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[carta ao leitor]

Mistura de olhares Ângelo Daudt

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sta edição da Primeira Impressão está repleta de novidades. Em primeiro lugar, as fotos passaram a ser produzidas pelos alunos de Projeto Experimental em Fotografia, orientados pelo professor Flávio Dutra. A imagem da capa é a principal marca dessa mudança. O fotógrafo Ângelo Daudt, já com olhar de jornalista, flagrou o exato momento em que uma colega de curso, Aminie Jardim, recebia a notícia da morte de seu tio. Só mais tarde ela ficou sabendo que havia sido fotografada no campus da Unisinos e concordou em servir de modelo para uma situação que faz parte da vida de todos: chegar ao limite. A morte, por sinal - talvez por ser o limite absoluto do ser humano -, está presente em mais de uma matéria da revista, como a que trata do suicídio e a que conta a luta do pai de uma das repórteres contra a leucemia. Ao escolher o tema da revista, no entanto, o objetivo dos alunos foi desvendar o assunto “limites” por vários ângulos. Eles tratam de fronteiras que

precisam ser ultrapassadas, como é o caso das reportagens sobre medo e sobre sexo. Falam de barreiras que devem ser impostas, como é o exemplo dos textos que analisam as dependências e a intolerância, tão comuns nas relações atuais. Destacam também linhas divisórias que não existem mais. A matéria sobre loucura é exemplar nesse sentido. A autoria individual das reportagens é outra novidade da edição. Até então, por motivos de espaço, não era possível cada aluno escrever sozinho seu texto. Por fim, o novo logotipo anuncia uma diagramação mais dinâmica e com maior utilização de cores. O resultado dessa mistura de olhares é também o retrato de um momento que se aproxima para os futuros jornalistas. Ao final do curso, eles expressam o amadurecimento de quem está chegando ao último degrau de uma trajetória e as inquietações de quem optou por uma profissão que está sempre descobrindo os limites dos acontecimentos e do comportamento humano.

Thaís Furtado Editora

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[índice] Giovanni Rocha

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Futebol

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Suicídio

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Liberdade

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Imprensa

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Vaidade

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Raves

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Medo

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Sexo

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Aprendizagem

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Síndrome

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Loucura

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Reações

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Gula

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Infância

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Solidariedade

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Medicina

Gabriela Jorge

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Mariana de Borba

U niversidade do V ale do R io dos Sinos ( U nisinos) Endereço: Avenida U nisinos, 9 5 0 . São L eopoldo, R S. Cep: 9 3 0 2 2 -0 0 0 . T elefone: ( 5 1 ) 3 5 9 1 .1 1 2 2 . I nternet: w w w .unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO R EI T OR : Marcelo F ernandes de Aquino V I CE-R EI T OR : J osé I vo F ollmann PR Ó -R EI T OR ACADÊ MI CO: Pedro G ilberto G omes PR Ó -R EI T OR DE ADMI NI ST R AÇ Ã O: Célio Pedro W olfarth aula ale COOR DENADOR DO CU R SO DE J OR NAL I SMO: Edelberto B ehs REDAÇÃO T EL EF ONE: ( 5 1 ) 3 5 9 0 .8 4 6 6 E-MAI L : primeiraimpressao@

icaro.unisinos.br

Professores-Editores

74 78

Diferenças

T haís F urtado ( thaisf@

unisinos.br) - R edação

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Consumismo

otografia

Reportagem

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aia,

ssia ardoso ereira, ogério

J osé de Espírito Santo, T aís Cristiane dos Santos, T hay ná Candido de lmeida, anessa ienstmann

Religião

agner e inicius rito

Fotografia lunos line o , ngelo audt, runa onforte, ani ittencourt, Daniela Machado, Daniela V illar, Eduardo T rindade, Emer-

Deficiência

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G iovanni R ocha, K atia Dalcin, Marco Antô nio F ilho, Mariana de B orba, Mô nica Patrícia, Pauline Costa e R aquel B itencourt.

Jogos

PRODUÇÃO GRÁFICA g ncia

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Vida

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Publicidade:

Realidade Virtual

Os anúncios publicados nesta edição foram criados pelos alunos eli e uccolotto de ou a, aura rrué, uciana o n, atrícia am era ndrade iefer e ainara onsale , da disci lina de

Trabalho

edaç o u licit ria , dos rofessores ngelo ru e aniela orta, e finali ados ela estagi rio driano rod ec , so su ervis o do rofessor ngelo ru e do u licit rio o ert da ge

Impressões de Repórter

ieme,

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Rompendo

[medo]

barreiras Na vida, as pessoas se deparam com muitas portas que representam o medo. Algumas vezes elas estĂŁo abertas, em outras, ficam fechadas [texto: CĂ­ntia

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Perozza]

[fotos: Giovanni

Rocha]

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S

entir medo é normal. As pessoas têm receio em trocar de emprego, de amar, de ficar só, de não corresponder às expectativas. O medo é uma reação natural do ser humano e funciona como forma de proteção. Alguns especialistas dizem que sentir medo é essencial. Por causa dele, nosso corpo consegue agir rápido em situações de alto estresse, provocando reações quase imprevisíveis.

Segundo a psicóloga Diva Semler, o cérebro humano, formado por cerca de 10 milhões de neurônios, é projetado para aprender com as experiências, assim sendo, quanto maior o número delas, mais preparado se está para enfrentar “o bem e o mal”. “O dia-a-dia é feito de enfrentamentos que podem ser transformados em felicidade, alegria e prazer. Quando se está em perigo, sente-se certo grau de ansiedade. Superar

este medo natural gera uma satisfação estimuladora. Entretanto, manter este momento de prazer primordial pode ser extremamente difícil, pois a resposta instintiva ao medo sempre irá preparar para o pior”, explica. O medo de altura nunca atrapalhou Alfio Vegni Júnior, 34 anos, vice-campeão brasileiro de vôo livre. “Ele é meu aliado porque sempre me deixa mais atento no que estou

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[medo] fazendo e no que devo fazer. Vivo em harmonia com ele.” Tricampeão gaúcho e campeão catarinense de paraglider, ele acredita que ter receio é o segredo para não cometer erros, e que o fato de não senti-lo é que torna o esporte perigoso. “Você não conhece seu limite, e para qualquer voador, principalmente um competidor, isso é complicado.” Sentir apreensão em relação a algo está relacionado diretamente com a estrutura do cérebro. Pela análise de sua estrutura, observa-se em seu topo o cérebro avançado, conhecido como córtex cerebral, onde se localiza o pensamento consciente. Como explica a psicóloga, dentro do cérebro está a origem do medo. O gatilho, chave do sistema do medo, é a “amígdala cerebral”, que converte qualquer sinal de perigo em reação de defesa, preparando o indivíduo para lutar ou fugir. Ela esclarece que a maioria das coisas que se teme são registradas através das experiências pessoais. São essas experiências que condicionam o indivíduo a reagir ao perigo e um dos meios de aprender é através de um evento traumático. “Se quando criança vivenciou-se o trauma de uma mordida de cachorro, as memórias emocionais ficam armazenadas nas amígdalas. Assim, na próxima vez que qualquer cachorro aproximar-se, ou quando a pessoa passar pelo lugar onde foi mordido, é provável que as reações vivenciadas anteriormente sejam colocadas em ação.” Em geral, pode-se dizer que existem três formas do medo se apresentar. Ele pode ser instintivo, quando suas manifestações são idênticas em todos os seres humanos. Racional, aquele que

