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CARTA AO LEITOR

Mundo, vasto mundo

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: Aloysio Bohnen PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Célio Pedro Wolfarth Ciências da Comunicação COORDENADOR

DO CURSO DE JORNALISMO:

Edelberto Behs

A revista Primeira Impressão é uma publicação da disciplina de Projeto Experimental em Jornalismo Gráfico, do Curso de Jornalismo da Unisinos Entre em Contato: FOTO DE DANIEL MARENCO

TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: primeiraimpressao@icaro.unisinos.br. REDAÇÃO

D

esvelar mundos é preocupação incondicional do jornalismo. O resultado dessa ação traz sentido à prática cotidiana do repórter, dá razão de sua existência no mundo de mediações, de representações, de construções de realidades. É ele quem dá luz ao particular, ao inusitado, ao exótico. Descobre e visibiliza. Foi com esse olhar compromissado, curioso e desbravador que os nossos alunos foram às ruas e trouxeram a público vários mundos. São reportagens instigantes, como a do casal que construiu com as próprias mãos um lar embaixo de uma das pontes próximas à apressada BR-116. E foi ao lado dessa via que nossos repórteres descobriram uma mina de histórias enferrujadas por montanhas de ferros-velhos, sempre vistas de longe por nós. Um enigma pela total falta de informações sobre um cenário cinematográfico a céu aberto. O olhar atento dos repórteres percorreu ambientes quase inexpugnáveis, como os bastidores de uma carceragem em plantão de polícia, o meticuloso trabalho insólito de um perito criminal ou a vida devota de freiras enclausuradas. Desvendou os mistérios da Maçonaria, uma ordem secular, e do Positivismo, com seu instigante templo em Porto Alegre. Penetraram igualmente em mundos tão distantes quanto próximos: o da linguagem, que faz da comunicação um milagre indescritível do ser humano, e o dos perfumes criados para embevecer o outro. E por aí foram. Cada um com a sua experiência, lente que faz enxergar longe e tira das zonas de sombra mundos invisíveis. Boa leitura!

Professores Editores Miro Bacin (mbacin@unisinos.br) Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) Reportagem e Edição Alunos das Turmas 23 e 63 (2006/2) - Aline Priscila Ebert, Aline Stedile Mena, Ana Cristina Knewitz, Andrei de Jesus Fialho, Angela Cabral de Assis Brasil, Caio Francisco Conter Schenini, Camila Zanoelo Soares, Carlos Rollsing Braga, Cíntia Machado, Cláudio Ari Cunha dos Santos, Daiani Ludmila Barth, Daniel Soares Marenco, Débora Regina Ertel, Diana Wilhich Haas, Diego Alegre Capela, Eduardo Vitelo Pereira, Emerson Machado, Ernani Luís Kunst, Estela Maria da Silva, Giovana Rech Godinho, Giulliano Alves Pacheco, Graziela Maria Wolfart, Jacqueline Oliveira da Rosa, Janice Ester Gutjahr, Juliana Broilo, Juliano Filipe Rigatti, Julie Reichert, Lélia Terezinha Pohren, Leonardo Poglia Vidal, Lisie Bastos Venegas, Liza Araujo Rebechi, Marcelo Aita Ost, Marcio Magalhães da Silva, Matheus Ribas da Silva, Melina Mesquita, Michele Fatturi Maciel, Piero Ferreira Barcellos, Renata Osio, Renata Dornelles da Cruz, Renata Vanin, Roberta Camila Perin, Roberto Goldani, Rodrigo de Oliveira, Rodrigo Mallmann, Suellen Machado dos Santos, Tatiana Minussi Lopes, Tatiane Wissmann Dias, Thiago Zenker Ruszkowski, Vanessa Fabiane Fernandes da Silva, Vanessa Porciúncula e Silva e Vinícius Silva. PRODUÇÃO GRÁFICA E EDITORIAL Agência Experimental de Comunicação (AgexCOM) COORDENADORA: Thaís Furtado MONITORIA: alunas Janice Ester Gutjahr (Turma 23) e Renata Dornelles da Cruz (Turma 63). DIAGRAMAÇÃO: estagiárias da Área de Jornalismo Fabíula de Azevedo e Katterina Zandonai, sob orientação do jornalista Marcelo Garcia (projeto gráfico). PRODUÇÃO FOTOGRÁFICA: alunos Caio Schenini, Daniel Marenco, Emerson Machado, Giulliano Alves Pacheco. Alunos do Grupo Khaos: Ana Porto Alegre, Anna Carolina de Oliveira, Daniel Alfaya, Denise Silveira, Guilherme M. Pacheco, Leonardo Remor, Matheus Massochini, Pablo Escajedo, Rafael Rech, Roberta Bueno e Rodrigo Neves. Coordenação do Grupo: professora Jacqueline Joner. IMPRESSÃO: Impressos Portão Publicidade:

Professores editores Miro Bacin Thaís Furtado

Os anúncios publicados nesta edição foram criados pelos alunos Diego Biachi, Fernando Viana e Lisiane Aguiar, da disciplina de Redação Publicitária III, do professor Sérgio Trein, e finalizados pela publicitária Haradia Moraes, da AgexCOM.

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Eu | 06

24 | BR

09 | Budismo

Jesus breve voltará | 27

Hospital Santo Antônio | 12

30 | Perícia

16 | Santo Daime

Casa de Estudantes | 34

Paralisia Cerebral | 20

37 | Sex Shop

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ÍNDICE

Lan House | 40

Kurotel | 80

44 | Exclusão

84 | Surdos

Idiomas | 49

Plantão de polícia | 88

52 | Sonho

92 | Jovens infratores

Câmeras | 55

Abrigos | 96

58 | Positivismo

99 | Língua

Cegos | 62

Nudismo | 102

66 | Perfumes

105 | Astronomia

Clausura | 70 76 | Maçonaria

Impressões de repórter | 108 PRIMEIRA IMPRESSÃO DEZEMBRO/2006

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ocê não me conhece. A verdade é que nem poderia me conhecer, porque eu não existo. Não que eu não exista nesse sentido que você está pensando. Eu não existo enquanto eu. Acho que estou complicando as coisas. Mas, para falar bem a verdade, na vida nada é tão simples. Quer ver? Vou te fazer uma pergunta bem banal: quem é você? Viu só!? Aposto que primeiro você pensou no que poderia dizer sobre si mesmo, algumas qualidades, uns defeitos e pronto. Sem alternativa que respondesse a questão de modo satisfatório, tentou buscar algumas definições formuladas pelos outros sobre sua pessoa, naquilo que sua mãe falava sobre o filhinho preferido, ou no sermão do chefe sobre seu atraso pós-feriado de carnaval, ou no conselho do seu amigo sobre o que você deveria fazer da vida. Sem sucesso, você deve ter recorrido à letra de uma música que uma vez ouviu e pensou "é isso!", ou daquela frase, dita no finalzinho de seu filme predileto, que resume um pouco de sua essência. Por fim, se dá conta que nada disso faz muito sentido e que, na verdade, não sabe bem quem é. Foi essa pergunta que me levou a acreditar que eu não existo. Uma vez me surpreenderam com essa questão e eu percebi que não tinha resposta. Uma parte de mim queria di-

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zer "Prazer, meu nome é Antônio. Sou advogado de sucesso, pai de família, uma pessoa admirada e invejada". A outra insistia para que eu falasse "Eu sou um cara difícil. Acordo todo dia de mau humor e não tenho tempo para nada. Não demonstro meus sentimentos e aceito tudo que os outros dizem ou mandam fazer para não decepcionar ninguém". Para mim, quem é dois, não é ninguém. E aí que me dei conta de que não existo, que não passo de uma farsa que criei, ou que alguém criou pra mim e eu pensei que fosse assim. Eu era invisível, para mim e para os outros. Eu me escondia daqueles que me cercavam. Deixava de lado aquilo que acreditava para não destoar dos grupos que freqüentava. Sabe, eu adorava andar de calça jeans e ouvir um rock de vez em quando. Mas como eu, um advogado, poderia sair por aí sem terno e gravata, ouvindo LedZeppelin a todo volume no carro? É, de fato não tinha muito a ver mesmo. E assim eu fui abrindo mão das coisas que "não eram a minha cara", segundo os outros. Fui aceitando isso numa boa, engolindo calado todos os sapos que surgiam para manter o perfil de pessoa que haviam criado para mim. No final, eu não era mais o Antônio que queria ser. Era o Antônio que os outros queriam que eu fosse.


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Você

não

existe TODOS

USAMOS VÉUS OU MÁSCARAS QUE ESCONDEM

AS PROFUNDAS VERDADES DE NOSSA PERSONALIDADE Texto de JULIE REICHERT e RODRIGO DE OLIVEIRA Fotos e arte de PABLO ESCAJEDO

O relato ao lado poderia ter sido escrito por qualquer habitante deste nosso pequeno planeta chamado Terra. Todos usamos véus ou máscaras, que escondem as profundas verdades de nossa personalidade. O mais curioso desta afirmação é que isso não é sinônimo de algo ruim ou falso. Não temos mundos invisíveis pelo prazer de esconder particularidades de nossos amigos ou familiares. Usamos máscaras para sermos aceitos e, muitas vezes, sem mesmo saber que o fazemos. As diferenças que existem entre as pessoas são um dos pontos chave para o uso de máscaras. Para tentar ser aceito em um grupo, é muito mais fácil guardar certas características e preferências do que expor seus reais pensamentos. O que é fascinante nesta conduta é que a máscara, ao mesmo tempo em que esconde, revela. Esconde, por ocultar algo que não desejamos compartilhar com o outros. Revela por apontar que o que está por baixo do véu é significativo o suficiente a ponto de merecer ser velado. O modo como lidamos com a diferença é bastante curioso. A característica destoante nunca existe em nós, está sempre no outro. Quando aparece na condição de diferença é sempre traumática, perturbadora. Num grau maior, pode suscitar o instinto da destruição, de acabar com quem a representa. É aí que entram os conflitos religiosos, as brigas

entre torcidas, o repúdio aos homossexuais, a segregação racial, cultural e tantas outras atitudes intolerantes contra aqueles que se significam de outra forma, senão a nossa. Algumas vezes, a diferença surge dentro do próprio indivíduo, de uma característica própria. O grande porém é que dificilmente este se dá conta de que aquilo que o incomoda é algo que não está bem resolvido em seu interior. Com medo de não suportar essa condição, na maioria dos casos, acaba guardandoa, deixando invisível não só para o mundo, mas principalmente para si mesmo. Esta condição foi identificada pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud, e é muito bem retratada pelo diretor Sam Mendes no filme Beleza Americana. Na trama, Chris Cooper vive um personagem que tem horror a homossexualidade. A todo instante, ele tenta afastar seu filho do que entende ser relacionado a essa conduta, até que se depara com essa característica em si próprio. A partir daí, trava-se uma briga interior muito forte, gerando danos ao sujeito que a todo instante tenta sufocar seu instinto. Por fim, quando ele deixa extravasar seu mundo invisível, as conseqüências são as piores possíveis. Se estas características tidas como insuportáveis pelo nosso inconsciente ficassem de algum modo retidas em um canto obscuro da mente, sem nos perturbar, não seria nada mal. Mas, infelizmente, estes sentimentos reprimidos não estão mortos e

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sim adormecidos, prontos para acordarem a qualquer momento. Quando eles vêm à tona, cedo ou tarde, nos causam grandes problemas. A situação é similar quando guardamos algo apodrecido em um recipiente. O material só tende a crescer e a produzir estragos. No caso da nossa mente, essa massa podre pode se manifestar na forma de depressão, ansiedade, descontrole alimentar, auto-recriminação, entre outros. Como esse sentimento não foi processado, ele volta em estado bruto, gerando um abalo de grandes proporções. É nesse momento que o campo dos sonhos se torna um lugar importantíssimo. Onde nele, conseguimos ter alguns lapsos e amostras de nossos mundos invisíveis. Algumas informações a que nunca tivemos acesso nos são apresentadas enquanto dormimos, nas mais diversas formas. Por vezes, os sonhos não têm sentido algum, com imagens desconexas e sem uma linguagem compreensível. Por outras, o nosso subconsciente nos revela tanta podridão, tanto mal estar, que o nosso cérebro não consegue suportar tamanho baque e foge. É quando acordamos e sabemos que tivemos um pesadelo. As assombrações também são formas de nossos mundos invisíveis colocarem-se contra nós em estado bruto. Isso não significa nenhum envolvimento com espiritismo, e sim uma assombração no sentido figurado. Dois grandes autores da literatura britânica usaram muito bem esse artifício em duas obras clássicas. William Shakespeare, em Ricardo III, contou a trajetória do maquiavélico personagem título, que passa por cima de tudo e de todos para chegar nos seus objetivos, que é governar a Inglaterra como rei. Como sugere o nome da obra, Ricardo alcança seu intuito, porém, após isso, é perseguido por fantasmas daqueles que traiu. Notoriamente, eles são criações da mente do vilão, que não suporta mais tanto veneno dentro de si. Outro autor que usa esta metáfora com maestria é Charles Dickens, no seu não menos famoso Conto de Natal. Nesta história, Scrooge é um velho sovina que passa a vida importando-se apenas consigo mesmo. A situação muda quando, na noite de natal, Scrooge recebe a visita de três fantasmas, que o fazem ver como sua vida foi no passado, como é no presente, e como será no futuro se seu comportamento não mudar. Mais uma vez a literatura usa o recurso da assombração para chamar a atenção sobre os mundos invisíveis e sobre como é perigoso manter algumas informações enclausuradas. Claro que revelar tais características não é algo fácil de fazer, pois pouco sabemos sobre isso, não sendo da ordem do consciente. Mas existem certos momentos que boa parte das máscaras que usamos caem por terra. É aí que entram as substâncias psicoativas, como as bebidas alcóolicas e as drogas. A nossa mente é cheia de defesas, que nos protegem das diferenças que nossos véus escondem. Uma delas é a censura, uma espécie de filtro que não deixa as impurezas passarem para a sociedade. Quando o indivíduo ingere algum tipo de substância psicoativa, estes filtros são removidos, mostrando boa parte dos sentimentos e características que escondemos. Diferente do pesadelo, no qual se pode acordar a qualquer momento, este cenário é muito mais perturbador ao indivíduo, pois ele já está no campo do real. Quem ficou curioso em saber se conhece realmente a si mesmo, deve ter consciência que o verdadeiro eu é o outro. Nós nos vemos através do mundo que nos olha. Ou seja, tudo o que somos é uma imagem refletida. Portanto, a questão ficará sempre em aberto. O que pode servir de consolo é que o mundo invisível que existe dentro de cada um de nós só é invisível porque o nosso saber não dá conta disso. Mas isso, só Freud explica.

As informações deste texto foram obtidas em entrevista com o professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos Mário Fleig

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O universo que

eu não vejo

BUDA ASKROBIA, COM UMA FISIONOMIA SÉRIA, OBSERVA TODOS QUE CHEGAM AO TEMPLO BUDISTA DE TRÊS COROAS. SUA SERENIDADE É UM CONVITE AOS QUE DESEJAM PERCEBER SEUS MUNDOS INVISÍVEIS Texto de GEOVANA RECH GODINHO e VINICIUS SILVA Fotos de RAFAEL RECH

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ilêncio. O início da manhã chega calmo. Somente o vento é ouvido e com ele o suave balançar das folhas que se movimentam constantemente. As bandeiras de oração, pequenos pedaços de pano agitadas pelo vento, levam consigo mensagens positivas para todos os cantos, para todas as terras. De qualquer lugar é possível sentir o cheiro adocicado do perfume que emana das paredes e exala para dentro do espírito, confundindo os sentidos. É como um convite a pensar no nosso mundo interior. Quem visita o Templo Budista de Três Coroas pode não entender como tanto silêncio contraste harmoniosamente com o colorido vibrante. São vermelhos, dourados e verdes que combinados dão aos olhos dos visitantes, um clima psicodélico. Completando todo o cenário, a região montanhosa rodeia o maior templo budista do ocidente, enquanto outras pessoas nem sequer percebem o mundo que se forma naquele lugar. Lama Sherab Drölma é moradora deste templo budista. Uma mulher de aparência simples, cabelos curtos e feições do rosto arredondadas. Seus gestos desenham movimentos leves no ar, no entanto, seus olhos são capazes de nos entreter em uma atitude despretensiosamente calma. Mas Lama Sherab fascina muito mais que sua singular aparência Com sua experiência, ela mostra o quanto invisíveis podemos ser. Nascida no Amapá, mudou-se em 1995 com o Mestre Rinpoche para Três Coroas. A Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002) pertence à última geração de professores que foi inteiramente treinado no Tibete na tradição dos ensinamentos e métodos Vajraiana. Ele detinha linhagens de ensinamentos, principalmente na tradição Nyingma do Vajraiana tibetano, os quais ensinou incessantemente durante sua vida. A ênfase principal em tudo o que ensinava era a motivação pura. Para manter a linhagem de seus ensinamentos, ordenou professores, alguns de seus alunos ocidentais, e concedeu-lhes autorizações específicas para ensinar. Lama Sherab é uma dessas pessoas. Ela é a perfeita tradução de alguém dedicada à espiritualidade e, para quem duvida, seu

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mundo invisível está sempre ali, tão perto de quem a admira. Seus olhos castanhos e uma conversa suave nos mostram mais que ensinamentos. Contudo, parece ser inevitável observar a prática budista sem pensar em todo o mundo que se forma ao nosso lado, na nossa mente. "O seu universo é invisível para mim", ensina Lama Sherab. Mas é preciso muito mais para realmente entender o que essa mulher fala. Porém, ela continua: "O budismo escreve outros universos que nós não podemos perceber com nossos olhos, que são universos percebidos por outros seres. É uma projeção da mente daquele ser. Mesmo se eu olho por um copo de água, vejo aquilo como uma substância para matar minha sede. Mas, se eu colocar um peixe ali dentro, aquilo vai ser o universo dele", explica Lama Sherab. Nenung, fundador da banda Os The Darma Lóvers e praticante budista, prefere cantar em versos seus mundos invisíveis. "Nós vivemos como peixes: com a voz que em nós calamos, com essa paz que não achamos", escreve ele na música Peixes. Nenung veste sempre roupas largas e sua estatura alta contradiz sua aparência tranqüila, representada por uma voz calma e por vezes pronunciada com cuidado. Para ele, o invisível é nossa mente, que constrói e desconstrói o mundo a toda hora, em todo momento. Mas a experiência projetada pela mente é tão real que podemos até nem vê-la. O curioso paradoxo é o início para entendermos os mundos invisíveis: "O que é visto agora como visível pode bem ser um aglomerado de invisibilidades. A experiência da realidade é basicamente interna, assim como a forma como determinamos nos relacionar com o universo aparente", diz Nenung. Sua invisibilidade está nos monumentos sagrados em Três Coroas, nas esquinas, nas coisas ao nosso redor e, claro, dentro de nossas mentes. Por isso, para o budismo, é preciso observar os gestos, os movimentos e as atitudes que mantemos no nosso dia, com as pessoas a nossa volta. Desvendar e entender nossas próprias percepções requer voltar-se para dentro de nossos mundos invisíveis. "O primeiro passo do budismo é justamente te levar a enfraquecer o lado negativo que o ser humano tem e


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intensificar qualidades que são implícitas na natureza humana, como compaixão, amor, bondade. Mas para fazer isso não importa onde você esteja, em qual cultura você esteja. É um experimento interno, individual, mas que tem uma ressonância no todo", entende Lama Sherab. Para a música de Nenung, já não importa mais desaparecer, e sim, transcender. "Nós morremos como peixes/ o amor que não vivemos/ satisfeitos mais ou menos/ todas iscas que mordemos/ os anzóis atravessados, nossos gritos abafados". Nenung leva sua mensagem com Os The Darma Lóvers há sete anos e depois desse tempo consegue traduzir sua satisfação em relação à música. "Não há nada maior, mais completo e belo que a realização da liberdade. É ela que vem justificar de fato tanto esforço empregado em uma existência", lembra ele. Em busca de transcender não estão apenas entendidos. Há muitas pessoas que estão atrás de alguma coisa para sua vida, sem saber, exatamente o que. Para a doutora em Ciências Aida Matsumura, visitante do Templo, a descoberta pelo invisível está apenas começando. Um sorriso estampado no rosto. Esta é a primeira vez que ela vem à Três Coroas com a finalidade de fazer esta visita. Ela conta que já foi ao Japão e lá esteve em diversos templos budistas também. "-

Mas lá os templos são muito mais ostentosos do que este aqui, bem simples, se comparado." O que Aida busca? Ela ainda não consegue definir em palavras. Apenas comenta que quer entrar em contato com a filosofia budista, até mesmo por seus antepassados virem do Japão. "Agora que já estou nesta idade mais avançada, resolvi entrar em contato com as coisas da alma." Encontros como esses que Aida Matsumura e Nenung tiveram com o Budismo marcaram os seus mundos, pois esta busca não se faz do dia para a noite. Quem entra no Templo pode constatar isso. Em seu interior, há quase uma sala de aula, onde objetos estão guardados para os rituais de meditação e purificação dos moradores do templo. Os 50 residentes que dividem as tarefas diárias, como manutenção e serviços gerais, seguindo as orientações da A Sua Eminência, devem estar principalmente preparados para recepcionar os visitantes. No templo budista de Três Coroas, o silêncio é inevitável. A contemplação, assim como a calmaria proposta por seus residentes, os monumentos e todo. A prática budista completam o clima do lugar. Os mundos invisíveis, para o budismo, talvez estejam muito mais perto de nós do que possamos imaginar. Seus mundos contemplam as virtudes que a mente produz a todo momento, mesmo que não seja possível ver.


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O hospital

que você não vê

O HOSPITAL

DA

CRIANÇA SANTO ANTÔNIO

É RECONHECIDO POR SER

ESPECIALIZADO EM TRATAMENTO PEDIÁTRICO E REVELA UM MUNDO REPLETO DE ALEGRIA APESAR DO QUE MUITOS IMAGINAM

Texto de ANGELA ASSIS BRASIL e LIZA REBECHI Fotos de ROBERTA BUENO

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grande maioria das pessoas ao pensar em um hospital lembra de dor, sofrimento, vastos corredores de uma cor pálida que transparecem um sentimento de tristeza. Não é diferente para quem passa na Avenida Independênciaz e olha para o grande Complexo Hospitalar da Santa Casa de Porto Alegre. Em especial para o Hospital da Criança Santo Antônio, que, por ser especializado no tratamento de crianças, comove a todos num sentimento de pena e sofrimento. Este pequeno grande mundo invisível que há lá dentro, contudo, não é nenhum bicho de sete cabeças. Ao entrar no Santo Antônio, o que se vê são crianças brincando, correndo e sorrindo, bem como funcionários e voluntários empenhados em garantir que elas se sintam o mais a vontade possível. Tudo pareceria um grande parque de diversões, não fossem algumas crianças com máscaras no rosto, soros nos bracinhos e cabecinhas raspadas. O Hospital da Criança Santo Antônio foi fundado em 1953 e foi pioneiro no atendimento exclusivamente pediátrico. Em 2002 reabriu as portas com novo endereço e estrutura dentro do Complexo da Santa Casa. Isso só foi possível pela parceria com a comunidade, o que acontece desde o início de sua fundação e continua até hoje na representatividade de voluntários que dedicam parte de seu tempo em benefício do próximo. A maior parte dos pacientes vem da grande Porto Alegre, de cidades que geralmente possuem rede de saúde básica preparadas para emergências pediátricas. O que leva os pais a procurarem o Santo Antônio, segundo a diretora administrativa Svetlana Urbanskyy, é o renome que a instituição possui na sociedade, como o maior centro de atendimento pediátrico do Estado. Atualmente, registram-se 3.886 atendimentos ao ano. "A maior parte poderia ser resolvida em postos de saúde locais, não sendo necessário que as famílias se deslocassem até a capital", diz Svetlana. Para solucionar este problema, a administração do hospital mantém contato constante com prefeituras e Secretarias de Saúde a fim de informar a população local da disponibilidade de atendimento nos postos próximos à sua residência.

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O Hospital da Criança é especializado em vários tipos de tratamento, com destaque nas áreas de oncologia e nefrologia, que na grande parte dos casos resulta em internações imediatas e prolongadas. A psicóloga Juliana Potter explica que, quando a criança é internada, perde o contato com o mundo real, como a noção de tempo e de espaço. "Nós procuramos dizer para ela que dia é hoje e em que ano estamos, conectando-a ao universo", ressalta. A perda do contato com amigos e escola pode causar alguns traumas. Para evitar este choque de mundos, cada quarto é equipado com TV a cabo, jornais e revistas, para que crianças e pais continuem informados do que acontece lá fora. Nos meses da Copa, foram instalados painéis com as últimas notícias e promovidos jogos de futebol entre familiares e funcionários. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garantir que um dos pais fique com o filho o tempo inteiro, não importando a condição, ainda assim um dos maiores problemas que a família passa é o empobrecimento da rede social, ou seja, os amigos e familiares se afastam. Frente a esta situação, os psicólogos do Hospital fazem contato com estas pessoas a fim de trazê-las de volta ao convívio da criança. Em outros casos, a doença aproxima famílias antes distantes, mas que diante da dificuldade encontram forças para se unirem. "Isso ajuda a criança a se sentir amparada. Ela vê que não está sozinha, e a recuperação é com certeza melhor", diz a psicóloga. Se para os pais é difícil aceitar que um filho fique doente, mais complicado ainda é contar para ele o que está acontecendo. Não se deve nunca esconder ou omitir a gravidade da situação: uma linguagem adequada ajuda na compreensão, fazendo com que ela tome consciência do que terá que enfrentar. "O dano maior é a criança não saber. Temos que contar de uma forma delicada, usando palavras de fácil entendimento", afirma Juliana. Muitas vezes, o tratamento é mais doloroso que a doença em si, fazendo a criança ter dificuldades em entender que tudo o que ela está passando é para o seu bem.


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UMA HISTÓRIA EM DOIS MUNDOS Elisabeth Pacheco Ribeiro é mãe de Bianca, que com 6 anos de idade já passou pela descoberta de uma leucemia. "Tudo começou com uma febre que não passava. Depois que a levei ao médico a doença foi rapidamente detectada", conta. A descoberta desestruturou a família em um primeiro momento: "Senti como se tivesse perdido o chão, entrei em depressão, meu marido não conseguia mais trabalhar, só pensávamos em ficar com a Bianca", desabafa Elisabeth . Nos primeiros dias, a filha não tinha a real noção da doença, o que só foi acontecer quando os primeiros fios de cabelo começaram a cair. "Um dia ela passou a mão no cabelinho e veio um chumaço de fios na mão dela. Ela me olhou e começou a chorar. Acho que foi aí que ela entendeu o que estava acontecendo", diz a mãe. A parte mais dolorosa foi voltar para casa, depois de um mês no hospital. Enquanto estava internada, Bianca e a mãe conviviam com pessoas que tinham os mesmos problemas, e voltar ao convívio com os outros foi muito difícil. Na escola, de tanto os coleguinhas zombarem de seu cabelo ralinho, Bianca parou de freqüentar as aulas. Elisabeth relata que tinha receio de medir a febre da filha, pois havia o medo de ter de voltar ao hospital. A doença passou a ser uma sombra e um pesadelo. As duas entraram em depressão, não queriam mais sair de casa. Segundo a psicóloga Juliana Potter, a criança entende e enxerga o mundo pelos olhos dos pais. Isto explica porque mãe e filha tenham entrado em depressão juntas. Ao ver a reação da mãe à tristeza, a filha também começou a dar sinais de melhoras. Desde o início, a fé de Elisabeth nunca deixou que ela perdesse as esperanças de cura da filha. Hoje, Bianca está curada, depois de quatro meses de luta. Ela ainda sofre com algumas restrições alimentares, e, como seu sistema imunológico foi afetado, o cuidado no contato com outras crianças é redobrado. "Apesar de curada, a Bianca não aceita que falemos do que se passou no hospital, para ela é como se o mundo fora do hospital fosse um mundo à parte", conclui a mãe. Para Bianca, seu sonho a partir de agora é estudar para se tornar advogada.

De uma forma geral, os internos no Hospital Santo Antônio não são tratados como doentes, mas sim como crianças que requerem atenção especial. Diversas ações são feitas para minimizar os efeitos da internação, fazendo com que ela não perca o contato com outras pessoas e com o mundo lá fora. Preocupando-se com isso, o hospital mantém uma série de atividades, como os Grupos de Bem Estar, que propiciam à família apoio psicológico para enfrentar a situação, além de oferecer às crianças serviços de recreação e acompanhamento pedagógico. O hospital conta com diversas parcerias, como o programa de voluntariado Viva e Deixe Viver, que é responsável pela Hora do Conto e Hora de Ninar. Os profissionais são rigorosamente treinados e preparados para o convívio com as crianças, sendo que é pré-requisito a formação no curso de voluntariado do Sesc. Além disso, fazem parte desta parceria a Brigada Militar, o Corpo de Bombeiros e o Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE). Para os que se interessam em ajudar e não têm tempo, o site Pequeno Desejo disponibiliza via internet uma lista com pequenas vontades. Qualquer um pode acessar e realizar esses desejos. Os pedidos são os mais variados, seja uma boneca, um passeio ou a tão sonhada bicicleta. As rotinas hospitalares são adequadas para cada um: hora de tomar banho, de fazer fisioterapia, de lanchar; nada têm horário certo, tudo é feito para que a criança não associe o hospital como um "quartel general". Uma parte da manhã é reservada para a "hora do aniversário", onde todos que se encontram no andar vão aos quartos daqueles que estão de aniversário e cantam parabéns com bolo, balões e presentes. "A criança sente que não foi esquecida, que tem amigos como antes", diz Svetlana. Esse mundo cercado pelas paredes do hospital não é o que muitos imaginam. Há janelas enormes nos quartos e corredores para que a luz do dia entre e deixe o clima mais leve. As paredes são coloridas, o ambiente é alegre, o que se vê é o esforço de todos em fazer dessa passagem um momento agradável e de novas descobertas.


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Dai-me! ALGUNS

NÃO SABEM DA EXISTÊNCIA,

OUTROS JÁ OUVIRAM FALAR, MAS POUCOS CONHECEM O QUE REALMENTE É O

SANTO DAIME

Texto de CAMILA SOARES e RENATA VANIN Fotos de RAFAEL RECH

N RITUAL: Wilton Souza dirige o culto em Belém Novo

o início do século 20, na região amazônica, um oficial chamado Raimundo Irineu Serra foi à floresta para interceptar o uso religioso de uma bebida estranha da doutrina xamanista, que pode ser considerada como uma cultura indígena de rituais. O xamã, sacerdote que manifesta poderes sobrenaturais e invoca espíritos da natureza, prevendo o que poderia acontecer, intimou o oficial a experimentar o líquido utilizado durante a cerimônia para que ele comprovasse que não havia mal algum naquele ritual. O oficial Irineu, apesar de ser católico fervoroso, resolveu tomar o chá. Um amigo de Irineu, que o acompanhava na ação policial e que já era mais experiente no uso da bebida, recebeu a visão da rainha da floresta lhe dizendo que Irineu deveria tomar outra dose do chá em uma noite de lua cheia. A partir daquela noite, tudo mudou. Irineu recebeu uma miração da rainha da floresta, que apareceu para ele na forma de Nossa Senhora da Conceição. Sendo devoto da santa, o oficial passou a acreditar no significado religioso daquela bebida. O que era para ser o fim de uma religião passou a ser o seu começo e sua disseminação pelo mundo.

