família, sustentando e educando os filhos enquanto tenta recuperar o marido. Mas este cenário mudou ao longo dos anos. As mulheres tanto quanto os homens também estão sendo vítimas do álcool. Com o preconceito, entretanto, fica difícil medir as proporções dessa realidade. As mulheres alcoolistas se escondem para não enfrentarem os rótulos, a recriminação e a exclusão da sociedade. Os papéis tendem agora a se inverter. Existem casos em que são os homens quem têm de dar o apoio para que a esposa se recupere do vício. Nem sempre são histórias bonitas, mas acontecem. De outro lado, existem histórias tristes em que, no momento necessário, o amor acaba e a mulher fica sozinha para enfrentar o alcoolismo ou o próprio companheiro, que a coloca nesta situação. A diretora adjunta da Central de Alcoólicos Anônimos do Rio Grande do Sul, conhecida dentro do AA, em Porto Alegre, como Bete III, conta que hoje a sua vida está 100% melhor do que quando era uma dependente química. Ela começou a beber aos 30 anos e aos 40 procurou ajuda nos Alcóolicos Anônimos. Neste período o seu marido, falecido, a ajudou de alguma forma. “Sempre tive o apoio dele, e dos meus filhos, do jeito deles, mas tive. Eles nunca me disseram para não beber, apenas me isolavam e me deixavam trancada no meu quarto só com a minha garrafa de bebida. Então comecei a perceber que eles não queriam uma alcoólatra dentro de casa”, reconhece ela. Segundo o consultor em dependência química, especializado pela Clínica Pinel de Porto Alegre, Sr. Jackson Otto Jacques, a dependência química é uma doença, sem
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Duas mulheres diferentes, mas com um ponto em comum: o alcoolismo. Bete e Eva tiveram relacionamentos distintos com seus parceiros na busca da cura dúvida. “A dependência pela substância é que é a doença. As pessoas adquirem aos poucos, não se sabe o momento em que se torna um dependente químico”. Jacques realiza como forma de tratamento a terapia, tanto individual quanto em grupo. Também realiza exercícios e questionários para a pessoa lembrar de coisas que aconteceram na sua vida, como por exemplo, a primeira vez que teve contato com o álcool. “Eu acompanho a pessoa para reformular a sua vida, para dar um reforço. O tratamento possibilita uma mudança na forma de viver, é um período longo e solitário, por isto a pessoa deve querer ser tratada, tem que estar preparada”. O consultor diz que de 15 pessoas que atende cinco são mulheres. Quanto à relação em família Jacques afirma que na maioria das vezes fica abalada. No caso em que a mulher é alcoólatra o homem tem mais facilidade para se afastar e terminar com a relação. “O homem que não é alcoólatra tem menos tolerância, e acaba se afastando na maioria dos casos. Mas também existem casos em que o homem dá suporte e força para a sua esposa”, diz Jacques. Hoje Bete está há doze anos
em sobriedade. A vontade de recuperação sempre partiu dela mesma, mas o seu marido sempre a incentivou a procurar tratamento e a continuar nele. De alguma forma o marido sempre esteve ao seu lado, acompanhando seus passos e sempre dando apoio afetivo e moral necessário. “Uma alcoólatra dentro de casa abala toda a base familiar. Hoje me sinto feliz porque estou bem comigo mesma e com a minha família. Eu me sinto útil, além de minhas atividades aqui no AA tenho outros afazeres que me fazem sentir bem. Dentro da minha casa não entra mais bebida alcoólica. Quando vou à casa de meus filhos e lá encontro bebidas, apenas não bebo, pois sei o que quero para mim”. Bete também conta que esta foi uma fase muito difícil da sua vida. “O alcoolismo é uma doença. Eu não tive nenhum problema que me levou a beber, simplesmente eu bebi uma vez e continuei bebendo, porque tenho a dependência”. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que apenas no Brasil existem 17 milhões de dependentes de bebidas alcoólicas, sendo uma das piores situações do mundo, ao lado da Rússia e do México. Outros dados mostram também que a bebida está relacionada a mais de 10% dos casos de doença e mortes no Brasil. Já a história de Eva é um pouco diferente da de Bete III, apesar de também ser uma vítima do alcoolismo. Por motivos diferentes que a levaram a ser uma alcoólatra sua vida também ficou ameaçada. No caso de Eva, o amor de seu marido, Adão, lhe causou a expulsão do paraíso. Foi o vício dele que a levou a se tornar uma dependente do álcool. Ela não bebia antes do casamento, até pela experiência com o álcool através de seu próprio pai, mas quando o marido começou a beber e não quis aceitar sua segunda gravidez, a violência física e psicológica tornou-se parte de sua vida, assim como o álcool.
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Eva começou a beber obrigada pelo marido, tendo um copo de whisky à sua frente e uma arma encostada em sua cabeça. Agora, depois de ter ficado 20 dias internada em uma clínica para desintoxicação, onde conheceu o trabalho dos Alcoólicos Anônimos, já está há dois anos em sobriedade e atua no grupo de AAs no município de Farroupilha/RS. Segundo a assistente social do Centro de Reabilitação Doutor Jaime Roessler, Heloisa Bolsoni, o ambiente social está muito propicio à ingestão de álcool, ou seja, o meio em que se vive e a convivência com os grupos de amigos incentiva o consumo de bebidas, que geralmente começa na adolescência, não mais com a diferenciação entre meninos e meninas, que bebem de igual pra igual, sem a distinção de que menino pode e menina não. “Porém, o que continua do mesmo jeito de anos atrás é o preconceito, responsável pela vergonha das mulheres em procurar ajuda, a ter uma resistência maior por causa da sua idéia de que será discriminada pela sociedade”, afirma a assistente social. Um exemplo disto se mostra no Projeto Cuca Legal desenvolvido pelo Centro de Reabilitação, ou seja, das 75 mulheres que começaram o tratamento, apenas 23 seguem fazendo. A respeito do preconceito tanto Bete III quanto Eva fazem uma crítica a sociedade. Segundo Bete a sociedade é muito cruel. “Ela primeiro te oferece a bebida e depois te recrimina e te exclui dela mesma”, diz. Já Eva afirma que a sociedade te apresenta o álcool, mas depois te rotula. “Cada vez mais mulheres não admitem (o vício), não procuram ajuda pela vergonha de ser rotulada, do que os outros vão dizer”. Eva sempre prezou ter uma boa relação com os seus filhos. “Sempre fui boa mãe, porque gostava de fazer eles se sentirem bem, nunca deixei faltar comida ou qualquer coisa em casa, dei-
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xava tudo sempre limpo e gostava de estar perto e dar apoio, mas a falta de diálogo foi um caos, eles chegavam em casa e eu estava alcoolizada, não fazia questão de conversar”, diz Eva. Porém a assistente Bolsoni afirma que no alcoolismo feminino quem mais sofre são os filhos, pois a mãe é o alicerce da estrutura familiar, a pessoa que cuida e protege, os “filhos passam a se sentir desprotegidos”. O mais importante nisso tudo, apontado pela assistente social, pela Eva e por Bete, é que a vontade de querer se recuperar, de abandonar o vício deve vir do alcoolista. A pessoa tem que querer, estar motivada e consciente do mal que o álcool traz pra sua vida e das perdas que lhe causou.
Quando um homem ama uma mulher SINOPSE
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O Filme Quando um homem ama uma mulher, dirigido por Luis Mandoki, conta a história de uma família que teve sua relação abalada pelo vício do álcool. Alice Green, personagem interpretada pela atriz Meg Ryan, torna-se uma alcoólatra quando começa a reviver alguns traumas do seu passado. Bebendo cada vez mais, Alice resolve enfrentar o problema buscando ajuda e sendo internada para tratamento. Como conseqüência, desta dependência química, o seu casamento com Michael Green, estrelado por Andy Garcia, corre o risco de terminar e sua relação com as filhas Jéssica Green, por Tina Majorino, e Casey Green, por Mae Whitman, são atingidas profundamente. Mas Alice com o apoio e amor do seu marido alcança a recuperação e salva o seu casamento e seu relacionamento com as filhas.