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é condicionado e compreensível para quem não o sente diretamente e, por fim, imaginário, o mais torturante. Sua característica é que o objeto que o condiciona nunca constitui causa de medo instintivo para o sujeito e se encontra ligado a um verdadeiro estímulo fobígeno, através de uma cadeia de associações. Torna-se injustificável e incompreensível frente aos que não sofrem os seus efeitos. Quem sofre com medo de altura, como Alfio Júnior, passa apuros que parecem absurdos aos olhos dos outros. Ele conta que desde criança tem problemas com a altura. Enquanto os amigos subiam escadas, ele se escondia. Trocar uma lâmpada na sacada, olhar pela janela do terceiro andar é torturante para ele. A acrofobia, como denominam os especialistas, é o medo irracional de lugares altos. Pessoas que sofrem de acrofobia podem se habituar com determinados lugares altos em particular, isto é, perder o medo desses lugares, mas a sensação voltará quando o indivíduo for a algum outro lugar alto. “Chamamos isso de fobias específicas, ou seja, o medo está ligado a alguns lugares”, explica Diva. O vôo livre consiste em decolar de montanhas e pegar correntes de ar quente, que saem do chão e vão até as nuvens. Assim subindo muito alto e planando, do mesmo modo que um planador. Alfio não sabe explicar a prática de vôo livre “É muito estranho mesmo. As pessoas ficam extremamente curiosas quando sabem que eu pratico vôo livre e que tenho medo de altura. Mas é uma coisa muito natural.” Praticante há doze anos do esporte e competindo há oito,

Alfio é integrante da equipe brasileira de paraglider, que representa o Brasil em todas as competições nacionais. Ele afirma que o importante é ter confiança no equipamento. “Como eu sinto total confiança no meu equipamento, no momento em que me equipo para decolar, a apreensão vai amenizando e não cria, em momento algum, um empecilho para o vôo”. Apaixonado pelo esporte, faz dele seu estilo de vida. Explica que, desde a preparação até a decolagem, o medo de altura fica pequeno diante do que aquele momento significa. “Tudo é tranqüilo, se torna uma válvula de escape para a correria do dia-a-dia. É quando curto um momento só meu. Quando converso comigo mesmo e com Deus.” A fobia nunca atrapalhou o dia-a-dia de Alfio. “Consigo conviver com isso naturalmente e sem problemas”. Nunca procurou ajuda de profissional. “É uma coisa comum e sempre lidei bem com isso, nunca me privei de nada.”

Fobia de público

Assim como a fobia de altura, diferentes estudos mostram que falar em público é um dos maiores receios das pessoas. Esse sentimento é uma reação obtida a partir do contato com algum estímulo mental (interpretação e imaginação) que gera uma resposta de alerta no organismo. Esta reação inicial dispara uma resposta fisiológica no organismo, que libera hormônios do estresse, preparando o indivíduo para fugir. Ângela*, 33 anos, 13 deles dedicados a exercer a profissão de professora, tem pavor de falar em público. Desde criança, se considera uma pessoa tími-

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da. Na escola, costumava ficar quieta. “Meus relacionamentos sempre foram bons, mas sempre fui muito retraída. Nunca procurava os amigos, tinha que ser procurada”. Além de professora universitária, Ângela é, também, advogada, e só encara o público em sala de aula, pois outros ambientes lhe causam pânico. “Não sei explicar, com os meus alunos é diferente, é o meu mundo. Em outras situações, tento driblar esse pavor, mas fico em silêncio absoluto, paralisada”. Sempre desejou ser professora, nunca imaginou outra profissão para ela. Fez magistério, durante seis anos lecionou nas séries primárias e depois da faculdade de Direito qualificouse para a docência superior. Ela conta que, no seu primeiro dia de aula como professora, sentiu a mão suar, as pernas tremerem e o coração bater mais forte. “Não lembro o que falei,

estava muito nervosa, estava tão apavorada que fui hospitalizada.” Mais tarde, o medo na sala de aula passou, mas Ângela continua não conseguindo falar para outros públicos. O receio de se expor faz com que as pessoas tenham atitudes covardes, o que acarreta a perda de oportunidades. Alguns episódios podem fazer com que essas situações atrapalhem atividades corriqueiras, como reuniões de trabalho e entrevistas de emprego. Conforme a psicóloga, o receio de falar em público geralmente é motivado pela falta de preparo. “As pessoas têm que estar preparadas para enfrentar essa situação, e sentir adrenalina é normal”. Ela destaca que as pessoas têm medo de ser criticadas. “Ter confiança é fundamental. Se eu não souber o que dizer, preciso admitir e falar. As pessoas temem ser julgadas e ridicularizadas e,

isso atrapalha no enfrentamento de suas fobias.” A fobia é uma âncora. É necessário estar em contato com o objeto de medo. Diva explica que existem tratamentos muito eficientes dentro da homeopatia e mais especificamente dentro da fitoterapia. “Na alopatia existem alguns ansiolíticos que trabalham a ansiedade, os antidrepressivos, mas sem o acompanhamento de um profissional a questão não se resolve”. Para qualquer tipo de fobia, seja ela de altura, de falar em público, ou qualquer outra, a psicóloga recomenda a procura de um profissional. “Acompanhamento psicológico é fundamental, não se pode brincar com isso. Não resolvemos sozinhos. As pessoas precisam enfrentar seus receios, lutos e tristezas.” * O nome foi trocado.