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A religião Santo Daime, como conhecemos, se constituiu a partir das idéias de Mestre Irineu, que assim passou a ser chamado. O chá que ele tomou e que é utilizado até hoje é chamado de Daime ou Ayahuasca, o vinho das almas. O líquido é feito através do cozimento de duas plantas: o cipó jagube (Banesteriopsis caapi) e a folha Rainha (Psicotrya viridis), que só produzem efeito se unidas. Separadas, não há eficácia. Reza a lenda da Ayahuasca que esse chá foi descoberto através do amor entre um rei e uma rainha muito jovens e muito apaixonados. O amor era tão intenso que, quando o jovem rei faleceu, sua amada permaneceu ao lado de seu túmulo, chorando e sofrendo por sua morte. Assim ela acabou morrendo, e ali, ao seu lado, foi enterrada. Do túmulo do rei, nasceu um cipó, e do da rainha, uma folha. Do amor imenso e eterno dos dois, surgiu o Daime. Outra pessoa iluminada pela religião foi Sebastião Mota de Melo, conhecido como Padrinho Sebastião, uma pessoa humilde e analfabeta, que reuniu pessoas na floresta em uma comunidade solidária com a finalidade de levar uma vida mais espiritualizada em harmonia com a natureza. Essas comunidades estão espalhadas pelo Brasil a fora. O Rio Grande do Sul conta com três: em Viamão, Caxias do Sul e Sapiranga. As comunidades não são isoladas, e as pessoas levam uma vida normal, inclusive trabalham fora. A maior do Brasil é a Céu de Mapiá, localizada no Amazonas. Há também uma igreja em Porto Alegre, afastada da cidade, em um ambiente florestal, na qual os adeptos se reúnem para as sessões. Para a religião, de cunho cristão, Deus está presente em tudo: na lua, na floresta, no sol e no próprio ser humano. Por isso é uma religião cosmocentrista. O trabalho espiritual tem o objetivo de alcançar o auto-conhecimento e a experiência de Deus ou do Eu Superior Interno. Com o uso do chá, durante os trabalhos, os sentidos são expandidos, os processos mentais e as emoções tornam-se mais profundos. Emanuel Sperotto, 21 anos, estudante de Naturopatia, fez uso do chá procurando um conceito espiritual e diz que conseguiu atingir seus objetivos. "O Daime me fez rever conceitos de como viver a vida. Senti uma energia contagiante com as pessoas que estavam presentes durante a sessão. Me senti gratificado, e essa foi uma experiência relevante em minha vida", afirma. O uso da ayahuasca é feito na datas do calendário festivo da religião, obedecendo às regras e rituais que foram estabelecidas pelo Mestre Irineu. Os encontros são baseados no canto e no bailado. As letras das músicas, para as pessoas que praticam o culto, são os guias na expansão da consciência. Essas músicas são chamadas hinários. É através desse canto que todos recebem a orientação necessária para navegar na força do Daime durante a sessão. Os hinos podem ser lições, graças recebidas, ou até mesmo chamados espirituais. O momento culminante no trabalho é quando recebem-se as mirações. Nessas visões, quem esta sob o efeito do chá não é somente um mero espectador, mas protagonista de uma ação. De acordo com a história da religião, Mestre Irineu co-

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meçou a "receber" seus hinos a partir do começo da década de 30, e esses cantos são ensinamentos cristãos que trouxeram uma nova leitura do Evangelho à luz do Daime. O ritual começa com a preparação do chá, que é feito somente uma vez por ano, e será utilizado em todos os outros trabalhos. Na preparação do Daime, o homem fica responsável pela colheita do jagube, e a mulher, da folha Rainha, que são cozidos juntos em um ritual de cantos e energia positiva. No salão da fornalha ficam apenas os responsáveis pelo cozimento e apuração do Daime. Não é aconselhável que se esteja doente no feitio, e a mulher em período menstrual não poderá participar da colheita da folha Rainha. Cada uma das etapas do preparo do chá exige dedicação, atenção e força de vontade, por se tratar de um intenso trabalho físico e mental, no qual o Daime é utilizado durante todo o tempo. Quando a bebida fica pronta, ela é escorrida ao som dos hinos. Além das datas especiais, em todos os dias 15 e 30 de cada mês são realizadas as tradicionais concentrações, na qual os novatos são convidados a conhecer a religião. Qualquer um está apto a beber o chá, mas é recomendável antes que se faça uma limpeza no organismo, evitando o uso de drogas, bebidas alcoólicas, comidas gordurosas e ações que despendam muita energia, como festas e sexo. A religião está aberta e acolhe a todos, independente de cor, opção sexual ou religião. Os motivos que levam uma pessoa a buscar o Daime são diversos. "Eu estava passando por uma fase ruim da minha vida, tinha acabado de me separar, então um amigo me levou para tomar o Daime, que na primeira vez não teve o efeito esperado. Não senti nada, eu estava muito nervoso. Esperava que o resultado partisse somente do Daime e não do meu interior. Na segunda vez, só fui até lá porque tinha conhecido uma moça, que hoje é minha esposa. Foi quando me abri, o efeito veio de dentro, e eu vi minha mãe, falecida há algum tempo. Isso me tocou", diz Wilton Souza, 49 anos, administrador de empresas e dirigente da Igreja Chave de São Pedro de Porto Alegre. O uso do Daime é uma experiência muito particular, cada um sente de uma maneira. Para o estudante de Gastronomia Marcelo Pomatti, 21 anos, que freqüenta o culto na praia do Santinho, em Florianópolis, cada trabalho é diferente: "Se tratam de sensações incomodas ou ótimas, visões distorcidas ou claras, sentimentos inferiores ou elevados. Depende do seu propósito em cada trabalho". Os adeptos do Santo Daime dizem que ele tem um grande poder de mudança e que está dentro de cada um. "A primeira vez que tomei, senti tudo vivo, um amor incondicional muito grande, e por causa destes sentimentos eu fiquei tomando o chá durante dois anos. Sempre saía do culto introspectiva, com o propósito de continuar melhorando", conta Andréia Carvalho, 23 anos, estudante de Naturologia e massagista ayurvédica. Para os praticantes, a bebida liberta o espírito da verdade, consagrado pela divina invocação Daime! Dai-me luz, dai-me paz, dai-me amor.


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"Mais que uma religião, é uma cultura" Wilton Souza

O Daime é uma droga? A partir de uma resolução do Conselho Nacional Antidrogas, o uso ritual e religioso da bebida sempre foi liberado. Porém, clinicamente, o Daime é caracterizado como um alucinógeno, mas seus seguidores preferem

utilizar o termo enteógeno, que significa dizer que as alucinações têm uma inspiração divina. Contudo a opção religiosa do praticante não altera a classificação alucinógena das substâncias do Daime.

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Vidas especiais O CENTRO DE REABILITAÇÃO DE PORTO ALEGRE ATENDE CRIANÇAS E ADOLESCENTES PORTADORAS DE DEFICIÊNCIAS CAUSADAS PELA PARALISIA CEREBRAL Texto de CLÁUDIO CUNHA SANTOS e TATIANE WISSMANN Fotos de GUILHERME M. PACHECO

P

aralisia cerebral é uma doença irreversível que afeta o sistema nervoso central, acarretando problemas motores resultantes de lesões cerebrais. Segundo a literatura científica, o termo "paralisia cerebral" se tornou clássico, porém não é o mais adequado, já que, na realidade, o cérebro não está paralisado, mas impossibilitado de comandar adequadamente a função motora. O certo seria "doença motora de origem cerebral", como é conhecida internacionalmente. O Centro de Reabilitação de Porto Alegre (Cerepal), fundado em 1964 por um grupo de pais que não tinha como atender ou onde fazer o tratamento de seus filhos, é uma instituição assistencial e beneficente com infra-estrutura para o tratamento de crianças e adolescentes portadoras de deficiências físicas causadas pela paralisia cerebral. Desde sua origem, é administrado por pais de portadores de lesão cerebral, associada ou não à deficiência mental. Iniciou com seis e hoje atende mais de 260 pacientes oriundos de Porto Alegre, Grande Porto Alegre e interior do Estado.

A entidade é mantida através de convênios com o governo do Estado, Secretaria da Educação, Fasc, Smed, SUS e com doações. Conta com um serviço de Medicina Física que atende aos pacientes que sofreram algum tipo de trauma físico, de coluna ou acidente vascular cerebral. Os pacientes são adultos encaminhados pelo SUS para reabilitação. Esse serviço foi criado para dar suporte financeiro ao tratamento das crianças e adolescentes com paralisia cerebral, através de convênio com o Sistema Único de Saúde. A presidente do Cerepal, Inajara Maria Lafourcade, explica que o paralisado cerebral é mais lento naquilo que faz andar, pegar as coisas e falar. Muitas pessoas confundem o ritmo lento com a deficiência mental ou, pior, com uma doença contagiosa. Elas são pessoas especiais, que nasceram diferentes de nós e que possuem outra maneira de viver. Inajara tem uma filha, Janaína, 31 anos, com paralisia cerebral e diz ter sofrido muito quando ela nasceu porque não tinha informação sobre a doença. Perguntava-se: "Por que comigo? No início foi difícil, mas depois de chegarmos no Cerepal e encontrarmos pessoas iguais a nós, DEZEMBRO/2006 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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com os mesmos problemas, meu marido e eu encontramos o apoio que precisávamos". Há um grupo de funcionários e voluntários que atende com prazer e alegria todas as crianças. Elas recebem o amor dessas pessoas além dos atendimentos médicos. O tratamento é integrado entre os departamentos de fisioterapia, psicologia, pedagogia, fonoaudiologia, enfermagem, hidroterapia, terapia ocupacional, oficina de artes e Serviço Social. Há o Clube de Mães, local onde elas se encontram para trocar idéias, conversar e ajudar umas as outras. E essas mães não são sofridas. São alegres, são felizes: "Lógico que existe aquela família que rejeita, não vou dizer que é um mar de rosas. Mas aqui dentro o trabalho é tão bem feito com os nossos filhos, que a gente vê uma recompensa tão grande, que alivia. Só vemos as coisas boas, não vemos a dor ou o sofrimento. Vemos um mundo diferente", diz Inajara Lafourcade. No local, há uma escola da primeira à quarta série que atende a 98 crianças. Elas recebem o mesmo conjunto de matérias que os alunos das escolas públicas ou particulares, com a diferença que o aprendizado é individualizado e em turno integral, manhã e tarde. Um professor atende no máximo oito alunos. Cada sala de aula possui um computador que a maioria consegue usar. A escola poderia atender até a oitava série se não fosse pela falta de professores, que são cedidos por outras escolas. Segundo a presidente Inaja-

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ra, o recurso humano é muito caro e o espaço teria que ser melhorado para continuar atendendo com qualidade. A entidade luta para quebrar as barreiras do preconceito causado pelo desconhecimento. O deficiente participa de olimpíadas, dança e canta. Uma maneira de divulgar o trabalho da instituição é através do coral composto por dezesseis crianças. Com as apresentações, mostram que uma criança limitada pode desenvolver muito e ter auto-estima. Inajara diz: "Quando o coral se apresenta parece que é sempre a primeira vez, cada dia é melhor do que o outro. Volto orgulhosa das apresentações porque assim consegui mostrar a superação, aquilo que eles conseguiram adquirir com esforço. Eles cantam em inglês e italiano. Cada um tem uma dificuldade diferente e se superam porque estão juntos, unidos e se superando". A voluntária Elisabete Scherer, aposentada na área de saúde, é a responsável por atender as crianças na hora do lanche da tarde. Tudo começou quando voltava do supermercado e encontrou o pessoal fazendo uma passeata, na Assis Brasil, com faixas da instituição, reivindicando recursos financeiros: "Eu disse, é hoje! 'Perguntei com quem eu falava para ser voluntária. Posso ser voluntária?' Disseram-me para falar com a Kátia". Quando ela chega é a maior festa, cada criança, à sua maneira, demonstra o amor e carinho. Bete senta-se no chão e brinca. "É uma coisa muito gostosa. Tu chega ali, eles te dão um beijo, um carinho. Eu que deveria fazer isso neles, não eles em mim,


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pelo bem que eles me fizeram", emociona-se. Bete doa sua energia e criatividade. Ganha em troca contato humano, oportunidade de aprender coisas novas, satisfação de ser útil. Aquele que sente que está recebendo alguma coisa, que se sente bem após o trabalho, é o verdadeiro voluntário. "Os nossos problemas parecem que ficam mais leves depois de ver esses. O sorriso dessas crianças. Eu agradeço todos os dias por elas me deixarem ficar. Não é trabalho, é satisfação. Eles é que estão me fazendo bem, é o contrário da história", completa. O carinho dos funcionários e voluntários com os pacientes na hora da aula, do lanche, da troca de fraldas (alguns usam fralda) os ajuda muito. As crianças, crianças entre aspas, há muitos adolescentes, estão sempre felizes. Não se vê ninguém chorando. O auxílio e a estrutura emocional que os pacientes recebem são muito importantes. Na instituição, o respeito ao ser humano, o sentimento de realização e satisfação é visível entre todos, pacientes e não pacientes. É o amor incondicional que move essas pessoas para aquilo que estão fazendo. Algumas porque seus filhos nasceram com alguma deficiência física, outras por satisfação pessoal e ter a certeza de estar contribuindo para realizar um sonho de mundo melhor. Inajara Lafourcade diz que: "A luta de quem vive essa realidade é mostrar que as pessoas especiais podem levar uma vida normal dentro de suas limitações". O paralisado cerebral tem necessidades específicas, por causa de suas diferenças individuais. Diante do desconhecido, por medo, as pessoas acabam agindo erroneamente. Quem têm dúvidas ou mesmo não possui qualquer tipo de informação sobre a paralisia cerebral, deve buscar os esclarecimentos junto a pessoas, associações ou entidades que realmente possam dar uma idéia exata, desprovida de preconceitos e pré-julgamentos. DEZEMBRO/2006 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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BR-116,

Km 13 Texto de LÍVIA CRUZ e MARCIO MAGALHÃES Fotos de ANA PORTO ALEGRE

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HOMENS DIVIDEM A MORADIA EM CONTÊINERES DE FERRO-VELHO À BEIRA DA ESTRADA

A

solidão, o frio e o forte calor são alguns dos elementos que acompanham o dia-a-dia de dois homens que cuidam e moram em um ferro-velho no Km 13 da BR-116, no município de Esteio, na Região Metropolitana de Porto Alegre. No terreno de cerca de 500 metros quadrados, funciona um depósito de máquinas de uma empresa de Porto Alegre, falida há sete anos. Orlando Maya, de 67 anos, e Edo Valdomiro Jacobs, de 65 anos, encontraram no local a sua casa e seu lar para viver, uma vez que não tinham residência fixa. O terreno onde vivem está repleto de carcaças de máquinas e ferramentas usadas na montagem de tratores. Cercado em todos os lados, de um inventário familiar e

do outro por uma exigência da Prefeitura de Esteio, o ferro-velho está em processo judicial pela poluição visual, que causa por estar situado na entrada da cidade, aguardando por uma decisão para o destino que será dado a todo o material existente no local. O dono da empresa faleceu e as sucatas do depósito estão em inventário da família, que possui três herdeiros. O objetivo dos beneficiados, quando for resolvido o impasse, é vender as peças e máquinas do ferro-velho como sucatas, para serem reaproveitadas em fundições e metalúrgicas. Maya está há sete anos cuidando do local e dos equipamentos. Natural de Canoas, ele é um ex-funcionário da empresa falida, em que atuou como operador de máquinas. Conta que mal dá para viver com a pequena

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quantia que ganha de sua aposentadoria do INSS. O salário que recebe para cuidar do ferro-velho ajuda para se manter alimentando e no vestuário. "A vantagem é que não pago aluguel", informa. Ele já foi pequeno agricultor, atuando no setor leiteiro e com plantação de arroz. Passados os dois primeiros anos tomando conta do lugar, e mais ainda, sozinho e sem alguém para conversar, Maya convidou um velho conhecido para morar com ele, Edo Valdomiro Jacobs, morador de Sapucaia do Sul. Eles dividem os cinco contêineres sobre os quais construíram sua própria casa. Dispostos lado a lado em cima de uma armação de ferro, cada contêiner tem dois metros e meio de largura e seis de comprimento. O banheiro fica ao lado dos contêineres. Eles improvisaram mesas e sofás com pneus de tratores. Edo, que esta há cerca de cinco anos doente de diabetes, e afastado da família, veio morar no ferro-velho a fim de fazer a segurança do local junto com o amigo Maya."Encontrei aqui o único teto para morar, nós somos a companhia um do outro", diz. Ele conta, ainda, que viver dentro dos contêineres é muito angustiante. No inverno, é muito frio e, no verão, o calor é extrema-

mente elevado. Além disso, a proximidade da BR- 116 é significado de barulho intenso e contínuo pela movimentação de veículos, só sendo mais calmo durante a madrugada e nos finais de semana. Sem falar na companhia dos bichos e animais, como insetos e ratos, que estão sujeitos a dar de cara a qualquer momento, visto que moram na beira da estrada. A dupla não mora sozinha no local. Contam com a companhia de 12 cachorros vira-latas, que dão o alarme sempre quando alguém estranho chega ou se aproxima do depósito de máquinas. E a presença desses verdadeiros guardiões é garantia de segurança para os dois. "Qualquer pessoa que aparecer por aqui, os cães nos dão o aviso", comenta Orlando. Acanhados, Orlando e Edo, são de poucas palavras. Contam que apesar da precária condição de vida, ainda sobra tempo e ânimo para o lazer e diversão. O horário de entretenimento dos dois é revezado. Nos finais de semana, um passeia enquanto que o outro fica cuidando do ferrovelho. "É o nosso momento de alegria, poder passear, visitar amigos e parentes e, é claro, paquerar um pouquinho também nos bailes", diz Edo.

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Jesus

breve voltará QUANDO,

MESMO SEM QUERER,

A FÉ VIRA ARTE


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Texto de ALINE EBERT e MICHELE FATTURI Fotos de LEONARDO REMOR

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m riso, uma piada, uma crença. Qualquer que seja a ação após se falar sobre as placas "Jesus Breve Voltará", afixadas por toda região metropolitana de Porto Alegre e Vale do Sinos, elas carregam um sentimento coletivo: dúvida. Quem as faz? Uma ou mais pessoas? O que querem transmitir? Em quantas cidades existem? O fenômeno é quase uma lenda urbana, como as pichações com palavras de ordem, feitas por Toniolo, em Porto Alegre, ou a história do artista francês que se demonina Space Invaders, por pintar os mosaicos característicos do jogo de videogame de mesmo nome, em muitos lugares improváveis e de difícil acesso. O site de relacionamento Orkut tem uma comunidade sobre o tema das plaquinhas. São mais de 1700 membros que criam tópicos perguntando sobre elas. A maioria tira sarro, diz já ter adquirido a sua nas ruas e usá-la como souvenir na porta do quarto, mochila... Tem aqueles que dizem que a "coleção" começou com as de "Jesus Breve", mas que agora têm de diversas empresas de segurança, cerca elétrica, anúncios de conserto, entre diversas outras. Nos tópicos em que se busca uma discussão mais séria, a maioria comenta que já viu ou ouviu falar de um senhor de idade autor das placas. Dizem que todas teriam sido feitas pela mesma pessoa, por causa da grafia à mão, e que, de fato, as de cor branca, com duas listras vermelhas nas extremidades e escrito preto, só se encontram em território gaúcho.

REVELAÇÕES Durante aproximadamente três meses, a reportagem tentou encontrar o autor (ou autora) das placas que viraram sinônimo de arte de rua para muitas pessoas. Mas não se teve sucesso. Algumas pistas apontavam para um senhor de cerca de 80 anos, supostamente morador de Canoas. Procurouse por informação em igrejas, com moradores de Canoas e Vale do Sinos, associações de bairro, prefeitura. Mas foi somente uma conversa com uma universitária de 20 anos que nos fez entender mais o que se pode chamar de fenômeno da fé, que fez um só senhor confeccionar e pregar, segundo ele mesmo, 16 mil placas, em 23 cidades. De acordo com Caroline Barrueco, ela estava no trem, indo a Porto Alegre, quando um senhor bem magro, cabelos brancos e cego de um olho, entrou e começou a distribuir, aos passageiros, folhetos com mensagens bíblicas. "Depois que terminou, ele sentou do meu lado e avistei uma placa enorme com o 'Jesus Breve Voltará' colado na bolsa e pensei 'nossa, será que ele é o senhor das placas que sempre vejo e me interesso?'". Era. Caroline começou a conversar com ele e o sentiu receptivo. "Ele ficou todo faceiro, acho que ele gosta que as pessoas puxem esse assunto". Ela conta que era só um pouco difícil de entender o que falava, pois seria, por causa da idade, um pouco surdo. Não demorando muito, o senhor teria dito que hoje produz e prega menos placas, por já se sentir cansado. De acordo com a estudante, ele também afirmou nunca ter aceitado di-

O que você pensa sobre as placas? "Quando comecei a ver sempre a mesma plaquinha, fiquei impressionado. Acho que é uma pessoa evangélica que quer falar do fim dos tempos. Para mim, também breve voltará. Essa pessoa deve ter estudado a Bíblia e quer divulgar o que está escrito no apocalipse. Eu acredito que é uma pessoa só, pois as placas são iguais". Marcos de Jesus, 27, taxista "Na Campina, em São Leopoldo, vejo bastante essas placas. Por ter tantas, em tantos lugares, eu acredito que não seja o trabalho de uma pessoa só. Até acho que tenha sido um grupo relacionado à religião,

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embora eu não acredite nisso de que Jesus vai voltar. Já cheguei a pensar se era piada ou não, mas pelo trabalho grande, não deve ser. De qualquer forma, eu olho essas placas e, sinceramente falando, eu rio". Bárbara Keller, 20, universitária "Eu creio que seja uma pessoa da igreja que tem essa esperança que um dia Deus volte à Terra. Eu gostaria que Jesus voltasse à Terra para resolver os problemas. Mas com tanta coisa que existe, teria que começar do zero. A única esperança que temos é que Deus arrume, por que um ser humano não arruma mais. Há 20 anos ajudei uma se-


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nheiro de ninguém para fazer, não citando ligação com igrejas. "Para ele, o intuito é avisar as pessoas que 'Jesus Breve Voltará', que o fim está próximo", conta a menina. "As pessoas que roubam e que fazem mal talvez não saibam que elas têm pouco tempo para se arrepender", dizia, explicando ainda que, "no momento que elas se arrependem, podem entrar no reino dos céus, não importando o que fizeram". Ao final do encontro, Caroline conta que ele se despediu, elogiando-a de uma forma diferente e dizendo que era bom encontrar jovens que estão abertos para uma conversa.

com o termo "maranata". A palavra significa "Cristo Breve Voltará" e norteou, profundamente, a igreja primitiva. Segundo Dutra, o Apocalipse é muito interessante e as pessoas não precisam ter medo de lê-lo. Para ele, o livro fala da idéia de que "Cristo Breve Voltará" de forma ainda mais cristalina, pois é o próprio Jesus que as utiliza, com as palavras "Eis que cedo vem". "Hoje, para o cristianismo, a mensagem da vinda de Jesus significa que temos que ter cuidado com a nossa vida moral e ética. A Bíblia diz que ele virá buscar um povo seu, especial, zeloso e de boas obras", finaliza.

MENSAGEM HISTÓRICA

A FORÇA DA LENDA

A igreja Assembléia de Deus é a mais citada pelas pessoas nas ruas, como a responsável pela produção e fixação das placas. De acordo com o pastor Adalberto dos Santos Dutra, presidente da Igreja Assembléia de Deus no Vale do Sinos e vice-presidente da convenção no Rio Grande do Sul, eles não são os idealizadores delas, não conhecem o senhor que as faz, mas as vêem por aí e acham de grande relevância o trabalho, não importando o credo da pessoa. "Não temos dúvida de que esse senhor está imbuído de um sentimento dos mais nobres que existe, pois a Bíblia, que é a constituição do cristianismo de todo o mundo, está recheada de mensagens com essa conotação". Ele explica que se as pessoas lerem as Cartas Paulinas, escritas pelo apóstolo Paulo, que muito conhecia a cultura helênica e se converteu ao cristianismo depois de um encontro com Deus, a forma de adeus foi mudada por ele na época, saldando as pessoas

Independente da identidade do responsável pelas placas e de seu objetivo, o fenômeno "Jesus Breve Voltará" tomou conta da imaginação e do cotidiano de um grande número de pessoas. O assunto é corrente em conversas de bar e incentivo para criação de teorias improváveis, como a de que elas seriam feitas pelo próprio Jesus. A lenda urbana das placas, assim como diversas outras, acabam, naturalmente, esvaziando-se de seu significado original e passam a fazer parte da chamada cultura popular ou "pop", para os mais ligados em arte. Por isso, não se espante se alguém lhe perguntar "vai um chaveirinho 'Jesus Breve Voltará' para sua coleção?". Não é o fim dos tempos, mas o princípio dele.

nhora a pregar uma placa num poste, mas elas eram diferentes. Acho que hoje em dia quem faz é a Assembléia. Eles são mais invocados, querem que Jesus volte logo". Divolnei Soares, 65, aposentado "Já vi as placas por diversos bairros de São Leopoldo. Eu imagino que é uma igreja, mas não sei qual. Eu acho que ele não vai voltar. Eu acredito que eu vou voltar (risos), que morremos e depois temos uma outra vida". Eloides Bueno, 43, servente de limpeza

O senhor que aparece na foto desta matéria não é o verdadeiro autor das placas

"Nunca me interessei em saber quem faz. Ficamos supondo o fim dos tempos, mas nunca chega. Os anos terminam e sempre estamos vivos, de pé. Pela Igreja Católica, isso não é de costume. Creio que seja uma igreja adventista, apostólica, algum tipo de religião diferente. A pessoa deve querer fazer o povo voltar a ter fé. O mundo está muito conturbado. Talvez seja uma maneira de fazer as pessoas terem mais esperança em uma vida melhor". José Roberto Schimidel, 48, empresário

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Viagem

insólita

O DEPARTAMENTO MÉDICO LEGAL

TEM COMO INTUITO FORNECER

BASES TÉCNICAS PARA O JULGAMENTO DE CAUSAS CRIMINAIS .

A

MAIS CONHECIDA DAS FUNÇÕES DO

DML

É A NECROPSIA, O EXAME

DO INDIVÍDUO APÓS A SUA MORTE Texto de ALINE STEDIDE MENA e RENATA DORNELLES DA CRUZ Fotos de DENISE SILVEIRA

O

silêncio é permanente, mentes concentradas num trabalho complexo. O único barulho vem de um tipo de liquidificador utilizado para desmanchar fígados para análises químicas. Com aparência de gênios saídos de histórias de ficção científica e uma concentração absoluta, peritos químicos, farmacêuticos e biólogos utilizam seus cinco sentidos na busca de provas para embasar laudos periciais a serem encaminhados à justiça. Os especialistas do Departamento Médico Legal (DML), em Porto Alegre, dão vida a um espaço onde normalmente ronda a morte. Eles circulam diuturnamente pelos corredores do Departamento, trajando jaleco, toucas e muitas luvas. O trabalho não pára. Eles atendem a chamados que vêm de todo o Estado. O trabalho começa com a chegada do material a ser analisado. É uma investigação minuciosa, que exige experiência e conhecimento técnico sobre o que está sendo feito. Após a coleta feita pelos médicos legistas, vísceras e es-

tômagos são encaminhados para a sala de exames. Os peritos isolam e, em alta temperatura, rompem a célula e deixam exposto o DNA (molécula, que reproduz o código genético, e é responsável pela transmissão das características hereditárias de cada espécie, quer seja nas plantas, nos animais ou nos microrganismos), que passará por um seqüenciador, resultando no laudo. Para a sua conclusão, os técnicos utilizam amostras de referência de pai, mãe, filhos ou avós. A habilidade e o conhecimento dos peritos dependem da infra-estrutura disponível. Salas abrigam equipamentos modernos ligados a computadores: para leigos, tudo é muito diferente e estranho. A última palavra - ou veredicto - é dada pelos peritos químicos, que desvendam seus números, linhas e letras. Para exercer essa profissão, é necessário, quer dizer, fundamental, ter um bom estômago e um grande conhecimento do corpo humano. Estar rodeado de vísceras, órgãos em estado de decomposição e restos mortais requer um toque de coragem e estômago forte.

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Logicamente, eles não tratam apenas com cadáveres, pois a maior parte do atendimento (70%) é dada a indivíduos vivos. São pessoas que foram vítimas de acidentes de trânsito, agressões, acidentes de trabalho etc. Desde os odores que circulam no ar até o movimento de vendedores de lanches, tudo é diferente da rotina de um mundo perceptível para não-profissionais. Quem ousa dar uma passadinha por lá, sai enjoado. A experiência que embala esses profissionais faz com que um simples cheiro ou uma coloração diferente já saia uma conclusão quase definida. Claro que existem muitos estudos para se chegar ao laudo. Trabalhos que envolvem responsabilidade e dedicação das pessoas que estão ali, envolvidos em um mundo microscópico, a fim de desvendar um homicídio, um suicídio ou coisas do gênero. Enfim, descobrir os responsáveis por crimes hediondos é de certa forma, ajudar a fazer justiça. No Laboratório Forence, a busca começa com a parte mais importante: a localização de amostras do DNA. Essa viagem começa no momento em que são coletados materiais para análise criminal. Diga-se de passagem, o material mencionado, muitas vezes, é o corpo humano em decomposição. O ponto central da questão é a busca 32

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constante de células presentes nos ossos, tecidos, esperma e sangue. É o DNA que definirá a culpa ou a inocência. Através de substâncias fluorescentes, ele é encontrado.

ARROZ E ERVILHA "Arroz e massa". É a voz de um perito que ressoa em um ambiente sombrio e assustador, ao abrir um estômago de um homicídio por envenenamento. Com experiência a olho nu, o químico do Laboratório de Toxicologia já reconhece todo material diluído naquele mingau gastronômico meio amarronzado. Já em outro estômago, ervilhas são encontradas quase colhidas, ou seja, verdinhas e inteiras. Suco de fígado, já ouviu falar? Pois fazem uma espécie de batida para verificação de presença de álcool, drogas ou outras substâncias. Segundo o perito químico, Daniel Scolmeister, que trabalha há três anos no Laboratório de Toxicologia Forence, "o começo é um pouco bizarro, mas depois você toma consciência da importância e da responsabilidade daquele trabalho e acaba se acostumando". Scolmeister comenta que deixou de comer bife de fígado depois que entrou para a perícia. O Laboratório de Toxicologia analisa vísceras em cadáveres, urina e sangue em pessoas vivas, para identificar a presen-


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ça de drogas ou álcool. O caminho seguido por um perito ao ter em mãos um estômago é a busca por lesões nas paredes estomacais e a análise do conteúdo de dentro que é o fator mais importante (busca de objetos). A característica do estômago é estudada através do PH e do peso. A análise desses materiais encontrados é importante para elucidar o caso. Os órgãos ficam congelados a 12 graus negativos em frascos específicos de coletas.