Entre as perdas, as mais importantes e as primeiras a ocorrer, segundo Eva, é a dignidade e o amor próprio, e também as mais difíceis de se recuperar. Segundo Bete a vontade de recuperação partiu dela mesma, pois não queria agradar ninguém e sim a si própria. “Você tem que ser você mesma”, enfatiza. “Alcoólicos Anônimos é uma irmandade de homens e mulheres que compartilham entre si suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo”, esta é a autodefinição encontrada em todos os materiais distribuídos pelos integrantes da irmandade em suas reuniões aos iniciantes, visitantes e familiares. Bete e Eva duas mulheres em comum por terem sido vítimas da doença social gerada pelo alcoolismo e com uma mensagem de vida que vale para todas as pessoas que vivem atualmente o mesmo problema sofrido por elas: De que vale a pena viver longe de bebidas alcoólicas. “Ás vezes você está rodeada de gente e se sente sozinha, e é assim que eu me sentia. Hoje, mesmo sem meu marido, que já faleceu há sete anos e morando sozinha, em nenhum momento sinto solidão. Hoje tenho outra vida, pois não sou mais dependente”, conclui Bete. Também para Eva o fim do alcoolismo foi o início de uma nova vida. Ela voltou a estudar e concluiu o ensino médio, cuida dos negócios e de si própria, “me tornei bastante humilde, coerente na tomada de atitudes, a enfrentar os problemas e resolvê-los, conversar com Deus de manhã e à noite, resgatei minha identidade que tinha perdido”, declara. Eva finaliza dizendo ser uma “pessoa livre, de preconceitos, traumas e prisões que eu mesma tinha criado, procuro ser feliz a meu modo e descobri que não precisa muita coisa pra conseguir isso”. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Homens por natureza, femininos por opção, homossexuais no mercado sexual lidam com o preconceito de uma sociedade despreparada para conceber diferenças TEXTO
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GLÁUCIA CIVA
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LETÍCIA MACHADO | FOTOS
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ANA FORTES | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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reconceito, violência, constrangimento, vício, degradação. Nem tudo é lilás no mundo homossexual. Nos pontos de rua, em boates do gênero, a domicílio, a prostituição tornou-se parte da rotina dos grandes centros urbanos, uma constante no âmago de uma sociedade ainda despreparada para vivê-la. Em Porto Alegre, em ruas como a Farrapos, a Câncio Gomes, a Assis Brasil, o Parque Farroupilha, a Voluntários da Pátria, homens trajados de mulher povoam o cenário, movimentando a indústria do sexo. Entretanto, poucas pessoas sabem das peculiaridades deste conturbado meio, como, por exemplo, a diferenciação entre transexuais, travestis e go go boys. Normalmente generalizadas pelo termo “homossexual”, estas três classes possuem características distintas. Transexuais e travestis são transgêneros, ou seja, promovem uma mudança de gênero (masculino para feminino). Entre os dois, a diferença está em que o travesti somente se veste e se porta como mulher, enquanto o transexual submete-se a uma cirurgia para modificar a genitália. Já os chamados go go boys são garotos de programa que, ainda que não sejam homossexuais, mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Contudo, membros de todas as classes comungam das mesmas dificuldades. Para um travesti, um transex ou um go go boy, o preconceito e a violência são dolorosos recortes da realidade diária. “Há alguns anos, trabalhando em um ponto, quando chegava a polícia, ou tu corrias, ou apanhavas. Hoje, a violência física diminuiu, mas a violência moral ainda é inerente “, lamenta Cassandra Fontoura, coordenadora da Igualdade – Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul. À frente do movimento desde maio de 1999, Cassandra trabalha em prol da legitimidade e defesa de uma classe que, embora bastante presente, não goza de espaço ativo na sociedade. No trabalho com a Igualdade, busca resgatar a dignidade dos participantes, dando-lhes noções de saúde, organização familiar, cidadania e outros valores dificilmente recorrentes em seu cotidiano. “As meninas fazem parte da cidade. Somos cidadãs”, enfatiza. Bem resolvida, Cassandra sabe perfeitamente aplicar os valores que ensina. Morando com a mãe, divide a ca-
sa com o companheiro, com quem mantém uma união estável desde 2003 – segundo ela, uma coisa incomum no meio homossexual. Travesti desde a década de 80, abandonou a prostituição há alguns anos, dedicando-se inteiramente à luta pelos direitos da categoria. Questionada sobre a transexualidade, ela descarta a hipótese de submeter-se a uma cirurgia de mudança de sexo. Para Cassandra, a operação significaria nada mais que a perda de um órgão fundamental para o prazer. Na mesma linha de pensamento, a travesti Renata, que expõe seu trabalho em um site e faz programas em casa, declara que não acredita em satisfação sexual após a cirurgia. Além disso, não vê vantagens no processo operatório: “Mesmo operado, tu nunca vais ser uma mulher”. Renata diz que sua opção sexual vem de berço. “Sempre me comportei como menina. Na infância, não queria ser amiga dos gurizinhos, queria era namorá-los”, afirma. Apesar disso, admite que levou anos para assumir-se junto à família.“Comecei a me travestir mais tarde, quando já trabalhava em um salão de beleza. Arrumava meninas que trabalhavam na noite e percebi que ganhavam bem mais do que eu. Depois de um tempo, decidi fazer como elas e fui trabalhar na rua. Mais tarde, passei a atender em casa. Hoje, quase não faço rua.” Segura, Renata afirma não ter problemas familiares. Segundo membro de uma família de quatro irmãos homens, nunca foi reprimida por qualquer um deles. Entretanto, ao assumir-se plenamente como travesti, teve de fazer uma dolorosa opção: abster-se do convívio familiar, que confessa ser uma de suas paixões. “Tive de me afastar, porque são estilos de vida completamente diferentes. Ainda nos reunimos, mas somente em datas festivas.” Quanto ao preconceito, Renata desabafa: “A sociedade é muito preconceituosa. Geralmente, o que mais te discrimina é aquele que te paga por um programa na noite”. Ela afirma que uma das causas que adiou sua decisão por travestir-se abertamente foi a discriminação. “Não virei travesti antes porque queria estudar, trabalhar. Não poderia fazer isso se tivesse me assumido muito cedo, pois a sociedade não nos aceita.” As histórias de Renata mostram que o preconceito, a violência moral, estão presentes em situações das mais
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Party Monster
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O filme, dos diretores Fenton Bailey e Randy Barbato (EUA), narra a trajetória de ascensão, fama e decadência do produtor clubber Michael Alig, vivido por Mackaullay Culkin. Criança tímida, Alig cresce e se torna ávido por projeção, torPrimeira Impressão | Julho de 2005 |
nando-se um dos expoentes da cena eletrônica gay de Nova York. Entretanto, o sucesso não lhe traz somente realização: incorre em sua autodestruição, através de um caminho de promiscuidade, drogas, violência e acessos de luxúria. Party
Monster é uma sinopse da explosão dos grandes grupos gays nova-yorkinos nas décadas de 80-90, uma viagem ao underground da vida e do trabalho na noite, onde nem tudo são luzes, cores e glamour.
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Realidade: a travesti Renata diz que aqueles que pagam os programas são os mais preconceituosos
banais. Segundo ela, mesmo vendo sua imagem feminina, geralmente as pessoas a chamam, pejorativamente, por “ele”. Nas ruas, os xingamentos são corriqueiros. “Uma vez um homem berrou que eu fosse vestir cuecas.” Incisiva, conta como reagiu: “Levantei meu vestido e perguntei: tu achas que eu ficaria bem de cueca?”. Entretanto, a incompreensão da sociedade não a desanima. Para Renata, seu trabalho é prazeroso e a realiza. Além do preconceito, as drogas são outro mal que assola o mundo homossexual. Segundo Renata, a maioria dos travestis e transexuais que conhece são drogados. O go go boy Andreo Alex, contratado de uma renomada casa noturna de Porto Alegre, reforça: “Rola muita pedra. Muitos fazem programas baratos, só para sustentar o vício”. Geralmente ligado aos tóxicos, há ainda o problema da Aids. “Viciados, os garotos transam sem camisinha, porque tem cliente que paga mais por isso”. Ex-usuária de loló, a travesti Luana morou durante dois anos nas ruas da capital gaúcha. Natural do Piauí, enfrentou desavenças em casa, trocando Teresina por São Paulo ainda criança. Nesta cidade, morou com uma tia que tentava forçar-lhe a ter um comportamento masculino, o que obrigou-a a fugir para Brasília. Da capital federal, voltou para São Paulo, sendo expulsa por uma prima e um tio que não aceitavam sua postura. Acabou se mudando para Porto Alegre.