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[aprendizagem]

Sem fórmulas para

educar Diante das limitações físicas e intelectuais dos alunos, profissionais desenvolvem métodos de aprendizagem baseados na capacidade individual, superação e inclusão social [texto: Priscila

E

Milán]

nsinar é uma tarefa desafiadora. Um processo demorado que exige muita força de vontade, dedicação e, acima de tudo, conhecimento. É dessa forma que os educadores definem o próprio trabalho. Mas numa área na qual o esforço e a persistência do profissional fazem a diferença, haverá a melhor maneira de educar? Segundo a professora Elí Fabris, do curso de Pedagogia da Unisinos, não existem receitas para isso. “O professor que é um piloto de livro didático não consegue criar propostas significativas de trabalho, apenas repete”, ressalta. O educador deve ser aquele que estuda, pesquisa, avalia cada caso individualmente e o relaciona com o contexto cultural, com a escola e a comunidade, para posteriormente elaborar uma proposta de ensino. A avaliação individual relacionada ao ambiente coletivo tem sido a base de diversos trabalhos no ramo educacional, principalmente com estudan-

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[fotos: Dani

Bittencourt]

tes que apresentam dificuldades de aprendizagem ou limitações físicas e intelectuais. Visando também a inclusão, são desenvolvidas atividades pedagógicas conforme as potencialidades e capacidades de cada aluno. Para que os resultados do trabalho pedagógico com portadores de necessidades especiais e educativas sejam eficazes ou satisfatórios, é essencial que o professor trabalhe fundo na concepção de diferença. A professora de Pedagogia explica que o educador precisa compreender que a diferença não é déficit, ou seja, uma pessoa com necessidade especial tem a capacidade de aprender. Contudo, a forma ou o ritmo de aprendizagem não será o mesmo. Entender o real sentido de inclusão é igualmente imprescindível. “Ocupar o mesmo espaço físico não garante a inclusão. Inclusão é poder compartilhar as práticas sociais daquele grupo”, afirma. Sendo assim, não basta colocar numa mesma


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sala de aula para incluir. “Todos os alunos, professores, coordenação pedagógica, a equipe diretiva têm que abraçar essa causa. A partir do conhecimento das limitações de cada aluno, pode-se fazer alguma coisa”, destaca a coordenadora pedagógica da Educar Consultoria e Assessoria Educacional e psicopedagoga, Viviane Gonçalves Cruz. Tal opinião é partilhada por Elí Fabris, que completa: “A inclusão não é só uma questão de querer bem, de afeto, sensibilidade. Não é só a escola que vai dar conta, tem que ser uma inclusão pensada por toda a sociedade”.

Dificuldades e superações

Respeitar os limites individuais e estimular a superação das dificuldades são características do Centro de Atendimento e Profissionalização Criativa (Cap Criativa), de Porto Alegre. A escola conta com profissionais da Educação e da Saúde, oferecendo atendimento clínico a indivíduos com síndromes relacionadas aos transtornos globais do desenvolvimento. De acordo com os diretores da instituição, a pedagoga Inês Golbspan e o psicólogo Eduardo Zamel, mais de 50% dos pacientes são autistas e todos têm deficiência mental. A equipe da escola de educação especial é composta por profissionais da Terapia Ocupacional, Pedagogia, Psicologia, Psicopedagogia, Fonoaudiologia e Musicoterapia. O trabalho pedagó-

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gico é desenvolvido conforme o retardo mental associado, pois o comprometimento cognitivo varia entre os educandos. “Tenho autistas de altíssimo funcionamento aqui, de inteligência preservada. São alfabetizados, falam bem. Aí a gente dá mais ênfase para a socialização”, explica Inês. Num primeiro momento, o caso do paciente é analisado individualmente. Logo após, os profissionais elaboram um cronograma de atividades terapêuticas, que ganham complexidade com o progresso do aluno. Com o objetivo de facilitar a socialização, são promovidos exercícios de grupo como caminhada e musicoterapia. Embora o ritmo de cada indivíduo seja respeitado durante o processo de aprendizagem, no que se refere aos autistas, o limite da proximidade é rompido. Se, a princípio, uma das características do autista é evitar o contato físico, com o tratamento, o quadro pode ser revertido. “Os nossos autistas aceitam que a gente toque, abrace”, conta a diretora da instituição. Na escola, os educandos dispõem de salas de aula, nas quais são agrupados conforme o nível funcional: os que apresentam um nível alto e são alfabetizados ficam numa sala onde cursam disciplinas e têm exercícios como na escola regular; já os que têm um nível mais baixo realizam tarefas simples, como quebra-cabeças com poucas peças e atividades de encaixe.


A meta da Cap Criativa é fazer com que as crianças e adultos que ali estão tornem-se mais independentes, por isso atividades de vida diária também são trabalhadas. Eles aprendem desde a cuidar da higiene pessoal, fazer comida, até ir ao supermercado. “Coisas que para nós às vezes são conquistas pequenas para eles são enormes e ajudam bastante na rotina e convívio familiar”, comenta Zamel. Conquistada essa independência, pais e filhos serão beneficiados, pois não haverá a necessidade de vigilância 24 horas e conseqüentemente diminuirá a preocupação dos responsáveis.

Experiências docentes

Os profissionais que lidam com portadores de necessidades especiais e educativas destacam que trabalhar com a família desses sujeitos é importantíssimo, levando em conta que às vezes a exclusão inicia no próprio ambiente familiar. Existem diversas situações em que a criança não é criada pelos pais, o que implica na utilização de denominações como “cuidadores” ou “responsáveis”. “Quando nasce uma criança com alguma deficiência, alguma limitação, isso mexe muito com a família. Nem sempre os pais aceitam. A gente tem muitos casos em que quem traz para a escola são os avós, tios, terceiros, que nem parentes são”, relata o diretor da Cap Criativa. Para a professora Elí, a exclusão da família pode ser resultado da falta de informação. Os pais necessitam de orientação para aprender a lidar com os filhos que apresentam algum tipo de deficiência. Da mesma forma, os futuros profissionais da área devem ser preparados. A psicopedagoga Viviane Cruz acrescenta que os procedimentos usados com crianças diagnosticadas com dificuldades de aprendizagem precisam ser diferentes. “A didática em sala de aula deve ser diferente. Isso exige mais conhecimento do professor”, diz. Viviane alerta que a prática pedagógica com disléxicos e com hiperativos, por exemplo, exige preparo e iniciativa do professor. “Um disléxico que não tem uma boa memória visual pensa na letra ‘b’ e escreve ‘p’. A transferência do abstrato para o concreto, pensar na letra e passar para o papel, é muito comprometida”, afirma. Nesse caso, recomenda-se que o educador seja objetivo para não confundir o sujeito, utilize computadores para estimular a memória visual e gravadores para que o estudante possa escutar a própria voz. Ela também aponta que o diagnóstico de hipera-

tividade ainda gera confusão: alunos agitados são tachados de hiperativos. A diferença está no desenvolvimento da aprendizagem. As crianças que são apenas agitadas têm um ritmo mais acelerado que os colegas e desenvolvem a aprendizagem; já as que enfrentam dificuldades têm déficit de atenção, são hiperativas. Segundo os educadores, pensar numa proposta de ensino para estudantes com dificuldades requer o envolvimento do próprio aluno, da escola, da família - ou responsável - e da sociedade, além de muito estudo e pesquisa. Eles também alertam que a priori não se pode definir a melhor opção: escola especial ou regular. As particularidades e necessidades do educando, a estrutura física, a especialização profissional devem ser avaliadas. “A melhor escola é aquela onde as crianças conseguem aprender, ser felizes, se desenvolver”, salienta a educadora Elí.