Para facilitar o trabalho do DML, o Chefe do Laboratório de Perícias, Fábio Pereira das Neves Leite, que assim como nos países desenvolvidos, o Brasil precisa desenvolver um banco de dados de agressores sexuais, assim como de pessoas desaparecidas. "Atendemos cerca de 30 casos por mês, sendo que ainda estamos com uns 150 casos pendentes. Um teste de DNA custa para o estado cerca de 500 reais", destaca o Perito Criminalístico.

Etapas de análise de DNA 1 Sala de extração (processo inicial); 2 Sala de Amplificação, na qual o cromossomo Y é isolado e através dele é feita a análise; 3 Aumentar os números de DNA, através de substâncias fluorescentes; 4 Seqüenciador, aparelho que detecta o perfil genético; 5 Amostras de referência (Laboratório de Análise de Mitocondrial: diferencia a linhagem materna).

Tal mundo é compreensível para alguns especialistas que obtêm seu sustento através do corpo sem vida. A rotina dessas pessoas, para muitos, é desconhecida (invisível) ou até mesmo causa ojeriza. Entre reagentes, placas THC , diclorometanos e outros materiais e substâncias laboratoriais, encontram-se pessoas que trabalham onde a visão não alcança.

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Entre livros e

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DURA REALIDADE DO MOVIMENTO DE MORADIAS ESTUDANTIS Texto e fotos de EMERSON MACHADO


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m dos poucos movimentos estudantis que sobreviveram à ditadura militar da década de 60 no Brasil foi o de casas de estudantes. Hoje o que se sabe deste tipo de moradia é muito pouco. Talvez devido à pequena quantia de casas que existem atualmente no país: cerca de 200. Outro fator relevante atualmente é a possibilidade do cidadão que reside fora dos grandes centros ter perto de sua casa acesso ao Ensino Superior em universidades particulares, que de alguns anos para cá expandiram seus campi pelo interior dos estados. Essas faculdades acabaram pegando uma parcela grande de alunos que estavam sem acesso ao ensino. Entretanto, mais de 90% não investem em moradias estudantis, segundo dados da Secretaria Nacional de Casas de Estudantes (Sence). Alguns movimentos religiosos, fundações e instituições cooperam com o movimento de casas. A falta de interesse do poder público e da sociedade colabora para que o quadro piore. Existe uma falta de vontade política para que se pense não só em como educar, mas em como dar as condições mínimas para que um ser humano possa ter um aprendizado de qualidade. Para isso é preciso de uma estrutura mínima, como transporte, moradia, livros. O estudante de Biologia Gabriel Gasperin, da Casa do Estudante Universitário Leopoldense, de São Leopoldo, comenta que há certo desinteresse dos estudantes, pois não buscam muito esse tipo residência. "Acredito que muitos não sabem mesmo, são desinformados, e outros ainda têm um pouco de preconceito, achando que tudo aqui é uma grande festa, sem responsabilidades, pura gandaia." Gabriel afirma que esse tipo de espaço, além de moradia, serve também como troca de conhecimentos e experiência.

Existem dois tipos básicos de casas de estudantes, as autônomas e as públicas. Podem ser femininas, masculinas e mistas. A primeira não dispõe de verba para seu funcionamento, as despesas são divididas entre seus moradores, sem falar na manutenção e limpeza, que, se não for terceirizada, é feita pelos próprios residentes. Já as públicas são diferentes. Como possuem verba do Governo Federal, muitas têm até serviço de limpeza de banheiros, corredores, cozinha, inclusive sala de estudos informatizada e com internet. Outra característica é a localização, são próximas dos prédios das universidades. Mas apesar de existirem casas com verbas e outras sem, todas sofrem o mesmo mal. A maioria encontra-se em más condições, com falta de estrutura, havendo a necessidade de ampliação e reformas. A seleção dos moradores é feita de várias formas. Nas públicas, em geral, existe uma comissão que avalia os candidatos à moradia, geralmente formada por funcionários da universidade e nem sempre composta com representantes das casas de estudantes envolvidas. Nas autônomas a triagem é feita pelos próprios moradores, com questionários e entrevistas pessoais. Também é necessária a apresentação de documentos, como antecedentes criminais, cópias de identidade, comprovante de matrícula. Se não estiver matriculado, não poderá permanecer na residência. Depois da bateria de testes, há um período que varia de três a seis meses de adaptação, para ver se o selecionado se integra à rotina da casa. Hermano Taffarel, estudante de Engenharia de Alimentos, morador da Casa do Estudante Universitário Cristo Rei, de São Leopoldo, acha que é importante esse atestado. "Este é um dos critérios para a seleção de novos moradores. Sabemos que é excludente, porém é uma forma de precaução."

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O número de moradores de cada casa varia conforme seu porte, não existe um padrão. Há o critério do perfil econômico do sujeito, item que pesa bastante na seleção da maioria das casas. Em todas moradias estudantis há um regimento interno, estatuto regulamentando e orientando sobre os direitos e deveres dos moradores. Há uma hierarquia, uma espécie de coordenação da entidade. Na Casa do Estudante Universitário Leopoldense, há os cargos de presidente, vice-presidente, tesoureiro, vice-tesoureiro, além do conselho deliberativo. Todos os cargos são escolhidos por eleição, realizada no início do mês de abril de cada ano, podendo ser reeleitos somente uma vez. Além disso, os moradores fazem assembléias esporádicas para por em dia os assuntos da casa e de possíveis articulações político-estudantis. Morar em uma casa de estudante é diferente de estar em uma pensão. Na hospedagem, o morador não se preocupa com nada, apenas paga e pronto. Nas moradias, indiferente se for paga ou não, pública ou privada, o residente tem o dever de participar das assembléias, entre outras atividades, sob pena de expulsão. Caso ocorra mais de uma vez a infração, o sujeito poderá ser convidado a se retirar da moradia. As casas buscam verbas das mais diferentes formas, de benefícios adquiridos com as universidades, parceria com a iniciativa privada e das tradicionais festas das casas de estudante. Mas hoje é diferente de 30 anos atrás, quando cerca de 50% dos jovens trabalhavam e a outra metade só estudava. Isso possibilitava um tempo e contingente maior para a mobilização por verbas e patrocínios. Atualmente, cerca de 90 % dos moradores trabalham ou tem bolsas, para poderem se sustentar. O que dificulta o engajamento e disponibilidade de tempo para freqüentar reuniões e discutir os problemas das casas. Uma vez por ano acontece o Encontro Nacional de Casas de Estudante. A última edição foi em abril, na cidade de Goiás, completando 30 anos do evento. O tema deste ano foi "Assistência Estudantil: O que é?". Após anos de discussão nos encontros passados, chegou-se a um consenso de que essa assistência a qual o estudante necessita não é só de moradia ou de um lanche. É muito mais. São condições de usufruir da plenitude de seu curso, aproveitando cada disciplina, como seus colegas de melhor condição financeira. Para Elizabeth Molinete, representante da região sudeste da Sence, estes encontros nacionais e regionais são extremamente importantes para o compartilhamento de informações e continuidade pela luta de mais moradias estudantis no país.


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Proibido para

menores Texto de DIANA HAAS e MELINA MESQUITA Fotos de RODRIGO NEVES


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UNS ACHAM QUE DAR ESPAÇO

PARA OS DESEJOS É ALGO ERRADO, OUTROS VIVEM E QUEREM EXTRAVASAR AS FANTASIAS QUE HABITAM SUAS MENTES, MESMO QUE TENHAM DE FAZER ISSO ESCONDIDOS

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recente descoberta de um Lupanar (nome derivado de Lupa, prostituta em latim) bordel, de mais de dois mil anos, no complexo arqueológico de Pompéia, na Itália, tem atraído milhares de visitantes para conhecer as ruínas que trazem pinturas eróticas que estimulam as fantasias. Essa necessidade de instigar os desejos continua nos dias de hoje. Só que ganhou novos artifícios para realizar as vontades sexuais de cada um. Nesses lugares, onde fantasias e fetiches se confundem, a imaginação e o culto a um objeto ou parte do corpo são constantemente aguçados, através de imagens, sons, cheiros e pelo outro. Alguns dos produtos desse mercado já não são novidade mas despertam curiosidade. Entre eles, uma sala de cinema, casa de relacionamento e uma banda de rock, são personagens que permeiam esse universo.

O ESCURINHO Os cinemas sempre foram locais vistos como um meio de aproximar e despertar a imaginação das pessoas. Dentro desse conceito, o Cine Apolo, no Centro de Porto Alegre, atende a um público que busca um pouco mais que apenas assistir filmes. O cinema exibe, a partir das 10h, com ingressos a R$ 7,00, filmes pornôs com cenas clichês de colegiais, mecânicos e desconhecidos entregues ao prazer. Todo os dias, às 17h, um sofá em frente à tela é o cenário para o casal que proporciona sexo explícito, durante 30 minutos. Na platéia, homens entre 50 a 65 anos, homossexuais e prostitutas. O sexo oral e a masturbação são feitos livremente e abrem espaço para relações de prazer que permitem aos espectadores se conhecerem através de um contato mais íntimo ou apenas


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relaxar individualmente. Aqueles que preferem fugir dos olhares ou dar continuidade a uma transa, contam com os dark rooms, pequenas salas privês com sessões de vídeo e espaço para sexo mais privado que existe no local. Essa liberdade dentro da sala do Cine Apolo garante aos que transitam no Centro de Porto Alegre dar um tempo em suas rotinas e encontrar ali um momento de fantasia. Alexandre da Silva, 34 anos, tem uma profissão cercada de fetiches. "Quando comento o que faço, a primeira coisa que vem à cabeça é que sou um ator. Trabalha nesse meio, então é pornográfico. Mas é um trabalho como qualquer outro. O bom é que vê filme pornô o dia inteiro. Para quem gosta, é uma maravilha", explica. Quando pode, dá uma espiada nas apresentações e filmes que estão em cartaz. A escuridão da sala parece um limite entre as fantasias, presas naquele ambiente, e a luz, da realidade da rua. Existe uma espécie de pacto entre os que estão na sala. Alexandre diz que, ao passar pela porta, um mundo pode ser revelado ou esquecido. A escuridão que delimita fantasia e realidade no Cine Apolo também é o ponto alto da casa Eróticos Vídeos, próxima à avenida Farrapos, principal zona de prostituição da Capital. O loca pode até passar despercebido pelos transeuntes da Alberto Bins. Mas são três andares: O primeiro tem vídeo locadora e sauna; o segundo abriga bar com shows; e terceiro tem dark rooms e várias cabines com propostas diferenciadas, todos a serviço dos fetiches. No caso do último pavimento, a relação sexual é a principal proposta. O labirinto escuro leva a cabines de vídeos, cama coletiva, dois mini-cinemas com platéia frente a frente, com filmes pornôs heterossexuais e homossexuais, sala com espelhos falsos que permitem assistir à transa e cabines com buracos que permite um acesso a partes do corpo da outra pessoa que está do outro lado. Nesse espaço, troca de casais, vouyerismo, ménage à trois, ter relações entre pessoas do mesmo sexo e outras fantasias e fetiches podem ser realizados. Algo que só depende da permissão de cada um e, no caso das cabines, escolher o buraco certo para satisfazer o desejo através de uma brincadeira que mantém o mistério sobre identidade do outro. Segundo o gerente da casa, Cláudio Oss, 27 anos, o terceiro andar é liberado para sexo sem limites. "Mantemos um lugar para que as pessoas se liberem do jeito que quiserem. Assim como tem gente que vem, e não é para fazer sexo, se vier é tranqüilo", explica. Os freqüentadores desse espaço recebem uma quantidade de preservativos sexuais que a casa oferece. No primeiro andar da casa tem, a vídeo locadora, para retirar ou assistir nos dark rooms os filmes, e uma sauna, em que só permitido andar de roupão ou pelado. A sauna é mais freqüentada por homens com cerca de 40 a 60 anos. É oferecido um descanso em cadeiras com

uma vista especial que ficam em frente às duchas, que têm boxes somente na parte de cima, deixando os banhistas expostos numa espécie de vitrine para quem está sentado. A parte que abriga os shows atende a um fetiche antigo, mas que mexe com as pessoas: os stripteases são conduzidos por um anfitrião que faz dublagens e interage com o público de maneira divertida. Os espetáculos diários, às 19h30min, de gogoboys atraem muitos homens jovens e às vezes, algumas mulheres. No domingo, além da apresentação, acontece uma festa, a partir das 16h, com DJ's. "Quando as pessoas chegam e perguntam como funciona, é esclarecido desde o início que é uma casa aberta a todo tipo de público, porém o público maior é masculino", afirma Cláudio. O público varia durante a semana, quando frequentam o local homens casados, que procuram algo diferente do casamento. Eles aproveitam o horário do almoço e final da tarde para ir até a casa. Nos finais de semana, a coisa é mais direcionada ao sexo, com a presença de pessoas que não são presas a compromissos e têm uma relação aberta. Cláudio acredita que as fantasias sexuais não estão ligadas apenas ao amor, e sim ao instinto. "É verdade que somos racionais e isso nos difere dos animais! E o instinto é coisa de animal, tudo bem! Mas a gente não pode esquecer que a gente é parte da natureza. E tem o lado instintivo. Sexo é o mais evidente que a gente tem o lado animal e instintivo", finaliza.

MÚSICA E SEXO Ao contrário das pessoas que querem esconder, têm algumas que fazem questão de mostrar o seu lado erótico. É o caso do chamado Dr. Love, personagem criado pelo vocalista da banda Baby Doll, que faz shows em casas de shows eróticos e boates, e músicas como Ninfomaníaca, Embalo na Horizontal e Frígida. A banda tem uma proposta diferente: quer mesmo é mostrar e falar muito sobre sexo, fetiches e fantasias. Em seus shows, muitas vezes, acontecem performances com stripers e travestis, que fazem muito sucesso pela excentricidade. "Uma vez fomos convidados para tocar em uma xoxoteca. Levei umas amigas, primas e tal, foi um sucesso. Tanto que a Buttman do Brasil nos convidou para gravar um vídeo clipe pornô com eles. Mas as stripers são esporádicas. O que vem primeiro é a música", garante. A parceria da banda com a Buttman, produtora de filmes pornôs, resultará no lançamento de um CD. Segundo o vocalista, as letras escrachadas são inspiradas em fatos reais, que aconteceram com integrantes da banda e amigos. Temas como problemas na adolescência, garotas de programa, a vida noturna na avenida Farrapos, ponto de prostituição, estão presentes nas músicas da banda, que faz de prostitutas suas maiores musas.

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Uma febre

virtual Texto de ADILSON CASTILHOS e CAIO SCHENINI Fotos de CAIO SCHENINI


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HOUSES OFERECEM NOVAS FORMAS DE ACESSAR A INTERNET

E PASSAM A TER UM PAPEL IMPORTANTE NA CIBERCULTURA

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luz escassa que passa pelas folhagens reflete no rifle de Nelson. Ele espera receber alguma instrução através do fone, mas tudo que ouve são palavrões seguidos de tiros. O comandante deve estar encurralado. Depois de mais alguns segundos escondido, toma coragem e resolve correr na direção de onde acredita estar vindo o ruído dos disparos. Ao sair dos arbustos, Nelson se vê no meio do que parece ser uma selva tropical, a julgar pela vegetação. Sem perder tempo, corre em meio às palmeiras e folhagens, o sol lhe ofuscando a visão... até ver uma granada explodindo ao seu lado. Deve ser a vigésima vez que ele morre esta tarde. Explodir nunca foi tão divertido! Num sábado é comum ver lan houses lotadas por jogadores como Nelson Freitas, que buscam diversão em jogos eletrônicos como Far Cry, Hal Life e Counter Strike. Ali os jogadores podem competir através de computadores online ou offline. Eles se dividem em times e competem em ambientes virtuais que reproduzem de maneira precisa selvas, praias, cidades, ou mesmo lugares absolutamente surrealistas. "Far Cry tem sido meu jogo preferido, embora eu jogue Counter Strike com alguma freqüência", diz Nelson, estudante de 22 anos, que trabalha no comércio, atendendo ao público. O conceito de lan house já se tornou bastante conhecido. Os estabelecimentos, com computadores ligados em rede, permitindo partidas e torneios de vários times, oferecem uma grande opção de jogos. Os mais procurados são os jogos de guerra em primeira pessoa quando o jogador vê o ambiente da perspectiva do personagem. As lan houses teriam surgido na Coréia em 1996, chegando ao Brasil em 98. O boom foi ocorrer em

2000, quando os estabelecimentos viraram moda, principalmente entre os adolescentes. Esses estabelecimentos diferem dos cibercafés justamente no fato de que seus freqüentadores vão lá só para jogar. Cristian Schmidt, funcionário da Code 3, lan de Porto Alegre, diz que o perfil dos jogadores é variado. "A gente poderia dizer que o padrão do público seriam os homens, no geral adolescentes, seguidos de adultos e apenas algumas garotas." Ele afirma que a maioria de jovens se justificaria pela sua maior disponibilidade, embora não saiba precisar o porquê da resistência do público feminino. "Acho que isso acontece devido à maior presença de jogos feitos para o público masculino." Cristiano se refere aos games de guerra. Um tipo de "impulso de caçar alguma coisa" faria com que os homens buscassem esses jogos. Porém, as garotas costumam ir até as lan houses para navegar na internet, atraídas pela infra-estrutura desses lugares. De qualquer forma, o público é bastante variado. Mesmo nas madrugadas, este perfil e, por vezes a quantidade de jogadores, se mantém o mesmo. Essas casas oferecem inúmeras vantagens em relação a outras formas de entretenimento. A segurança é uma delas. Os ambientes fechados, no geral, estão dentro de shopping centers. Na Code 3, os mais jovens devem ir com autorização dos pais. O comércio de álcool não só é proibido, como não é permitido levar bebidas alcoólicas para dentro do recinto. Promoções e pacotes tornam tudo mais atraente. O preço varia de acordo com o dia da semana, mas uma noite inteira jogando não sai mais de 10 reais, dependendo do dia da semana e do local. Ar condicionado, cadeiras ou poltronas confortáveis e lanchonetes dentro da casa não raro são elementos que tor-

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nam esses lugares ainda mais atraentes. Diferente do que acontece em outros meios, a necessidade de ser "compreensível para um público médio" ou o medo da censura não parece impedir que os games sejam cada vez mais longos, insólitos, moralmente ambíguos e, por vezes, até inteligentes. Eles obtêm sucesso aparentemente não dando a mínima pelota para regras que são sagradas em outras mídias. A tecnologia fez com que os gráficos e a jogabilidade evoluíssem enormemente, e muito mais vêm pela frente, posto que as máquinas estão cada vez mais sofisticadas. A possibilidade de jogar em rede dá origem à campeonatos que causam alguma mobilização por parte dos jogadores. Competições regionais, nacionais, mundias. Jogadores como Diego Luiz Silva, 24 anos, dono de uma lan house, já têm know-how nesta área. Aos 12 anos de idade, já tinha 100 campeonatos ganhos. Por sua habilidade, quase foi chamado para trabalhar na Eletronic Arts, conhecida empresa de games, o que não ocorreu porque ele era jovem demais. Atualmente ele participa de campeonatos BFCUP, que seria o campeonato Brasileiro do Battlefield 2, cuja pré-

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temporada começou no mês de setembro. "O jogo é pela internet, nos servidores da BFCUP, que pertencem ao provedor Terra. São dois jogos na pré-temporada. Depois o bicho pega. A maioria dos componentes do meu time vai jogar daqui da minha lan house." O jogador acredita que os campeonatos poderiam ser um fenômeno muito maior se houvesse mais coragem e interesse por parte dos investidores. Esses parecem ser intimidados pelo fato de que o jogo eletrônico não atinge, necessariamente, um status de esporte popular, problema que foi enfrentado por outros jogos, que não raro carregavam algum tipo de rótulo negativo. É como quando algumas pessoas dizem que bocha é coisa de bebum, futebol coisa de alienado e tênis coisa de mauricinho. Pois, de acordo com Diego, as pessoas no Brasil ouvem falar em games e já tomam por "coisa de pirralho". Mas ele coloca que, de qualquer forma, a prática está se difundindo. O irmão de Diego, Enio Gomes da Silva Junior, comerciante de 30 anos, joga no mesmo clã que ele, os Mercenários. Enio é commander, quem visualisa o mapa


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e dá os comandos através do voip (fones de ouvido e um pequeno microfone). Ele não concorda que exista uma imagem negativa do jogo eletrônico, que ele tenha um caráter marginal. Exceto entre as mulheres: "Minha esposa detesta", conta o comerciante. Apesar da difusão do jogo eletrônico, desde o boom em 2000, a febre arrefeceu. Muitas lan houses fecharam, e este tipo de mercado diminuiu consideravelmente. Talvez isso se deva ao fato de que a infra-estrutura é cara, embora dê retorno. Cristian Schmidt, da Code 3, expõe que a manutenção do equipamento e o aluguel de um ponto estratégico como um shopping não sai barato. Um dos exemplos que ele dá é o dos jogos. Um jogo novo para o estabelecimento exige que se compre um cd para cada máquina, embora em alguns lugares eles usem cópias de uma unidade nos aparelhos. "Um jogo pode passar de R$ 100 e estamos sempre trazendo novos. Mais eventualmente, compramos peças como placas de som e vídeo. Imagine isso em cada uma dessas máquinas. Para se ter lucro é preciso administrar muito bem a casa", conta. Outro motivo pode ser o fato de que o game em

rede pode ser jogado em casa com maior freqüência, já que as pessoas têm tido mais acesso às conexões rápidas. Lans e jogos em rede fazem parte de uma cultura que está cada vez mais atrelada ao cyber-espaço. Esta tendência aparentemente irreversível, de acordo com a psicóloga Marlene Cruz, apresenta uma série de pontos sobre os quais se deve manter atenção: A velocidade típica da diversão virtual e principalmente dos jogos eletrônicos pode afetar de maneira negativa a forma como a mente humana funciona. Acostumado à velocidade, o indivíduo pode apresentar dificuldades em se concentrar, diz a psicóloga. Outra questão que ela aponta é a do individualismo. Diferente de outras formas de entretenimento, a diversão virtual não necessita obrigatoriamente de um contato direto com o outro, fazendo com que o sujeito não exercite sua sociabilidade. Mesmo assim, a lan house continua sendo um bom ponto de encontro: divertido e, via de regra, com equipamentos de primeira. Interessante para quem busca novas formas de entretenimento e deseja explorar melhor o que a internet pode oferecer.

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UM VIADUTO,

UM HOMEM E UMA MULHER CONSTRUÍRAM COM AS PRÓPRIAS MÃOS O LOCAL ONDE VIVEM

Há vida na

caverna Texto e foto de DANIEL MARENCO


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omo uma linha tracejada que leva ao X do mapa, as roupas coloridas penduradas no varal mostram o local da caverna. E ali, embaixo de um viaduto, está o tesouro de Carlos Amaro Campos dos Santos, 45 anos, pedreiro por profissão e catador de latas e papelão por necessidade, e da companheira Juliana Aparecida da Silva, 30 anos: a casa onde vivem. Ele é o homem da caverna, como é conhecido na redondeza, e ela, a dona da caverna. Juliana é quem organiza o quarto, estica a colcha amarelo-ovo, lava as roupas e as estende no varal, e mantém sempre limpo o tapete que cobre o piso de chão batido que ainda é maioria no casebre. O assoalho de madeira, já iniciado na sala, aos poucos vai aumentando com os sarrafos que Carlos cata nas suas andanças pelas ruas. Aliás, cata tudo que venha a ter utilidade para a casa. Os três sofás e o balcão da cozinha foram achados dessa maneira. Carlos e Juliana batalham para sobreviver, mas têm ajuda de muitas pessoas. "No Natal, recebemos muitas cestas básicas. A sala fica cheia de sacolas. Se alguns dos nossos amigos têm necessidade, dividimos com eles o que ganhamos", diz Juliana. Algumas pessoas deixam as sacolas no portão da cerca de madeira que delimita o pátio da caverna e vão embora. Elas temem, diz Carlos, que morem ali pessoas ruins. Mas ele nega ter cometido qualquer maldade. Mesmo "desviado" da Igreja, como gosta de dizer, se orgulha de levar uma vida digna e honesta.

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Carlos é pai de cinco filhos que não vê faz tempo. Gleci, nome que leva para o resto da vida tatuado no braço esquerdo, foi seu primeiro amor e mãe dos filhos. Carlos e Juliana se conheceram há dois anos na Vila Pedreira, em Esteio. A dona da caverna, mesmo ali, mantém a vaidade. E sonha em ser mãe. Na caverna, Juliana dá leite a um gatinho. "Dou na mamadeira, porque no pires ele não toma", diz, lamentando o fato de não poder ter filhos. Juliana perdeu a virgindade com 11 anos. Às vezes pensa que foi prostituída por umas peças de roupas. Na época, era encantada por um rapaz mais velho, de 18, que cometia alguns pequenos assaltos. Numa dessas, as blusas e saias, produtos do roubo, deixaram Juliana louca. Ele negociou, ela vacilou. Desde lá, Juliana transou com muitos homens sem precaução e nunca engravidou. O homem e a dona da caverna estão ansiosos. Eles esperam a data de voltar à Igreja. Carlos quer ser reintegrado à religião e Juliana vai ser batizada. Isso é motivo de festa. Na caixa de papelão em que guardam os alimentos que ganham, e que sempre está sob vigia permanente por causa dos ratos, estão as duas latas de leite condensado e o pacote de coco ralado. Eles são parte da receita de um bolo que a irmã de Carlos prometeu fazer para a festa no dia tão esperado. O próximo passo já está pensado. Mesmo "embolados", como dizem, querem se casar. A caverna é grande, tem seis espaçosas peças. Só o banhei-


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ro é mais improvisado que o resto. O banho de mangueira é frio e as necessidades são feitas em sacolas plásticas, que vão parar no valão vizinho. Existe até quarto de hóspedes para receber os parentes vindos do Interior. Uma rústica cama guarda dois colchões, para visitas maiores. A luz das lâmpadas esquenta o ambiente colorido pelas cores dos diversos tipos de madeira que encontram para paredes. O teto é baixo. Muito baixo. É impossível caminhar de pé. A posição arqueada, de como alguém que sofre de dores lombares, é inevitável. Além disso, é escuro, preto da bruma de fumaça. Mas a limpeza que aplicam ao ambiente faz com que a casa não seja fedorenta. Forte é o cheiro da madeira que queima no fogão à lenha usado quando o gás do outro fogão de duas bocas acaba. Carlos compra o gás, um pedaço de carne, e quando dá, um "agradinho pra Juli", com o que ganha da venda do que cata e do artesanato que faz. Ele é um exímio montador de barcos e navios dentro de garrafas de vidro. Mas o homem da caverna sonha em sair dali. Juliana também. Os dois querem uma casa com banheiro decente. Carlos quer pendurar na cerca em frente à casa a placa com os dizeres "serviço de pedreiro e carpinteiro". Sente na pele o preconceito de quem não o contrata por viver ali. Juliana quer reconquistar a dignidade com endereço, CEP e um local sem

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o barulho do tráfego dos caminhões. Quem passa pela BR 116, e nota as roupas do varal, penduradas e cheirosas a sabão de glicerina, entre Canoas e Esteio, não pode mais tratar Carlos e Juliana como seres invisíveis. Estão ali não porque querem, mas porque só ali conseguiram ficar.


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Alguns instantes

em outro país

CULTURA: o Café de Bordo se transforma em vários lugares

Texto de ANA CRISTINA KNEWITZ e CÍNTIA MACHADO Fotos de DANIEL ALFAYA

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NÃO

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É NECESSÁRIO SAIR DO

BRASIL

PARA SENTIR-SE NO EXTERIOR:

FALAR UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA E CONHECER OUTRA CULTURA SÃO ATIVIDADES QUE PODEM ACONTECER AQUI MESMO

Q

uase ninguém sabe, mas existem vários cantinhos do mundo no Brasil. São cantinhos que se formam, se dissolvem, voltam a formar-se. Um mesmo local pode ora tornar-se um pedacinho da França, ora um pedacinho da Itália, ora da Inglaterra ou de qualquer outro lugar do planeta. Um pequeno local pode até mesmo transformar-se em uma Torre de Babel. Trata-se de encontros em línguas estrangeiras. Pessoas reúnem-se para passar algumas horas conversando em outro idioma. É a consolidação de uma busca por oportunidades de desenvolver uma outra língua. Cada encontro acontece com uma proposta diferente, de acordo com seu público e com o objetivo dos organizadores. O Café de Bordo, em São Leopoldo, é um dos lugares que promove esse tipo de encontro. Existe um ambiente lá que já foi França, já foi Itália e já foi Inglaterra. "O interessante disso é que tem pessoas de vários níveis de aprendizagem. Como é um ambiente descontraído, as pessoas ficam mais a vontade para falar. É como se tu estivesses em um país estrangeiro", define Aidê Stürmer, proprietária do local e da agência de Viagens Paralelo 30, junto a qual funciona o café. Os encontros acontecem uma ou duas vezes por mês, sem data fixa, porque, como explica Aidê, dependem da disponibilidade dos professores. Em cada reunião é desempenhada uma atividade cultural orientada por um professor e relacionada ao país tema para colocar os participantes em contato com o idioma. Na segunda parte, abre-se espaço para conversação. Atualmente, acontecem encontros em inglês e francês. "Acho que o inglês é mais comum, existem mais lugares para praticá-lo. O francês sempre tem um público maior", conta a proprietária.