Ao tratar de violência, Luana, que faz programas no Parque Farroupilha, sabe bem do que fala: “Já levei vários socos e pontapés de clientes que não queriam pagar o programa”. Ela acumula ainda outras más experiências. Quando morou nas ruas de Porto Alegre, convivia com um grupo de adolescentes, com os quais admite ter tido que manter relações sexuais, várias vezes, para garantir a própria segurança. Luana se autodefine como uma pessoa “muito sozinha”. Usuária de anti-depressivos, lamenta a falta de confiança entre os colegas de profissão e amargura-se ao fazer um mea culpa: “Tenho muitos problemas, mas eu mesma sou a culpada deles”. Há 20 anos longe da família, a piauiense sonha construir um lar. Depois de três romances fracassados, almeja ainda o grande amor: “Fantasio um príncipe encantado”. Histórias de vida permeadas por dificuldades e pautadas na busca por afirmação, respeito e cidadania. Essa é a noite homossexual, uma vitrine de pessoas que, pela intolerância da sociedade, acabam marginalizadas, afanadas de seus próprios direitos. Na busca constante por respeito à dignidade, um brado contra a repulsa social, como o expressado por Renata, em um rompante de indignação: “Eu não quero que as pessoas me gostem. Quero só que me respeitem”. | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Figurino extravagante, maquiagem exagerada e bom humor fazem de TEXTO |96|
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JÉSSICA FEITEN
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LUCIANE RAMOS
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drag queens e transformistas, como Luciane e Dandara, divas da noite FOTOS
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las mais parecem estrelas hollywoodianas, envoltas em um ambiente de brilho e glamour. Sua presença garante diversão e muitas risadas em qualquer festa, o que faz das drag queens personagens carismáticos que conquistam a simpatia do público. Chamativas e falantes, roubam a cena ao interpretar artistas famosas e fazer performances mirabolantes. Por serem freqüentemente associadas a um clima de brincadeira, em que as pessoas estão mais descontraídas, as drag queens têm mais aceitação e não são vítimas de tanto preconceito como os homossexuais. Isso se explica pelas fantasias usadas nos shows, que fazem uma caricatura do sexo feminino e, muitas vezes, homenageiam grandes personalidades dos palcos. Assim como as drag queens, os transformistas se apresentam com roupas e adereços femininos, mas a diferença está na forma satírica e extravagante com que as drags fazem seus shows. Enquanto elas focalizam o humor e o exagero, os transformistas são movidos por questões artísticas, cuja atividade profissional está necessariamente ligada ao espetáculo. Assim, o transformista busca representar o artista pela caracterização, enquanto a drag queen se aproxima do caricato. Admirada e aplaudida na noite gaúcha, Dandara Rangel conquistou fama dublando a cantora Alcione. Há 22 anos ela se apresenta em casas noturnas e participa de festas e eventos por todo o Estado, além de outras cidades do sul e sudeste do País. Seus shows provocam histeria na platéia, seja pela seleção das músicas, pela performance no palco ou pelo humor escrachado de suas histórias. A “Marrom dos Pampas” também faz números cômicos, em que satiriza personalidades da tevê, da música e do cinema, com interpretações inusitadas e hilárias. Em Porto Alegre, Dandara costuma se apresentar no Venezianos Pub Café, em parceria com Laurita Leão, vivida pelo ator Lauro Ra-
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malho. Ela ainda faz shows no Vitraux Club, Azul Carbono e Eróticos Vídeos, entre outros. “Eu viajo muito para fora, apresento shows em saunas. Ou seja, se chamar, eu vou. Sempre digo que eu animo de missa de sétimo dia a batizado”, comenta. Além das casas noturnas, onde se apresenta de terças a domingos, o transformista Jair Rangel - criador de Dandara - também é ator e participa de diversas peças teatrais no Rio Grande do Sul. Ele consegue conciliar as duas atividades, porque os horários não coincidem, o que lhe possibilita desenvolver mais de um trabalho ao mesmo tempo. Como Dandara, ele levou o Prêmio Açorianos 2004 de Melhor Ator Coadjuvante pela peça Bonecas à Beira de um Ataque de Risos, que dividiu com Mauro Soares, de Antígona. “Foi a primeira vez na história do prêmio: um homem concorrendo à categoria masculina com um nome feminino. Quebrou um tabu no teatro. Foi uma virada para Porto Alegre”, comemora. Aos 40 anos, no auge da carreira, Dandara só lamenta não ter o mesmo vigor físico da juventude. “Isso de idade eu nunca tive. Claro que hoje em dia você sente as conseqüências e não tem a mesma agilidade que aos 20. Há números musicais que eu fazia e hoje já não faço, como Brasileirinho, da Baby Consuelo, que eu dançava horrores! No dia em que fizer aquilo de novo, pode chamar uma ambulância e deixar na porta da boate!”, brinca. Apreciadora dos clássicos e de boas cantoras, ela diz ser fã de Alcione, Maria Bethânia, Sandra de Sá e Diana Ross. Seu trabalho não segue modismos, embora tenha confessado que Gretchen, Tiazinha e Egüinha Pocotó já fizeram parte de seu repertório. Dandara critica a falta de glamour na noite, devido à popularização das drag queens. “Hoje em dia, ser drag é moda. Todo mundo quer ser drag. O que me decepciona na noite é que há muita coisa ruim. O glamour acabou. Hoje elas acham que um saco plástico é moda e du-
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Priscilla, a rainha do deserto
blam músicas que nem sabem o que estão dizendo. Elas batem peruca para um lado e para o outro. É uma coisa cansativa”, justifica. Dandara acredita que as pessoas gostam de ver coisas bonitas e diz que o seu público é muito exigente. Por isso, se preocupa com a aparência e procura usar um bom sapato e um bom vestido, além da maquiagem, que deve ser impecável. Essa produção, aliada ao talento, faz de Dandara Rangel uma pessoa de muito carisma entre os espectadores, o que lhe rendeu até uma comunidade no Orkut - Eu Amo Dandara Rangel. Bem-humorada, faz piada de tudo, inclusive de si mesma: “Eu tiro partido de mim, da minha gordura, da minha cor da pele, até mesmo dos meus casos fracassados”, diz. O jeito divertido e expansivo de Dandara não é uma regra no mundo das drags. Ao conversar com o tímido florista Luis Carlos Dias, 38 anos, impossível imaginar a alegria que transmite com sua personagem Luciane Felippe. Desde criança, Luis era fascinado pelo colorido e pela beleza das flores. Não demorou para fazer dessa paixão sua profissão. “Desde os 12 anos trabalho com flores. Aprendi tudo sozinho, de tanto que gostava”, recorda. Hoje ele é um decorador reconhecido em São Leopoldo, onde tem um atelier e produz a decoração natural de eventos, desde o salão da festa até o buquê de noiva e enfeites para o cabelo. Mas a personalidade mais introvertida do florista desaparece quando ele se transforma em Luciane Felippe, uma drag queen de muitos figurinos. “Eu mesmo idealizo minha roupas e produções”, orgulha-se. Como tem uma profissão que lhe permite um bom rendimento, o glamour da personagem que interpreta é apenas um hobby, um prazer. “Faço porque gosto, não ganho dinheiro com isso”, afirma. Luis lembra do dia em que se viu “mulher” pela primeira vez. “Eu tinha 18 anos, mas naquela época era uma produção mais para a figura da mulher mes-
As drag queens Mitzi (Hugo Weaving), Felicia (Guy Pearce) e a transexual Bernadette (Terence Stamp) partem pelo deserto da Austrália, a bordo do ônibus Priscilla, para fazer um show em um hotel em Alice Springs. Na viagem, vivem as aventuras mais inusitadas e se deparam com pessoas e lugares exóticos. Em produções alegres e coloridas, elas divertem o público e fazem deboche do preconceito. Destaque para a trilha sonora, que dá o tom ideal aos momentos mais introspectivos do trio e às animadas performances que marcam Priscilla, A Rainha do Deserto na história do cinema.
mo, algo mais discreto, sem os exageros de uma drag”, explica. “Me senti o máximo, não parei mais!” Ele conta que, desde pequeno, brincar com carrinhos - passatempo favorito dos meninos da sua idade não atraía sua atenção. “Gostava mesmo era de vestir as roupas e os saltos altos da minha mãe. Adorava ficar me olhando no espelho vestido assim”, revela ele, que teve apenas o apoio da mãe em todos os aspectos de sua vida. Além de fazer shows, Luciane é vitoriosa em diversos concursos de beleza para drag queens. Durante quatro anos consecutivos, foi eleita a mais bela drag de Novo Hamburgo, dentre outros títulos que conquistou. As apresentações que mais gosta de fazer são as que acontecem em boates heterossexuais. “Acho que nesses ambientes somos mais valorizadas”, avalia. “Precisa ver: a reação do público é tudo! Eles gritam, aplaudem”, emociona-se. Ela diz que as mulheres são suas maiores fãs. “Elas ficam enlouquecidas quando me vêem de drag. É tudo que elas adoram, só que mil vezes mais exagerado: salto altíssimo, longos cílios postiços e muita maquiagem”, diverte-se. Momentos engraçados também aconteceram durante os dois anos e meio em que trabalhou com mensagens ao vivo. “Tinha os que nos adoravam e faziam a festa, e aqueles que morriam de vergonha!”, entrega. Como as drag queens de Priscilla, a rainha do deserto, essas personagens fascinam e transformam pequenos momentos em grandes comemorações. Sua presença nunca passa despercebida, e a reação das pessoas é um misto de surpresa, receio, alegria e encantamento. Pelo caminho, conquistam fãs e vivem histórias de morrer de rir - até mesmo os episódios de preconceito viram motivo de piada para elas. O palco é o seu local preferido, a alegria do público é a sua recompensa. Na hora da festa, elas dão um show! | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Rosas, plumas e afins
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Cada um tem características individuais e estilos diferentes. Mas o que a maioria das pessoas costuma fazer é julgar alguém pela sua “embalagem”. Aline sabe bem o que é isso
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PRISCILA SARAIVA, GRAZIELLE ARAÚJO FOTOS DE PABLO ESCAJEDO
ocê já foi julgado pela aparência? Isso acontece muitas vezes na vida de algumas pessoas pelo modo de falar, de se vestir e de agir. Infelizmente, o preconceito existe e convive-se com ele diariamente através das mais diversas situações. A expressão “loira burra”, por exemplo, até virou moda e dito popular. Tudo começou em 1993, quando Gabriel Pensador compôs a música Lôraburra. A letra revela o preconceito explícito sobre mulheres loiras, bonitas, que gostam de se vestir bem e estar com a aparência impecável. Trechos da música mostram claramente o julgamento antecipado que se faz à essas mulheres: “Produzidas com roupinhas da estação, que viram no anúncio da televisão. Milhões de pessoas transitam pelas ruas, mas conhecemos facilmente esse tipo de perua, bundinha empinada pra mostrar que é bonita e a cabeça parafinada pra ficar igual paquita”.