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Quem é louco?

[loucura]

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A loucura já não é mais a mesma. Vem mudando ao longo dos anos na cultura da sociedade e na cabeça das pessoas. Por falar nisso, como está a sua loucura? [texto e fotos: Gabriela

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Jorge]

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[loucura]

M

aria* tem hoje 64 anos, desde os 60, está internada em uma bela casa de repouso da Serra Gaúcha. Segundo ela, foi para aquele lugar por problemas estomacais após a morte de sua mãe, com quem morou boa parte de sua vida. “Não me sinto feliz, porque já tenho mais idade e não pude aproveitar a vida”, afirma ela, dizendo que gostaria de ir para a casa de sua irmã. Ela continua: “Me trato também por problemas na cabeça, fico muito nervosa”. Em meio às demais vovós, Maria não aparenta nada de diferente, mas conversa pouco e passa a maior parte do tempo em seu quarto. Quando questionada sobre seu nervosismo, responde: “Você vai achar que não sou bem certa. São coisas que não dá pra falar pra ninguém”. Maria se confidencia com as enfermeiras que cuidam da casa. Ela vê vultos e ouve vozes. A história de Maria traz muitos questionamentos à tona: O que é normal? Quando uma pessoa sai desse estado normal e passa a ser louca? “Um médium e um esquizofrênico vêem vultos, só que um usa isso contra si e o outro a favor de si. Um é chamado de louco, o outro é chamado de espírita. Ou seja, o contexto social muda muito. A psiquiatria e a religiosidade estão muito ligadas ao conceito de loucura”, afirma o psiquiatra Fabrício Grasselli, de Bento Gonçalves. Tecnicamente a psiquiatria chama de loucas as pessoas que não estão bem adaptadas à sociedade em que vivem. Porém, o termo loucura já não é bem visto pela sociedade e muito menos pela medicina. A própria loucura, ao longo dos anos, já passou por diversas significações. Grande

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exemplo disso é o famoso Hospital Psiquiátrico São Pedro, que em seu auge chegou a ter cinco mil internos. Hoje, está sendo desativado. É fato que a loucura depende de cada um, do lugar onde vive, da sociedade onde está inserido, entre muitos outros fatores. Recentemente a TV aberta mostrou pessoas comendo escorpiões em praça pública na China. No Brasil esse não é um hábito comum. É possível rotulá-los como loucos, quando se sabe que a cultura deles é diferente? Também nas tribos africanas os costumes são outros, mesmo assim não são considerados loucos. Tanto chineses como africanos agem como muitos outros de sua comunidade, estão de alguma forma perpetuando a cultura de seu país, vivendo como aprenderam com seus pais. Freud, fundador da psicanálise, afirmava que a loucura faz parte de cada um de nós e está em nosso inconsciente. Os considerados “loucos” são os que não compreenderam uma luta que todos travamos constantemente: a relação entre o consciente e o inconsciente.

A esquizofrenia

Segundo as enfermeiras que trabalham pelo bem estar dos idosos que moram na Serra, na tranqüila Casa de Repouso Elisa Tramontina, Maria tem sintomas de esquizofrenia, mas não passou por uma avaliação conclusiva. Consciente de que os vultos que vê e as vozes que ouve existem apenas para ela, Maria só convive com seus pensamentos no quarto, onde liga o rádio em volume suficiente para que ninguém perceba que está falando, aparentemente, sozinha. “Maria conversa com

um homem que, segundo ela, pede que seja agressiva, que agrida as outras pessoas. Ela briga com ele, dizendo que não pode fazer isso”, conta a enfermeira-chefe da Casa de Repouso, Elenice Carniel. Às vezes ela acorda muito bem humorada, dizendo que não ouviu ninguém. O Filme Uma Mente Brilhante, do diretor Ron Howard, conta uma história parecida com a de Maria, sobre a vida de um grande matemático. John Nash ainda jovem passou a apresentar comportamentos não convencionais à sociedade na qual estava inserido. Assim como Maria, ele enxergava e falava com pessoas que apenas ele via. Em 1994, Nash recebeu o Prêmio

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Nobel de Economia pela Teoria dos Jogos, criada ainda quando estudava em Princeton. Ele ainda vive e, ao contrário de Maria, sua doença foi confirmada. A esquizofrenia é uma doença mental caracterizada pela perda de contato com a realidade. Seus sintomas mais clássicos são delírios e alucinações, além de o paciente apresentar dificuldades de sentir alegria ou tristeza condizentes com as do ambiente em que vive. Alguns anos atrás, as pessoas que sofriam dessa doença eram encaminhadas aos sanatórios, porém os tratamentos avançaram muito e hoje as pessoas são internadas em hospitais apenas em casos de crises. É uma doença mental, que aparece na mesma

proporção entre homens e mulheres, normalmente próximo aos 25 anos de idade. Quando diagnosticada precocemente, tem grandes possibilidades de sucesso no tratamento, no sentido de conter os delírios e alucinações do paciente. Hoje, 1% da população mundial sofre de esquizofrenia. Considerando esses índices para o Brasil, significa dizer que cerca de 1,8 milhão de habitantes são portadores dessa doença. Esses números transmitem uma realidade importante: é muito provável que esteja inserido em sua rede de relacionamentos algum esquizofrênico que não é notado como tal. Podemos chamá-lo de louco? Ao mesmo tempo, é comum encontrar nos centros das cidades alguma pessoa que passa o dia falando sozinho, caminhando em busca de algo, às vezes pedindo esmolas, às vezes mendigando. As possibilidades de que esta pessoa sofra de esquizofrenia, porém sem acompanhamento médico, são muito grandes. John Nash esteve internado em um sanatório. Passou por tratamentos da época, teve recaídas, quase perdeu sua família. Ao final, descobrindo-se portador da doença, decidiu ignorar suas alucinações. Voltou à sua rotina, reconquistou sua família. Maria parece manter a mesma postura quando está em meio a outras pessoas, apenas ignora suas alucinações visuais e auditivas.