CONVERSANDO EM FRANCÊS Em agosto, por exemplo, aconteceu no Café de Bordo o segundo encontro de francês orientado pela professora Luciana Cavalheiro, do Unilínguas, da Unisinos. Naquele

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dia, a professora fez uma mini palestra sobre uma viagem à França, ressaltando o aspecto cultural, com apresentação de inúmeras imagens de monumentos e pontos turísticos. Enquanto a professora falava, os freqüentadores iam fazendo intervenções. Após a exposição, foi aberto espaço para perguntas e, mais tarde, boa parte do grupo sentou-se, formando uma roda de conversação. Curiosos, sentados em outros ambientes do bar, espiavam, e desavisados sentavam-se por engano no local. Para Luciana, os encontros servem de estímulo para os alunos colocarem em prática o que aprendem em sala de aula. "Muitas vezes eles não têm oportunidade de ver uma aplicação em curto prazo. Nos dois primeiros encontros, houve a presença de franceses. É uma ocasião para eles escutarem outro francês além do meu. Isso confere um toque autêntico ao que se fala. Os alunos sempre ficam interessados, alguns tentam interagir com eles, outros ficam intimidados." A professora conta que os alunos em nível mais avançado sentem-se mais a vontade para falar e obtém um grau de satisfação maior por constatarem que são capazes de se comunicar em francês. Aqueles que estão no início do curso, em geral, ficam mais intimidados, mas todos têm sua forma de aproveitar. "Alguns dizem que só de estarem ali ouvindo já é interessante." Para Anacilda Oliveira Rocha, juíza do trabalho aposentada que concluiu o curso de francês do Unilínguas no final de 2005, a melhor forma de atingir a fluência no idioma é conversando. Ela foi aos dois encontros e incentiva os mais tímidos a falar: "A gente tem que falar errado mesmo, mas tem que praticar, porque assim vai fixando aquilo que aprendeu. Começa montando frases pedacinho em português, pedacinho em francês e daqui a pouco consegue expressar uma idéia. Mais um pouco e já está até pensando em francês." Anacilda conta que o que mais contribuiu para seu aprendizado foram os módulos de conversação que fez ao longo do curso. Nunca havia participado antes de encontros como esse, só de reuniões semestrais com os colegas para treinar o idioma. Com pou-


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co mais da metade do curso concluído, viajou para a França num quarteto no qual era a única que falava francês. "Eu consegui me virar muito bem. Não foi fácil. O primeiro dia foi bem difícil. A partir do segundo, terceiro, foi mais tranqüilo." Luciana acredita que o ambiente de sala de aula não se diferencia muito do ambiente do café em termos de descontração, porque, ao contrário de outros idiomas, o aluno que escolhe estudar francês o faz por prazer e normalmente solicita esse tipo de evento: "É uma continuidade do prazer que eles sentem em sala de aula". A idéia surgiu de uma aluna. "Justamente uma aluna que é tímida. Eu procurei dar continuidade a esse projeto, porque seria interessante para ela como estímulo de aprendizado", conta. A aluna é a assistente social Liliane Maria do Santos. Ela está no quarto semestre do curso. Apesar de seu cunhado ser francês e sua irmã falar o idioma, não tem muito contato com a língua no meio familiar. "Pedi para a Luciana que começasse a organizar os encontros por ser mais uma oportunidade para praticar a língua. Como conhecia a dona do café, intermediei a negociação de um espaço para o francês." Liliane confessa não se sentir a vontade para falar. "Busco justamente isso, um espaço onde eu possa me desinibir, ir me familiarizando e desenvolvendo também a questão da fala".

SEM FRONTEIRAS Outra forma de treinar um idioma é reunir no mesmo local pessoas de diferentes países, cada uma com interesse em desenvolver uma determinada língua, além de conhecer outras culturas. O Bar do Goethe, funcionando no Instituto Goethe, em Porto Alegre, desde 1987, se propõe a isso. "A idéia é buscar adolescentes que estudem idiomas e queiram treinar, fazer amizade com pessoas de outros países e informar-se sobre viagens e intercâmbio", explica o proprietário Fernando Yepes. O local foi um dos primeiros da cidade a realizar esse tipo de encontro. Fernando é argentino e um apaixonado por línguas estrangeiras. Quando adolescente trabalhava para pagar seus cursos de idiomas e sentia falta de oportunidades para exercitá-los. Já no Brasil, pouco tempo depois de abrir seu bar, teve a idéia que é desenvolvida há 17 anos. "As pessoas vão sentando e eu mais ou menos escuto. Se naquela mesa estão falando francês, falo francês também. Como conheço a maioria e sei o idioma que querem treinar, vou lá na cara de pau mesmo, apresento uns aos outros e, se eles se derem bem, continuam conversando", conta Fernando. Oportunidades para treinar e desenvolver um idioma diferente não faltam, é só pesquisar. Quer conversar com estrangeiros, aproveitar para informar-se sobre o que acontece e o que existe em outros países? Quer treinar uma língua estrangeira junto a outros estudantes e conhecedores? Escolha o lugar e divirta-se!

Pratique Bar do Goethe Horário de funcionamento: segunda a sexta-feira, das 14h30min às 22h Endereço: Rua 24 de Outubro, 112 - Instituto Goethe, Porto Alegre Telefone: (51) 8404 9356 Site: www.bardogoethe.com.br E-mail: bardogoethepoa@yahoo.com.br Café de Bordo Horários de funcionamento: segunda a sexta-feira, das 9h às 22h / sábados, das 13h30min às 20h Endereço: Av. João Correa, 997 - São Leopoldo Telefone: (51) 3037 3522 Site: www.paralelo30turismo.com.br E-mail: paralelo30@paralelo30turismo.com.br Nos dois locais os encontros de idiomas têm entrada franca.

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Amar

não é brinquedo WILSON PACHECO

QUER TRANSFORMAR

SEU SONHO EM REALIDADE Texto de LÉLIA POHREN Fotos de CAIO SCHENINI

O

primeiro choro e pronto! É o primeiro contato com a vida de um mundo que ela ainda não vê, de um futuro incerto que dizem ser seu, que um dia se fará presente e que agora está nas mãos de alguém. Seus olhinhos já se abrem, procurando movimentos, cores e formas. É o começo de muitas brincadeiras que levarão a criança a descobrir-se, onde ela própria parece um lindo brinquedo apaixonante, cheio de vida e que precisa ser cuidado com amor. Era uma vez um menino que trouxe do mundo invisível do seus sonhos de infância uma série de inquietações que o incomodavam. Uma delas é a desigualdade social. Wilson

Pacheco, arquiteto, era esse menino. Quando criança, tinha conhecido um brinquedo de montar com pecinhas, chamado poli, parecido com um outro brinquedo, chamado lego. Ele conta que era um brinquedo caro, pelo número de peças e pelas limitações que lhe causava em sua criatividade. Ele tinha que desmontar várias vezes o que criava para pegar uma peça que faltava e montar de novo um brinquedo até atingir seu objetivo. Para ele, isso era um processo muito demorado e desgastante. Então, quando cresceu, criou um brinquedo parecido, com peças âncoras, adaptáveis em qualquer outro módulo do conjunto para facilitar a brincadeira, podendo ser comercializadas à parte.

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Wilson nasceu em Caçador, Santa Catarina, lugar de invernos muito frios. Ele recorda de como se sentia triste quando via mendigos e crianças pobres passando frio e fome: "Eu tinha vontade de botar todos dentro da minha casa, de dar comida e cobertores, ficar junto e brincar com eles", conta Wilson. Dos invisíveis desejos daquele menino e inquietações desse adulto, nasceu o Projeto Esperança, cujo principal objetivo é gerar emprego e renda através de uma rede de cooperação de parcerias para desenvolver a parte industrial e comercial de projetos. Segundo Gilnei Pereira dos Santos, consultor de empreendimentos, a parte industrial da fabricação do brinquedo de Wilson, por exemplo, seria a mais difícil, pelo custo das matrizes. Mas esse problema está sendo resolvido, pois há uma empresa de Novo Hamburgo interessada na produção do brinquedo e que fornecerá as matrizes. Depois de comercializar o brinquedo, o passo seguinte seria montar uma incubadora, para oportunizar outras pessoas criativas como Wilson, que quisessem produzir mais brinquedos para, juntos, criarem uma linha única, com uma marca, em parceria com ONGs, iniciativa pública e privada. Este então é o projeto esperança: A reunião de vários criadores de brinquedos em um só local. Parte dos lucros seria revertido para questões sociais, para, beneficiar

crianças carentes. Vânia Isabel Eckert, psicóloga, diz que muitos brinquedos são limitados diante da capacidade de criação das crianças. Elas podem ter várias coisas para brincar mas, às vezes, largam tudo para inventar jogos e regras, desindividualizando o brinquedo para estarem juntos , comungando as brincadeiras. Ela fala também da falta de chances de desenvolvimento das crianças diante da desigualdade social. Certa vez, um menino que fazia terapia com ela e que há algum tempo ela não via, veio abraçá-la, dizendo que tinha aniversariado. Ela lhe deu os parabéns e perguntou se ele tinha ganhado muitos presentes. Ele respondeu que tinha recebido um litro de leite da avó. "O menino era muito pobre e passava por muitas dificuldades. Que chances de vida tem uma criança assim?",comenta Vânia. "Se as crianças são o futuro do Brasil, onde estão os adultos que já foram crianças? Brincam com o que e com quem? Que futuro é esse, cujos responsáveis não enxergam porque não olham para o futuro?", pergunta Wilson. Enquanto crianças e adultos passam fome e frio, sem uma oportunidade de uma vida mais digna, segundo Wilson, o Projeto Esperança viria trazer à luz o mundo invisível dos sonhos, de quem é capaz de construir um mundo melhor, com inclusão social e que olhe com amor para o futuro.

INOVAÇÃO: Wilson é idealizador do Projeto Esperança

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Eu sei...

Texto de ERNANI LUÍS KUNST e VANESSA SILVA Fotos deeRAFAEL RECH


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... o que você

SEGURANÇA

E

OU INVASÃO DE PRIVACIDADE?

la chega onde não podemos imaginar. Está nos museus, teatros, shoppings, supermercados, postos de gasolina, estádios de futebol, farmácias, propriedades particulares e, ultimamente, até nas cidades e rodovias, 24 horas por dia. Ela vê a todos ao mesmo tempo e o tempo todo. É poder de onipresença antes só exercido por Deus. O homem domina esse poder graças às câmeras de vigilância. Através das lentes dessas deusas eletrônicas, observa todos os movimentos, do simples ato de comprar um litro de leite à malandragem da troca de etiquetas de produtos. Os flagrantes vão da revelação de maracutaias de políticos corruptos a cenas calientes de suposta transa de celebridades em uma praia espanhola. Devido à crescente violência nas metrópoles, o voyerismo eletrônico tornou-se essencial para coibir e identificar ações criminosas. Sorria! Você está sendo filmado! Esse é o cartão de visitas de um número cada vez maior

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de estabelecimentos. Você faz idéia o que está por trás desse escrito que, para muitas pessoas, não passa de mera formalidade ou mecanismo de coerção? Esse é o pequeno mundo invisível do vigilante, que manipula as imagens no painel de controle e consegue acompanhar os passos sem que o alvo o perceba. O que se quer é enxergar cada vez mais longe, sem ser visto, com a finalidade de combater o inimigo. Normalmente posicionado em lugares estratégicos, esse olho eletrônico pode ser visível como também pode estar camuflado e imperceptível aos passantes. Itacir Luis Guerra, 45 anos, é vigilante e há 19 trabalha numa rede de supermercados de São Leopoldo. Mesmo admitindo que não seja muito bom trabalhar isolado numa pequena sala de controle, ele se diz muito à vontade para acompanhar os passos dos clientes e funcionários. Nada foge aos olhos de Itacir: corredores com clientes, operadores de caixa, depósito, estacionamento e até porta-malas dos automóveis. A tecnologia é tanta que as lentes


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está fazendo

percebem situações pouco imagináveis pelas pessoas, como por exemplo, a flagrante troca de preços de mercadorias, admite Itacir, justificando que a preocupação com a segurança tende a aumentar cada vez mais. Não fico feliz por flagrar alguém roubando; na verdade, isso me entristece, descreve o precavido vigilante, enquanto observa o movimento no interior da loja. Câmera de vigilância é sinônimo de segurança ou é invasão de privacidade? Para quem trabalha com as câmeras, é sinal de segurança e para quem está sendo observado pode ser invasão de privacidade. Quando está fora do seu ambiente de trabalho, Itacir se diz muito à vontade com as câmeras, caminhando como se elas nem existissem, até por que "não devo nada a ninguém", afirma. Contra os que consideram a câmera uma invasão de privacidade, pesam os inúmeros furtos e prejuízos decorridos do vandalismo. A partir do momento que a pessoa toma conhecimento de que está sendo vigiada, muda radicalmente de atitude. Itacir conta que flagrou uma senhora

grávida e uma outra roubando no setor de perfumaria. Fora da loja, as convenci a voltar até o setor onde são feitas as revistas. "Quando ouviram que chamamos a polícia, a grávida começou a se bater com o próprio tamanco simulando uma agressão. Informada de que, além de perder seu filho ela perderia também a causa, uma vez que estava sendo filmada, imediatamente parou de se bater", relata Itacir. Ao falar sobre o poder que tem em suas mãos quando manipula esse equipamento, Itacir é comedido. "A principal diferença entre o olhar presencial e o sistema eletrônico é poder passar por toda a loja em questão de segundos", conclui sem se importar que o sistema lhe dê condições de ser um misto de homem e Deus do mercado, com olhos para todos os lados sem ser visto. Para os não civilizados, a câmera é instrumento de coação, tornando-se canal de educação, de formação de caráter e boas maneiras de comportamento, mesmo que não espontâneas. Neste sentido, a câmera é uma extensão do homem a serviço da sociedade.

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Não se pode viver para Texto de DAIANI LUDMILA BARTH e PIERO BARCELLOS. Fotos de DANIEL ALFAYA


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sempre


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... mas se pode AS ÁRVORES NA CALÇADA DA AVENIDA JOÃO PESSOA, EM PORTO ALEGRE, ESCONDEM O MUNDO DO AMOR COMO PRINCÍPIO, DA ORDEM COMO BASE E DO PROGRESSO POR FIM

PORTO ALEGRE, DÉCADA DE 40

A

grande enchente que assolou a cidade provocou diversas mudanças em sua estrutura. A construção do muro na Avenida Mauá impediria uma futura inundação pelas águas do Guaíba. Dutos de drenagem eram construídos na orla. Dentre outras obras, estava sendo realizada a pavimentação das principais ruas de Porto Alegre. Aos poucos, os animais que circulavam pela cidade são substituídos pelos modernos automóveis, que precisavam de estradas menos irregulares. A Avenida João Pessoa passava por este processo de asfaltamento. O cenário feito pela construção civil não impedia que algumas pessoas circulassem pela rua, em direção a uma casa grande e distinta. Famílias subiam a escada e sumiam atrás das portas. Quem ficava do lado de fora excomungava aqueles que entravam. Para a maioria da sociedade, eram pessoas sem Deus. Do lado de dentro, os amantes do Positivismo iam tomando seus assentos em torno do púlpito. O orador preparava o tema do encontro. Enquanto isso, algumas mulheres subiam até o mezanino para cantar e declamar poesias. Em tempos de guerra, ali parecia ser um reduto de paz. As crianças circulavam

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alegres entre os adultos, muitos deles figuras importantes da sociedade porto-alegrense - engenheiros, médicos, políticos, professores, pensadores. O orador toma posse do seu lugar e inicia os trabalhos. Ele diz: "O amor por início" e coloca a mão na testa. "A ordem por base", e a posiciona em cima da cabeça. "O progresso por fim", e repousa a mão na nuca. Todos repetem o gesto. Esta seria uma das últimas reuniões do grupo. Diante da Segunda Guerra Mundial, e pelo número de pessoas que fugiam da Europa em direção ao Brasil, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) aumentou o cerco a todo o tipo de material que circulava na época, inclusive aqueles ditos religiosos. Os positivistas, além de discutirem as mazelas da sociedade, como a falta de emprego e a administração dos recursos públicos, colocaram em pauta a censura de seus escritos, considerando o fato uma violência contra tudo no que acreditavam. Cogitaram até o cancelamento dos encontros. A sociedade, quem sabe, ficaria mais branda com eles. Por outro lado, seria como ignorar todo o trabalho do engenheiro Carlos Torres Gonçalves, que demorou quase dez anos para construir o templo. Decidiram discutir o tema no próximo encontro. As famílias se despediram, e cada um voltou à sua rotina, até se reencontrarem novamente. Mas não no mesmo lugar.


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amar para sempre RITUAL: desde a década de 80, Capelli é o responsável pela abertura do templo

PORTO ALEGRE, SETEMBRO DE 2006 Tantos anos se passaram, porém o templo continua lá, resguardando um mundo à parte. São treze os degraus que levam os visitantes até a entrada. Mais do que isso, cada um deles representa a elevação em busca da essência do ser humano: proletariado, patriciado, sacerdócio, mulher, monoteísmo, politeísmo, fetichismo, domesticidade, fraternidade, filiação, paternidade, casamento e humanidade. Percebe-se que a ação do tempo, assim como a humana, tratou de consumir com alguns destes degraus. Ao fim da escadaria, os vultos da Grécia determinam o estilo arquitetônico da fachada do casarão. A pintura branca começa a se deteriorar em alguns pontos, revelando os tijolos de barro que sustentam a estrutura. No topo, um emblema indica que ali é a Religião da Humanidade.

O GUARDIÃO DO TEMPLO A porta central continua se abrindo aos domingos. Desde a década de 80, um senhor de cabelos brancos, vestido de forma distinta é o responsável por abri-la. Afrânio Pedro Capelli, segue este ritual das nove da manhã até a uma da tarde. Nas cadeiras que outrora sentavam as mais de 20 famílias seguidoras da doutrina, hoje acomodam

visitantes esporádicos. E para cada um que entra no recinto, ele fala sobre a teoria do Positivismo. Afrânio recepciona os visitantes em um cenário particular. As paredes envolvem um pequeno saguão, com cadeiras de madeira voltadas para o púlpito central. As duas janelas, mesmo abertas, limitam a entrada do sol. Vinte e oito olhos de bronze resguardam eternamente o lugar. São os bustos de Moisés, Homero, Aristóteles, Arquimedes, César, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico II, Bichat e Heloísa. Sete de cada lado do altar. O púlpito tem como destaque ao fundo uma imagem feminina. O busto de um homem parece protegê-la da aproximação de qualquer um. No seu interior, até o tempo não é o mesmo. Lá o calendário marca o dia primeiro de Shakeaspeare de 218. Afrânio explica que os 13 bustos representam os meses do ano e um dia é reservado para homenagear as mulheres. Estas são representadas pelo busto de Heloísa. Descendo as estreitas escadas de madeira encontra-se o porão do templo. Janelas entreabertas deixam passar tímidos feixes de luz, dando um aspecto nebuloso ao espaço. Na primeira sala o mobiliário é constituído por uma mesa com cadeiras e armários cheios de livros e documentos. A recepção é feita pelos bustos de Tiradentes, José Bonifácio e Marechal Floriano Peixoto. Pode-se imaginar que ali eram confeccionadas as atas da época. Na sala seguinte, encontra-se um conjunto de sofás bege com uma pequena mesa de centro. Armários abarrotados de livros e um lavatório de louça no canto da sala definem o cenário. A visita ao porão chega ao fim no terceiro espaço, paralelo ao segundo. O ambiente é maior do que os outros, e além de duas janelas, guarda um depósito de arquivos. Afrânio é o último dos positivistas. Assim como o templo, a sua filosofia de vida manteve-se intacta. O templo e ele parecem uma coisa só. O guardião lamenta que não haja interesse, principalmente dos jovens, em continuar os ideais do Positivismo. Eles seriam a esperança de preservar a ideologia e o patrimônio cultural ali representado. Enquanto esse dia não chega, aquele lugar continua um mundo desconhecido. Auguste Comte, criador da Doutrina Positivista, disse, certa vez, que: "Não se pode viver para sempre, mas se pode amar para sempre". O amor de Afrânio pelo templo pode ser considerado o responsável pela sua continuidade até hoje.

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Super-herói

no escuro FERNADO PERDEU A VISÃO, MAS GANHOU CORAGEM E SENSIBILIDADE PARA CONTINUAR SUA HISTÓRIA Texto de JACQUELINE OLIVEIRA e JULIANO FILIPE RIGATTI Fotos de MATHEUS MASSOCHINI

1964.

O jovem Matt caminhava distraído na tarde fria e chuvosa de Nova York. Sentia falta da mãe, falecida há poucos meses. Tinha apenas o pai, o pugilista Jack Murdock, e sentia por ele uma grande admiração. Há poucas quadras de casa, quando virava na última esquina, o jovem pressentiu o pior. Um idoso cego tentava, sozinho, atravessar a rua no exato momento em que um caminhão se aproximava em alta velocidade. Ao salvar a vida daquele senhor, Matt sofrera um grave acidente. O caminhão transportava resíduo radioativo que atingiu os seus olhos, deixando-o cego. Quando seu pai morre, anos depois, vítima da vingança de um apostador contrariado, Matt Murdock alimenta, para sempre, o desejo de justiça com as próprias mãos. Com os sentidos cada vez mais aguçados e assumindo o apelido que, franzino, recebeu dos colegas fortões da escola, Matt tornou-se "O Demolidor". Adaptou à bengala uma extremidade afiada e uma corda extensível. Com ajuda de um radar natural que permitia localizar-se em qualquer ambiente, passou a promover, como um super-herói, a justiça nas situações em que a lei não agia.

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1994.

Enquanto ainda enxergava, Fernando Schaedler, um gaúcho de 30 anos, tinha como hábito folhear histórias em quadrinhos como essa. Aos 18 anos, foi obrigado a virar uma página importante de sua vida. "Lembro que acordei meio tonto na manhã de 19 de dezembro de 1994, via tudo embaçado. Dali em diante, comecei a perder a visão. Janeiro e fevereiro do ano seguinte foi o último verão que ainda consegui caminhar enxergando as ruas de Porto Alegre", recorda. A mesma deficiência que criou "O Demolidor", fez de Fernando um super-herói. Na sua rotina, enfrenta malfeitores, como o preconceito e as dificuldades impostas pela sociedade despreparada e indiferente. Mas isso não o impede de viver. "Uma vez eu estava vendo uma entrevista com o criador do Demolidor e o jornalista perguntou se ele não podia ter problemas com associações de deficientes visuais e se suas histórias não acentuariam o preconceito. Ele respondeu que a repercussão foi justamente a oposta. As histórias do herói mostram que ele trabalha e pode fazer quase tudo que os outros fazem", afirma.


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FIDELIDADE: Fernando e sua inseparável guia

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rimavera de 2006. No edifício onde Fernando mora, no Centro de Porto Alegre, por volta das quatro da tarde, a temperatura é agradável e o sol faz sombra no prédio, de alto a baixo. Ao burburinho da rua e aos gritos dos vendedores ambulantes, mistura-se a voz da recepcionista chamando por Fernando ao interfone. Vestindo camisa e calça jeans e auxiliado pela bengala, ele surge no corredor com um sorriso no rosto e a mão estendida em busca de um aperto de mãos. Quando questionado sobre o local onde está, descreve com propriedade: "Atrás de mim, lá no fundo, tem a porta de entrada e um tapete, que hoje não está porque foi para lavar, dois sofás à esquerda, a recepcionista e daí o corredor. Aqui onde estamos, tem os elevadores no fundo à esquerda, a escada aqui na frente e duas cadeiras. As cadeiras são pretas ou cinzas, não sei. Não tenho reparado muito em cores", brinca. Com seis anos, Fernando teve diagnosticado descolamento da retina em fase inicial. Foi levado aos Estados Unidos para realizar uma cirurgia preventiva. Os resultados da operação foram consi-

derados satisfatórios ao longo dos sete anos que se seguiram, mas um processo de calcificação em ambos os olhos, agravado por catarata, fez com que ele começasse a perder a visão aos 18 anos. "Em dezembro de 1995, fui levado para o hospital e lembro que, quando acordei, não conseguia distinguir o rosto da enfermeira", conta. Até abril do outro ano, passou a ver com somente 30% da capacidade do olho direito. Um mês depois, seu mundo já havia escurecido. "Antes disso, eu conseguia ver uma lâmpada acesa, agora não mais. O que eu estou vendo é como se fosse uma cortina cinzenta, não é preto. É como uma janela embaçada, não dá para ver nada". Logo que perdeu totalmente a visão, passou pela fase mais difícil de sua vida. De uma imagem romântica que tinha da cegueira heróica dos quadrinhos, passou a perceber, na prática, as dificuldades da deficiência. Sentiu raiva. Fechou-se em casa e afastou-se dos amigos. "No começo, não queria que me vissem daquele jeito. Não queria que ficassem com pena de mim", lembra. Durante dois anos, só a escola, o tratamento psicológico e as idas à missa o tiravam de casa. "Fiz aula de locomoção e aprendi o alfabeto em braile em uns três ou quatro meses". Apesar das dificuldades, completou o Ensino Médio. Continuar os estudos é o próximo desafio. "Gostaria de fazer Direito ou História, mas sempre fico adiando", explica, enquanto admite que, sem estudar há nove anos, tem medo de não conseguir acompanhar o ritmo dos colegas.


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Persistente, ele superou as primeiras dificuldades e passou a enxergar a vida, literalmente, com outros olhos. Encontrou, na tecnologia e na imaginação, as armas necessárias para superar os obstáculos. Não deixou de fazer grande parte das coisas que gostava. Assiste a filmes, troca e-mails com amigos e lê, lê muito. "Utilizo um programa no computador que é um sintetizador de voz. Eu posso entrar na Internet e ele vai lendo o texto que está na tela. No site do Correio do Povo, por exemplo, posso ler as notícias do dia". Para ele, ver um filme é como ler um livro: desperta o imaginário. "Tem cenas que eu imagino e também dá para deduzir algumas coisas pelas falas."

SUPERPODERES Com as mãos envolvidas na bengala, Fernando mantém a atenção voltada à sua própria fala e ao que se passa ao seu redor. Reage com silêncio a um pequeno movimento, tentando captar o que acontece a sua volta. "A bengala serve para evitar obstáculos. O resto é treino para saber os caminhos. É mais ou menos como andar de bicicleta. No início é difícil, depois vai se adaptando", explica. "Um dia eu estava passando pela Praça da Alfândega e um cara disse 'olha o buraco!'. Mas eu sabia que não tinha nenhum buraco ali", lembra. Em relação a seus outros sentidos, Fernando enumera habilidades. "Quando está ventando é até fácil de perceber os obstáculos. O vento pára em alguns lugares e é um indicador de que tem alguma coisa na minha frente ou do meu lado. Também às vezes posso não saber qual é o perfume de alguém, mas se o sentir e daqui um ano encontrar alguém com o mesmo cheiro, talvez eu lembre da primeira pessoa", explica. "Outra coisa, sempre sinto se a pele é mais macia, se a pessoa é mais magra ou mais gorda só por tocar ou pegar no braço".

ROTINA HERÓICA Quando acorda, perto das seis da manhã, Fernando escolhe suas roupas quase sempre sozinho. Exigente com a organização do apartamento onde mora, explica que, se a casa estiver em ordem, não tem dificuldade nenhuma de andar por todos os cômodos. Faz a barba e,

quando chega na cozinha, o café da manhã o espera pronto. "Dou sorte de não morar sozinho, senão eu mesmo teria que preparar". Fernando tem quatro irmãos. Mora com dois deles e com a mãe. O pai faleceu quando ele tinha 22 anos. A memória privilegiada o ajuda a ligar o mundo atual ao visível, de 12 anos atrás. "Lembro do rosto da minha mãe e dos meus irmãos, só que mais novos. Faço uma projeção para tentar imaginar como eles estão hoje. Também lembro das ruas de Porto Alegre e de brincar na Praça da Matriz, em 1983, quando não tinha lixo ainda. Lembro de cachorros, do monumento a Júlio de Castilhos". De casa até o trabalho, alterna caminhos para evitar assaltos e as brincadeiras inoportunas. Leva cerca de 15 minutos até a Agergs (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados), onde trabalha desde 1999, quando passou em um concurso público. Para saber as horas, guia-se pelos programas de rádio. É também pela programação do aparelho que decide com qual roupa deve sair, em função da temperatura. Quando vai atravessar a rua, espera pela solidariedade dos outros. "Uns dizem 'pode passar agora que não vem carro'. Eles não entendem que é arriscado fazer isso. O ideal é me estenderem o braço para eu segurar e ser conduzido", ensina. Começa suas atividades às 8h30min. Atende telefonemas e registra os chamados no computador, também adaptado à sua necessidade. Não fosse por seu olhar repousado em direção nenhuma, em alguns momentos é possível duvidar da deficiência de Fernando. Ele conta que, quando chega em casa, no final da tarde, assiste televisão, ouve música ou lê alguma coisa. "Faz umas duas semanas que estou lendo uma série de matérias do jornalista Pedro Doria, na Internet". No fim de um dia e ao longo dos 12 anos como deficiente visual, Fernando exercitou sua força de vontade e sensibilidade. Com um sorriso simples e a aparente fragilidade de sua condição, transformou o apagar das luzes de seu mundo em novas oportunidades. Descobriu que, tanto quanto os olhos, nossa mente e coração também percebem este mundo. "Uma vez li Moacyr Scliar dizer que o cego é como o escritor: os dois vêem com os olhos da imaginação".


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, Perfume a chave da alma O

ACESSÓRIO INVISÍVEL QUE É SINÔNIMO DE ARTE, SEDUÇÃO E MAGIA

Texto de LISIE VENEGAS e THIAGO ZENKER Fotos de MATHEUS MASSOCHINI

Q

uem nunca viajou no tempo ao sentir o cheiro da grama molhada quando a chuva cai ou logo quando chega a primavera e as flores começam a dispersar no ar um pouco de si? São aromas variados que transformam os ambientes. Na lembrança, junto às situações que vivemos, ficam os cheiros, uma manifestação invisível do que somos e do que fomos em uma determinada época. O perfume, diferentemente de outros elementos, atua como uma espécie de chave da alma. Ele consegue sintonizar corpo e mente despertando em todos os seres vivos uma parte ainda desconhecida, consciente e inconsciente na junção perfeita. As fragrâncias são mais do que odores com os quais o homem se identifica: elas atuam como um afrodisíaco do ser, seduzindo personalidades e marcando o corpo. Um verdadeiro mapa de desejos. Notas e cheiros traduzem o não-dito, uma presença

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não presente, um registro eterno de que alguém esteve ali. O sentido do olfato está diretamente relacionado ao instinto de sobrevivência, já que os odores são capazes de despertar sensações de paz, alerta, bem-estar ou incômodo. A ligação do cheiro com a emoção começa cedo, assim que o bebê, ainda sem uma visão nítida ou um paladar aguçado, consegue distinguir entre o cheiro da mãe e o das demais pessoas. O homem descobriu o encanto dos aromas quando soube que as ervas queimadas exalavam um cheiro agradável. Foi daí que surgiu o termo perfume, do latim, “per fumum” ou “pro fumum”, que significa através da fumaça. Com os egípcios a arte da perfumaria foi aperfeiçoada a partir da descoberta de que misturadas a óleos, as substâncias aromáticas se tornavam perfumadas com a maceração. O produto final servia como oferenda aos deuses.