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LUANA NONDILLO
Depois do lançamento deste Cd, a música virou mania e, até hoje, depois de 12 anos, as loiras ficaram taxadas como burras pela sociedade. Embora algumas pessoas digam que falam isso apenas de brincadeira, muitos buscam inspiração na música para expressar sua real opinião e julgar alguém pela cor do cabelo, pelo tipo físico ou apenas por seus gostos particulares de se vestir e de utilizar certos acessórios, que são considerados fúteis pela sociedade. Loira, perfumada, extremamente bem vestida, com tudo combinando, unhas sempre feitas, salto alto, bico fino, plumas, brilhos, rosa na roupa, no sapato, na bolsa e no caderno: esta é Aline Ribeiro, 24 anos, estudante do 9º semestre de Direito da Unisinos. Ela diz que, inúmeras vezes, já foi subestimada pela sua aparência e pelo seu jeito de ser. Afirma que em muitos trabalhos para a faculdade sentiu um certo preconceito
das pessoas por pensarem que estaria mais preocupada com a cor da folha e da caneta que fosse usar, do que propriamente interessada no conteúdo. No entanto, quem diversas vezes acabava fazendo o trabalho era ela. E na maioria das vezes se saía muito bem. Aline nunca sentiu vergonha de ser assim: “Não vim ao mundo para agradar ninguém, vim a passeio”. A estudante revela que muita gente olhou atravessado para ela quando começou a fazer estágio. “No início, é sempre estranho, as pessoas acham que uma garota 'assim' deve ser, no mínimo, um tanto burra, ainda mais por ser loira. Mas eles acabam me conhecendo e essa idéia logo passa. Com o tempo, as pessoas se acostumam, me conhecem e vêem que sou uma pessoa normal”, brinca. Aline diz que já está acostumada com o preconceito. “A primeira impressão faz, muitas vezes, a gente ter um juízo errado e precipi| Julho de 2005 | Primeira Impressão
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Legalmente loira SINOPSE
tado das pessoas”, completa. A estudante fala que hoje, em seu trabalho no Escritório Milman Advogados Associados, os colegas gostam muito dela e a tratam superbem, não subestimando mais sua capacidade pelo seu jeito de se vestir e andar. “Minha mesa é completamente rosa, com direito a plumas e bilhetinhos rosas de coração”, revela. Mesa rosa, lixo rosa, porta-retrato de plumas e brilhos, papéis para recado com cheirinho e cheio de desenhos e corações. Isso, naturalmente, causa uma certa estranheza nos olhos alheios por não ser algo tão normal em um ambiente de trabalho, ainda mais por se tratar de uma estagiária de um escritório jurídico e de uma futura advogada. Mas a estudante tem consciência disto: “Acho que a aparência pode atrapalhar um pouco por não transmitir tanta seriedade, porém acredito que existem pessoas que valorizam o meu trabalho e que estão longe de me julgarem por isso. Essas pessoas acabam me dando a oportunidade de mostrar que realmente eu sou competente, e o meu trabalho é reconhecido. Aqueles que me julgam pela aparência acabam dando o braço a torcer”. Aline trabalhou muito tempo fazendo trabalho de rua no escritório, no Foro e no Tribunal. “No início, as pessoas me olhavam estranho, mas hoje, com certeza, no Foro ou no Tribunal acabaram me reconhecendo e, na real, adoram o meu jeito e até fazem comentários carinhosos a meu respeito.” Entre tantas idas à cabeleireira e à manicure para conservar o seu visual fashion e mudar a cor do cabelo, a estudante conta que acabou criando laços afetivos com essas profissionais, já que freqüenta o salão de beleza duas vezes por semana. “Falo muito, adoro conversar e sempre acabo contando a minha vida para a minha manicure e para a minha cabeleireira. Peço conselhos enquanto espero que as minhas unhas fiquem prontas ou que os meus cabelos fiquem lisos e bonitos”, comenta. Aline diz que, como sua manicure e sua cabeleireira são as mes-
O filme retrata a vida de uma garota que tem tudo. Elle Woods, interpretada por Reese Whiterspoon, namora o garoto mais bonito de seu colégio, Warner Huntington III (Matthew Davis). A personagem é linda e popular, mas tem um problema que incomoda o namorado: ela é fútil demais! Quando Warner vai estudar Direito na Universidade de Harvard, ele começa a namorar outra garota e decide deixar Elle, que não se dá por vencida e decide estudar a fim de passar no curso de Direito .
mas já há algum tempo, elas sempre acabam palpitando em sua vida. “Eu incomodo muito elas com minhas várias histórias”. Em relação à sua vida afetiva, a estudante revela que nunca perdeu nenhum namorado por usar roupas rosas, extravagantes e chamativas, gostar de plumas e brilhos, cadernos, canetas e bloquinhos infantis. Ela diz que o que a fez perder namorados foi muito mais o que ela é propriamente do que o que ela representa. “Não perdi nenhum namorado pela aparência, até porque hoje em dia acho que os caras tendem a procurar garotas desse tipo. As mulheres independentes, determinadas e, principalmente, inteligentes assustam os homens quando eles percebem que não são fúteis”, opina. Aline nunca precisou fazer esforços e nem tentou provar a nenhum namorado que é capaz, inteligente e que o jeito de gostar de se vestir, de viver e os lugares que freqüenta nada têm a ver com o pensamento equivocado da sociedade quanto à sua inteligência. A estudante é segura e não precisa provar nada a ninguém: “Sou assim, gosto de ser assim. Goste de mim quem quiser e
quem gostar tem que me aceitar”. A psicóloga Regina Lopes, do Núcleo Médico Psicológico de Porto Alegre, explica que na sociedade atual a aparência é tudo, e que as pessoas são bem vistas pelo o que possuem e pelo o que vestem. “Um trabalhador com um fusquinha não é bem visto pelos outros, pois é taxado de mal profissional, que não deve fazer certo seu trabalho, e nem deve ganhar muito dinheiro. Uma pessoa com uma bolsa cara, com uma roupa de marca ou com um carro do ano passa a impressão de ser bem sucedida profissionalmente”, enfatiza. Regina afirma que as pessoas julgam os outros pela aparência por uma questão cultural da sociedade contemporânea que valoriza as pessoas pelo o que têm, pelo o que aparentam ser, e não pelo o que realmente são. A psicóloga salienta ainda que até agora não houve casos de pacientes que sofreram preconceito por terem aparência fútil, mas sim por serem gordos, negros ou muito magros. “Na maioria das vezes, a procura do consultório é por pessoas que passam por problemas emocionais devido a fatores internos, e não externos”. A estudante do oitavo semestre de Publicidade e Propaganda da Unisinos Raquel Arioli, 29 anos, conheceu Aline em 2001, no transporte que elas freqüentavam na ida à faculdade. Raquel afirma que a primeira impressão foi a de que Aline não passava de uma “patricinha” metida e fútil. Com o passar do tempo e a convivência entre as duas, a opinião da futura publicitária mudou completamente. “Hoje percebo como é ruim julgarmos alguém pela aparência. A Aline é exatamente o contrário do que eu achava antes de conhecê-la. Acho o máximo o visual dela, o fato de ser ousada combina com ela”, destaca. Raquel garante que Aline é uma grande amiga e que descobriram que têm muitas coisas em comum. “Não tem quem não se apaixone por ela. Só conhecendo para saber, ela é uma figura!”, conclui.