As doenças mentais

Não apenas a esquizofrenia é uma doença mental. Alguns transtornos pelos quais muitos passam durante a vida são doenças mentais que precisam de tratamento: transtorno obsses-

sivo-compulsivo, síndrome do pânico, fobias, transtornos de ansiedade, distúrbio bipolar de ânimo, depressão, entre outros. “Qualquer doença psiquiátrica, dependendo do grau, pode chegar a um comprometimento tão grande a ponto de tirar o juízo. A depressão, num estágio mais avançado, pode fazer com que a pessoa tire a própria vida. Uma parcela bem significativa dos profissionais de saúde mental considera que o ato de tirar a própria vida é uma loucura”, afirma o psiquiatra Fabrício Grasselli. Achar uma linha que divide a normalidade da loucura é muito difícil e, porque não, impossível. Como taxar de loucas pessoas que sofrem de alguma doença mental se pode existir alguém muito próximo, com os mesmos sintomas, que é considerada normal? Quem já não teve aquele pensamento completamente louco e não sentiu prazer nisso? Ou melhor, quem já não cometeu alguma loucura? Alguma loucura de amor? O termo loucura é largamente usado, fato que faz com que fique cada vez mais difícil apontar pessoas como loucas. Talvez, como afirma Freud, todos tenham um pouco de loucura dentro de si. O que se sugere é a abolição da exclusão e do preconceito contra as doenças mentais. Doença mental tem tratamento e a maioria delas tem cura, senão um exímio controle que faz seus sintomas desaparecerem. A loucura por si só deve ser utilizada como um termo qualitativo, sinônimo de ousadia, alegria, prazer, porque loucos como existiam há alguns anos, na cabeça e na cultura das pessoas, hoje não existem mais. *O nome foi trocado.

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Olho maior que a

barriga Quando a comida deixa de ser a solução e passa a ser a razão dos problemas [texto: Thayná

Candido de Almeida] Machado]

[fotos: Daniela

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[gula]

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início de tudo está na boca. Começamos a conhecer o mundo através da fome que nos leva à comida e conseqüentemente à sensação de saciedade. Quando o bebê chora, a mãe associa o choro à fome e, mesmo que não seja esta a causa, oferece o peito como forma de carinho e aconchego. Então a criança sente-se bem. Quando se é adulto, a coisa muda um pouco de figura. Ao sentirmos fome, vamos à geladeira. Geladeira amada, idolatrada salve salve, que nos tira da depressão, da solidão, do tédio, da frustração e de qualquer outra coisa que nos incomode. A comida é sempre a solução. Ou, pelo menos, achamos que é. Essa sensação acontece com quase todo mundo, um chocolate pode salvar o dia ou uma boa janta fazer os problemas irem pelo ralo. Mas nem com todo mundo é assim. Muitas vezes a comida é uma válvula de escape constante para insatisfações e frustrações, e o problema é a bola de neve que se transforma isso tudo. Quanto mais se come, mais se perde o controle, gerando um sentimento maior ainda de depressão, ansiedade e culpa. A comida deixa de ser apenas um objeto de prazer e passa a tomar o lugar de uma droga indispensável na vida do viciado por comida. Assim como qualquer dependente que experimentou a droga pela primeira vez por algum motivo de frustração ou na esperança de mascarar problemas, quem sofre com a gula acaba virando refém do próprio prazer. Juliana* é uma atriz de 23 anos que viu a sua carreira definhar quando a vida lhe pregou uma peça inesperada. Com

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o falecimento de sua mãe, há dois anos, ela descontou toda a perda e tristeza na comida e em medicamentos antidepressivos. Juliana, até então, pesava 59kg distribuídos em 1,70cm de altura e atuava em diversas peças de teatro em Porto Alegre e São Paulo. Após a perda da mãe, a atriz não saiu mais de casa e encontrou na comida a melhor solução. Tapou o sol com a peneira com antidepressivos e um vínculo perigoso com seu maior prazer: a gula. “É claro que a comida não fazia meus problemas desaparecem e nem faria a minha mãe voltar, mas não havia mais sentido em cuidar da minha aparência se toda a minha razão de viver tinha ido embora, então eu via na comida uma aliada. Se eu não tinha o que fazer, precisava comer, se eu tinha algo para fazer, eu também comia. Se eu estava feliz, eu comia e, se estava triste, também”, admite Juliana. Hoje ela consegue discernir entre o comportamento certo e errado e não vê mais a comida como sua aliada e nem sua inimiga, mas lamenta pelo quanto perdeu devido ao seu vício. “Cheguei a 118kg e me vi no fundo do poço quando, em menos de um ano, nenhuma das minhas roupas servia. Minhas amigas estavam saindo para baladas e eu morria de vergonha de reencontrar as pessoas no peso que eu estava. Ninguém me reconhecia e nem disfarçava. Quando me chamavam para testes de comerciais e peças, ninguém me ligava de volta. Não consegui mais nenhum papel no teatro. Não havia o que fazer. A dor da perda de minha mãe eu nunca superei, mas precisava levar a minha vida adiante.”

Foi aí que Juliana, que mora sozinha, resolveu procurar ajuda do pai e começar um tratamento psicológico e nutricional. Há seis meses, ela está tomando medicamentos para ansiedade e segue firme em uma dieta rigorosa para perda de peso. Está com cirurgia de redução de estômago marcada para dezembro e pretende voltar a atuar quando a poeira baixar. “Hoje a comida não é mais minha pior inimiga e nem a minha melhor amiga, é indiferente. Claro que sou de carne e osso de vez em quando dá vontade de comer um doce ou um capricho qualquer, mas é normal. Não desconto mais as minhas dores na geladeira.” Felizmente algumas pessoas conseguem ter a real noção do problema e ver de fora a sua situação, Juliana conseguiu dar a volta por cima e a gula não é mais um vício irremediável. Mas muita gente ainda brinca e não leva a gula a sério. Para a maioria das pessoas, a gula é efêmera e um mero capricho. Há diversos grupos em sites de relacionamentos referentes à gula, mas nunca são retratados como viciados, com uma patologia psicológica que necessita de tratamento. A psicóloga Rosemeire Zago tem como base de seu trabalho o resgate da auto-estima e amor-próprio. Na série de artigos Sete Pecados Capitais, ela diz que, no sentido literal, gula é o excesso de comer e beber, na sua simbologia maior significa voracidade: que devora e destrói. “Entendendo essa simbologia, podemos relacionar que, ao devorar o alimento compulsivamente, tenta-se, ainda que inconsciente, destruir o que está dentro. Agindo assim, sente culpa e se pune por ter perdido o contro-


le, formando assim um círculo vicioso: come em excesso para fugir do que sente, culpa-se por isso, se pune comendo mais”, escreve.