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Com Cleópatra, a alquimia do perfume foi eternizada. Conta a história que a rainha do Egito seduziu Marco Antonio e Julio César usando uma essência a base das flores de henna, açafrão, menta e zimbro. A descoberta de que o cheiro fazia toda a diferença no jogo da sedução e na forma de impor a personalidade daquele que o veste se espalhou. Atualmente, não há quem resista a esse hábito que virou tradição. Em 20 de outubro de 2006, o site de relacionamentos Orkut registrava aproximadamente 700 comunidades que levavam a palavra perfume no nome. Contemplando quem ama e quem odeia, as comunidades são as mais variadas. A mais populosa delas é a Não saio de casa sem perfume!. Criada há dois anos, a comunidade conta com mais de 480 mil membros. E os amantes do perfume querem mais. Com o passar dos anos, as fórmulas e formas de produzir perfume foram se aperfeiçoando. Todavia, a inspiração ainda continua sendo a mesma. Perfumistas do mundo todo afirmam que o entusiasmo de criar chega quando lembram os momentos por que passaram em sua infância e juventude. As composições são consideradas prontas quando o perfumista tem a certeza de que a essência traduz exatamente o que quis ser dito. A consagração do perfume ocorre depois que ele chega às grandes perfumarias e é ou não aprovado por consumidores. A consultora de vendas Janine Zimny trabalha há um ano em uma das maiores empresas de cosméticos do Brasil e diz que viver o perfume é uma experiência maravilhosa. “Desde antes de trabalhar com perfume já gostava, mas pensei que não ia conseguir, pois eram muitas informações. Recebi um treinamento bastante específico nesta área, analisando as famílias olfativas, os frascos, o que remete o frasco quando olhamos para ele e como foi pensado”. Janine ainda revela os truques das consultoras para não perderem o olfato aguçado. “Em momentos de pouco movimento na loja, fazemos o teste cego. Botamos na lâmina um dos aromas e perguntamos para uma vendedora que perfume é aquele. Essa prática ajuda na familiarização com os cheiros”. Para Janine, vender um perfume é uma tarefa que envolve muitos fatores. “Se a cliente me pede um perfume floral mostro a ela os que eu mais me identifico e funciona”. A consultora diz que o momento de escolher um perfume envolve muitas coisas já que, às vezes, os odores, mesmo sendo muito bons, mexem demais com as pessoas e não é o que

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elas têm vontade de sentir. “Gosto de perfumes mais frescos, sou ‘viciada’. Acabei ficando mais exigente depois que conheci as diferenças dos perfumes. O perfume, para mim, representa conquista sensualidade, feminilidade. Tudo de bom”, revela. Janine diz que, além do aroma, a embalagem e as cores dos produtos também são um ponto fundamental. “A embalagem e a história de como aquele perfume específico foi criado são muito importantes, mas o que define a escolha é indiscutivelmente o aroma”, opina. Segundo a história, a forma e cor dos perfumes vieram com a descoberta do vidro no primeiro século depois de Cristo. Cada aroma tornou-se pessoal e uma espécie de código particular do ser humano. O mesmo perfume aplicado em pessoas diferentes reage e é exalado também de maneira distinta, isso porque os odores corporais são únicos. A farmacêutica e perfumista Sônia Nehme explica que o perfume é exalado de acordo com a parte do corpo em que é aplicado. “Os locais ideais de aplicação são as zonas quentes do corpo, de maior circulação sangüínea, como atrás das orelhas, pulsos, antebraços e atrás dos joelhos”. Sônia afirma que, para produzir um perfume, é indispensável ter muita sensibilidade. “É uma verdadeira alquimia unir tons amadeirados, cítricos, doces. Gosto de produzir aromas que eu usaria, que tenho prazer ao sentir”. As fragrâncias são diferenciadas na nomenclatura de

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acordo com a concentração de essência encontrada na composição. O Parfum ou Extrait possui o maior teor de essência, variando de 20% a 30% do volume. Um pouco mais diluído o Eau de Parfum tem de 15% a 20% de essência. O Eau de toilette ou desodorante colônia varia a concentração entre 5% e 15%. Por último, a colônia ou água de colônia é a forma mais diluída, contendo de 2% a 5% de essência. Esses valores variam de acordo com a legislação de cada país e a concentração da essência influencia diretamente no preço final do produto. Informações técnicas à parte, o mundo invisível dos aromas e cheiros desperta no ser humano uma questão estritamente semiótica. O professor de Comunicação Social da Unisinos Alexandre Rocha afirma que a representação de qualquer objeto se dá sempre em algum tipo de signo. “Por exemplo, um perfume característico de uma determinada pessoa, o cheiro desse perfume pode ser um índice da passagem de uma dada pessoa por um espaço determinado”. Alexandre aponta que discutir o cheiro a partir de suas qualidades significa fazer uma discussão de representação do ponto de vista do ícone. “Em primeiro lugar, pode-se discutir o cheiro a partir de sua qualidade, primeiridade e iconicidade. Em segundo lugar, pode-se discutir o cheiro a partir do seu índice é quando um determinado cheiro é associado a uma pessoa específica e em terceiro, em relação aos modos como se valoriza e como, arbitrariamente, se atribuem


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Notas e cheiros traduzem o não-dito, uma presença não presente, um registro eterno de que alguém esteve ali valores daquele dado perfume”. O professor exemplifica: “Suponhamos que tu utilizes um perfume da Avon, passe pela minha sala, eu fale contigo e perceba que tu usas Avon, depois de uns dez, 15 minutos, tu passas de novo pela minha sala, eu não estou aqui, eu retorno e sinto aquele cheiro, imediatamente, isto vai ser um signo da tua presença”. Alexandre relata que é diferente usar um perfume da Avon e usar um perfume Dolce & Gabanna, ou usar um perfume Gucci. “Ora, esse conjunto de associações diz respeito a uma perspectiva de representação triádica e voltada para os valores e para as crenças que as sociedades estabelecem arbitrariamente em relação a um dado cheiro”. Perguntado sobre sua relação com os aromas, Alexandre Rocha é taxativo: “Eu uso. Gosto da sensação do cheiro em mim e nos outros. É legal experimentar o corpo da gente em múltiplas relações. Eu acho que a exploração dos sentidos que não são de distância, como o contato, o tato, o cheiro é algo para ser explorado”. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), em 2005 as fragrâncias correspondiam a 13% do faturamento total no Brasil. O público feminino liderava o consumo com 59% de participação, seguido dos homens com 36%. As crianças ocupavam uma fatia de 5% do mercado. De acordo com a Associação dos Distribuidores e Importadores de Perfumes,

Cosméticos e Similares (Adipec) pelo mercado nacional circulam anualmente cerca de US$ 3,6 bilhões. Em Gramado, na Serra Gaúcha, o Museu do Perfume é pioneiro no país. Possui uma exposição de aproximadamente 450 frascos dos clássicos da perfumaria mundial. Lá os visitantes e amantes do perfume encontram as matérias-primas usadas na perfumaria e as técnicas utilizadas nas extrações. A composição de cada perfume pode surpreender. Alguns dos aromas apreciados pelas grandes divas de Hollywood possuem em sua composição ingredientes um tanto exóticos. É o caso do famoso Chanel nº 5. Por um equívoco, o perfumista que elaborava a fórmula colocou 10% de aldeído em vez de 1% como mandava a receita. Foi exatamente deste teste, da amostra de nº 5, que a estilista francesa Coco Chanel mais gostou e decidiu lançar no mercado em 1923. É um floral aldeídico com notas civeto, essência extraída de um gato selvagem que vive na Etiópia, o qual produz pelo ânus uma gordura que depois de diluída tem um bouquet floral incomparável na natureza. O Museu é mantido pela Casa Fragram. No local, os visitantes podem descobrir a localização geográfica das matérias-primas utilizadas na perfumaria, realizar um teste psicológico que orienta na escolha do perfume através de figuras geométricas e também conhecer a fisiologia do sentido do olfato.

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O fascinante mundo da

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m tempos em que impera violência, corrupção e guerras, existe um fascinante mundo de esperança e em comunhão com a humanidade através da oração. São pessoas que entregam suas vidas por uma causa e por ela renunciam ao mundo externo. Em diferentes lugares do mundo se encontram modelos dessa vida contemplativa. Lídia Gordschmidt e Melita Ignez Erpen são irmãs de clausura da Ordem de Nossa Senhora do Carmo. Elas vivem no Carmelo Nosso Senhor dos Passos, de São Leopoldo, junto com mais 15 religiosas. O nome religioso de Lídia é Irmã Maria Lídia da Eucaristia. Nascida em Cerro Largo, ela é priora, espécie de madre superiora do carmelo. Tem 52 anos e 27 de vida religiosa. Ir. Lídia conta sua história para explicar as razões de viver em clausura: "Eu senti um apelo muito forte para a vida de oração e recolhimento, que o mundo lá fora não oferecia". Antes de entrar na vida religiosa, ela era professora e não se sentia bem. " Sentia uma inquietação interior para algo mais, para uma vida de maior intimidade com Deus, pela oração." Encontrou na vida contemplativa. Irmã Maria Teresinha do Menino Jesus é como Melita Ignez Erpen, de 71 anos, passou a se chamar desde que entrou na vida religiosa, aos 17 anos. "Fiquei jovem sempre. Entrei com 17 anos por muito amor a Jesus e com muita vibração, que guardo até hoje. Somos namorados eternos, Jesus e eu", explica. Ir. Teresinha ajuda a compreender a clausura. "Nós não precisamos de grades, nem de muros para rezar. Porém, temos que ter um ambiente de oração. Só temos aqui quadros de santos, tudo é só

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QUE LEVA UMA

PESSOA A RENUNCIAR AOS ATRATIVOS DA VIDA MODERNA E SE DISPOR A FICAR RECLUSA POR TODA A VIDA? Texto de DÉBORA ERTEL, GRAZIELA WOLFART e JANICE GUTJAHR Fotos de LEONARDO REMOR

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espiritual. Vamos até o pátio, caminhamos entre as árvores e passarinhos. Pegamos um livro, lemos, rezamos. E tudo isso forma o ambiente de oração." O que será que 17 mulheres fazem o dia todo dentro de um carmelo? Pode parecer monótono, mas para elas não é. "Alternamos oração e trabalho, oração e trabalho...", explica Ir. Lídia. Todas as religiosas começam o dia com a oração da manhã, às 5h. Em seguida, têm algumas horas de trabalho. Depois, mais um momento para oração. E assim vai o dia todo. Duas vezes por dia, acontece um intervalo de recreação e estudos comunitários. O trabalho principal realizado pelas irmãs é a confecção das hóstias que vão para toda a Diocese de Novo Hamburgo. As religiosas também fazem os paramentos usados pelos padres e os materiais utilizados na missa. Nas duas horas diárias de recreação, elas conversam e assistem a vídeos de formação. Em dias de festa, se reúnem para cantar, ler poesias e fazer "teatrinhos", como explica Ir. Lídia. Se alguma moça entre 17 e 30 anos se sentir chamada à vida de oração, é preciso saber que a entrada no carmelo tem algumas exigências. Segundo Ir. Lídia, a primeira coisa é a atração pela vida de oração. "Em segundo lugar, ela deve explicar o que a levou a conhecer o carmelo e por que ela pensa em entrar para a Ordem. Nós precisamos saber se ela realmente tem inclinação para a vida de oração ou se não é uma simples fuga do mundo, se realmente é algo que vem de Deus", esclarece Ir. Lídia. Ir. Lídia é enfática em dizer que não sente falta de nada do mundo externo. "Sou muito feliz aqui dentro. Desde que entrei nunca mais pensei em voltar. Senti que era aqui que Deus me chamava", diz Ir. Lídia Ela gosta da convivência com as outras irmãs, que no decorrer dos anos se tornaram sua família. É evidente que os conflitos internos e as discussões também acontecem, pois, como diz a irmã "elas são seres humanos". Mas o segredo para a resolução dos problemas é sempre o perdão mútuo. "Devemos sempre saber perdoar. São Paulo fala sobre a caridade fraterna, a qual tudo perdoa. Então, nós procuramos viver isso aqui." ESCOLHA: Irmã Lídia e Irmã Teresinha já dedicaram metade de suas vidas à reclusão

A ROTINA Ela esclarece que as irmãs só podem sair para ir ao médico, ao dentista e, às vezes, por algum imprevisto, como uma ida ao banco. No carmelo, elas têm uma irmã "externa", que é responsável por tudo o que precisa ser feito fora da casa. Na ocasião da perda de um familiar, as irmãs até podem sair para acompanhar os funerais, mas considerando isso sempre como uma exceção. Mesmo enclausuradas, as religiosas utilizam a tecnologia a

serviço da vocação. O carmelo possui aparelho de tevê, vídeocassete, telefone e computador com acesso à internet. Ir. Teresinha explica que a internet é utilizada apenas como um instrumento para a vida contemplativa, e é muito reduzido. "Nós colhemos as notícias do Papa, da CNBB e da nossa Ordem. É tudo selecionado." Todos os carmelos se comunicam por e-mail, e o boletim das carmelitas também é enviado pela internet. Além disso, diversas pessoas mandam a elas, por e-mail, pedidos de oração. Com a televisão é da mesma forma. Recentemente, as irmãs assistiram tevê por ocasião da morte de Dom Luciano Mendes de Almeida. Além disso, elas estão acostumadas a assistir, nas quartas-feiras, à audiência do Papa. O único jornal que recebem é o Observatório Romano. Ir. Teresinha deixa claro que ler jornais e assistir televisão assiduamente não teria sentido para elas. "Para que me separar de tudo e me encher de tudo? Seria uma incoerência. No entanto, temos que saber um pouco de tudo para poder rezar. Nós não estamos por fora do mundo. O essencial nós sabemos. Recebemos as notícias 'em gotas'." Depois que alguma mulher decide seguir na vida contemplativa de oração, na clausura, as visitas dos familiares acontecem por meio da grade que as separa do mundo exterior. Os pais e irmãos das religiosas têm exatamente o mesmo contato físico com as irmãs que as repórteres desta matéria. As visitam variam conforme a disponibilidade de tempo dos familiares. "Eles não vêm com muita freqüência, pois a maioria mora longe", explica Ir. Lídia. Ir. Teresinha reconhece que é doloroso para os familiares, mas explica que "cada um tem o seu caminho". E acrescenta: "Os pais sofrem com a ausência das irmãs, lamentam que o carmelo seja tão fechado... Mas há famílias em que os filhos podem estar sentados à mesa, com todos reunidos, e um briga com o outro. Os pais sabem que a irmã que está aqui está feliz, está com Deus. Assim, se sentem beneficiados e consolados". E conclui com a seguinte definição: "Nós nos separamos para estar mais perto das pessoas, mas de outra forma. Temos uma separação física, material. Porém, estamos mais perto por meio da oração". A fonte de renda do Carmelo não é grande, mas também os gastos são poucos. " Temos horta, que nós mesmas cultivamamos, e um pomar com frutas. Isso faz bem para a saúde das irmãs que vão no sol e mexem com a terra. E, por outro lado, temos tudo em casa e economizamos", garante Ir. Teresinha. As despesas pessoais e o dinheiro de cada uma vai todo para um caixa comum. Se alguém precisa de uma escova de dente, é só pedir que a madre compra. O que os familiares dão, fica tudo no caixa comum. Ninguém tem nada particular. Todas ganham o que precisam e cada uma procura gastar o mínimo possível. "É uma opção de vida", explica Ir. Teresinha. "Não temos desejo de projeção. Isso faz parte da vocação. Ninguém precisa saber que a gente está rezando. Quando vocês se acordam, a oração já está caindo sobre todos, como o orvalho". E Ir. Lídia acrescenta: "Quando vocês estiverem passando por alguma dificuldade é só pensar que existem irmãs que naquele momento

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estarão rezando por vocês". Santa Teresinha, a padroeira da Ordem das Carmelitas, se tornou missionária mundial através da graça da oração. "Nos admiramos que diante de tantos missionários, a Igreja escolheu justamente Santa Teresinha, que é carmelita como nós, para ser padroeira das missões", salienta Ir. Teresinha. Elas afirmam ser um mistério a maneira como sentem o amor de Deus mesmo vivendo afastadas da sociedade. "Nós sentimos a presença de Deus e é Ele quem transmite essa alegria, porque estamos em comunhão com Ele. É algo que não tem explicação", confessa Ir. Lídia. Ir. Teresinha tenta explicar: "Em parte, algo seria a paz. Sabe o que é paz? A presença de Deus nos faz sensíveis. E paz e alegria são fruto da oração".

A VIDA DE ORAÇÃO E DOAÇÃO Para o Pe. Frei Paulo Inácio Labres, 56 anos, 26 dedicados ao sacerdócio, desvendar o mundo da clausura é, ao mesmo tempo, divino e fascinante. Como admirador da vida contemplativa, possui vasto conhecimento de mosteiros e conventos de clausura. Através das experiências adquiridas nos mais de 20 países visitados, ele explica que fazer essa opção é um sinal de que Deus existe. Segundo Labres, a primeira experiência de vida monástica do ocidente teve início na periferia de Alexandria, no Egito. Uma comunidade de judeus vivia semi-isolada em pequenas choupanas em uma vida de oração e trabalhos man-

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uais. Eles perseguiam o ideal de que o ser humano deveria ser um ser íntegro. "Algo que se busca tanto no homem de hoje, tão esfacelado com tanta informação, com tanta tecnologia, com tanto auto-desenvolvimento, ficando disperso no seu íntimo", define. A regra mais conhecida e mais seguida nas ordens de clausura é a criada por São Bento, no século V. "Ora et labora" (Ora e trabalha). É essa lei que impera até hoje em toda vida monástica ocidental, tanto de homens como mulheres. Frei Paulo lembra que a ordem mais enclausurada do mundo é a Cartuxa. São religiosos que seguem a regra de São Bruno, do século X. A única comunidade dessa ordem nas Américas está localizada em Ivorá, cidade próxima a Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Labres conhece bem a rotina de monges e monjas de diversos países. Ele explica que uma das tarefas desses religiosos é receber constantemente pessoas no parlatório, que são salinhas especiais para conversas e aconselhamentos. "Eles ouvem as queixas do mundo, palavras vazias, muitas vezes mentirosas, falsas. Escutam com toda calma aquele que chora, enxugam a lágrima daquela mãe que perdeu o filho assassinado, daquela jovem que quis se matar porque o noivo foi buscar outra... De tanto escutar sobre o mundo, acabam sabendo antes das coisas que acontecem lá fora e ficam informados", destaca Frei Paulo. Ele não acha que isso seja negativo, mas questiona: "Hoje a notícia vem de modo muito instantâneo, mas para quem vive na clau-


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sura não é de um dia para o outro que se sabe dos fatos. Não é necessário saber todas as informações. O mundo de hoje pega tudo que é informação, mas e daí? Qual o benefício disso?". Mesmo com vasto conhecimento sobre a vida monástica, ele conta que sempre fica surpreso quando chega em um mosteiro. E lembra de uma experiência "extraordinária" com as monjas Clarissas, em Pucón, no sul do Chile. A madre, chamada de badessa, o recebeu e, atrás das grades, deu um enorme sorriso. Sua surpresa foi o fato de que a madre não tinha nenhum dente na boca,

devido a um tratamento. "Eu me surpreendi, mas de imediato vi que ela era uma das pessoas mais belas que eu tinha encontrado naqueles dias, porque o sorriso e a exclamação vinham de dentro. Isso porque era uma mulher que veio do silêncio, que contempla o Criador, o absoluto. Esta alegria tenho certeza que ninguém tira dela. Não é passageira", define. Para Frei Paulo Inácio Labres, vocação é um mistério. "E diante do mistério a gente cala, faz silêncio, porque a voz mais profunda de Deus é o silêncio. Diante do mistério calamos e contemplamos".

Três meses no carmelo "Santa Teresinha falava com Deus de uma forma simples e natural. Deus era o grande amor da vida dela. Então aquilo me cativou." É dessa forma que Ana Paula Cardoso Kirchhof, 26 anos, define a sua entrada no Carmelo. Ao ler a vida de Santa Teresinha, apaixonou-se. A santa procurava santificar as tarefas simples do dia-adia, como lavar louça e juntar um objeto do chão. Impulsionada por esse ardor, a jovem, moradora de Montenegro, optou pela clausura. Com 18 anos, cursando o primeiro semestre de Fisioterapia, se preparou para encarar o desafio da vida religiosa. O apoio do pai foi fundamental nesse momento. Era ele quem levava a filha periodicamente para o Carmelo de São Leopoldo para conversar com a madre. Durante esse período, ela recebia livros sobre a vida e carisma carmelita, a fim de se preparar para a nova vida. Apenas os pais e os dois irmãos sabiam de sua escolha. Para os amigos e demais familiares foi uma grande surpresa. "Ninguém falou que eu estava ficando louca, mas deu para notar nos olhos de todo mundo que era isso que achavam", declara entre risos. Entrou no carmelo numa quarta-feira. "Foi um baque", lembra. Nesse momento viu seu pai chorar pela primeira vez, assim como toda a família. Poderia ser a última vez que Ana Paula faria parte do mundo familiar, já que entrando definitivamente, nunca mais sairia. Em meio a tanta emoção, até as religiosas choraram. Ela traz a imagem de sua entrada gravada na mente. Estavam todas as irmãs organizadas em duas filas, uma à esquerda e outra à direita, e a jovem passando pelo meio. Á medida que ia caminhando,

flores eram jogadas sobre ela. "Elas eram muito carinhosas. Isso foi uma coisa que marcou". O silêncio e a tranqüilidade foram companhia de Ana Paula nos três meses de experiência. Por se considerar uma pessoa agitada, viver no sossego era uma terapia. "Com isso eu fiquei mais atenta, mais observadora às coisas." No primeiro mês foi difícil a adaptação. A falta de toque, de um abraço era quase que insuportável. Os pais iam visitá-la, mas pela grade só passavam dois dedos. Afirma não se esquecer do dia que um padre foi palestrar no carmelo. As freiras de um lado da grade e o sacerdote de outro. Por estar muito tempo sentada, inclinou sua coluna para frente. Uma carmelita, então, encostou em suas costas. Quando sentiu o calor das mãos da freira sentiu vontade de chorar. No carmelo, as religiosas se abraçavam, mas não com freqüência. Em meio à oração, solidão e silêncio, encontrou a liberdade. "No carmelo eu podia ser só eu. Isso me trazia uma sensação de liberdade enorme, pois eu não precisava provar nada para ninguém, porque Deus sabia quem eu era. " Durante o trimestre que passou lá, adaptou-se bem à rotina carmelita. Saiu com a promessa de que pensaria e decidiria o que fazer. "Só que no fim eu nunca consegui resolver isso. Até hoje é uma incógnita o que Deus quer para mim." Porém, tem certeza de que o Carmelo não é o seu lugar, pois não se sentiu "em casa". Várias vezes já teve vontade de voltar, mas sabe que seria uma fuga. Atualmente, Ana Paula é noiva e tem planos de se casar. Porém, sem certeza nenhuma do que Deus reserva para o seu futuro.

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LOCAL DE CERIMÔNIAS: templo da Loja Inconfidência em São Leopoldo

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O segredo

através dos séculos

MAÇONARIA

É A REUNIÃO DE HOMENS INTELIGENTES E DE BONS

PROPÓSITOS QUE BUSCAM EFETIVAR O BEM COMUM.

O

SILÊNCIO

REFORÇA A IMAGEM DE MISTÉRIO CRIADA EM TORNO DA ORDEM Texto de MARCELO AITA OST e ROBERTO GOLDANI Fotos de RODRIGO NEVES


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SÍMBOLOS: presentes em todas as partes do templo

É

apenas mais um enterro, com muitos parentes chorando pelo falecido. O corpo foi velado durante seis horas onde a família e os amigos se reúnem para prestar respeito à viúva. Um distinto grupo se destaca durante o rival. Antes de enterrar o falecido, um gesto curioso caracteriza o momento. Por três vezes, um dos membros do cortejo bate no caixão e chama em voz alta pelo morto. Enquanto enterram o corpo, o mesmo homem eleva os dez dedos das mãos aproximados pelos polegares e os indicadores em forma de triângulo. Trata-se do enterro de um Maçom. É assim que o livro A maçonaria e outras sociedades secretas, de Ralph T. Beck, descreve algum dos supostos sinais maçons. Porém, conforme o membro do conselho de mestres da Loja Inconfidência, de São Leopoldo, Dante Cezar Melo Rostirola, não é assim que ocorre por aqui. Em um enterro público, o único símbolo utilizado é um ramo de acácia, por ser uma planta que não morre. A idéia é representar a continuidade da vida. "De certa forma, o irmão vai continuar existindo na nossa lembrança, através do conhecimento que nos passou", comenta. Não adianta insistir. O grupo faz o juramento de guardar os sinais, toques e palavras, confirmando a existência de gestos e modos de falar característicos de maçons. É através de sinais universais que um maçom pode ser reconhecido por outro em qualquer parte do mundo. " Eles não são muito usados atualmente. Existem os de socorro, que são de grande ajuda quando tu estás em uma situação difícil. Ninguém pára para te ajudar na estrada, por exemplo. Com um sinal, um irmão vai saber que tu não és um bandido e vai te ajudar", explica. Utilizando a própria definição apresentada pela ordem, é possivel dizer que a Maçonaria é a reunião de homens inteligentes e de bons propósitos, a fim de efetivar o bem comum. São promovidos encontros semanais onde seus membros se reúnem para discutir filosofia, ciência e outros assuntos selecionados pelo Venerável Mestre. Discussões sobre política partidária ou religião são proibidas. A ordem

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é organizada em Lojas (estrutura física presente em um território que varia de bairros até cidades). Essas, por sua vez, são filiadas a um Grande Oriente (uma espécie de federação de Lojas). Nas correntes ortodoxas, não são aceitas mulheres, porém, para Dante, seria hipocrisia não reconhecer a presença feminina na ordem. Elas participam de correntes mistas, mesmo que isso não seja oficialmente admitido. Em ambas, os encontros são fechados a não membros e isso reforça o preconceito em relação à ordem. Para ele, toda esta imagem de mistério existente em torno da Maçonaria está gravada no imaginário popular. Ela foi criada pelas instituições que, no passado, costumavam combater a ordem. "Isso ocorre porque, em tempos antigos, a Maçonaria ia contra o status quo vigente, ou seja, os governos de exceção, como o feudalismo e as ditaduras. Em prol da liberdade, fraternidade e humanidade consideradas ameaças ao poder, a ordem já se incomodou muito. Por isso ela era combatida e perseguida", explica Dante mostrando a importância de, na época, manter sigilo e realizar encontros fechados. Hoje a Maçonaria não é tão invisível como antes. Ela está na Internet, tem CNPJ, endereço fixo e ata de presença das cerimônias, na qual é possível até mesmo ler os assuntos tratados nos encontros. Porém, ao acessar o site do Grande Oriente do Rio Grande do Sul, para abrir determinados documentos de texto o internauta deve responder corretamente a algumas perguntas como: "Sois maçom?" . Um mero sim não é suficiente. De acordo com Dante, isso ocorre justamente devido ao juramento. Para ele, disponibilizar trabalhos a qualquer um via internet, mesmo sabendo como eles não vão fazer sentido ao profano (nome dado ao não maçom), seria cometer perjúrio. Existem cerimônias maçônicas denominadas brancas, onde há livre acesso a profanos. Nelas são realizados ritos sem sinais, palavras ou gestos. Elas ocorrem em datas específicas escolhidas pelo Venerável Mestre da Loja. Segundo Dante, esse tipo de encontro chega a ser freqüentado até mesmo por membros do alto escalão da


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Igreja Católica. "Isso reforça o quanto o mistério em torno da maçonaria é apenas uma imagem presente culturalmente no inconsciente coletivo. É como bater na madeira três vezes para espantar o azar. Realmente espanta? Está provado que não. É pura superstição", reforça. Para entrar na Maçonaria, o candidato deve ser maior de 21 anos e ser aceito pelos demais membros da Loja. Seu nome é trazido para eles e se inicia todo um processo de sindicância, no qual o candidato tem sua vida minuciosamente pesquisada. São consultadas instituições como o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e o fórum, onde se busca algum processo, e as instituições bancárias. Os vizinhos também são entrevistados, a fim de confirmar a sociabilidade. Alguns meios podem facilitar a aceitação pelos maçons, como freqüentar ordens para-maçônicas. Através de uma delas, o estudante de direito Diogo Fagundes Lauermann se aproximou da Maçonaria. "Depois que ingressei na ordem Demolay, comecei a me dar conta dos homens que estavam ali dentro. Homens de bem, de boas atitudes. Isto me despertou um grande interesse pela Maçonaria", lembra. Na Demolay os trabalhos são conduzidos por um mestre maçom, no próprio templo da Loja. Esta ordem é formada por filhos de maçons e convidados. Ao ingressar, o membro não tem a garantia de tornar-se um futuro maçom. Mesmo sabendo disso, Diogo mantém aspirações. Ele foi indicado por um amigo, membro da ordem, e aceito. Apesar de ser maior de idade, precisou da autorização dos pais, pois o consentimento é fundamental. Além disso, é necessário ter entre 13 a 21 anos, ter bons costu-

mes e acreditar em Deus, independente da religião. Ele lembra da cerimônia que presenciou no Capítulo Novos Cavaleiros do Templo, em Canoas, onde o mestre conselheiro, junto com a bíblia sagrada, abriu o Corão, e orou. Para ele, ainda existe muita desinformação. "Quando eu falo que sou um Cavalheiro Demolay, as pessoas não se assustam, mas quando eu relaciono com a Maçonaria, muita gente associa ao demônio, ou alguma coisa parecida", explica. Ele brinca ao contar a história da empregada que supostamente teria se demitido um tempo após descobrir o seu interesse pela maçonaria. "Poucas pessoas sabem que sou Demolay, e eu já expliquei melhor como funciona, e elas já abriram a cabeça", justifica. Ainda existem outras ordens para-maçônicas. como as Filhas de Jó e os Lauton. "Eu mesmo fui Lauton dos 8 aos 26 anos, quando, depois de formado, entrei para a Maçonaria por indicação de um irmão", explica Dante. Porém, ele afirma que não existe obrigatoriedade de se passar por uma destas ordens para ser aceito. Para Dante, os maçons valorizam as virtudes do ser humano, o andar retilíneo, a conduta plena. "Aqui tu encontras um outro parceiro que pensa que nem tu. Ambos se unem para combater a injustiça. A maçonaria é totalmente contrária ao uso de armas ou qualquer reação violenta." Ele ainda ressalta que os maçons precisam saber simbolicamente de todas as ciências, saber de onde vieram e porque vieram. "Não há mistério. Muita gente procura a Maçonaria para achar bruxaria, conseguir influência e outras coisas. Acabam saindo daqui decepcionados", esclarece.

Um pouco da história De acordo com o livro Maçonaria para profanos e neófitos, de Zilmar de Paula Barros, a ordem teria nascido de antigas corporações de construtores, conhecidas hoje como Maçonaria Operativa. Este tipo de ordem data de 714 a.C.. Eles detinham o conhecimento de técnicas de construção atribuídas aos tempos do antigo Egito. O conhecimento era passado apenas para membros. A que mais se aproxima aos costumes praticados hoje é a dos Construtores Dionisianos. Esta corporação exercia caridade como uma das obrigações e tinha registrada em sua constituição a obrigatoriedade de os irmãos mais favorecidos socorrerem os mais pobres. Os Dionisianos se dividiam em Lojas, e o governo destas era entregue ao mestre, assessorado por vigilantes. Usavam também linguagem de símbolos e sinais mantida em segredo, o que permitia o reconhecimento de qualquer irmão. A ordem se expandiu por uma vasta extensão de terras entre a Índia, Pérsia e Síria. Aos poucos foram sendo admitidos membros não construtores para tratarem de outros assuntos. Eles eram denominados especulativos. Com o passar dos anos, este tipo de entidade foi tomando o rumo da intelectualidade e passou a ensinar aos membros não apenas técnicas de construção, mas também arte, filosofia e ciências. Desbastar a pedra

bruta passou a ser símbolo de lapidar o caráter do indivíduo. E a ordem procurou sempre manter seus ideais de igualdade, liberdade e humanidade (podendo o último variar em fraternidade). Entre os séculos XVII e XVIII, a Maçonaria operativa transformou-se em especulativa, passando a atuar apenas como obreiros da inteligência.