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Enigmas da humanidade TEXTO
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CATRINE EISINGER, MARCOS PINTOS, RAFAEL BOHRER FOTOS DE PEDRO KARAM
s mistérios apresentados pelos tênues limites entre o natural e o sobrenatural são os que mais intrigam e fascinam. O inexplicável cerca a humanidade desde que o mundo é mundo, muitas vezes apresentando processos que até entendemos sem, entretanto, termos condições para explicar suas causas ou seus elementos geradores. Todos os povos, em todas as épocas, conviveram com estes fenômenos e tentaram explicá-los segundo o contexto cultural de cada época, mas ainda hoje o conhecimento a respeito desses fenômenos é rudimentar. Há eventos que nem aceitamos como reais, mas com o avanço da ciência acabamos por aceitá-los como verdade ou, pelo menos, como sendo até possíveis. Os fenômenos extraordinários da mente têm merecido atenções do mundo científico, para dimensioná-los dentro de uma ordem metodológica de comprovações pelos experimentos. O interesse do homem pelos fenômenos paranormais, como adivinhações, visões, telepatia, clarividência, psicografia, astrologia, horóscopo, feitiços, fatos estes considerados, em geral, como inexplicáveis e até
Os fenômenos fora dos limites da normalidade têm sofrido uma abordagem unilateral: cada cientista, filósofo ou religioso examina-os sob a sua ótica ignorados pela ciência durante muitos séculos, surge a parapsicologia, ciência que estuda os fenômenos considerados incomuns, à margem do normal. As pessoas consideradas paranormais apresentam um dom qualquer que tenta ser explicado por essa ciência. Mover objetos sem tocá-los, ler pensamentos, entortar metais e criar matéria do nada são exemplos mais conhecidos. A parapsicologia refuta totalmente a comunicação com os mortos, analisando, explicando e provando o poder do nosso próprio inconsciente, situação perfeitamente aceita pelo espiritismo. Não raro, pessoas acreditam comunicar-se com espíritos. Os 73
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JORGE GURSKI
anos de Vilma Mercedes Ferreira foram repletos de experiências mediúnicas. Três vezes por ano acredita fazer contatos com mortos. “Os espíritos vêm pedir ajuda ou mandar mensagens e avisos. Esses encontros acontecem através de visões e pensamentos”. Quando isso ocorre, diz sentir uma sensação de curiosidade em saber o que a entidade está querendo. “Não passa disso. Nunca viu alguém levitar, explodir objetos ou mudá-los de lugar”, garante. Na manifestação mediúnica, a ação pertence a uma consciência sem corpo, o espírito. A Igreja Católica não admite a comunicação com mortos. Classifica esse possível contato como “demoníaco”. Para a doutrina espírita este contato é admitido. Todas as pessoas possuem mediunidade em diversos graus de desenvolvimento. É o elo entre o mundo físico e o mundo espiritual, manifestado por fenômenos de efeitos intelectuais, como psicografia, clarividência, clariaudiência. Há igualmente os efeitos físicos, batidas, movimentos de objetos e materializações. Existem muitas formas de expressão mediúnica, aperfeiçoada através do seu exercício. A condição principal é a concentração, que os “médiuns” iniciam o procedi| Julho de 2005 | Primeira Impressão
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| P A R A N O R M A L I D A D E | mento de intermediação. Fenômenos paranormais eram citados como bruxaria há alguns anos. Hoje são estudados pela parapsicologia como processos naturais que a maioria dos homens com um pouco de estudo pode vir a realizar, pois encontram-se latentes em cada um de nós. Segundo o palestrante e realizador de mais de 100 cursos sobre parapsicologia, professor Luiz Carlos Thomas, essa ciência explica todos os fenômenos que o espiritismo e a mediunidade procuram explicar como intervenção dos espíritos, justamente pelo potencial do inconsciente. “É possível fazer um estudo científico e objetivo sobre essas manifestações através do uso de instrumentações, que, em última análise, são produzidos pelo inconsciente”, diz Thomas. A parapsicologia, de modo geral, procura manter-se dentro dos paradigmas convencionais, e considera que todos os fenômenos devem ser pesquisados mesmo que se tenha que modificar os seus métodos de pesquisas: observação, medição e experimentação, os quais sempre serão fundamentais para uma compreensão da realidade dos fatos dentro de uma visão científica. Segundo Thomas, a parapsicologia tem estudado com imparcialidade e seriedade, procurando dos efeitos remontar às causas desses fenômenos, em busca de explicações lógicas e racionais. “O espírito do homem é de uma continuidade tão perfeita, que seríamos ingratos com Deus, com nossa
própria fé, se acreditar que continuaríamos dessa mesma forma, pelo que chamamos de tão perfeito que somos”, define o presidente do Centro Espírita Luz de Esperança, Walter Paraguassu. Segundo ele, pode parecer uma constatação um tanto confusa, mas não é, pelo contrário: a continuidade da evolução, tanto do homem como do próprio planeta, segue um ciclo tão perfeito que não há como crer que essa perfeição seja apenas o próprio homem. Ou melhor, o homem é parte dessa perfeição, mas o que antecede e precede o homem, e une-se ao perfeito, é o próprio espírito. O professor de Aritmética, Astronomia, Magnetismo e criador da Doutrina Espírita, Allan Kardec, define como médium todo aquele que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos. Por Espírito, designa todo o ser inteligente da criação, mesmo que Kardec não possua termos de comparação e utilize uma linguagem “insuficiente”. “O processo efetua-se sempre através do campo mediúnico de um médium. O médium é o intermediário, é o meio, entre o mundo espiritual e nós, da Terra encarnada. Assim é feita a ligação que traz inúmeros contatos entre nós,” afirma Paraguassu. A Bíblia é um livro repleto de fenômenos mediúnicos. A opinião da Igreja Católica sobre os fenômenos paranormais, o teólogo, filósofo e psicólogo, Miguel Ângelo Fernandes, diz que a Igreja, em princípio, rejeita fatos paranormais. “Isso pela quantidade de his-
tórias que nos chegam todos os dias. Há os milagres e há o charlatanismo,” alerta Fernandes. Segundo ele, há muitas coisas entre a imaginação e o real. O Evangelho diz que ninguém vem depois da morte. Para a Igreja Católica, depois da morte a alma será julgada por Deus. Se a pessoa morre, ela gozará da felicidade dos eleitos, caso isso não ocorra, a alma será enviada para o purgatório, onde terminará de se depurar. E aqueles que não aceitam a misericórdia de Deus vão para o inferno. “Porém não sabemos como Deus julga, estamos sobre parâmetros humanos,” salienta Fernandes. O catolicismo admite que existam coisas que não são do cotidiano. Agora como se explicam o alcance de todos esses fenômenos, até onde chegam a uma explicação racional, até onde chega aquilo que se inventa, isso varia de caso para caso. A Igreja Católica diz que há coisas que não se explicam pelas convenções formadas pelo homem. Há pouco mais de um século se iniciaram as pesquisas sérias acerca do assunto, ajudando a afastar, tanto quanto possível, as lendas, superstições e preconceitos que sempre cercaram o fenômeno sobrenatural. A paranormalidade faz parte do dia-a-dia do homem, independentemente de crença, raça, idade, sexo ou posição social. Isso torna tal estudo ainda mais importante e cada vez mais entendido e acessível ao homem comum.
SINOPSE
O sexto sentido
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Um garoto de oito anos Cole Sear é assombrado por um obscuro segredo: ele é visitado por fantasmas. Um indefeso e relutante canal de comunicação com o além, Cole está apavorado pelas ameaçadoras visitas de pessoas que morreram com problemas não resolvidos. Confuso com seus poderes paranormais,
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Cole pede ajuda para o psicólogo infantil Dr. Malcolm Crowe. Assim que o Dr. Crowe tenta encobrir a sinistra verdade sobre as habilidades supernaturais de Cole, a conseqüência, para cliente e terapeuta, é um choque que desperta ambos para algo angustiante - e inexplicável.
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FOTOS PABLO ESCAJEDO E RITA CORONEL
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Sentimentos em trânsito
Vanessa Bueno e Pedro Pereira Escolhemos um tema difícil, porque nem todas as pessoas querem falar sobre suas relações amorosas. Cada comportamento apresentado na reportagem é baseado em uma vivência única, o que dificulta para o especialista falar sobre o tema de uma forma geral. Nélio Tombini, psiquiatra experiente no assunto, soube classificar as relações com a sutileza que o tema exige. Conhecer a história de vida das pessoas e o porquê de seus atos e envolvimentos amorosos foi uma experiência única. Durante o período em que estávamos realizando as entrevistas e procurando as pessoas para ilustrar nossa matéria, podemos conhecer e ter contato com algumas realidades diferentes das nossas, outras nem tanto. Nossas perguntas mexiam com a vaidade e o orgulho das pessoas, que aos poucos se desprendiam de seus personagens e passavam a ser elas mesmas. Em certos momentos, fomos confidentes, as histórias iam surgindo como um desabafo. O resultado é uma matéria enxuta, porém com a consistência necessária para ser lida do início ao fim. (página 06)
Além das limitações Fernanda Souza e Luciene Leszczynski
A maioria dos alunos chega na disciplina Experimental de Jornalismo Gráfico com alguma experiência na área do jornalismo, mas poucos trabalharam com o jornalismo interpretativo, o jornalismo para revista. O desafio começa na pauta. Ninguém nunca foi pauteiro ou editor, mas com a turma toda discutindo o tema de cada um, acho que nada escapou no nosso roteiro inicial. Como num filme, onde muita gente trabalha visando o objetivo final e único, a nossa revista foi ganhando o jeito e a cara |108|