“Ai minha barriga”

Quem já não comeu e ficou com a sensação de ser uma jibóia após ter ingerido um jacaré? “Comi feito um boi”, “Por que eu fiz isso?”, “Não deveria ter comido tanto”, são frases que a gente escuta quase sempre num almoço de domingo ou numa saída de churrascaria. A gula faz parte da vida de todo mundo e é difícil de se desvencilhar dos prazeres seguidos da culpa de ter comido mais do que deveria. A comida é sempre pano de fundo para qualquer evento social, aniversário, casamento ou reunião de amigos. Os petiscos são indispensáveis em todas as ocasiões, como não sucumbir a esses prazeres? Para as mulheres, a cobrança é

ainda maior. A sociedade exige corpos esculturais, sarados e impecáveis para uma beleza perfeita e aceitável. A culpa anda lado a lado com as calorias ingeridas, e uma gordurinha aqui, outra ali, geram desespero para as mais neuróticas. Aline* é uma gulosa em tempo integral, mas não considera seu capricho nocivo à saúde. Há dois anos ela namora Júlio* e os dois freqüentam bons restaurantes no mínimo três vezes por semana. Se Aline quer tomar um café, toma dois. Se precisar de um hambúrguer, come dois. Tudo é exagerado. “Eu gosto de fartura e não gosto de passar fome. Acho até que meu estômago já se acostumou com tudo em dobro”, brinca Aline. Desde o início do romance, os dois já ganharam vários quilos, mas não se incomodam nem um pouco com isto. “Posso emagrecer a hora que eu quiser, mas no momen-

to estou a fim de aproveitar os prazeres que a comida nos proporciona. O nosso melhor programa é procurar restaurantes novos e acatar indicações de amigos. Quase sempre são boas dicas, e saímos explodindo!”, admite Júlio. O casal não acha que a gula esteja interferindo na sua vida. Casos como o de Juliana, que encontrou na comida um tapaburaco para seus problemas, merece atenção redobrada e um tratamento psicológico. O mais indicado para evitar os excessos que a gula pode gerar é descobrir que situações o levam a cometê-los. Identificando as situações e lidando com cada uma delas, não há necessidade de suprir faltas com a comida. Como diz a música, “tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo.” *Os nomes foram trocados.

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Sim, diga

não sem culpa As crianças têm a personalidade estruturada pelos limites que lhes são oferecidos [texto: Vanessa

Wagner ]

A

educação das crianças já foi bastante severa no passado, limites eram impostos com rigor e havia uma hierarquia fortemente estabelecida. Hoje a sociedade vive um liberalismo nas relações familiares e, mesmo na escola, o tratamento dedicado aos pequenos é menos rígido. Essa mudança de comportamento tem dificultado a formação das novas gerações. Oferecer limites importantes como regras de convivência social, senso de responsabilidade e respeito aos pais e educadores tornou-se um desafio discutido com preocupação. Algumas crianças ainda vivem num mundo de proibições, é verdade. Mas muito mais freqüentes são as situações em que elas perdem a orientação por uma falta de limites. Elisabeth Conrado, 39 anos, advogada, repassa aos três filhos - Melina 4 anos, João Vic-

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[infância] tor, 7 e Raphaela, 13 - a educação recebida dos pais. Mas os limites são mais flexíveis e negociáveis através de diálogo. “A educação que eu e meus irmãos recebemos dos meus pais é a mesma que tento dar aos meus filhos. A diferença está na forma como trabalho com eles os mesmos princípios. Procuro conversar muito e estabelecer acordos”, explica. Quando as coisas vão bem, eles recebem bonificações – coisas simples, como almoçar na lancheria preferida no final de semana. Por outro lado, se desobedecem, ganham pequenos castigos – ficar um dia sem navegar na Internet, por exemplo. “Tem funcionado! No meu tempo de criança só nos restava obedecer. Não havia conversa, nem retribuição pelo bom comportamento. As artes eram punidas com chineladas”, conta Elisabeth. A advogada, que mora na cidade de Taquara, parece ter encontrado entre os dois extremos uma receita própria para a educação dos filhos. A família é, sem dúvida, a peça-chave para a formação das crianças. Muitos pais confessam que dizer “não” lhes custa muito. Mesmo assim, é necessário perceber que esta é uma posição que deve ser assumida na família. O adulto precisa estar tranqüilo para passar os limites. Sentimentos como culpa desencadeiam a desconstrução da hierarquia familiar. Se a mãe sente-se má por exigir algo da criança, ela dá o primeiro passo para a inversão dos papéis. A autoridade é fundamental para quem precisa manter o comando da situação. Isso vale principalmente na relação com crianças, pois elas testam os limites

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todo o tempo. Quando os pais alternam o estilo educativo, os filhos costumam reagir opondo resistência ou desviando o comportamento. A psicóloga Carmem Lícia Linden, especialista em psicossomática, defende que o adulto organizado psiquicamente consegue trabalhar melhor os limites permitidos às crianças. Segundo ela, quem traz da infância uma mágoa mal administrada com os pais – normalmente por conta do rigor que lhe foi aplicado terá mais dificuldade para exigir algo dos filhos. “Isso é comum, a mãe que teve uma criação muito severa sente-se uma bruxa toda vez que tenta impor algo. A lembrança da infância, do descontentamento com os pais, faz com que ela acabe abrindo espaço para que o filho deixe de respeitar as regras.” Nesses casos, a terapia pode ajudar o adulto a entender que é permitido dizer não a uma criança.

Valores

O exemplo dado pelos pais também ajuda a reforçar nos filhos a noção da existência dos limites. Em conversas, mesmo quando as opiniões divergem, é preciso que haja respeito e dignidade. Em outras palavras, crianças precisam que lhes ensinem os valores através de exemplos. Garantir um ambiente equilibrado e que transmita segurança é igualmente importante, é nesse lugar que a criança vai superar conflitos e estruturar a própria vida. O estabelecimento de limites não pode, no entanto, transformar-se em privação – principalmente em relação à afetividade. Ao direcionar a criança para uma conduta nor-

teada por imposições, o adulto precisa estar consciente de que o afeto facilita o processo de resposta. A criança que se sente amada desenvolve autoestima e também a confiança necessária para a aceitação do que lhe é proposto. Estar atento às necessidades da criança é tão importante quanto educála para um bom comportamento. A psicóloga alerta que não permitir que os filhos demonstrem algumas insatisfações é um erro: “Os pequenos encaram esse excesso como sufocamento e não como proteção. Dar espaço para manifestações da criança é muito importante. O mau comportamento, em muitos casos, é uma tentativa de expressar o que ela não está podendo falar”. Quando conversas com a criança e uma postura mais rígida por parte dos pais não resultam em uma melhor relação com o filho, a terapia infantil é uma alternativa. Conforme Carmem, a principal barreira para o início desse tipo de trabalho são os próprios pais. “O que se percebe em muitas famílias é uma confusão de valores. Encarar que a criança precisa de terapia é assumir uma falha no próprio compromisso de educar o filho”, argumenta. Outro ponto bastante discutível é a responsabilidade da escola na educação das crianças. Muitos pais assumem o equivocado discurso de que a formação dos filhos cabe exclusivamente aos educadores, justificam-se sob o argumento de que exercer autoridade e impor limites é uma tarefa que demanda muito tempo e paciência – algo que a correria do dia-a-dia não os permite. Na relação entre pais e escola, os papéis ainda estão indefinidos,