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Nos bastidores

da elite

COMO

FUNCIONA E O QUE OFERECE AQUELE QUE É CONSIDERADO

O MELHOR

SPA

DA

AMÉRICA LATINA. O KUROTEL,

DE

GRAMADO,

É FREQÜENTADO PELAS MAIS BADALADAS CELEBRIDADES BRASILEIRAS Texto de JULIANA BROILO e SUELLEN MACHADO Fotos de GUILHERME M. PACHECO

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lores, árvores, água, ar puro, serra, a combinação perfeita para quem procura saúde, paz e harmonia para o corpo e a mente. Em meio a uma das mais belas paisagens do Rio Grande do Sul, está localizado o Kurotel Centro de Longevidade e SPA. Favorecido pelas belezas de Gramado, o hotel, se é que assim pode ser chamado, é considerado o melhor da América do Sul, através do Prêmio World Travel Awards e um dos seis melhores do mundo com a conquista do troféu Readres' Choice Award de 2005, concedido pela empresa americana Spa Finder. Nos seus recantos paradisíacos e infinidades de

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tratamentos, uma pequena parcela da sociedade se encontra para semanas de descanso com o que há de melhor em tecnologia para o estresse e emagrecimento. Já na recepção, uma atmosfera que antecede o que tem dentro da clínica: organização e discrição. Esses são os aspectos fundamentais que fazem do Kur, como é carinhosamente chamado, o primeiro entre as celebridades brasileiras que procuram anonimato para colocar em ordem a saúde. De início uma definição: uma vez hospedado lá, você é cliente e não um paciente, mesmo que tenha a disposição diariamente médicos de todas as especialidades.


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Para Mariela de Oliveira Silveira, médica especializada em nutrologia e responsável pelo departamento de pesquisa do Kurotel, esse é um conceito fundamental para proporcionar harmonia a quem procura os recursos do Centro de Longevidade. "Ninguém gosta de ser considerado paciente, porque as pessoas que nos procuram não têm uma doença específica. Como cliente, ele é ativo na escolha de seus tratamentos e nas opções que deve seguir, ou seja, deixa de ser passivo a prescrições médicas, mesmo tendo um acompanhamento diário por uma equipe interdisciplinar", explica a profissional. O grupo é formado por: clínicos gerais, nutricionistas, psicólogos, geriatras, ginecologistas, gastroenterologistas, fisioterapeutas, bioquímicos, farmacêuticos, professores de educação física, técnicos em estética e profissionais de recreação. Eles se reúnem semanalmente para definir as prescrições e formas de acompanhamento que cada um receberá ao longo de sua estada no Centro. Entre pratos e iguarias elaboradas com artigos colhidos na própria horta do Kur e ambientes de descanso em meio à natureza, o tempo mínimo recomendado aos clientes é de uma semana. De acordo com Almita Kauffmann, gerente de Relações Públicas há 15 anos no Kurotel, os grupos são organizados e recebidos a cada domingo. "A primeira etapa é uma recepção no salão de eventos, onde eles assistem um vídeo de boas-vindas de Neusa Silveira e Luís Carlos Silveira, fundadores da Instituição", conta Almita. Mas para entender como surgiu a idéia de criar um local exclusivaESTÉTICA: mente destinado à saúde do corpo é tratamento à base preciso voltar aos anos 70, quando de chocolate Neusa e Luís se encontraram.

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Quem conta essa história é Mariela, uma das quatro filhas do casal. "Meu pai desde que conheceu o método Kneipp, desenvolvido por um padre alemão, ficou encantado e resolveu que traria isso para cá, tanto que foi o primeiro a desenvolver esses tratamentos no Brasil", relembra a médica. O método é baseado nos banhos de contraste e tem como objetivo fundamental estimular o sistema imunológico, ativando a respiração e circulação. Depois de uma série de exercícios, por exemplo, a pessoa caminha na água gelada em cima de pedras. Essa metodologia se mostrou ao longo dos anos eficiente no aumento da imunidade e na ativação do sistema circulatório de quem procura os recursos da clínica. Um dos aspectos destacados por Mariela e que compõe os fundamentos que regem o Centro de Longevidade é o balanço entre hidroterapia, alimentação saudável, exercícios, tratamentos fitoterápicos e equilíbrio emocional. A prova de que Kneipp é quem rege a metodologia do Kur é possível de constatar em uma caminhada pelas dependências da instituição. Nas áreas externas, existem os caminhos d'água, trilhas com água corrente e pedras no fundo, onde as pessoas caminham, sempre com a natureza como elemento fundamental. Essas práticas combinadas são um facilitador dos tratamentos. "Os princípios ativos das plantas medicinais se disseminam de maneira mais efetiva quando se utiliza a água como veículo difusor", contextualiza. Ainda na seqüência de tratamentos, o antitabagismo é um dos que tem demonstrado eficiência na prática e realidade dos pacientes. "Temos alcançado um índice significativo com clientes fumantes, pois 60 por cento dessas pessoas cessaram o consumo de tabaco", informa Mariela. Outro diferencial do centro é o tratamento Kinder Kur, um espaço reservado para mamães logo após o parto e que desejam voltar a forma física de maneira saudá-


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vel sem afetar a amamentação, por exemplo. Em cabanas individuais, mãe e filho ficam instalados, podendo utilizar de todos os recursos da clínica e ainda contar com a presença da babá. Através de técnicas na águ,a a cliente, juntamente com o bebê, desenvolve a relação materna com acompanhamento individual de um instrutor. Mas por que o Kurotel se tornou, além de um centro de inovação em estética, um local para poucos privilegiados? As décadas de 80 e 90 foram caracterizadas pela proliferação de um novo tipo de doença: o estresse. Ela é a origem para a grande maioria dos problemas de saúde que o ser humano desenvolve. De acordo com estudos do próprio Kur, 50 por cento do fator determinante para a longevidade é resultado de estilo de vida adequado. Toda essa qualidade em serviços e tecnologia de ponta tem um preço: uma semana de internação no plano básico, que inclui alguns tratamentos, alimentação e o quarto single, ou seja, o mais simples, custa a partir de 15 salários mínimos. A tabela de preços explica a seletividade e porque ele é procurado por celebridades brasileiras e até mesmo por públicos da Argentina e outros países da América Latina. Uma vez nas dependências do Kurotel não tem quem não sonhe com ao menos uma semana hospedado lá. A cada corredor, cada porta entreaberta, há uma novidade, uma terapia diferente. Em cabines individuais, totalmente assépticas e muito alvas, o cliente passa o dia seguindo sua rotina de tratamentos. Depois da aula de yoga, é possível fazer massagem com pedras ou, quem sabe, tomar um banho no ofurô com vinho. O Kur foi o primeiro a proporcionar no Brasil a vinhoterapia, que, entre outros benefícios, atua na longevidade da pele. Na ala nobre do SPA, que leva o nome de Área Business, estão localizadas as suítes mais caras. Nesse espaço

é possível reviver um filme de Hollywood com cortinas em estilo neo-clássico, cama king size coberta de almofadas, lareira, suítes com hall, sala, quarto e dois toaletes, enfim uma verdadeira casa repleta de detalhes que fazem o hóspede se sentir uma verdadeira estrela. Dispondo ainda de computador, internet e telefone, caso queira manter sua rotina de trabalho atualizada. Quando o assunto é terapia, o que impressiona é a tecnologia à disposição, tudo com base nas técnicas de Kneipp e que mostram também a preocupação da equipe em manter a inovação nos tratamentos. "Nossa missão é melhor saúde e mais vida, e o desafio principal é fazer com que a pessoa saia daqui de bem consigo mesma e disposta a incorporar essas práticas em sua realidade. Por isso a pesquisa é uma preocupação constante. É através dela que conseguimos desenvolver as mais avançadas terapias", declara Mariela. Hoje o Kurotel ocupa uma área de 11 mil metros quadrados, sendo que, desses, seis mil são de área construída. "Temos uma estrutura de 100 funcionários aproximadamente e uma média de 200 atividades opcionais, que são oferecidas aos clientes", revela Almita. De acordo com Mariela, ainda não existe um percentual exato, mas grande parte dos que chegam ao Kur procuram resolução para obesidade e estresse, dentro da faixa etária de 35 a 55 anos. Depois de uma passagem pelas dependências do Centro, o difícil é sair de lá. A atmosfera que o envolve em nenhum momento lembra aquela imagem penosa de emagrecimento e exercícios físicos. Pelo contrário, o sentimento que toma conta é de paz e descanso. Nos corredores, todos falam baixinho. Paredes, móveis e toalhas totalmente brancos lembram limpeza e purificação. Nenhum barulho que perturbe aquele mundo invisível.

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Vibração da arte CRIANÇAS

E ADOLESCENTES ROMPEM AS

BARREIRAS DA SURDEZ Texto de RENATA OSIO e VANESSA PORCIUNCULA Fotos de MATHEUS MASSOCHINI


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eche seus ouvidos. Agora coloque uma música para tocar bem alto. Faça de conta que você não pode falar, mas tente se comunicar. Suba no palco. As cortinas estão abrindo. Agora dance, encene uma peça de teatro. É difícil? Buscar essa superação é o desafio dos surdos do Colégio Especial Concórdia. Quando se fala em deficientes auditivos, logo se pensa em pessoas incapazes por possuir uma deficiência. Esse é um dos motivos pelos quais eles preferem ser chamados de surdos, mesmo porque são tão capazes de se expressar quanto às pessoas ouvintes. Porém, por serem vistos pela sociedade como impossibilitados de exercer inúmeras atividades, eles acabam acreditando nisso. É com a intenção de mudar essa realidade sobre os surdos que o Colégio Especial Concórdia - Ulbra, de Porto Alegre, oferece duas atividades extracurriculares de grande importância para a inclusão dos surdos na sociedade. São as aulas de dança e teatro. De acordo com o Censo 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 5,7 milhões de brasileiros têm alguma dificuldade para ouvir. Mas é importante ressaltar que essa limitação é exclusiva à língua e não impede a expressão e a escrita. Quando exercita sua criatividade, o surdo é capaz de comunicar-se muito bem. Um dos artifícios usados para interagir com o ouvinte é a escrita (ver quadro). Caso isto não seja possível, utiliza-se a mímica, porém essa não é uma prática usual, já que as pessoas não estão acostumadas a praticá-la. É aí que se encontra um dos grandes diferenciais proporcionados pelo teatro e a dança: a expressão e a desinibição. Dois fatores importantíssimos no processo de comunicação. Não é preciso necessariamente de música para dançar,

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mas os surdos da escola pedem que a música seja usada nas aulas. Por mais estranho que isso possa parecer, na verdade, é algo muito simples. Os alunos, com idade entre 14 e 18 anos, escolhem as músicas, dançam, ensaiam suas coreografias e mantém sempre o mesmo ritmo pela vibração sonora. As crianças e adolescentes que participam das aulas sabem exatamente o sentido da palavra vibrar. Pois é por causa disso que eles aprenderam a ter ritmo e é esta a sensação que eles têm a cada aula: vibram de alegria por participar de uma atividade a qual não sentiam-se habilitados. Segundo a diretora do colégio, Hiltrud Elert, apesar de a cultura dos surdos mais velhos não ver a música como uma boa atividade para os que não ouvem, desde que os alunos tiveram oportunidade de experimentar a dança, perceberam o quanto ela faz bem. Convenceram-se de que podem e querem participar desta atividade. O projeto de dança, que tem o nome de "Ver o que se diz", mostra outras perspectivas para essa cultura. "Eu fiquei surpreso, porque a gente não sabia se ia dar certo a dança com a surdez. A gente foi começando devagarinho e foi surpreendente a aceitação dos alunos com a questão da música," diz Camilo Darsie, coordenador do grupo de dança. São os alunos que criam a coreografia da dança e as roupas para a apresentação, o que estimula ainda mais a criatividade deles. Segundo Camilo, os alunos já criaram uma coreografia usando elementos da natureza, com movimentos relacionados ao medo, ao susto e a natureza, tudo feito a partir da abstração de sinais. As crianças e adolescentes já estão produzindo uma segunda coreografia, mas ainda não está pronta. Para a professora de dança que acompanha os alunos, Sabrine Faller, foi surpreendente a


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aceitação deles pela atividade. São os próprios alunos que ditam o ritmo e a professora se molda aos movimentos. O teatro também se mostrou como um grande desafio para os alunos. O projeto do Grupo de Teatro Especial Concórdia surgiu a partir do longa metragem Central do Brasil, que concorria ao Oscar em 1999. Como o filme é brasileiro e não possuía legenda, as crianças não conseguiam entender a história e sentiam-se excluídas. Então nasceu a idéia de fazer a tradução para a língua de sinais, possibilitando que eles compreendessem o filme. A partir daí, puderam trabalhar vários aspectos. Inclusive surgiu a idéia de montar uma peça teatral. Maria da Graça Casanova, coordenadora do grupo de teatro, lembra que a primeira apresentação, realizada com tradução simultânea, teve um público de quase 400 pessoas, entre surdos e ouvintes, com a peça Romeu e Julieta. Eles encenavam em libras e os professores faziam a tradução para o português. Porém, perceberam que esta fórmula não era a mais eficiente, porque, como eles sinalizam muito rápido, o teatro não passava emoção. Daí surgiu a proposta de utilizar mais a expressão do que a libra. Atualmente, o grupo de teatro, que possui alunos entre oito e 24 anos, está trabalhando com a peça A verdadeira história de Cinderela, na qual os alunos não usam libra. A coordenadora ressalta que é quase como o cinema mudo, com uma história muito engraçada, que faz sátira ao conto da Cinderela. Mesmo sem a língua de sinais ou a tradução em português, todas as pessoas compreendem. O teatro também está abrindo portas com relação às empresas. Ele ajuda a desmistificar alguns preconceitos que

as pessoas têm com a contratação dos surdos e mostra sua capacidade. Segundo a diretora da instituição, a escola recebe pedidos de assessoria com o fim de integrar o surdo à empresa e vice-versa. Hiltrud ressalta: "O surdo tem capacidade para desenvolver qualquer atividade em qualquer função. É claro que tem que ter qualificação como as outras pessoas. Eu acho que a limitação que a gente encontra é justamente da sociedade leiga, que não conhece e não sabe o que pode e o que não pode". Além de ensinar a dançar e encenar, as aulas podem ajudar na inclusão social dos surdos. A atividade oferecida pela escola parece afetar diretamente a vida das crianças e adolescentes, das suas famílias e da sociedade. Tanto na dança quanto no teatro, eles aprendem a se expressar melhor, facilitando sua comunicação com as outras pessoas que não entendem a língua dos sinais. A auto-estima dos alunos também melhora muito com a participação nos projetos. Alguns adolescentes passaram até a freqüentar danceterias. Segundo a coordenadora do grupo de teatro, a mudança deles como pessoa é muito grande. Ficam mais desinibidos, mais criativos, melhoram seu rendimento escolar e tornam-se líderes dos grupos na escola. A família passa a admirar muito mais a criança, uma vez que percebe a capacidade dela. Ultrapassar barreiras. Este é o foco dos 45 surdos que participam desses projetos. Fazer atividades que historicamente não lhes eram permitidas. Inovar. Recriar. Mostrar a todos que são pessoas iguais às outras, com capacidades afetivas, humor e, principalmente, felicidade. O preconceito está na sociedade, e é contra isso que, desde criança, os surdos lutam.

A escrita dos surdos A língua brasileira de sinais não contém elementos de ligação, como conjunções, por exemplo. Por isso os os surdos também não costumam usar esses elementos quando escrevem na sua segunda língua: a portuguesa. Veja o que eles escreveram sobre o que acham da dança.

Pamela Fontoura Stigger Moreira - 16 anos

Alane de Souza - 17 anos


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Contra o sono e o perigo QUINTA-FEIRA, 21 DE SETEMBRO DE 2006, 21H30MIN. REPÓRTERES DA PRIMEIRA IMPRESSÃO ENTRAM NO MUNDO INVISÍVEL DE UM PLANTÃO NOTURNO DE POLÍCIA. AMIZADE E FALTA DE ESTRUTURA NO COMBATE AO CRIME SÃO O CARTÃO DE VISITAS DO LOCAL

Texto de DIEGO CAPELA e RODRIGO MALLMANN Fotos de ANNA CAROLINA OLIVEIRA


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FRIO E DOR: uma noite na delegacia antes de ir para o Presídio Central

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nquanto a população da Região Metropolitana dorme em seus lares, os investigadores e delegados da Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA), em Canoas, estão em plena função. E não é nada fácil acompanhar sua rotina. Ao tentar presenciar o funcionamento do estabelecimento e os procedimentos executados, esbarramos no excesso de burocracia. Num sistema operacional ultrapassado e com espaço físico precário. Esses fatores, acrescido o agravante do pequeno salário e a alta periculosidade, transformam esses policiais em verdadeiros heróis da segurança pública. São homens de ferro que contornam todos esses problemas em jornadas estafantes. Eles saem de casa sem ter a certeza do retorno. Sua finalidade é garantir que criminosos tenham seu destino de fato: o xadrez. E foi sabendo de toda essa situação que resolvemos acompanhar a jornada desses profissionais. Encaminhamos pedidos documentais e fizemos contatos por telefone com a coordenadoria da DPPA, que agrega em seu plantão noturno as funções das delegacias de Canoas, Sapucaia do Sul, Esteio e Nova Santa Rita, o que nos garantiu a observação de um trabalho duro, porém rico em dados e experiências. Foram duas tentativas. Uma infeliz, pois fomos barrados por um dos delegados plantonistas que não reconheceu nossa função de reportar a situação da Polícia, alegando que não havia contingente suficiente e que a delegacia não oferecia estrutura adequada. Nosso objetivo era mostrar a realidade, fosse ela qual fosse. Uma semana depois e após muita conversa, conseguimos adentrar a delegacia para, agora sim, fazer nosso trabalho. Encravado na zona central da 84º cidade mais violenta do Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça, o prédio da DPPA funciona à noite como uma casa para os plantonistas.

EQUÍVOCO: Ricardo foi detido por não ter documentos

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No seu interior, existem dois quartos - onde os policiais desfrutam de alguns minutos de descanso - e uma cozinha pequena, equipada com fogão, geladeira, forno de padaria e uma grande mesa de madeira. Do lado de trás do balcão de atendimento, postado na sala de recepção, está a grande companheira das madrugadas: a televisão. Sentados ao redor dela, os três policiais plantonistas passam o tempo de espera, que às vezes pode ser a madrugada inteira, conversando e tomando café. Porém, todos sabem que a calmaria pode acabar a qualquer momento. Por isso, estão sempre atentos. Ostentando uma ficha de 20 ocorrências atendidas naquele dia, a maioria por furto de veículos, o inspetor Flávio Mendes, 30 anos de polícia, comenta a situação dos policias que cumprem jornadas de 24 horas seguidas. Seus dedos são amarelados pelo cigarro, na sua perna direita uma marca de bala que quase dizimou sua vida numa ação policial no ano de 1988. A equipe da delegacia mostra-se unida, uma necessidade clara numa profissão em que a vida está em jogo a cada segundo. "Um policial não trabalha sozinho, só em equipe", afirma Flávio, recebendo o aval dos colegas daquela noite. Segundo esses inspetores, a situação da polícia civil, de fato, é conseqüência do sistema: "Não somos nós os culpados pela estrutura que o governo oferece. Aqui só fazemos nosso trabalho", aponta o inspetor Gilberto Klein, 28 anos de polícia, que está fazendo jornada dupla. "Preciso pagar a faculdade de minha filha", explica. Durante toda noite, os investigadores revezam os períodos de prontidão junto à recepção. De duas em duas horas, um dos policiais sobe aos quartos para tirar um cochilo - como denominam os momentos de descanso -, enquanto outro assume o seu posto. Caso necessária, é solicitada a presença do delegado plantonista titular para engrossar o caldo da equipe.


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O SUSPEITO 22h15mim: policiais militares trazem para a DPPA um homem negro, barba por fazer, aproximadamente 35 anos, abordado no Centro de Canoas enquanto catava latinhas no chão. O homem não estava armado nem carregava drogas, porém, ao ser interceptado pelos policias, não apresentou documentos e informou um nome que não coincidia com sua descrição nos arquivos da polícia. Após trinta minutos sentado num banco da DPPA, sob os olhares e questionamentos condenatórios dos policiais, os inspetores concluíram que um erro no sistema de dados havia gerado uma duplicação do cadastro do homem, o que permitiu desfazer o engano. Depois de ser liberado pelos investigadores, a reportagem conversou com Ricardo Machado Simões, minutos antes de ele seguir em direção ao albergue da cidade, onde dorme todas as noites, pois não possui residência fixa: "Eu me senti humilhado. Só porque sou pobre e negro fui tratado assim. Mas reconheço o trabalho dos policiais, querendo ou não eles agiram certo. Eu parecia suspeito para eles. Infelizmente, eu perdi meus documentos, mas, em breve, vou fazê-los para evitar outra situação como esta", afirmou Simões, se despedindo dos repórteres e seguindo na rua escura, empunhando uma sacola com alguns objetos.

O FORAGIDO 22h30min: três policias militares entram na DPPA acompanhados de um rapaz de 21 anos, Alfredo*. Rapidamente, os policiais comunicam aos inspetores que Alfredo é um foragido do regime semi-aberto - o apenado trabalha durante o dia e volta à noite para a prisão - do presídio de Carazinho. Alheio a toda movimentação dos policiais, o foragido permanece estático, apenas acompanhando com os olhos cada gesto das pessoas que estavam na sua volta, principalmente da equipe de reportagem, da Primeira Impressão. Alfredo chegou com os braços para trás. Um casaco estava enrolado nas mãos para cobrir as algemas. Depois de consumados todos os trâmites burocráticos da sua captura, os policiais militares que efetuaram sua prisão foram embora e o rapaz encaminhado à cela da DPPA. 23h40min: imagine uma sala escura, de no máximo dois metros de largura por três de comprimento, com as paredes cheias de rabiscos feitos por presos, com um vaso sanitário ao lado da grade e o teto composto apenas por barras de ferro, que deixam passar todo o frio da noite. A única cobertura que existe é do telhado da garagem da DPPA, que está a mais de 5 metros de altura. Neste ambiente que lembra as masmorras mostradas no cinema, conversamos com Alfredo, o único "hóspede" naquela noite fria de quinta-feira. Antes de começar a falar, o detento pediu para conseguirmos um cigarro. Atendida a sua exigência, Alfredo coloca-se junto à grade. O casaco que antes cobria suas mãos agora está devidamente vestido, e ele inicia o seu relato

conversando de forma pausada e tranqüila. Parecia falar com velhos amigos ou com quem poderia representar alguma chance de salvação naquele momento. Alfredo, natural de Carazinho, se envolveu com o crime aos 18 anos, quando começara a furtar veículos. Na mesma época, foi preso por roubo de carro em Tubarão, Santa Catarina. A partir daquele momento, a rotina de prisões seria algo constante em sua vida. Dois anos depois da primeira prisão, Alfredo voltaria novamente à cadeia, mas desta vez sua estadia seria longa. "Eu tinha parado de roubar. Estava morando e trabalhando direitinho lá em Carazinho, só fui ajudar um amigo meu que pediu que eu abrisse um carro pra ele. Após abrir o carro, fui para a casa de um outro parceiro meu. Alguns minutos depois, meu amigo chegou desesperado na casa onde eu estava. Ele havia sido baleado por policiais no momento em que furtava o carro. Não demorou muito, os policiais bateram na casa e levaram todos à delegacia. Eu, como já tinha antecedentes criminais, fui preso e condenado a um ano e nove meses de prisão. Meu amigo era réu primário, por isso foi absolvido.” Alfredo cumpriu seis meses de detenção no regime fechado. Pelo seu bom comportamento ganhou o direito de cumprir o resto da pena no regime semi-aberto. Porém, pediu diversas vezes ao juiz que o transferisse para outro albergue local onde ficam os apenados do regime semi-aberto - de preferência em Canoas, onde mora sua mulher e sua filha. "Eu cansei de pedir transferência. Há 15 dias, eu não agüentei mais de saudade e fugi para Canoas para ver minha filha de quatro meses, que eu nunca tinha visto, porque mora aqui com a minha esposa. Eu estava trabalhando como entregador de gás, quando os policiais me capturaram lá no Bairro Rio Branco." Segundo Alfredo, quem denunciou seu paradeiro à polícia foi uma ex-namorada sua. Ao término da entrevista, Alfredo queixou-se de dores nas mãos, causadas pelas algemas apertadas. Nas costas ostentava hematomas, frutos da forma truculenta que, segundo ele, fora abordado na hora de sua captura. Ao ser questionado sobre o que aconteceria na manhã seguinte, Alfredo respondeu: "Vou ir direto pra Carazinho. Vou ficar uns dias no castigo, mas depois volto para o semi-aberto. Daí vou pedir novamente transferência para Canoas, para poder morar com a minha filhinha e levar uma vida direita". Mal sabia Alfredo que, além de enfrentar uma noite muito fria na cela, com apenas uma pequena toalha pra se proteger, teria que passar mais alguns dias no Presídio Central de Porto Alegre, até ser novamente conduzido a Carazinho. 1h30min: as movimentações terminam e os policias exaustos pedem licença aos repórteres para iniciar sua escala de descanso. Todos se despedem com abraços e desejos de boa sorte. Eles na luta contra o crime, nós tentando garantir que situações como essas cheguem ao conhecimento da sociedade.

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MEIO DE EDUCAÇÃO, SAÚDE E ESPORTE, JOVENS TENTAM SUPERAR TRAUMAS PARA SE REINTEGRAR À SOCIEDADE Texto de EDUARDO VITELO e MATHEUS RIBAS Fotos de ANNA CAROLINA DE OLIVEIRA


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inculada à Secretaria de Estado do Trabalho, Cidadania e Assistência Social, a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase) é a responsável, no Estado, pela execução de medidas sócio-educativas de internação de adolescentes autores de atos infracionais determinadas pelo Poder Judiciário. A primeira impressão que tivemos quando chegamos ao local foi de que estávamos em um colégio interno, porém com muita rigidez. Ao mesmo tempo, percebemos uma boa convivência entre as pessoas que lá trabalham com os menores. Os cadeados e os portões de ferro assustam qualquer ser humano que se depara pela primeira vez com esta realidade. Mas todos esses cuidados e procedimentos servem como ajuda na recuperação de adolescentes infratores para que consigam obter uma nova chance de convívio social. A entidade foi criada em maio de 2002 por meio de uma lei estadual que consolidou o processo de reordenamento institucional iniciado com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse fato provocou

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o fim da antiga Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem), a qual muitos lá dentro não gostam nem de lembrar. Antigamente, na Febem, se misturavam, no mesmo local, crianças e adolescentes vítimas de violência, maus tratos, negligência, abuso sexual e abandono com autores de atos infracionais, numa total falta de critério para a acomodação desses jovens. Hoje essa situação mudou com a implementação do funcionamento da Fase, onde são abrigados apenas os menores infratores, enquanto que a Fundação de Proteção Especial (FPE) foi criada para abrigar adolescentes vítimas de todo o tipo de violência. Um importante avanço trazido pelo ECA é a distinção entre o tratamento a ser dispensado a crianças e adolescentes vítimas de violência e abandono e o tratamento a ser dado aos adolescentes autores de ato infracional. Com isso, a Fase especializou-se no atendimento exclusivo a adolescentes autores de atos infracionais com medida judicial de internação ou semi-liberdade. Um dos fatores que contribuiu, e muito, para a mu-


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dança, tanto no tratamento dos funcionários com o adolescente, quanto na forma como a instituição é vista pela sociedade, é que a Fundação conta com uma equipe multidisciplinar formada por nove profissionais: advogado, médico, psicóloga, dentista, enfermeira, assistente social, técnica em enfermagem, técnica em recreação e técnica em educação. Há um profissional de cada área de atuação em cada uma das unidades no Estado. Conta também com um serviço de psiquiatria terceirizado. Além disso, existe o serviço de monitoria dos adolescentes, desenvolvido por funcionários do governo estadual. A auxiliar de enfermagem da Unidade Centro de Atendimento Sócio-Educativo Case POA II, Cleuza Terezinha de Souza, explica que infelizmente não existe um médico plantonista na unidade, apenas um clínico geral, que, quando solicitado, faz os devidos encaminhamentos. A auxiliar ressalta ainda que, em casos mais graves, o adolescente é encaminhado ou para o Hospital Santo Antônio ou para o Hospital de Pronto Socorro (HPS). O tratamento em geral é desenvolvido na unidade e faz com que a maioria dos adolescentes se sintam seguros em relação a realidade que encontram quando estão na rua, por exemplo. O tempo de permanência dos adolescentes em recuperação é de no mínimo seis meses e no máximo três anos, como consta no ECA. Eles assistem aulas até o Ensino Médio e praticam diversas oficinas, que variam de acordo com a região da unidade, totalizando 90 o número de oficinas. Como exemplo, na região de Pelotas, os jovens praticam oficinas nas quais aprendem a fazer doce. Alguns adolescentes adquirem a carteira de artesão e já pensam em prosseguir com esta profissão aprendida e desenvolvida no tempo de recuperação. A monitora da Oficina de Artesanato da Unidade Centro de Atendimento Sócio-Educativo Case POA II, Dalva Romariz, conta que as oficinas são um bom modo de entreter os adolescentes para que estes se dediquem a um fim produtivo e não fiquem pensando em formas de praticar atos ilícitos. Dalva trabalha com os jovens desde quando a instituição era denominada Febem. Ela ressalta que, na maioria das vezes, os internos nem fazem idéia do potencial que têm e que podem continuar desenvolvendo com a prática dessas oficinas de aprendizagem. A procura dos adolescentes pelos cursos é muito grande. A monitora diz que a relação entre os funcionários e os adolescentes é fraternal e que o papel do instrutor é ser uma pessoa que os ensina a desenvolver uma profissão. Quando foi implantada a oficina de artesanato, na unidade da Vila Cruzeiro em Porto Alegre, que trabalha com meninas em recuperação, um dos coordenadores do curso do Colégio Pão dos Pobres ofereceu à Fase um espaço para exposição do trabalho todas as terças-feiras,

sendo esse um dos fatores de maior orgulho para a monitora. Ela diz que, por meio da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio (SMIC), foi conseguido também um espaço para exposição dos trabalhos dos menores e adolescentes no Brique da Redenção, em Porto Alegre. É importante ressaltar que uma parte do dinheiro arrecadado vai para reposição de material e a outra fica com os adolescentes, sendo essa uma das formas deles perceberem o quanto é importante trabalhar e obter sua própria renda. Na confecção de velas, o material de trabalho dos adolescentes consiste em parafina e produtos químicos que dão a coloração necessária a cada tipo de trabalho. A impressão que se tem é de que eles são extremamente interessados e deslumbrados com a presença de visitantes, respondendo a várias perguntas sobre os procedimentos para a fabricação das velas. Um dos jovens que trabalha na oficina é Carlos*, de 18 anos, que está há 11 meses internado na Fase. Ele conta que mudou seu conceito em relação à vida com os trabalhos desenvolvidos nas oficinas de artesanato, pois, segundo ele, nas ruas, você não sabe se vai estar vivo ou morto no dia seguinte. A Fase, na visão do jovem, é uma instituição que ajuda o infrator a conseguir se firmar em uma profissão e ter uma colocação, posteriormente, no mercado de trabalho. Carlos relata emocionado que, depois de passar esse tempo internado na Fase, sente muita falta da família e se arrepende dos erros cometidos. Hoje, na capital gaúcha, a Fase conta com 405 vagas em todas as unidades, sendo que 33 dessas são oferecidas para a recuperação de meninas infratoras, 104 adolescentes se encontram em internação provisória (menores sem sentença judicial) e há um déficit de vagas em quatro unidades das seis que existem na capital. No interior, do qual fazem parte as cidades de Novo Hamburgo e São Leopoldo, a capacidade populacional é de 360 vagas, sendo que dessas, 85 adolescentes cumprem internação provisória. Há também um déficit de vagas em sete unidades das dez espalhadas pelo interior do Estado. O Centro de Atendimento Sócio-Educativo Feminino, em Porto Alegre, que tem capacidade para abrigar 33 adolescentes do sexo feminino, é o único que se destina ao atendimento de mulheres. De lição da nossa visita fica a impressão de que, com trabalho, seriedade e, principalmente, disciplina, esses jovens que têm famílias destroçadas pelos problemas sociais que se alastram cada vez mais pelo nosso país podem ter uma nova chance.