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que ela deveria ter neste semestre. Buscar fontes sem nem mesmo ser um foca, apenas um estudante é um desafio. São desencontros, portas na cara, fontes que não deveriam ser procuradas depois de definido o enfoque que daríamos para o filme que escolhemos. A entrevista com Luciana Scotti foi feita por e-mail. Com ela, não teria outro jeito. Devido as suas limitações físicas e à distância, a internet seria o único meio de fazer a entrevista. E foi surpreendente, mesmo sabendo que ela consegue mover apenas um dedo, todas as solicitações e perguntas feitas foram respondidas de imediato. E isso não é porque a condição em que ela se encontra facilita, não. Luciana tem uma vida ativa, com preocupações, estudos e trabalhos a entregar como qualquer pessoa. Nosso matéria tem dois personagens admiráveis. Embora nunca se deva julgar ninguém, todo mundo faz isso e procuramos mostrar literalmente os dois lados de uma mesma moeda. O que vale mais a pena quando se vive no limite: viver ou morrer? Quem sabe? Tanto a morte como a vida foram bons para os personagens deste pequeno filme que mostramos em nossa reportagem. (página 10)
Sinfonia da realização Marcelo Ricardo Fiori e Jéferson Cristiano Cardoso
Pensávamos inicialmente que a sétima arte seria uma fonte inesgotável para pautas fabulosas. Logo depois nos flagramos que, por ser assim tão vasto, o cinema se revelaria um tema angustiante. Tínhamos muitas idéias. Eram diversos filmes. Qual escolher? Passados mais alguns dias, nova surpresa. Descobrir uma história que se enquadrasse ao filme foi um desafio. Ademais, queríamos um filme que se diferenciasse dos padrões holywoodianos, que enfocasse dramas, emoções, vidas singulares. Por essas razões, optamos
por Shine brilhante. No decorrer das semanas, tivemos o prazer de experimentar o sabor de uma reportagem aprofundada, detalhada, distante daquele jornalismo cotidiano. Entrevistar Édison Cruz significou para nós ir além de apurar dados para um bom texto. Tendo Deus, a família e a música como arrimo, nosso personagem principal da reportagem provou que há obstáculos no caminho para a realização, mas com dedicação e paixão se supera qualquer coisa. (página 13)
É normal ser diferente
Helene Krenzinger otton e Tatiana Schallenberger Quando decidimos relacionar a nossa matéria ao filme Meu nome é Rádio, pensávamos ser bem fácil, pois pensamos na mensagem que o filme trouxe assim que assistimos. Porem, não foi bem assim. Falar sobre deficientes mentais era uma coisa muito delicada e exigiria de nós muita habilidade e experiência. Fomos à luta! Nosso primeiro contato foi com uma Escola de São Leopoldo. Com persistência obtivemos as respostas que queríamos. Fomos muito bem orientadas pela responsável da escola. Com essa oportunidade, era preciso esmiuçar o máximo que podíamos. Sentimos certa dificuldade em contatar o Sine, mas não pensamos duas vezes. Pegamos papel, caneta e gravador e fomos, mais uma vez, a luta! Deparamos-nos com outra realidade.Realidade essa que nos fez repensar em nossos valores. Poucas empresas têm consciência social e dão oportunidade ao deficiente de mostrar seu trabalho. Vê-los sob o ponto de vista de suas limitações é uma injustiça, pois pessoas “normais” são vistas por suas qualificações. Ao fazer esta matéria, percebemos que o portador de deficiência tenta adpatar-se ao mercado, à socie-
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dade, porém estes, não estão muito preparados para recebê-los. (página 16)
Reflexos do preconceito
Anita Thorell e Samuel Bizachi Hoje em dia, a AIDS quase não aparece nos noticiários dos veículos de comunicação de massa. Jornais, revistas, televisão e rádio, todos dão pouquíssima atenção a esta doença. Ao contrário do que ocorria no início dos anos 90, quando o tema ocupava diariamente grandes espaços na imprensa mundial. Era um assunto tão “quente” que chegou a ser mote de alguns filmes de Holywood. O principal deles: Filadélfia. Porém, de lá pra cá, muita coisa mudou. Não existe mais, pelo menos na sociedade brasileira, aquele estereótipo de soropositivo magro, doente, pálido e com feridas na pele. O tratamento para a AIDS e portadores de HIV teve uma evolução significativa. Aquelas pessoas que se cuidam e seguem o tratamento com disciplina podem levar uma vida social e profissional como qualquer outra pessoa que possui alguma doença crônica. E não deveria ser diferente. Mas, infelizmente, a ignorância, o preconceito, o medo irracional e a desinformação, especialmente das altas classes sociais, continuam excluindo os soropositivos da sociedade. Os brasileiros convivem com o HIV e AIDS há cerca de 25 anos e, mesmo com todas as explicações e comprovações científicas veiculadas nas mídias de massa, ainda não sabem lidar com este assunto. Para tentar modificar, pelo menos, um pedacinho deste terrível cenário, resolvemos abordar este tema. E, ao escrever esta reportagem, vimos como o ser humano, mesmo com alto nível intelectual, pode ser ignorante, desinformado e cruel, a ponto de excluir e discriminar alguém. Nada pode ser pior do que a
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morte social e a exclusão. Ainda bem que existem pessoas fortes que lutam pelos seus direitos e os dos outros, como fazem Jaime Berdias, Beatriz Pacheco, Carlos Aleixo e tantos outros brasileiros. Nos sentimos honrados em poder, de alguma forma, colaborar com o trabalho desenvolvido por estas pessoas. E esperamos que a sociedade corrija seus erros o mais breve possível. Pois certas desculpas não podem mais ser aceitas. (página 20)
Passado a limpo Sandro Vinciprova e Vicente Lester
Nossa encolha foi o filme Central do Brasil, no qual tratou das correspondências através das cartas. Primeiramente pensamos focalizar o tema no povo nordestino, mas acreditamos que ficaria muito vago. Então procuramos pessoas que gostassem mesmo de escrever, de se comunicar através delas. Fomos a campo e, conversa daqui, conversa dali, encontramos muitas pessoas que ainda utilizam este meio de correspondência, porém precisávamos escolher alguém que chamasse atenção por sua história de vida. Na biblioteca a procura de dados que embasassem a nossa matéria, encontramos um livro que falava sobre cartas de amor, abrindo e lendo os autores, uma surpresa: eles viviam em São Leopoldo. Na mesma noite marcamos a entrevista. Todas as entrevistas que fizeram parte desta matéria foram agradáveis surpresas quanto às histórias vivenciadas pelos protagonistas das cartas, pessoas que amam a leitura, que adoram escrever e receber respostas. (página 24)
Anos de chumbo Alfeo Pozza Junior e Aline Weschenfelder
Após o tema Cinema e Realidade ter sido escolhido para essa 23ª edição da revista Primeira Impressão, decidimos de imediato es-
crever uma reportagem que retratasse o período da ditadura militar no Brasil. Encaramos o desafio proposto, conscientes de que a tarefa não seria fácil. Escrever sobre um assunto que marcou profundamente a sociedade brasileira, e que ainda hoje gera polêmica e contradições, certamente seria algo complexo. Pensamos que a maior dificuldade estaria em conseguir fontes que pudessem falar acerca das perseguições sofridas no período. Mas, para nossa surpresa, o mais difícil e desgastante foi encontrar historiadores que pudessem dar um parecer técnico sobre o assunto. Nas entrevistas, sentimos a amargura do ex-marinheiro na luta por um ideal e na vida clandestina que levava dentro do seu próprio país. Também ouvimos o relato de um ex-policial militar, que pôde presenciar e sentir na pele as injustiças cometidas pelo abuso de poder. Com a professora Arlete Arruda, tomamos conhecimento de benefícios e avanços conquistados pelo país naqueles anos de chumbo. Aos poucos fomos desvendando a história daquele período, 41 anos após o golpe. (página 29)
Além do consultório Atila Pereira, Luciano Nagel e Silvana Schimidt
Fazer uma matéria sobre comportamento é sempre interessante, pois estamos falando e pesquisando sobre um assunto que diz respeito a todos! O filme o qual trabalhamos é muito divertido, mas ao mesmo tempo, profundo. A oportunidade de ter feito uma entrevista com alguém da área de psicologia que fez uma análise do personagem e da situação do filme transforma todo um pensamento e uma viagem cinematográfica em acontecimentos reais. A entrevista com a psicóloga Simone foi um pouco diferente, pois tivemos que ir à sua residência pois ela se encontrava de repouso médico. Descobrimos que pessoas que procu| Julho de 2005 | Primeira Impressão
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| I M P R E S S Õ E S ram seus terapeutas fora de hora não são mais tratadas como loucas. No terraço de seu apartamento, a entrevista se desenrolava normalmente, quando a psicóloga teve que dar uma pausa pois seu filho lhe chamava. Realizar entrevista com o psiquiatra foi fácil. Liguei para um que atualmente mora no Rio mas que estava vindo de férias aqui para o Sul. Ele é gaúcho e veio visitar sua família na capital. A entrevista foi concedida em sua casa mesmo. Num bate-papo descontraído e, numa tarde, fechamos a matéria. (página 33)
Para ser Pelé... Daniel Oliveira e Fabiano Baldasso
O tema futebol foi escolhido pela dupla por fazer parte do dia a dia de ambos. Conviver com esse esporte faz com que tenhamos contato com todas as situações que ele apresenta. De fora, a impressão sempre é de um mundo mágico de sucesso e dinheiro. Realmente para alguns isso acontece. Para poucos. As histórias de fracassos e má administração de carreira são infinitamente mais numerosas que o contrário. É gratificante ter tido a pretensão de tentar mostrar que, como em qualquer outra profissão, vencem os competentes e, principalmente, os profissionais. Os casos de limitados, porém esforçados, que deram certo, acontecem na mesma proporção do que os dos muito talentosos, porém maus profissionais, que se perderam no caminho. Mesmo com a experiência que temos, foi muito curioso, numa mesma tarde, entrevistar o Tinga com seu carrão e vários celulares, e encontrar o Claudiomiro, um dos maiores centroavantes do Inter de todos os tempos, trabalhando na recepção do departamento consular do clube para garantir o seu ganha pão. O que fica desta matéria é que o mundo do futebol, em sua es|110|