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e um jogo de empurra-empurra entre as partes é comum. A postura de negar a participação na educação dos filhos dificulta o trabalho dos educadores. Uma criança que não recebe limites em casa tem mais restrição às regras que lhe são apresentadas na escola. Marlene Fagundes Puls, educadora do Maternal Raio de Luz, em Sapiranga, diz que, quando uma criança reluta muito em obedecer às regras, é preciso sim buscar o apoio dos pais. “Alguns reagem bem à nossa procura, participam de acompanhamento com a pedagoga da escola e levam para dentro de casa lições que vão ajudar a criança nessa adaptação. Infelizmente, nem sempre a resposta é positiva. Ainda há pais que negam participação

no processo de educação dos filhos”, desabafa Marlene. O entrosamento entre pais e escola facilita a educação das crianças. Quando caminham juntos, firmam uma autoridade mais clara aos olhos dos pequenos. Ainda assim, algumas vezes persistem os problemas de comportamento; esse é o momento em que a terapia pode ser chamada a integrar o grupo. Através do diagnóstico das dificuldades e barreiras da criança, o psicólogo poderá direcionar o trabalho para um foco mais específico. Uma boa forma de dar início a uma relação de respeito aos limites é através de uma conversa franca. Clarear os pontos do contrato entre pais e filhos é o primeiro passo. A criança precisa saber de ante-

mão o que pode e não pode fazer. Regrar horários, compras e responsabilidades escolares são exercícios importantes. Para garantir o sucesso, pais e educadores precisam manter o posicionamento e a convicção de não ceder aos limites. Isso vale, sobretudo, diante de reclamações e choro. A decepção é normal e logo vai passar. A criança também tem o direito de ficar com raiva - o que não significa permissão para extravasar o sentimento de forma agressiva. Não existem fórmulas prontas para educar crianças. Mas se chega bem perto disso quando se consegue permitir liberdade, insistindo nas regras básicas de convivência e oferecendo limites – pois eles são estruturadores do sujeito.

Daniela Villar

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Eles precisam de você [texto e fotos: Fabiano

O ato de ser solidário está sendo esquecido. Contudo, existem aqueles que ainda lutam para dar o mínimo de dignidade à vida de outros

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er solidário vai muito além do simples ato de doar roupas, sapatos, comidas e remédios. Ser solidário é, principalmente, aquele ato em que as pessoas doam o seu tempo, a sua presença e o seu espírito. É compartilhar atenção e carinho. Um abraço, um beijo, uma lágrima e até um singelo sorriso. É compartilhar o lado emocional com alguém que foi deixado para traz pela sociedade. É levar um pouco de esperança para a vida daquela pessoa que não mais a tem, ou que desconhece o verdadeiro significado desta palavra. O individualismo das pessoas é crescente. É comum perceber que o ser humano está cada vez mais preocupado em cuidar do que é seu. Contudo, devido a preocupação com a estabilidade social, muitas vezes, seja por negligência, por falta de acesso ou por falta de interesse, deixamos de lado o contato humano com aque-

Jung]

les que não têm condições de lutar por uma vida mais digna. Essas pessoas são dependentes da boa vontade de outras. São pessoas com retardo mental, síndrome de down, autismo, que nasceram excepcionais ou que desenvolveram problemas ao longo dos anos. Elas necessitam de acompanhamento especial para continuar vivendo e exigem cuidados médicos, psicológicos, nutricionais e pedagógicos. Dessa forma, diante dos mais variados casos, foram surgindo as organizações não-governamentais e as instituições de tratamento especializado, formadas por pessoas que se dispõem a ajudar outras, sem cobrar nada. É uma atividade que exige solidariedade e determinação, e que rompe limites. A questão material é muito importante, pois ajuda na sustentabilidade das instituições. Porém, o que muitos necessitados esperam

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[solidariedade]

A psicóloga Ana acompanha diariamente o comportamento dos 40 internos do Instituto de Amparo ao Excepcional

é a presença humana. Essa alimenta as boas emoções esquecidas pela vida e ajuda a superar sentimentos confusos, cheios de traumas e lembranças ruins. Doar carinho significa doar um pouco de si. Conhecer as dificuldades dessas pessoas ajuda a entender e a reavaliar diversos outros problemas da sociedade. É neste momento, diante da fragilidade do próximo, que surgem as melhores oportunidades para as pessoas conhecerem a si próprias e perceberem que são portadoras dos piores tipos de deficiência, o egoísmo e o preconceito.

Filhos do abandono

O Instituto de Amparo ao Excepcional (Inamex) é uma ONG de Porto Alegre que existe há 37

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anos. Atualmente acolhe e abriga 40 internos portadores de necessidades especiais, entre 12 e 56 anos. São diferentes tipos de diagnósticos. São casos de síndrome de down, paralisia cerebral, autismo e esquizofrenia. Os internos que chegam até a Inamex são encaminhados pelas prefeituras do Estado, por ordem judicial e também por algumas famílias. Eles vêm de outras instituições que não têm as condições necessárias para abrigar e atender pessoas excepcionais, e, assim, passam a morar na casa, onde recebem um tratamento mais adequado para sua deficiência. A grande parte desses internos é fruto de gestações com uso de drogas e por isso desenvolveu seqüelas desde o nascimento. Alguns apresentam a síndrome do alcoolismo fetal, uma doença que se desenvolve durante o período de gestação, devido ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas pela gestante. Esta doença causa diversos danos, como: problemas

de comportamento, falta de crescimento e retardo mental. Isso acontece porque o álcool ingerido na corrente sanguínea materna passa a ter efeito tóxico sobre o feto em formação. Muitos foram vítimas de violência sexual, maus tratos, uso de drogas e violência doméstica. Na maioria dos casos, os familiares não acompanham o tratamento. São negligentes. Comparecem na instituição apenas para cumprir as questões burocráticas. Nem olham para o filho ou parente que ali está. São pessoas que apresentam uma situação social e emocional muito comprometida. A grande maioria não tem condições financeiras de manter algum tipo de tratamento para as crianças. Para cuidar e tratar dos internos, a instituição conta com 25 funcionários. São monitores, faxineiros, atendentes, uma psicóloga e duas administradoras. Além disso, a casa conta com o trabalho voluntário de estudantes de Educação Física (que trabalham a questão físicomotora dos internos), de nutrição

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(que acompanham a alimentação e desenvolvem cardápios conforme as deficiências) e de um médico neurologista, responsável pela assistência neuroquímica.