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Fora a caridade, não há salvação EM

MEIO AO CAOS TOTAL DAS GRANDES CIDADES , AINDA É

POSSÍVEL ENXERGAR GESTOS DE AMOR E SOLIDARIEDADE COM OS MAIS NECESSITADOS Texto de CARLOS ROLLSING e ROBERTA PERIN Fotos de MATHEUS MASSOCHINI

A

Avenida Azenha, em Porto Alegre, está um verdadeiro caos. Carros, motos e ônibus disputam um espaço na via para chegar mais rápido ao seu destino. Os buzinaços são intensos e ensurdecedores, típicos do final de tarde de uma grande metrópole. Enquanto os motoristas e passageiros estão ansiosos para chegar em seus lares, após um dia de trabalho exaustivo, alguns garotos protagonizam espetáculos circenses no semáforo. Sobem nos ombros dos companheiros, fazem malabarismos e dão cambalhotas, tudo com o intuito de conseguir algumas moedas para comprar comida ou ajudar em casa. O que esses meninos têm em comum de mais visível é a magreza, a carência e as condições miseráveis em que sobrevivem. Em meio a toda essa loucura cotidiana, poucos são os que visualizam o Albergue Instituto Espírita Dias da Cruz, que fica um tanto quanto ocultado pelas árvores da calçada e do pátio do terreno. Não fosse a placa presa à grade, ninguém faria idéia de que lugar era aquele. Nesse momento, em torno das 18h, o portão de entrada está aberto. Por ali passam dezenas de pessoas que se acomodam nos bancos à frente. Esse é o momento da triagem, onde funcionários da casa conversam com os homens e mulheres que ali chegam e lhes explicam o funcionamento da instituição, bem como as regras a serem cumpridas. Além disso, é verificada a situação psicológica das pessoas, de forma que ninguém é

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aceito em estado alcoólico ou sob o efeito de drogas. A responsabilidade de recepcionar essas pessoas e estabelecer o primeiro contato é de Carlos Alberto Feitosa e Vitorino Loureiro. Ambos têm histórias bastante peculiares e que de alguma forma acabaram mudando o rumo de suas vidas. Feitosa, 45 anos, é paulista, trabalhava no comércio e trazia mercadorias de São Paulo para Porto Alegre. Certa vez, ao desligar-se do emprego, resolveu procurar o Instituto Espírita Dias da Cruz devido a sua forte atração por religiões e filosofia. Inicialmente, tudo era apenas curiosidade. Repousou por alguns dias no albergue e desenvolveu atividades como voluntário. Após um curto espaço de tempo, recebeu o convite para trabalhar na casa como funcionário contratado. Num primeiro momento, Feitosa recusou, porém, após refletir sobre o caso, descobriu que aquela era a sua verdadeira vocação, a caridade. Hoje ele soma oito anos de trabalho como zelador da madrugada, sendo que durante o dia realiza outras funções de maneira voluntária. Já Vitorino, 34 anos, traçou uma trajetória mais árdua e tortuosa. Há quatro anos, vivia com a mulher e o filho Pedro. No entanto, devido a circunstâncias da época, o casal acabou se separando. Isso representou um grande golpe em sua vida, levando esse rapaz calmo e sereno a nocaute. Desiludido, Vitorino acabou caindo nas ruas, à mercê da marginalidade. Obviamente, não viu mais o filho. O alcoolismo consumia seu tem-


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po, sendo poucas as horas de lucidez. "Cheguei a virar mendigo, fedido e sujo", diz Vitorino, que rodou por diversas cidades até ser encontrado pela mãe e por sua irmã. Elas o encaminharam para uma clínica de recuperação em Alvorada. Depois de passar um ano enclausurado, Vitorino estava livre novamente, mas não tinha para onde ir. Uma assistente social lhe acenou com a possibilidade de ficar no albergue municipal de Porto Alegre. Logo na primeira noite, Vitorino, antes mesmo de adentrar o local, levou uma surra e teve seus pertences roubados. Completamente desamparado, ele solicitou que a assistente social lhe comprasse uma passagem de ônibus para a sua cidade natal, São Borja. Na última tentativa, a assistente levou Vitorino até o albergue do Instituto Espírita Dias da Cruz. "Aqui a minha vida mudou radicalmente. Tenho a minha disposição cama, comida e roupas. Tive mais apoio aqui do que dos familiares." Após passar alguns dias na casa, Vitorino se ofereceu para continuar trabalhando como voluntário e já está no instituto há quatro meses. No dia 25 de setembro, visivelmente emocionado, contava: "Ontem reencontrei meu filho. Depois de quatro anos pude vê-lo novamente. É inexplicável". O Instituo Espírita Dias da Cruz é um albergue que acolhe homens, mulheres e crianças. O local dispõe de cozinha, refeitório, auditório e diversas salas que são utilizadas para o atendimento médico e espiritual. Além disso, existem os espaços des-

tinados à diretoria, coordenadorias e secretaria. Os dormitórios são divididos entre ala masculina e feminina, com capacidade para 68 e 32 pessoas, respectivamente, totalizando 100 vagas diárias. As crianças acompanham sempre as mães, pernoitando no setor das mulheres. A entidade foi criada há 100 anos, tendo a sua primeira sede localizada na Rua André da Rocha. Inicialmente, a casa prestava assistência espiritual, já tomada por um caráter social. Passados 25 anos, os membros da entidade sentiram a necessidade da criação de um albergue noturno. Pelo esforço coletivo, foi possível concretizar essa idéia. Na época, a instituição já havia se transferido para a Avenida Azenha, onde permanece até hoje. A maioria dos trabalhadores da casa são voluntários e desempenham essa atividade por acreditar que podem proporcionar uma vida melhor a todos que são acolhidos pela entidade. Dentre esses voluntários estão médicos, dentistas, nutricionistas, psicólogos e outras pessoas que ocupam seu tempo livre para prestar assistência a quem está passando por momentos de dificuldades. A casa se sustenta, sobretudo, por intermédio de doações. O presidente da agremiação, Oswaldo da Silva, afirma que existem muitas pessoas solidárias, que por muitas vezes não teriam condições financeiras para doar alimentos ou roupas, mas mesmo assim o fazem. O Instituo Espírita Dias da Cruz tem uma maneira bastante peculiar de lidar com os seus

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hóspedes. Diferentemente de outras entidades, o objetivo não é somente acolher as pessoas, mas principalmente contribuir para que os mesmos possam se regenerar, superando as adversidades e alcançando condições melhores de vivência, tanto em questões financeiras, como nas psicológicas e espirituais. Ao passar pela triagem, o albergado é encaminhado à palestra espiritual. Esse é um momento de reflexão, quando todos ouvem atentamente as palavras calmas e serenas do palestrante, o qual também é voluntário e varia semanalmente. São abordadas questões referentes à existência humana, ao amor próprio e ao próximo, as barreiras da vida, a evolução do homem e a reencarnação. Sem dúvida é algo que consola e orienta as pessoas que por algum motivo estão entristecidas ou desacreditadas. A mansa trilha sonora ao fundo contribui para o aspecto celestial da palestra, que conta também com a presença de pessoas ligadas ao espiritismo e que comparecem para se purificar ou receber uma palavra de apoio. Lado a lado com os albergados, todos escutam atentamente as considerações proferidas. Em uma pequena sala, ao lado do auditório, é realizada a sessão de passe. O espiritismo acredita que

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essa prática concede uma paz interior para as pessoas, descarregando as energias negativas. No entanto, por uma questão de respeito aos seus hóspedes, o instituto deixa esse ritual como algo opcional. Na seqüência, conforme mandam as regras, todos são encaminhados ao banho. Sem exceção, os albergados guardam seus pertences em um armário individual, vestindo apenas a roupa branca, fornecida pela casa. A janta vem logo em seguida, quando as pessoas têm ao seu dispor um cardápio variado e apetitoso. Durante o período de digestão, eles sentam-se no sofá e assistem televisão. Sempre muito calados e introvertidos, os albergados parecem sentir-se acanhados com a presença de estranhos. A verdade é que aqueles semblantes fechados deixam transparecer mazeladas histórias de vida. Às 21h, todos dirigem-se ao amplo dormitório, ocupado por dezenas de beliches com colchões, cobertores e travesseiros. O despertar acontece às 6h30min. Os albergados acordam, tomam o café da manhã e deixam as dependências do instituto por algumas horas, até o momento de retornarem, às 18h. O projeto de ressocialização e reinserção dos albergados no mercado de trabalho é uma das iniciativas mais promissoras que está sendo desenvolvida no Dias da Cruz. O programa vem sendo planejado em diversas frentes e parcerias. A idéia consiste em proporcionar o acesso dos albergados a cursos profissionalizantes. Para os que já possuem tal título, como o caso de Vitorino, que cursou o técnico na área de Segurança, o objetivo é apenas reinseri-los à massa trabalhadora. O profissionalizante em cabeleireiro e serviços gerais está sendo elaborado e será ministrado nas próprias dependências do Dias da Cruz. As pessoas aptas a darem as aulas já estão sendo contatadas, sendo que as mesmas o farão de forma espontânea, sem fins lucrativos. Os equipamentos utilizados no técnico em cabeleireiro, por exemplo, foram doados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). A outra oportunidade refere-se a parceria firmada com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), que abriu 30 vagas no curso de marcenaria para os albergados da casa. Para fechar a proposta de maneira exitosa, o Dias da Cruz está negociando com o Sistem Nacional de Emprego (sine) para garantir a colocação do pessoal no mercado de trabalho. Mais uma vez, Vitorino aparece como beneficiário. Juntamente com o instituto, ele está tentando uma vaga em empresas de segurança privada. Enquanto o cidadão estiver freqüentando o curso, poderá permanecer no albergue. "Depois que cheguei aqui e tive o apoio e a força de todos, tenho a convicção de que vou me erguer completamente, ao lado do meu filho", afirma Vitorino. Esse é um exemplo que explicita o êxito do esforço da entidade e, conforme dizem as inscrições pintadas na parede, "fora a caridade, não há salvação".


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Por trás da

língua Texto e Ilustrações de LEONARDO VIDAL

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QUE SE ESCONDE NA LÍNGUA QUE USAMOS: GLÂNDULAS SALIVARES OU UM UNIVERSO IDEOLÓGICO INCONSCIENTE?

PARA

O OLHO

TREINADO, A LINGUAGEM TEM CARACTERÍSTICAS QUE PODEM DIZER MUITO SOBRE QUEM A USA

O

dicionário Aurélio define a linguagem como "o uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas". É o artifício desenvolvido pelos homens para exprimir pensamentos e situações complexas, impossíveis de serem traduzidas pela linguagem corporal ou outros códigos mais simples. Mais que isso, a linguagem é uma das muitas expressões da cultura e das crenças de um povo, podendo dizer muito sobre a cultura que a utiliza. Peculiaridades que talvez sejam óbvias ao olho treinado para enxergá-las, mas pelas quais a maioria das pessoas passa batido. Com as linguagens, é preciso um distanciamento crítico para perceber suas características: uma pessoa pode passar a vida inteira imersa em uma cultura e nunca olhar o que está ali, bem debaixo de seu nariz. É como a fábula dos três cegos encontrando um elefante: o primeiro tocou a tromba e descreveu o elefante como uma cobra; o segundo tateia o corpo e descreve o animal como um muro; o terceiro, segurando uma pata, percebe o animal como um tronco. No tocante às linguagens, precisamos nos afastar e compará-las entre si, para, enfim, entender a forma que têm. Segundo a professora da Unisinos Elizabeth Bastos Duarte, pós-doutora em Comunicação pela Universidade de Paris - Sorbonne, "As palavras são signos. Têm um poder incrível de produzir sentidos, mas muitas vezes elas permanecem cativas daquilo que alguma vez representaram, do ponto de vista teórico, ou do ponto de vista social ou cultural. Só conseguem se liberar, quando alguém ousa utilizá-las com outro sentido. Qualquer signo pode ter muitos sentidos, mas, às vezes eles ficam presos a um único sentido". Assim, as palavras podem estar impregnadas de sentidos que não podem sequer ser intuídos pelo mero exame de seu conteúdo semântico. E esses sentidos, muitas vezes, têm um caráter ideológico. Como instrumento utilizado por uma cultura para expressar idéias, imagens e conceitos, a linguagem tende a assumir valores e características da cultura a que pertence. A cultura portuguesa, por exemplo, lançou-se ao mar em busca de novas terras, no que ficou conhecido co-

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mo as grandes navegações. As famílias e entes queridos esperando pelo retorno dos navegantes se tornaram comuns na época. Daí a saudade. Não que outras culturas não conheçam o sentimento. Mas só o português tem signo para traduzi-lo, para expressá-lo. Como dizia o semiólogo Barthes, a língua é fascista, obriga a dizer: nas línguas latinas, o artigo masculino plural serve para designar tanto o masculino quanto ambos os sexos; a palavra homem designa homens e mulheres em geral. Isso é próprio de uma cultura patriarcal e machista. Ou seja, é válido dizer que a linguagem, expressão maior de um povo, tem também uma "personalidade", que é um reflexo da personalidade de seu povo. Essa personalidade se encontra diluída nas palavras, em seus usos e conceitos. A língua não só aproxima os membros de uma sociedade, mas também os divide e classifica. Cada domínio de conhecimento - o jurídico, o científico - faz questão de ter a sua própria metalinguagem e, com isso, garantir o seu poder. Deter o uso de um determinado tipo de metalinguagem profissional restringe o ingresso a esse universo. E, com isso, há uma manutenção do status quo. Se qualquer um pudesse demandar, na sua linguagem, o que um advogado faz em uma petição, não precisaríamos contratar advogados. Mas é exatamente pelo domínio de uma metalinguagem (uma legislação) que eles desenvolvem as suas profissões. Essa estratégia garante redutos de poder, principalmente do ponto de vista profissional. Pode-se dizer que existe uma metalinguagem científica, uma metalinguagem jurídica,uma metalinguagem médica. A língua, segundo Foucault, filósofo francês que se ocupou do tema, é o espaço em que se inscreve. E a língua aproxima e divide de acordo com os desígnios do poder. E, como Marx já dizia, as idéias de uma época são as idéias da classe dominante. A linguagem funciona como um senso comum. É o lugar em que a cultura e a sociedade se realizam. Todas as linguagens trazem consigo os sistemas de valores da cultura na qual ela se expressa. Traz consigo pequenas armadilhas e exige um esforço consciente para ser corretamente empregada. Claro, não é por isso que você vai deixar de falar. Mas faz um bem em refletir um pouco sobre o assunto.

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SE ADÃO E EVA ESTIVESSEM ENTRE NÓS, COM CERTEZA VIVERIAM EM UM LOCAL CHAMADO

UM

COLINA

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SOL.

EMPREENDIMENTO

NATURISTA, ONDE FAMÍLIAS VIVEM EM COMUNIDADE, CULTIVANDO A FILOSOFIA DE VIDA QUE DEFENDE A NUDEZ EM HARMONIA COM A NATUREZA

Texto e fotos de GIULLIANO ALVES PACHECO

A

grama está verdinha, o sol brilha entre as árvores de Eucalipto e os pássaros cantam no amanhecer do dia. Esse é o cenário que os moradores da Colina do Sol convivem diariamente. A primeira vila naturista da América Latina está localizada no município de Taquara, a 70 Km da capital. Seus dez anos de existência se deram graças ao seu idealizador, Celso Rossi, 44, um dos pioneiros da prática no país, e fundador da Federação Brasileira de Naturismo. Na Colina, vivem famílias oriundas de diversas regiões e alguns do exterior, como Estados Unidos. Porém, não é tarefa fácil identificar diferenças. Todos estão nus, iguais perante os olhos de todos. Este, aliás, é um dos poucos lugares, que um grande executivo senta à mesa com um operário. A convivência aparentemente é fraterna. As pessoas se cumprimentam e trocam alguns "dedos de prosa" quando se esbarram pelas estreitas ruas da Colina. Durante a semana, a rotina é pacata. Há pouco o que fazer. Alguns passam o tempo arrumando o jardim, lendo, caminhando pela mata, tomando sol, enquanto outros cuidam de tarefas administrativas do clube ou de seus estabelecimentos comerciais. É comum um morador ir ao mercadinho sem fechar a casa. Não há registro de roubo, sendo que algumas delas nem chave possuem. Deve ser por este motivo que não existem muros, grades ou preocupação com segurança. Aos finais de semana e feriados, os moradores se preparam para abrir as portas das cabanas de aluguel aos turistas, período em que o número de fre-

qüentadores é maior. Viver no condomínio, sem depender da cidade, exige investir na aquisição de uma concessão de exploração comercial, ou que se tenha uma boa aposentadoria para os que já podem disponibilizar desse benefício. Mercado, restaurante, marcenaria, loja de conveniência, camping, hotel e albergue são alguns dos empreendimentos já existentes nas zonas comerciais. Etacir Manske, 35, é um dos moradores mais antigos da Colina do Sol. Está lá desde o surgimento das primeiras habitações. Nascido no interior de Santa Catarina, conheceu o local em 1996 através de uma amiga. Ficou receoso pelo fato de ter que ficar nu. Quando deu os primeiros passos sem uma peça de roupa sobre o corpo, não teve dúvidas que era esse o lugar que queria morar. Dois anos depois, construiu sua primeira cabana e adquiriu uma concessão comercial, para explorar serviços como construção de moradias e cuidado com a jardinagem no interior da vila. Etacir passa o dia trabalhando no seu escritório, enquanto sua esposa, Verônica Domingos, 28, administra uma lojinha de utensílios. O casal vive junto há quatro anos na Colina. Os iniciantes, logo que chegam à Colina do Sol, assistem a um vídeo documentário que instrui sobre normas éticas, estabelecidas por um código local. Após o atendimento na recepção, é proporcionado a eles um contato gradual com a prática naturista, através de passeios em áreas verdes e zonas residenciais, que funcionam como áreas de adaptação, de for-

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ma a que todos possam sentir-se à vontade e livres para a experiência naturista. A Colina do Sol possui área social, quadras de esportes, piscinas, lagos, trilhas, centros de relax com sauna, piscina térmica, academia de ginástica, restaurante e centro de terapias holísticas. Como em qualquer clube, mulheres e homens tomam cerveja, falam da vida ou simplesmente se divertem. O local mais visitado é o grande lago, por possuir 20 mil metros de areia ao seu redor. Lá, as pessoas levam suas cangas e cadeiras de praia para sentarem à beira d´água para tomar sol e jogar conversa fora. Por uma questão de higiene, a canga é uma peça fundamental, uma vez que, como todos estão despidos, e precisam de uma proteção para quando forem sentar em local público.

A Bióloga Maria Cândida Furtado, 45, foi eleita recentemente Presidente do Conselho Deliberativo. Morando há oito anos na vila naturista, um dia chegou a se questionar se a mudança valeria a pena. Contudo, o amor pela natureza e a união disso com a nudez a fez optar por um novo estilo de vida. Mas, nem tudo são flores. Cândida assumiu a presidência em um período difícil, pois constatou que seria preciso fazer um movimento para reforçar a importância dos valores naturistas, muitas vezes deixados de lado pelos moradores, devido a problemas de divergências políticas internas. Alguns são da opinião de que o empreendimento tem que crescer, buscar alternativas de atrair novos freqüentadores. Outros ficam com receio. "Para que a Colina do Sol seja um verdadeiro paraíso, é preciso que todos nós que aqui estamos nos deixemos impregnar pelo espírito naturista", comenta a presidente. Freqüentador da Colina há quase um ano, o pedagogo Tiago Carlan, 26, conheceu o naturismo pela internet, ao visitar a página da associação de jovens naturistas, Young Naturist International (Ynai). A idéia de Tiago é trocar Porto Alegre pela Colina do Sol, onde assumirá o comando do único restaurante, juntamente com a sua amiga Kelli Steffens, 25, que é moradora há 8 anos. Foi André Ricardo Herdy, 33, cirurgião dentista, o responsável por trazer o Ynai para o Brasil, originalmente fundado por australianos. Quando passou a vivenciar o naturismo em 1996, visitou diversas áreas naturistas e ficou intrigado com a pouca presença de jovens. A partir daí surgiu a idéia de associar-se ao Ynai e trazer a filosofia do movimento para Taquara. Hoje a presença de jovens é significantemente maior. De oito a nove vezes por ano, André, que mora no Rio de Janeiro, vem para o Sul ver a namorada, Cleci Ieggli, na Colina do Sol. Para ele, a infância da filosofia no Brasil acabou e chegou a uma fase de responsabilidade e crescimento. Imagina o futuro do naturismo brasileiro seguindo as mesmas linhas da Europa, onde ocorreu um crescimento extraordinário, devido ao forte potencial turístico e os serviços de hospitalidade terem se profissionalizado. Exatamente o inverso do que vem ocorrendo nos últimos anos na Colina do Sol, que apesar de ser um empreendimento aberto a visitantes, possui a cara e identidade de condomínio. Para tentar reverter esse quadro, buscando alternativas de crescimento, a partir de novembro de 2007, entrará na rota turística das maiores agências naturistas européias. De acordo com a Federação Brasileira de Naturismo, cada país ou grupo tem suas particularidades, alguns mais fiéis aos princípios de saúde ligados ao naturismo, pregando o vegetarianismo e a prática de exercícios, outros menos rígidos, buscando um naturismo mais próximo das condições que vivem a sociedade. O importante é que todas as áreas, assim como a Colina do Sol, seguem as mesmas normas e todos possuem o mesmo objetivo, o crescimento do ser humano e uma maior proximidade com a natureza.


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PARTIR DE AGORA, VOCÊ VAI

EMBARCAR EM UMA VIAGEM PELO UNIVERSO.

PASSEAR

POR DIVERSOS

ASTROS QUE COMPÕEM O INFINITO E ACOMPANHAR ALGUMAS DAS EXPERIÊNCIAS QUE AINDA SÃO MISTÉRIOS PARA NÓS, SIMPLES MORTAIS

Texto de ESTELA SILVA e TATIANA LOPES

Um passeio pelo

universo DEZEMBRO/2006 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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magine olhar de perto as estrelas, os planetas, as galáxias, a lua... Seria no mínimo uma experiência inesquecível; chegar perto de coisas que são inalcançáveis ao ser humano. Sim, o homem já pisou na lua. Mas e os planetas e as estrelas, pontos brilhantes na escuridão que aguçam a curiosidade de toda a humanidade e que ficam há anos luz de distância da Terra? Quem não é multimilionário como a americana de origem iraniana Anouseh Ansari, que no dia 18 de setembro de 2006 se tornou a primeira mulher a fazer um passeio turístico pelo espaço, tem que se contentar em observar o infinito e misterioso céu através dos equipamentos apropriados. No alto do prédio oito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), dentro de uma cúpula iluminada apenas por uma lâmpada vermelha no seu interior (menos nociva à visão), é possível investigar esse mundo invisível chamado universo. Quem proporciona essa conexão Terra-Espaço é o telescópio. O astrônomo Ivandel Lourenço, 46 anos, que atua no Laboratório de Astronomia da PUC, é o guia dessa viagem rápida e sem custo algum. Primeiramente, é preciso acostumar os olhos com o escuro. Para isso, é necessário ficar alguns minutos em um local sem iluminação para aumentar a capacidade de visão. Logo após, observa-se o céu a olho nu. O que se vê são poucas estrelas piscando lá em cima. Partese então, para a análise do céu pelo telescópio, e tudo aumenta em tamanho e em quantidade. Aproximando as mãos da lente, a impressão que se tem é a de que se pode tocar o intocável. Apenas ilusão. Sem a conexão da lente de um telescópio, o Planetário de Porto Alegre, localizado no bairro Santana, também proporciona uma experiência interessante: as estrelas projetadas em seu interior, formando um céu representado, mas igual ao de verdade, passeiam entre as pessoas que assistem à seção. É como se fosse possível tocar estrelas artificiais, porém, sem senti-las. A experiência dura pouco mais de quarenta minutos. Depois disso, acendem-se as luzes e o univer-

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so volta ao seu lugar. Para um conhecedor do universo, como Ivandel, o estudo da Astronomia ajuda a descobrir alguns enigmas desse infinito escuro. "Desvendar mistérios que as pessoas normalmente desconhecem me faz sentir bem", diz ele. A possibilidade de desvendar certos mistérios e fazer novas descobertas também aguçou a curiosidade do astrônomo e professor de Astronomia e Física da Unisinos, Luis Augusto Leitão, 43 anos. "Em princípio, todo mundo é bastante curioso, principalmente para saber de onde veio, onde está e para onde vai... Eu fui um dos que não resistiu a estudar mais profundamente essa questão". Segundo o professor, todas as outras ciências têm seu estudo centrado na Terra. O barato da astronomia é a possibilidade de ir além: "Dificilmente as outras ciências têm enfoque cosmológico. Assim conhecemos um monte de coisas sobre um grão de areia e nada sobre o resto dos grãos que formam a praia. Quem diz todo esse resto é a astronomia".

ASTRONOMIA A astronomia estuda diversas teorias sobre o surgimento do universo. A mais conhecida e aceita delas é o Big Bang (Grande Explosão). Basicamente, ela diz que há aproximadamente 15 bilhões de anos um átomo explodiu e, em poucos segundos, surgiu o universo. Segundo Luis Augusto, o Big Bang está razoavelmente comprovado. Muitas previsões feitas, inclusive a da radiação de fundo cósmico - eco da explosão inicial que deu origem ao universo e que se escuta até hoje, principalmente por ondas de rádio - e a da comprovação do afastamento das galáxias. Essas duas evidências são os grandes pilares para a constatação da teoria. "Passando o filme ao contrário, vamos chegar a um momento da história em que toda a matéria e energia estavam concentradas em um ponto", explica o professor. A Astronomia permite colocar de lado o misticismo e as fantasias e


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oferecer uma visão alternativa, mas cientificamente fundamentada. "Se não fosse a Astronomia, demoraria mais para o homem ter a consciência do lugar que ele está ocupando no universo e se enxergar livre de visões distorcidas que não correspondem à realidade".

ESTAÇÃO DOS ASTROS Há aproximadamente dois anos, foi detectado algo inédito: um mesmo sinal observado três vezes vindo do espaço. Muitas vezes se observou um sinal idêntico duas vezes, mas nunca três. A comunicação com o universo é possível há bastante tempo graças a um programa de computador chamado SETI: Search for Extraterrestrial Intelligence at Home (Busca por Inteligência Extraterrestre em Casa). São horas de escuta; muitas estrelas e freqüências a serem analisadas, o que resulta em um trabalho extremamente intenso. Mas segundo o professor Luis Augusto, o programa tem sido bastante eficiente. Ele explica que existe uma grande colaboração internacional de voluntários que baixam o SETI pela internet, o que aumenta a possibilidade de algum sinal vindo do espaço ser comprovado. "Se existem outras civilizações em nossa galáxia, possivelmente elas vão querer se comunicar, gerando informações ou sinais de rádio", comenta o professor.

PARA ONDE FORAM AS ESTRELAS? A evolução da humanidade e o grande desenvolvimento das tecnologias fizeram com que o mundo em que vivemos não seja mais o mesmo. O crescimento das populações transformou os centros urbanos em megalópoles com grandes problemas e muita poluição; não apenas ambiental, mas também visual. Se pararmos para observar o céu de Porto Alegre, por exemplo, no cair da tarde e início da noite, não encontraremos quase nenhuma estrela. Mas será que elas não existem mais? Para onde foram? Na verdade, as estrelas

não sumiram, elas apenas se tornaram menos visíveis ao olhar humano. Isso acontece porque existe um grande número de luzes nas ruas das cidades. Para Ivandel, isso é um grande problema. Por ser astrônomo e ter a necessidade de observar o céu, ele acaba não conseguindo desempenhar seu trabalho diário, que é estudar as estrelas. "Hoje, para uma boa observação, preciso ir ao interior do Estado", diz. O professor Luis Augusto complementa a questão dizendo que este é um problema para os estudiosos, salientando que de todos os problemas de poluição, este é o menos preocupante. Todavia, ele acrescenta que também é uma questão importante para a economia. "As lâmpadas da nossa iluminação pública desperdiçam muita luz. Elas não iluminam apenas para baixo, mas também para cima. Iluminando apenas para baixo, seriam economizados bilhões de dólares por ano em todo o mundo. É uma conscientização que está surgindo devagarzinho", explica.

DO PÓ VIEMOS, AO PÓ VOLTAREMOS "Pequenas perturbações geram grandes alterações." É com essa frase que o professor Luis Augusto define seu pessimismo em relação ao futuro da sobrevivência da civilização. A astronomia é uma ciência que, além de posicionar corretamente o homem no universo, contribui para o desenvolvimento da consciência ecológica. O professor alerta: "Nós estamos a perigo." E explica: "Existem muitos planetas, mas nenhum como a Terra, e se existe, ninguém ainda descobriu, portanto temos que cuidar dele. Se alguma coisa sair errada, nós não temos para onde ir." Segundo o professor, se não houver uma mudança de postura da população, daqui a 100, 200 anos, não há perspectivas de que a vida no modelo que existe atualmente continue existindo, principalmente pela ação do aquecimento global e da poluição. O mundo que conhecemos também pode se tornar invisível. "Espero que eu esteja errado", finaliza.