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sência, não é muito diferente do que qualquer outra profissão. Talvez a fama diferencie, mas a necessidade de muita competência e, acima de tudo, esforço para vencer é mesma que em qualquer outro âmbito profissional. (página 36)
Somos todos Iguais? André Aguirre e Fernanda Hespanhol
No início tínhamos dúvidas: dentre tantos temas de filmes disponíveis para a realização do trabalho, qual escolher? Ou melhor, qual filme que além de abordar um tema rico para pautar a nossa reportagem, ainda nos permitiria achar fontes que na vida real tivessem vivido algo parecido? Na realidade, não tínhamos certeza se conseguiríamos cumprir nossa tarefa. Porém, a curiosidade em desvendar como é a vida de um superdotado fez com que nossa escolha recaísse sobre o filme “Mentes que brilham”, que aborda a vida de um menino com altas habilidades. Incrivelmente, conseguimos na primeira semana todas as fontes necessárias. Nem acreditamos! Tivemos muita sorte em encontrar as fontes certas, que, além de possuírem um vasto conhecimento sobre o assunto, se mostraram muito generosas em repartir suas vivências conosco. Se conseguirmos passar ao leitor pelo menos metade do conhecimento que adquirimos, já teremos atingido nosso objetivo: o de informar às pessoas e contribuir com a desmistificação do tema. (página 39)
Fascínio pelos livros Cleo Meurer e Eliseu Demari
Após alguns contatos telefônicos, fomos para Morro Reuter em um sábado, pela manhã, já conhecendo a fama do lugar em relação ao gosto pela leitura. Por coincidência, naquele final de semana, havia uma grande programação
por lá, comemorando mais um aniversário de emancipação política do município. No caminho que percorremos para chegar à cidade, ficamos impressionados com os belos plátanos e suas folhas avermelhando naquele início de outono - folhas essas que acabaram nos acompanhando pelo restante do dia, já que estão na logotipia oficial em placas, coletores, paradas de ônibus... Fomos muito bem recebidos por todas as pessoas às quais precisávamos entrevistar e, aos poucos, passamos a conhecer e entender Morro Reuter e como o município e a comunidade de lá são um exemplo para um país em que o hábito da leitura está um tanto esquecido. Sentimos, também, uma grande responsabilidade em descrever um esforço conjunto que tem formidável resultado, escrever sobre a terra dos livros, escrever para quem sabe e gosta muito de ler. (página 42)
Tempo é vida Tiago Schmitz e Chico Silva
A sensação de estar vivendo a realidade de um filme nem sempre é possível, mas no caso de Vivendo no limite, para nós, era nítida a semelhança entre os problemas enfrentados na ficção e a realidade do pessoal do Samu. A idéia de entrar numa ambulância em busca de um ferido grave, nos causou, diversas vezes, arrepio. Passar duas madrugadas em um hospital de pronto-socorro não foi tarefa fácil. O sono que insistia em chegar, o café preto que não ajudava muito e o medo de acompanhar a ambulância eram constantes. Quando o rádio chamava a equipe, saíamos correndo para chegar até o veículo e amarrávamos bem o cinto. As mãos grudadas nele e o clima sempre tenso. Mas o mais impressionante foi conhecer pessoas fantásticas que prestam um atendimento primordial em prol da vida de todos nós. Eles, literalmente, deixam seus problemas em casa, esquecem da própria saúde e, du-
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ANA FORTES
Tiago
rante os plantões, só pensam em salvar vidas: nossas vidas. O filme nos deixa chocados pela rotina e incapacidade dos personagens de mudarem o caos social. A realidade nos mostrou pessoas motivadas, que tentam superar a cada dia a rotina de lidar com a morte. (página 46)
Sinais da Terra
Leonardo Flores Redaelli e Cristiano Zanella Como será o amanhã? Responda quem souber! Nosso destino... será como Deus quiser! As modificações climáticas que a Terra vem sofrendo nos últimos anos são um tema bastante recorrente nos meios de comunicação e em debates em geral. Secas, furacões, enchentes, tsunamis, frio no verão, calor no inverno, etc. O dia depois de amanhã é sem dúvida um filme em total sintonia com a instabilidade climática vigente em muitos pontos do planeta. Visando estabelecer relações com a realidade, buscamos opiniões de três especialistas no assunto: Delton de Carvalho (advogado especialista em causas ambientais), Eugenio Hackbart (meteorologista) e Marco Hansen (geólogo). Nas primeiras semanas, era muito de tudo: reuniões adiadas, entrevistas não marcadas, autorizações não assinadas! Ao final,
Chico
acreditamos que a matéria ficou um tanto menos intempestiva que o atual clima na Terra, apesar das dificuldades enfrentadas na sua concepção! O destaque fica por conta do precioso depoimento de Eugenio Hackbart, o Professor Eugenio, um dos mais respeitados meteorologistas do estado. A foto que ilustra a matéria são de autoria de Leonardo Redaelli, e foram feitas com uma câmera Minolta Maxxum 600SI e lente 28-80mm e filme Kodacolor 400. (página 51)
Ondas solidárias
Cristiano Borba e Tiago Gamba A nossa experiência foi muito válida ao conhecermos uma Rádio Comunitária. Não tínhamos nenhuma idéia a respeito, nem conhecimento do assunto. Não sabíamos como era o funcionamento nem as regras das rádios comunitárias. Ficamos umas duas horas no local, conhecemos o ambiente, as suas instalações e a força de vontade do diretor da mesma, que, com poucos recursos e materiais precários, consegue manter uma rádio no ar, em prol da comunidade. Entrevistamos o diretor Roberto Gross e alguns ouvintes. Fica claro o contentamento de ambas as partes. Povo por receber um assessoramento
por parte da Rádio e da Rádio por poder ajudar a comunidade em todas as suas precariedades. O bairro onde se localiza a Rádio é um bairro humilde e que certamente necessita de amparos por parte da prefeitura. Este é o papel desta rádio. Ajudar a passar para os governantes as suas dificuldades, do povo e do bairro. Usamos papel e caneta para a entrevista, além de um gravador e perguntas que nos esclarecessem o ideal de uma rádio de comunidade. Concluímos que uma rádio comunitária é de extrema importância e que todas as comunidades deviam ter a sua. (página 55)
Fome de viver
Anderson Hartmann e Danielle Titton Vivos. Filme que alguns viram, outros desistiram por medo e outros ainda nem se arriscaram. Sempre tivemos curiosidade em conhecer mais sobre o acidente. Agora, conversar com sobreviventes, essa foi nossa maior vitória. Nos focamos na tragédia: 72 dias perdidos na neve dos Andes e a imposta escolha do canibalismo. Remexer nesta tragédia nos causou medo em alguns momentos (a empatia talvez seja uma característica imprescindível àqueles que buscam a excelência no que fazem). Detalhes mórbidos como comer miolos podres, pulmões, usar ossos como talheres, crânios como pratos, nos impressionou, além dos critérios afetivos na hora da fome: o que e quem comer primeiro. Impressionante, mas não foi tudo. Depois do trauma, a palavra. Mangino e Coche, nossa dupla de entrevistados, viaja pelo mundo ministrando palestras de motivação e estímulo a executivos de multinacionais. Enquanto os últimos retoques estavam sendo dados à nossa matéria, eles estavam no México em mais um desses encontros. A didática adquirida por eles nas conferências e os anos vividos no Brasil facilitaram nosso | Julho de 2005 | Primeira Impressão
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| I M P R E S S Õ E S trabalho. Mas o melhor de nossos entrevistados é que tratam a tragédia como um capítulo da novela das oito de ontem. (página 58)
Loucuras
Débora Rabelo e Lenise Rodrigues Este trabalho com certeza foi o mais difícil de realizar. Mesmo assim, foi o mais prazeroso de toda a faculdade. Porque independente dos gostos de cada um, quando você lida com o lado emocional descobre coisas surpreendentes. Passamos quase dois meses tentando conseguir uma entrevista qualquer sem compromisso de algum médico, enfermeira ou algum grupo que fizesse trabalho voluntário. Conseguimos falar com a Irmã Regina, pedagoga do colégio Santa Catarina. Ela coordena o grupo Amigos da Alegria de Novo Hamburgo. Os alunos foram muito atenciosos e prestativos. Fazemos as visitas todas as segundas-feiras com eles. Os pacientes do Hospital Regina também foram muito receptivos. Em nenhum momento negaram-se em dar entrevistas. Mesmo isolados em camas e quartos do hospital, foram muito atenciosos. Em um certo momento da nossa brincadeira com eles junto com os alunos, chega-
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ram a duvidar que estivéssemos ali a trabalho. Foi muito bom acompanhar os voluntários nas visitas e ver o sorriso no rosto dos pacientes. A dedicação da garotada nos contagiou e fez com que participássemos da brincadeira. Quando entrávamos num quarto, víamos a dor e a tristeza. Ao sair, a alegria e a esperança. Esse tipo de atitude é o tipo da coisa que você percebe que não tem preço. Trabalhar na área da saúde é algo delicado, mas nada se compara a recompensa de uma ação bem sucedida. Agradecemos por sermos futuras jornalistas e podermos desfrutar deste tipo de trabalho. (Página 63)
no, tão pouco da sociedade quando retornaram dos campos de batalha europeus. Muitos não tiveram condições financeiras para reconstituir suas vidas, morrendo como indigentes, sem ao menos uma casa para morar. Chamou-nos a atenção o fato de que os soldados que estavam no Haiti assistiam, durante suas horas de lazer, a filmes de guerra como Falcão negro em Perigo e O resgate do soldado Rayn, mesmo vivenciando no seu dia-a-dia uma missão de paz, que apesar de não ser violenta como uma batalha, não deixa de ser perigoso. Todos os entrevistados afirmaram que os filmes traduzem a realidade das guerras. (página 66)
Luz, câmera, fogo!