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IMPRESSÕES D E R E P Ó RT E R Você não existe

Julie Reichert e Rodrigo de Oliveira

Mundos invisíveis. Tema amplo, não é? Tão amplo que demorou um bom tempo para achar um foco para a matéria desta revista. Queríamos encontrar algo que as pessoas pudessem ler e se identificassem facilmente com o texto. Ao mesmo tempo, era preciso ser incomum e ter um mote interessante para que, além do trabalho, a tarefa fosse prazerosa. No final das contas, os mundos invisíveis que estávamos procurando estavam mais perto do que imaginávamos: dentro de nós mesmos. A mente humana é cheia de mistérios que nos aguçam a curiosidade e foi um ótimo ponto de partida para a reportagem. Mas ainda faltava alguma coisa, uma espécie de linha a seguir. Quando as máscaras foram finalmente definidas como foco da matéria, o resto fluiu naturalmente. Conversamos com o professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos Mário Fleig, que foi extremamente atencioso ao nos receber para uma conversa interessantíssima sobre os mistérios do nosso eu interior. Além de servir de subsídio para a nossa matéria, o bate-papo nos levou a pensar sobre quem somos - e se realmente somos nós mesmos. Parece confuso? Esperamos que a nossa matéria ajude em uma reflexão sobre o assunto. (Página 6)

O universo que eu não vejo

Giovana Rech Godinho e Vinicius Pellenz

Nossa viagem começa na rodoviária da Capital. O ônibus fabricado por vol108

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ta dos anos 70 começa a encher. Depois de avisar o motorista, prestando atenção nas placas, chegamos. Mais uma caminhadinha de 2 km e estamos lá. Finalmente, depois de duas horas e meia de viagem... Muitos prédios em construções orientais é a primeira visão. A nossa entrevista é para as 15h. Então resolvemos-nos "misturar". Entramos em todas as casinhas, salinhas, olhamos pra todas as estátuas minuciosamente, esperando que alguma pudesse contar uma sacada genial para escrevermos a matéria para a Primeira Impressão. Lá sentamos e ficamos olhando tudo, pois cada detalhe enche os olhos. A paz sentida é indescritível. Sentimos que naquele local acontece algo que foge do nosso conhecimento. Enfim, a Lama chega. Figura muito importante, que se porta com incrível solidez, paciência e simplicidade. Trabalho feito, corremos para a parada, pois o horário do ônibus é uma incógnita. A única certeza: valeu a pena. (Página 9)

O hospital que você não vê

Ângela Assis Brasil e Liza Rebechi

As crianças do Hospital Santo Antônio não choram, riem. Elas não sofrem, brincam. Foi essa a impressão que ficou ao sairmos do Hospital Santo Antônio após uma manhã inteira ali. A imagem de dor e sofrimento que fazíamos de um hospital infantil foi quebrada ao chegarmos quando vimos duas crianças jogando bola no saguão do prédio. Nem as máscaras que tinham no rosto, nem os olhares aflitos dos adultos ao redor as incomodavam. Um senhor

com um ursinho de pelúcia no peito veio nos perguntar se já tínhamos sido atendidas. Tudo era colorido e passava uma energia positiva. A cada fonte entrevistada, uma mensagem de esperança, de que apesar de qualquer doença, sempre havia uma saída. Presenciar o drama das pessoas, conversar e ver a emoção nos olhos de quem fala foi emocionante. Falamos com muitas pessoas, mas o que levamos mesmo não foram simples palavras anotadas, mas sim sorrisos, abraços e carinhas sapecas. Aprendemos a escutar antes de perguntar, e que nem sempre a resposta para as nossas perguntas é o mais importante. (Página 12)

Dai-m me!

Camila Soares e Renata Vanin

A busca por uma pauta interessante sobre mundos invisíveis não foi uma tarefa difícil. No mundo existem tantas coisas das quais não nos damos conta. O Santo Daime é claro exemplo disso. Uma religião que existe desde o começo do século 20 e ainda é desconhecida pela maioria. Apesar disso, o Daime é muito bem estruturado e foi fácil achar adeptos dispostos a nos explicar todos os mistérios e rituais que envolvem o culto. É realmente fascinante o modo como os daimistas acreditam e usam para o bem o poder da mudança causado pelo chá durante o ritual. Nos divertimos muito durante a realização da matéria, e ver o nosso trabalho concluído é a maior satisfação. Ser repórter é o maior barato da profissão! (Página 16)


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Vidas especiais

Cláudio Cunha Santos e Tatiane Wissmann

Muitas vezes ficamos confusos quando nos deparamos com o diferente. É natural. Nós, assim, como a maioria das pessoas, não entendemos bem nossos sentimentos diante do desconhecido. Podemos nos sentir desconfortáveis diante do "fora do normal". Algumas pessoas são a favor e outras contra que sejam mostradas em novelas pessoas deficientes. Alguns acham que elas não deveriam estar ali, chocando o público às nove horas da noite. Por isso fomos visitar o Centro de Reabilitação de Porto Alegre. Antes de chegarmos no Cerepal, para realizarmos nossa reportagem, estávamos com receio, não tínhamos muita idéia do que iríamos encontrar. Imaginávamos um ambiente de dor, com gritos e pessoas chorando. O que encontramos foi solidariedade, afeto e muita disposição dos funcionários e voluntários. Os pacientes, portadores de paralisia cerebral, muito alegres e receptivos, cada um a sua maneira. Eles são pessoas especiais, que nasceram diferentes de nós e que possuem outra maneira de viver. (Página 20)

BR-1 116, Km 13

Lívia Cruz e Marcio Magalhães

Na pauta BR-116 ,Km 13, tivemos dificuldades em relação ao acesso no local do depósito de máquinas. Quando chegamos, um dos homens que cuidam do depósito nos recebeu, sem muitas palavras, e fingindo não ouvir as perguntas que fazíamos. Estava muito desconfiado do por quede estarmos ali, querendo obter

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informações sobre o local. Depois de muito insistirmos, ele começou a soltar algumas respostas, sendo uma delas a chave da nossa reportagem: o celular do responsável pelo depósito, Orlando Maya. Quando ligamos para Orlando, explicamos detalhadamente o objetivo da nossa matéria. Mesmo assim, as informações que obtivemos dele custaram a serem ditas, pois, segundo ele, o local está em processo de Inventário Familiar e ordem de despejo pela Prefeitura de Esteio. O nosso mérito foi convence-lo de que não lhe causaria nenhum problema a nossa reportagem. No final, conseguimos produzir uma boa matéria. (Página 24)

Jesus breve voltará

Aline Ebert e Michele Fatturi

Aline - Há tempo pensava em fazer uma matéria sobre as placas, entrevistando o senhor que as produz. Numa manhã, o avistei na BR 116, pregando algumas. Com a oportunidade de abordar o tema na revista, não pensei duas vezes, tendo certeza que o reencontraria... Michele - Era um assunto que também me chamava a atenção e pensei ser interessante e inusitado, principalmente se resolvêssemos o mistério dessa autoria. A cada passo de nossa investigação, surgiam mais pistas e, com elas, nossa visão sobre o tema começava a caminhar em diferentes direções... Somos amigas há bastante tempo, mas, claro, somos pessoas diferentes. Uma tem uma visão mais emocional e desenvolveu um carinho pela mensagem subjetiva das placas: um pedido para que as pessoas fossem melhores. Já a outra, tende a ser mais irônica e, inevitavelmen-

te, acabou com uma visão mais fria. Ao invés de brigarmos, acabamos produzindo uma reportagem que, mesmo sem encontrar o personagem, acrescenta com novas informações. (Página 27)

Viagem insólita

Aline Stedile Mena e Renata Dornelles da Cruz

Apesar de ser uma pauta "sombria", a situação foi bastante engraçada. A diversão aliada à imaginação teve momentos de muitas risadas. Houve uma leve mudança no hábito alimentar da nossa repórter Aline Mena, que desde que visitou o Laboratório de Toxicologia não come mais a deliciosa sopa de feijão de Dona Wilma (sua mãe). Já nossa colega Renata Cruz teve um surto psicótico ao ver uma poça d´água no elevador do DML, confundindo com uma mancha de sangue. O desenho "O Fantástico Mundo de Bob" foi o que embalou nossas visitas, pois imaginávamos de tudo. Confessamos que havia um local que nos "matava" de curiosidade: onde os mortos ficavam, ou seja, o necrotério. Infelizmente, nessa pauta, não pudemos visitar os defuntos, apenas olhamos suas vísceras. Todas as pessoas que liam nosso texto ficavam enjoadas. A primeira impressão era de que nós havíamos perdido o senso dos limites entre a prática jornalística e a vida de abutres. (Página 30)

Entre livros e vassouras

Emerson Machado

Escrever para a revista Primeira Impressão é o auge das cadeiras de redação, pois une todo conhecimento absorvido JUNHO/2006 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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I M P R E S S Õ E S ao longo do curso. Apesar de termos noções deste tipo de publicação durante o curso, é na cadeira final que vamos pôr em prática o lado mais subjetivo e crítico do sujeito jornalístico, sua opinião. Então, com qu tive quatro dias para produzir a matéria, a sensação foi de que eu estava escrevendo uma matéria grande, "tipo de fim de semana", para um jornal. Não tive tempo "para pensar" a matéria. Baixei a cabeça e saí enlouquecido atrás das informações. Contatei as fontes mais próximas, não fiz uma ótima pesquisa. Lamento ter sido assim. Já que moro em uma casa destas e domino o assunto, facilitou muito mesmo o trabalho. Afinal de contas, o ideal é você dominar a pauta, a conseqüência maior será a qualidade do produto final. O mais fácil foi fotografar. Conversei com a professora Jacqueline Joner, ela me pautou, falou o queria, tranqüilo. E o que mais temia era saber se minhas fotos estavam ao nível da revista para minha felicidade, a Jacqueline aprovou. Sai caminhando nas nuvens, texto aprovado e fotos elogiadas, bingo! (Página 34)

Proibido para menores

Diana Haas e Melina Mesquita

Nossa aventura por casas e locadoras eróticas, salas de cinema pornô, foi, no mínimo, interessante. Jamais pensamos na possibilidade de estarmos em um local como esse. Porém, qual seria a melhor possibilidade de entrar num mundo que para nós, repórteres, também era invisível e totalmente desconhecido? Somente produzindo nossa reportagem para a revista é que tivemos a oportunidade de conhecer alguns desses lugares. Diante das dificuldades de encontrar fontes específicas e fugir dos clichês sobre o assunto, escolhemos lugares e a banda Baby Doll como personagens da reportagem. Vencidas as barreiras dos nossos conceitos e pré-conceitos, deixamos os espectadores do cinema constrangidos. Na casa erótica, ganhamos uma dança especial do striper e fomos conselheiras de um garoto em crise sobre a sua orientação sexual. Foi divertido, foi difícil, às vezes parece que tudo está perdido, mas ao final tudo se resolve e tivemos um resultado maravilhoso, assim como esperávamos. (Página 37) 110

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Uma febre virtual

Adilson Castilhos e Caio Schenini

Fazer uma reportagem é sempre uma experiência gratificante, já que se trata de um texto onde o jornalista encontra mais liberdade para elaborar a matéria, para expressar seu próprio estilo. Apesar de ser um assunto aparentemente ameno, a questão da lan house enquanto elemento da cibercultura é um tema interessante e com vários ângulos significativos a serem explorados. Não era um meio com o qual estávamos habituados, isto se constituiu num obstáculo a ser vencido, porém, ajudou ainda mais na obtenção de uma aprendizagem da nossa parte. As fontes contribuíram de forma significativa para o êxito da reportagem e forneceram dados que garantiram ângulos muito diversificados sobre o assunto. Em função de esta matéria específica ser sobre entretenimento, a produção do material foi bastante prazerosa e gratificante. Percebemos também a preocupação das pessoas com formas seguras de diversão. Assim como uma valorização do prazer, elemento que numa sociedade de racionalidade técnica e produtivismo como a nossa, na maior parte das vezes, fica em segundo plano. Imaginamos que temas como "mundos invisíveis" contribuem para que o leitor e o jornalista descubram novas facetas da realidade, o que é, em nossa opinião, umas das principais funções do jornalismo. (Página 40)

Há vida na caverna

Daniel Marenco

Desde o início pensei em fazer uma reportagem fotográfica para a revista. Precisava pensar numa pauta que pudesse render nesse sentido. Achei que seria legal fotografar o mundo de um bar gay. Um que tivesse shows de drag queens, com suas cores e desinibições. Até fui em um bar da Capital, mas era extremamente pequeno e bem diferente do que imaginara. Acabou não rolando. Como alternativa me propus a fazer a vida dos artistas de circo. E tinha um na quadra de trás da minha casa. Numa quarta, após o trabalho, passei para combinar com o encarregado para fotografá-los no domingo. Daria tudo certo, se o circo não desmontasse a lona na sexta. Então, parti para

aquela que era minha idéia inicial, mas que havia descartado com medo de não consegui-la executar dentro das minhas pretensões. No final, deu tudo certo. O lugar era extremamente belo fotograficamente e os personagens tinham lindas histórias para contar. A caverna conseguiu me oferecer essa ótima surpresa. (Página 44)

Alguns instantes em outro país

Cíntia Machado e Ana Cristina Knewitz

Realizar uma reportagem é prever imprevistos: tudo pode dar certo, mas também tudo pode dar errado. Os entrevistados podem se prontificar e fornecer informações, mas podem também se negar, principalmente, quando o entrevistador é apenas um universitário. Um entrevistado pode falar espontaneamente tudo o que o repórter precisa saber de essencial e dar informações complementares sem que essas sejam solicitadas. Outras vezes é preciso fazer grandes esforços para conseguir as informações primárias. Pode acontecer ainda de um entrevistado passar horas falando e não falar nada que seja realmente interessante para a reportagem. Isso parece história de um jornalista experiente, mas não. Isto foi um pouco daquilo que tivemos o prazer, e também o desprazer, de conhecer na profissão de jornalista.Tivemos alguns impasses. Mas em outros aspectos podemos nos considerar privilegiadas. A sorte parecia realmente estar a nosso favor. A experiência foi legal, de grande valia para o que nos espera lá fora. (Página 49)

Amar não é brinquedo

Lélia Pohren

Há muito tempo, tenho tido vontade de me libertar de amarras que não me deixam parar, ou não me deixam seguir. Queria poder deixar tudo para trás e tomar meu caminho com liberdade, onde um dia após o outro eu encontrasse sempre novos desafios. Preciso de mim no meu lugar, sobre os meus pés no chão. Essa reportagem reafirma essa necessidade que, agora, vai além de seguir a minha própria pauta. Escrever sobre mundos invisíveis faz querer buscar outros mundos em vários


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assuntos diferentes, onde em cada dia, com a surpresa da pauta que não terei escolhido, eu possa desvendar cada ponto da realidade pautada. Sinto a necessidade desse novo, como se cada dia fosse um renascer dentro de mim, Tenho a sensação de que seria como tudo que faço e gosto de fazer, quando parece inesgotável a vontade de fazer sempre mais e melhor. Sem virar rotina! Por isso, a necessidade do desafio, para que não haja comodismo. Preciso sentir vontade de fazer sempre diferente, mais e melhor. Acho que nunca terei um estilo para escrever. Estilo parece retrato de rotina. Não gosto! (Página 52)

Eu sei o que você está fazendo

Ernani Luís Kunst e Vanessa Silva

Neste espaço fomos desafiados a descrever nossa impressão de repórter. A primeira dúvida esteve relacionada à pauta, ou seja, qual aspecto do contexto mundos invisíveis deveríamos desenvolver. Decidido isso, tivemos algumas dificuldades para achar uma fonte que abrisse suas portas e acreditasse no nosso trabalho. Afinal, estaríamos invadindo um sistema secreto e queríamos averiguar o trabalho do profissional controlador de câmeras de segurança. Nossa idéia não era revelar nada sobre as estratégias e muito menos sobre o sistema de segurança. Resumindo nossa impressão: entrevistar a fonte não foi tão difícil. A tarefa mais complicada foi convencer os responsáveis quanto à seriedade do nosso trabalho. Feita a entrevista, nos detivemos na montagem do texto. Um sucesso. Nossas idéias se encaixavam umas nas outras. Somos suspeitos em dizer, mas nosso texto ficou bom. Claro que a metade dele ficou na primeira edição do professor Miro Bacin. Mas foi justamente depois dessa limpeza que o documento ficou mais direto e coerente. Foi uma boa experiência. (Página 55)

Não se pode viver para sempre

Daiani Barth e Piero Barcellos

O desafio de unir quatro mãos para escrever sobre um mundo consolidado no seu próprio tempo e espaço é mais

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do que interessante. Desde quando começamos a pesquisar sobre o Positivismo, estávamos certos de que seria um grande desafio profissional, uma vez que nossa pretensão foi unir o estilo informativo e o literário na reportagem. Mesmo assim, a matéria nunca sairia se não fosse a ajuda do "seu" Afrânio, que nos recebeu da melhor maneira possível no Templo Positivista. Ele teve total atenção com esta dupla de repórteres. Fica a lição de que a humanidade cada vez menos olha para o seu passado, perdendo-se em um futuro distante das pessoas, dos valores e de sentimentos. Isso se reflete na escadaria que leva até a entrada do templo, onde palavras como Família e Fraternidade foram gastas pelo tempo. Mas resistem, como em uma nostalgia do que era a humanidade, ou do que poderia ter sido um dia, segundo o Positivismo. (Página 59)

Super-h herói no escuro

Jacqueline Oliveira e Juliano Filipe Rigatti

O mais difícil sempre é o começo. A matéria que, inicialmente, previa três entrevistados acabou tendo um único personagem. Quando chegamos para falar com o nosso herói, o Fernando, estávamos cheios de dedos, mas ele foi tão simpático que, fazendo graça de si mesmo, nos deixou à vontade. Para nós, assim como para muitos leitores, a realidade de um cego era um mundo invisível. Não só porque eles não enxergam o mundo como nós, mas porque eles têm maneiras particulares de fazê-lo. Quando ele contou a história do Demolidor e sua paixão por quadrinhos, as linhas começaram a se desenhar em nossas jovens cabeças jornalísticas. Diante disso e das idéias que vieram depois, tivemos que abrir mão das outras fontes. Concluímos que o Fernando sintetizaria o caráter humano que buscávamos transmitir com a nossa reportagem. Saímos de lá com uma certeza: não existem pessoas melhores ou piores, deficientes ou eficientes; apenas existem pessoas diferentes. Esperamos que ao lê-la, você, leitor, sinta a mesma satisfação que nós, repórteres, sentimos ao elaborá-la. (Página 62)

Perfume, a chave da alma

Lisie Venegas e Thiago Zenker

Olfato à flor da pele. Quando o tema geral da revista foi definido - Mundos Invisíveis - a pauta perfume nos encheu de idéias e expectativas. Além de sermos apaixonados por essas verdadeiras relíquias que nos traduzem através de seu aroma, pensamos em contar um pouco da história e viajar em tudo aquilo que o perfume nos remete. Encontros divertidos aos fins de semana, entrevistas loucas no meio dela, correria, e assim a matéria ficou pronta, um exemplo de que o ser se expande, que vai além do corpo e do que podemos imaginar. Estar presentes sem estar é mais ou menos como ouvir uma música e lembrar de alguém ou quando estamos em algum lugar e sentimos um cheiro que é só daquela pessoa, como se ela estivesse ali se fazendo presente mesmo na ausência. Claro que tiveram momentos de desespero, a matéria estacionada, afinal de contas, um cheiro que é fantástico para um pode ser nada agradável para outro. Nosso mestre Miro Bacin, quase um alquimista, chegou com seu aroma amadeirado e transformou nosso relato em uma descrição da alma e dos sentidos. Um grande encontro de dois cítricos que se amam, Lisie Venegas e Thiago Zenker. (Página 66)

O fascinante mundo da clausura

Débora Ertel, Graziela Wolfart e Janice Gutjahr

Tem matérias que a gente faz e esquece no outro dia, mas a entrevista com as carmelitas Lídia e Teresinha ficará registrada em nossa memória. Não foi um procedimento mecânico, mera execução de tarefas para uma disciplina. Foi algo que nos envolveu por completo. Na hora em que decidimos fazer uma pauta sobre clausura, entrevistando irmãs dentro de um carmelo e que vivem há anos sem contato com o mundo exterior, pensamos que pudesse ser monótono, sem graça. Mas a sensação que nos invadiu nas cerca de duas horas em que permanecemos naquele local místico foi de paz DEZEMBRO/2006 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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I M P R E S S Õ E S e harmonia. Realmente, esse não é um mundo que nos sirva, mas soubemos respeitá-lo e admirá-lo por vários motivos, principalmente pela alegria de viver daquelas mulheres. Estamos levando algo delas e daquela vida para o nosso mundo. As repórteres e o fotógrafo receberam um convite para participar da missa de votos solenes de uma das irmãs e um escapulário, acompanhado das palavras da irmã Lídia: "Que Deus os proteja. Agora estão mais agregados à ordem". Esperamos poder contribuir, com nosso trabalho, para um mundo melhor e mais próximo do estado de espírito dessas duas religiosas que tanto nos ensinaram sobre a alma humana. (Página 70)

O segredo através dos séculos

Marcelo Aita Ost e Roberto Goldani

Tratando-se de Maçonaria, o assunto complica. Já na reunião de escolha da pauta escutávamos aquele discurso dos colegas dizendo que os maçons não falam nada a respeito da ordem. Mesmo assim encaramos o desafio. No ônibus comentamos o assunto escolhido e de cara já havia uma fonte de informação: Diogo Lauermann, um jovem muito interessado no assunto. Prontamente conseguimos muitas informações preciosas e o telefone de um maçom. Estava fácil demais para ser verdade. O primeiro entrevistado se prontifi-

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cou a nos colocar em contato com algum dos membros mais graduados. Este suposto grandão maçom conseguiu outro contato, que por sua vez passou a bola para outro e assim foi indo. Foram ao todo cinco contatos telefônicos diferentes para chegar à pessoa certa. Era praticamente um 0800 de uma empresa de telefonia, onde dizem: "O senhor está falando com a pessoa errada, vou lhe colocar em contato com o outro setor". Finalmente, após muitas ligações, conseguimos agendar a entrevista com direito a fotos do templo e tudo. Porém uma série de fatores atrapalhou a realização da pauta. A caminho da Loja Maçom, tivemos um acidente de percurso comprometendo o pé de um dos repórteres acompanhado da ausência inexplicada do fotógrafo. Ficamos sem fotos e com um lesionado no time. Mesmo assim conseguimos gravar a entrevista e marcar uma outra data para tirar as fotos. Diferente da imagem que tínhamos antes da entrevista, demos de cara com maçons receptivos e muito inteligentes em suas respostas. Foi uma experiência e tanto. (Página 76)

Nos bastidores da elite

Juliana Broilo e Suellen Machado

Desde que optamos pela pauta no Kurotel em Gramado, a idéia era desvendar o que estava por trás de tanta

Graziela e Janice

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pompa. De início acreditamos que teríamos dificuldade no acesso às informações e até mesmo às fontes necessárias. Já no primeiro contato essa impressão foi revertida. Quando chegamos, os entrevistados estavam nos esperando de forma receptiva e carinhosa, o que caracteriza o local e as pessoas que lá trabalham. Claro que com as devidas restrições, mantendo a privacidade dos hóspedes, tivemos acesso aos nossos assuntos de interesse. O que mais nos chamou a atenção no processo de construção, tanto da pauta como da matéria em si, foi o nosso entrosamento profissional. Isso possibilitou um processo tranqüilo, que fluiu naturalmente, como se trabalhássemos juntas todos os dias. De balanço, nos fica o desenvolvimento e a prática de um olhar diferenciado. Conseguimos captar o que não foi dito e absorver o que estava intrínseco naquele mundo invisível que acabávamos de desvendar. (Página 80)

Vibração da arte

Renata Osio e Vanessa Porciuncula

O Colégio Especial Concórdia Ulbra abriu as portas para nós, ajudando em tudo que precisamos. Quando chegamos à instituição pela primeira vez nos deparamos com uma dificuldade: a comunicação com um porteiro surdo. Ficamos constrangidas por não conseguirmos nos comunicar. Mas logo tudo se resolveu. Algumas mímicas e gestos nos levaram até a sala da diretora. Em uma reunião, os professores dos grupos explicaram especificidades de cada atividade e falando sobre as crianças surdas. Os depoimentos vieram de forma escrita e nos mostraram o quanto o teatro e a dança fazem diferença na vida deles. Entramos em um mundo que desconhecíamos e nos surpreendemos ao ver a forma com que eles escreviam. Tivemos dificuldades em conhecer mais sobre a rotina dos alunos, uma vez que comunicar-se com eles não era tão fácil. O maior empecilho para o nosso relacionamento talvez tenha sido as barreiras que nós mesmas criamos por estarmos presas a nossa linguagem. (Página 84)


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Suellen e Juliana

Contra o sono e o perigo

Diego Capela e Rodrigo Mallmann

Quando pensamos em adentrar o mundo invisível dos plantões noturnos de polícia tínhamos ciência que os calafrios e o tremor involuntário das pernas conviveriam lado a lado conosco. Mas por incrível que possa parecer, superar o medo de conviver, mesmo que por poucas horas, ao lado de bandidos foi o menor trauma da reportagem. Esperávamos nos deparar com pessoas agressivas e revoltadas com a situação em que se encontram. Mas o que vimos foram pessoas frágeis e com um sentimento de inferioridade e vergonha muito maior do que o esperado. O maior e real empeciRodrigo e Diego

lho que podia barrar nossa expectativa foi a alta burocracia de um sistema policial defasado e retrógrado. Mesmo assim, tivemos a oportunidade de conhecer alguns guerreiros que, além de ajudar para a produção da matéria, compartilharam diversas experiências pessoais. São nomes como o delegado Frank, os inspetores Flávio e Klein, e todas as outras pessoas policiais, ou não - que permitiram nossa entrada nesse mundo desconhecido e possibilitaram que vocês também pudessem conhecer essa realidade, agora não mais invisível. (Página 88)

Uma nova chance

Eduardo Vitelo e Matheus Ribas

O primeiro contato com a Fase foi por telefone. Falamos com o jornalis-

ta responsável pelo setor de comunicação sobre o projeto da revista Primeira Impressão e o motivo que nos fez escolher a pauta. Então fomos à Unidade Centro de Atendimento Sócio-Educativo Case POA II, na vila Cruzeiro, em Porto Alegre. Imaginávamos ver um presídio ou uma cadeia de adolescentes mal encarados, sujos e maltratados. Essa impressão foi por achar que todos ali não estariam dispostos a nos receber e falar um pouco da sua vida, infelizmente marcada por algum ato infracional grave. Muito pelo contrário! Fomos bem recebidos pelos monitores que cuidam dos adolescentes, considerados pelos jovens, não só monitores, mas como se fossem seus próprios pais. Aprendemos que na Fase não se maltrata ninguém e ninguém é mal vestido. Com o trabalho desenvolvido, muitos menores saem com uma profissão e com algum conhecimento da vida aqui fora, nos mostrando que, apesar dos erros cometidos, eles podem se reintegrar à sociedade. (pagina 92)

Fora a caridade, não há salvação

Carlos Rollsing e Roberta Perin

Defrontamo-nos todos os dias com situações que perturbam nossas mentes. São pessoas que dormem nas ruas, sem perspectivas, com o olhar vazio de quem perdeu a esperança. O alcoolismo, o abandono, a necessidade, a loucura. O problema parece não estar ao nosso alcance, pensamos que a solução não nos pertence. Em três dias de visita ao instituto, podemos acompanhar de perto a triste realidade dos albergados e a rotina do Dias da Cruz. É estranha a sensação que sentimos diante de tal situação. Impotência, revolta, tristeza, esperança e compaixão se misturam nesse contexto extremamente complexo. Porém, acima de tudo, a experiência foi de grandiosa relevância por nos transportar para um mundo até então desconhecido, mas que indiretamente nos afeta. Ao concluirmos as atividades, ficou o sentimento e a vontade de ajudar, estender a mão ao próximo, lutar por alternativas e um mundo mais digno. Caminhando de volta para casa e refletindo sobre os fatos, concluímos que, DEZEMBRO/2006 PRIMEIRA IMPRESSÃO

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I M P R E S S Õ E S

apesar de remota, existe a possibilidade de salvação. No final, nos sentimos felizes por de alguma forma fazer parte daquele belo trabalho, mostrando para a sociedade um caminho trilhado pela caridade. (Página 96)

Por trás da língua

Leonardo Vidal

Sempre gostei dos assuntos relativos à linguagem, e as teorias da significação despertaram em mim um profundo interesse. Que uma fala tivesse significados implícitos me parecia tão fascinante quanto a descoberta de um novo planeta ou uma nova forma de vida. É na verdade análogo a essas coisas: com uma realidade insuspeitada, vem um mundo completamente novo. Mas nem de longe podia imaginar a fria em que eu estava me metendo. O assunto que foi inocentemente proposto em uma reunião da turma era um portal para um redemoinho teórico de proporções assustadoras. O primeiro texto que apresentei para a matéria foi como um trabalho científico. Dispondo de milhões de fontes, era difícil agarrar uma "voz" entre tantos teóricos que tocaram no assunto. Tentei de novo, menos prolixo. Enfim encontrei uma solução: uma entrevista com uma especialista no assunto para colocar cada idéia em seu devido lugar. Esta conversa foi o fio condutor do texto. Esta matéria não tem a mínima pretensão senão dar uma noção clara ao leitor das possibilidades da língua - e o que se encontra por trás dela. No que - acho - fui bem sucedido. (Página 99)

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uras. Outras arriscavam a nudez dentro de suas casas, com a ajuda de lareiras e fogões a lenha acesos a todo vapor. Já no segundo, o sol estava radiante e os naturistas curtiram o clima quente bem à vontade. O certo é que estas pessoas sentem prazer em estarem nuas. A roupa as sufoca, tira delas a sensação de liberdade. Por isso, não medem esforços em prezar este lugar que já completou dez anos de existência. O fato mais engraçado acorreu no último dia. Quando deixei meu fusca estacionado em uma das ruas do condomínio. Por esquecimento, não engatei o freio de mão. Dentro da casa de uma moradora, enxerguei meu carro descarrilando lomba abaixo. Por sorte, uma pitangueira evitou que acontecesse um acidente. Agradeço a atenção dos colinenses, ao pessoal da diagramação e as orientações do professor. (Página 102)

Um passeio pelo universo

Estela silva e Tatiana lopes

De início, não nos empolgamos com a pauta. Achamos que seria

Ao natural

Giulliano Alves Pacheco

A minha escolha sobre o tema surgiu da intenção de transportar o leitor para um outro mundo. Um lugar onde famílias optaram por um novo estilo de vida. Deixaram de lado todos os padrões expostos pela sociedade para viver uma filosofia chamada naturismo. Os moradores da Colina do Sol foram bastante receptivos e a diretoria se mostrou sempre a disposição para qualquer auxílio. Na primeira visita ao local, a maioria das pessoas estavam vestidas, para se aquecer das baixas temperat114

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Giulliano

complicado demais desvendar os mistérios do universo, tão distante. Mas foi aí que começamos a acreditar que, de fato, a coisa ia render, até porque desafios são sempre bemvindos. Nossa primeira visita a esse mundo longínquo foi ao Laboratório de Astronomia da PUC, onde pudemos observar o céu, as estrelas e os planetas. É realmente fascinante. Depois, a conversa com especialistas da área. O astrônomo Ivandel e o professor de Física e também astrônomo Luis Augusto falaram complicado - física quântica definitivamente é uma coisa de outro mundo, mas nos esclareceram muitas dúvidas. Até o fim do mundo entrou no assunto. Ouvimos diversas vezes durante a nossa vida alguém espalhando o boato de que em tal dia de tal ano o mundo iria acabar. Até hoje ele continua existindo. Mas segundo nosso entrevistado Luis Augusto, as perspectivas para o futuro não são muito positivas. Mas esse futuro é daqui a 100 ou 200 anos. Devemos acreditar? Não sabemos. São especialistas falando, mas esse é mais um enigma do nosso universo infinito. (Página 105)


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