Prazer e dor
Rafael Lorenzato e Renata Germano
É triste ouvir de um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial que os pracinhas não receberam nenhum apoio, muito menos treinamento, do governo brasileiro que os enviou para o exterior em uma das guerras mais violentas da humanidade. Muitos nem sabiam o que estava acontecendo e foram totalmente despreparados, encarando a morte de frente. Pior também é saber que eles não obtiveram o merecido reconhecimento - nem do goverPEDRO KARAM
Débora
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Robson Nunes e Filipe Limas Depois de trocarmos a pauta de nossa matéria umas três vezes, finalmente optamos pelo que foi aqui publicado: os bastidores e curiosidades dos filmes pornográficos. As dificuldades que estávamos enfrentando a procura de fontes que pudessem realmente trazer algo útil ao nosso assunto foram grandes, pois a maioria de nossos contatos se recusou a expor suas experiências. Mas, como futuros repórteres, estávamos decididos e continuamos atrás de fontes e dados para podermos relatar sobre o assunto. Encontramos. Em um dia atípico em nossas vidas, fomos até a cidade de São Sebastião do Caí entrevistar uma atriz pornô. Com certeza estávamos um pouco aflitos, pois não sabíamos como seria a reação da entrevistada frente a nossas perguntas e principalmente a nossa reação em frente a uma pessoa a qual só conhecíamos por fotos e filmes. Chegando a humilde casa de Princyany Carvalho, nome artístico de Tatiane da Silva, fomos bem recebidos com o belo sorriso da garota. Ao decorrer da entrevista, a conversa ficou mais
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descontraída e demos boas risadas em algumas ocasiões. Sem problemas de falar sobre a profissão, pudemos conhecer um lado diferente de uma pessoa que sofreu com o preconceito de muitos, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa sobre a vida de uma atriz pornográfica. (página 70)
Uma opção
Cláudia Cambraia e Diana Jardim Como unir cinema com realidade? Principalmente para nós que queríamos temas sociais? Alguns amigos cinéfilos deram dicas. No trem surgiu a idéia: aborto. Só sofremos um pouquinho pra encontrar o filme ideal. Mas acho que conseguimos! Cada história foi uma emoção. Nosso medo, no início, era não encontrar casos interessantes, mas logo descobrimos que todo mundo conhece ou já ouviu falar de alguém que fez aborto. E assim aprendemos que cada um viveu curiosidades inimagináveis. Depois, o médico que parecia ser um profissional apenas para esclarecer algumas dúvidas técnicas acabou se tornando uma história a parte. Ainda precisávamos juntar toda a informação colhida na Internet, em livros e revistas, com os depoimentos. Era tanto conteúdo que poderíamos escrever uma matéria para cada entrevista. E por último, o desafio de unir estilos e idéias diferentes. Duas pessoas escrevendo uma mesma reportagem. Mas sobrevivemos! O pior é que sempre fica um sentimento de que poderíamos ter feito melhor. Coisas da vida! (página 74)
Rotas de liberdade Suzana da Castro e Tariq Saleh
Inveja! Essa é a palavra mais adequada para definir o que sen-
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timos ao fazer uma reportagem sobre pessoas comuns que realizaram viagens pelo continente sul-americano. Mas não uma inveja em seu pior sentido, mas aquela saudável, em que admiramos a realização de uma pessoa e a desejamos para nós também. Conhecer pessoas que, por sua vez, conheceram outras de um continente que carrega uma mística foi incrivelmente libertador (como assim o foi para estas pessoas). Falar com um psicanalista e entender que viagens são rituais de passagem, ou um sociólogo nos dar uma legítima aula de história latino-americana, foi uma bela experiência humana. Nessa busca pela informação, descobrimos o quão tênues são as fronteiras que separam os países da América Latina. Também pudemos ver como é frágil, mas ao mesmo tempo mágica, a vida dos povos latino -americanos. Nos surpreendemos ao ouvir o caro professor Alcido Arnhold dizer que Machu Picchu era apenas um nome qualquer há duas décadas, diferentemente do lugar que atrai turistas de todo o mundo. Tempos de globalização. Como disse Che Guevara, somos um único povo mestiço neste continente. (página 79)
Vício solitário
Elisane Meneghete e Marcele saffi Quando escolhemos o tema do amor do homem que ajuda sua mulher a sair do alcoolismo achamos que seria fácil conseguir pessoas dispostas a falar sobre esse desenrolar tão bonito de uma triste realidade. Mas não foi isso que encontramos no trabalho de campo, pois conseguimos somente duas mulheres que participam dos Alcoólicos Anônimos dispostas a falar e muitas barreiras para tentar conseguir outros depoimentos. A impressão que tivemos é de que o alcoolismo pega as pessoas de sur-
presa, ele não bate na porta. A dependência química é uma doença grave, que mata em todos os sentidos. Ela pode matar por um tempo ou para sempre. As histórias nos deixaram a certeza de que a mudança está dentro de cada um de nós. A confiança em si mesma e em Deus são fatores indispensáveis para qualquer pessoa sair vencedora das situações difíceis da vida. Enfim, o que descobrimos é que apesar de ser um problema visível, ainda é tabu na nossa sociedade, principalmente quando envolve mulheres. (página 86)
Gênero: humano Gláucia Civa e Letícia Machado
Um calhamaço de fitas e papel, quilômetros de ruas percorridas, dezenas de cantadas (umas até consideráveis), litros de café, maços de cigarro e noites e mais noites de sono acumulado: este foi o custo da nossa matéria, Gênero: humano, um relato da prostituição homossexual de Porto Alegre. O custo. O lucro, porém, foi bem maior: as duas curiosas que entraram na pauta com a cara e a coragem, se embrenhando por todos os becos da prostituição da capital, saíram ricas, milionárias, de valores que jamais vão caber em um mero cifrão - noções vivas de persistência, solidariedade, dignidade. Mais do que uma reportagem, uma lição de humanidade em fascículos - um a cada entrevista. A cada história ouvida, uma nova ficha caía sobre a complexidade do ser humano. E, no fim, a conclusão: a sociedade ainda tem muito o que aprender. Das voltas que demos (e não foram poucas) Farrapos afora, noite adentro, tiramos noções do que machuca o preconceito, do que maltrata o desrespeito, do que exclui a falta de compreensão. Olha que a matéria deu trabalho... Foi correria, stress, ma| Julho de 2005 | Julho de 2005
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| I M P R E S S Õ E S drugão, mas aqui ninguém tem do que reclamar: se fosse pra reviver histórias tão marcantes, faríamos tudo de novo. E, no fim, ainda sairíamos pra tomar umazinhas e comemorar com “elas”! (Página 90)
Elas são show! Jéssica Feiten e Luciane Ramos
A nossa decisão sobre o tema que abordaríamos surgiu com a idéia de trazer um colorido à revista, contrastando com a maioria dos temas, mais sérios. Inicialmente, houve um certo receio com relação ao que encontraríamos pela frente. Não sabíamos como eram os lugares onde esses personagens se apresentam e qual seria a reação deles quando abordássemos assuntos mais polêmicos. No primeiro contato com nossas fontes, qualquer pontinha de receio desapareceu e, em seu lugar, muitas gargalhadas. São duas pessoas encantadoras que não têm nada a esconder. Tanto o Luis quanto o Jair são drags por pura paixão. O Luis é florista e o Jair é ator. Os dois são um show à parte, mesmo quando não estão caracterizados como suas personagens glamourosas e divertidas. São pessoas sensíveis e de bem com a vida. Fazem de seus dramas pessoais um motivo para sorrir e aprender. E ensinar... Aprendemos que preconceito ou pré conceito são atitudes abomináveis, pois podem ser empecilho para descobrir grandes seres humanos. (página 94)
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Luana Nondillo, Grazielle Araújo e Priscila Saraiva
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Acreditamos que a que fizemos ficou muito melhor do que a primeira imaginada. Com essa reportagem, conseguimos entender mais sobre a importância da aparência na sociedade em que vivemos. Aquela velha e conhecida frase “As aparências enganam” se encaixa perfeitamente no que procuramos contar. Conhecemos um pouco mais da vida da nossa “personagem da vida real” e aprendemos a valorizar mais as coisas. Tentamos passar aos leitores e até mesmo para nós o fato de aprender a não julgar alguém pela aparência. Aline tem semelhanças físicas com a atriz de Legalmente loira, que assim como no filme, provou ser inteligente e dar valor para outras coisas. Falando um pouco da experiência de escrever... O prazo, as leituras e releituras do texto, as fotos, as entrevistas e muito mais foram ótimas experiências para nós três. A emoção de saber que nosso texto será lido por inúmeras pessoas nos deu mais vontade ainda de tentar deixar tudo perfeito. Com certeza foi uma oportunidade única. Escrevendo a reportagem aprendemos uma lição: não julgar as pessoas pelo estereótipo e sim tentar conhecê-las como são de verdade. (Página 100)
Rosas, plumas e afins
Começamos com uma idéia completamente diferente. Pensamos em fazer outro filme. A pauta falhou. Afinal, numa redação essas coisas acontecem!
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Enigmas da humanidade
Catrine Eisinger, Marcos Pintos, Rafael Bohrer e Jorge Gurski Muitas vezes pensamos que o repórter é um imparcial, um cara que não deve deixar suas opiniões perante os demais. Porém, é notável a qualidade de uma reportagem feita com gosto, por quem gosta do assunto. Não que seja o caso específico da nossa reportagem, mas o nosso próprio caso. Simplesmente gostamos de desenvolvê-la, sobre um assunto com tantas afinidades, o Espiritismo. Primeiramente, o gancho com um filme hollywoodiano que explora o assunto “vida depois da morte”. Não podemos esperar muito, a não ser os chavões que sempre se apresentam nesse gênero cinematográfico. Como, então, desenvolver um assunto como espiritualidade, vida depois da morte e comunicação entre os vivos e os mortos, sem parecer "vago"? Difícil... Só podemos dizer que foi ótimo esse esforço conjunto, na busca de fontes (tanto personagens como as fontes escritas especializadas) fidedignas, fiéis e verdadeiras. Um aprendizado, tanto relacionado à produção da reportagem quanto aos seus propósitos exteriorizados. (página 103) TIAGO COELHO
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