Prejuízo

Mesmo com todo o esforço dos administradores, colaboradores e voluntários, é quase impossível manter a sustentabilidade do instituto. Segundo as administradoras Marigleide Santos dos Santos e Michele Barcelos Barros Henrique, é preciso “correr atrás do prejuízo” para manter a casa funcionando. Só o aluguel da casa custa R$ 2.500. Com remédios são gastos R$ 6 mil por mês. Isso sem falar nas contas de água, luz, comida e pagamento dos funcionários. A casa funciona por doações, mas essas são poucas. Não existe renda fixa. Conseqüentemente, não há previsão de verba no final do mês. Algumas secretarias, como a da Educação e a da Saúde, repassam algum valor, mas, não é o suficiente. Outro ponto marcante é o abandono. Além dos parentes, que normalmente não apresentam nenhum interesse pela vida dos internos, são poucas as pessoas da sociedade que mostram algum ato de solidariedade. Alguns ajudam com doações de roupas, dinheiro e alimentos, mas faltam com o que podemos chamar de doação de espírito. O Inamex é apenas uma entre as milhares de ONG’s deste país que enfrentam dificuldades. Infelizmente podemos perceber a falta de mobilização da sociedade brasileira com aqueles que necessitam da solidariedade dos outros para poder viver. É necessário que as pessoas que possuem uma vida mais estável visitem instituições como o Inamex e compreendam a importância de compartilhar o lado emocional com o próximo.

“Às vezes vou pra casa superpesada” A psicóloga Ana Hertzog Ramos, 24 anos, trabalha no Instituto de Amparo ao Excepcional há seis meses. Atualmente realiza atividades psicopedagógicas com os internos. Além disso, tem projetos de trabalho que podem ajudar a prevenir danos na parte motora, emocional e cognitiva dos seus pacientes. Primeira Impressão – Como é o trabalho com pessoas com necessidades especiais? Ana – É bem difícil. Às vezes vou para casa superpesada, pois como sou psicóloga trabalho direto com a história deles. E então às vezes é muito complicado. O mais triste para mim é o desamparo. A patologia é complicada, mas eu tenho uma formação para isso. Por outro lado, eles dão muito retorno, tem uma realização pessoal bem grande, eles são superafetivos. O pouco de estímulo que se dá, resulta em uma resposta enorme. Em muitos casos, eu percebo que eles não foram estimulados e por isso mesmo a patologia se agrava. Então, tem um retorno muito legal. Na verdade é muito difícil, é desafiador, mas tem muito retorno. P.I. – Diante da trajetória de vida desses internos, que já sofreram até abusos e agressões, você acredita que eles estão se desenvolvendo psicológicamente? Ana – Sem sombra de dúvidas!

É claro que eles têm muitas limitações cognitivas, o que dificulta meu trabalho. Como todos têm retardo, eu não poderia trabalhar como eu trabalho com pacientes em psicoterapia, por exemplo. Mas eles têm muito mais potencial do que as pessoas podem imaginar. Eu sou psicóloga e acredito que as pessoas podem mudar. Que nada é assim, “traumatizou, não tem mais jeito”. Eu acho que trabalhando se consegue uma evolução. O trauma deixa marcas, sem dúvida, mas tem como recuperar, de alguma forma. P.I. – Existe algum projeto para o futuro, alguma atividade que você pensa em realizar com os internos? Ana – Muito mais, na verdade. Comecei trabalhando em grupos com eles. Estou gradativamente assumindo o atendimento individualizado, mas com uma sede mais estruturada, a idéia é poder estimular desde cedo. Criança tem uma plasticidade neuronial muito maior do que a de um adulto. Então, eu acredito que, sendo estimulado precocemente, os internos teriam muito mais potencial. Essa demora no tratamento acaba prejudicando o paciente, desde a parte motora até a parte emocional e cognitiva. Dessa forma, o meu projeto é atender estes internos mais cedo, de maneira mais individual e completa. É o que poderia acontecer, se tivéssemos mais recursos. | novembro/2008 | primeira impressão|

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[medicina]

Um filme de terror com final feliz Quando tudo parecia estar perdido, ele ultrapassou os limites da doença e da medicina [texto: Rita

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uando um paciente recebe o diagnóstico de uma doença, muitas coisas passam na sua cabeça. O medo do sofrimento, da dor, das angústias de um tratamento, da batalha em busca da cura e de não conseguir vencer esse mal passam a fazer parte da rotina. É como se estivéssemos assistindo a um filme de suspense. É mais ou menos assim: você está tranqüilo na sua pol-

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Cardoso]

[fotos: Dani

Bittencourt]

trona, quando, de repente, vem aqueles jogos de luzes, música assustadora e o primeiro sintoma aparece. O medo já toma conta. Você procura um médico e aparece o diagnóstico: câncer. Pronto, não é mais um filme de suspense, é um filme de terror, com muita luta, dor, inimigos. Mas, por motivos que a medicina não consegue explicar, o final pode ser inesperado. Até onde a medicina pode determinar o tempo de vida de um paciente?

Que força é capaz de superar o limite de uma doença? Há dez anos venho assistindo a esse filme de terror. O personagem principal é o meu pai, Altemar Constante Pereira, hoje com 61 anos. A história do nosso longa-metragem começa assim. Primeira cena: “ínguas”. Era época de Páscoa. De repente, coagulações tomavam conta do pescoço do meu pai. Acreditávamos que era uma simples cachumba.

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[medicina] Naquela época, morávamos em Xangri-lá, litoral norte do Rio Grande do Sul. Aqueles caroços não pareciam ser algo grave, ao menos na minha cabeça. Mas isso era só o comecinho do filme. Os poucos recursos da cidade fizeram com que a doença se agravasse. Outros sintomas começaram a aparecer: dores nas pernas e na coluna. Indicaram para ele um famoso médico da região. Os hemogramas apontavam uma infecção grave no sangue. O famoso especialista lhe disse que tratava-se de uma inflamação na coluna. Fez o tratamento adequado. Outro exame: a infecção se agravava. O médico lhe afirmava o mesmo diagnóstico. Debilitado, pálido, meu pai só queria ficar deitado. Quem estava próximo a ele percebia que aquilo estava grave demais para ser o que o médico lhe dizia. Mesmo assim, continuou obedecendo as recomendações médicas. Fez um terceiro exame. Eu é que fui buscar esse novo resultado. Quando cheguei no laboratório, a atendente explicou que o sangue coletado tinha sido levado para uma nova análise em Porto Alegre. Ressaltou que algo de muito errado estava acontecendo e que era necessário revisar para dar certeza do diagnóstico. Nunca passou na minha cabeça que o vilão daquela história poderia ser tão maligno, mas já estávamos com medo das próximas cenas que viriam. Passaram-se duas semanas. A ansiedade já tomava conta da família inteira. Era hora de pegar os exames e descobrir o que acontecia com o seu corpo. Ele sentou-se, abriu o envelope e leu: “suspeita de LLC” (Leucemia Linfocítica Crôni-

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ca). Começava ali a maior luta de sua vida. Como era hipertenso e diabético, não poderia tentar fazer um transplante de medula óssea. O primeiro passo foi realizar o temido exame de medula. Sem ajuda de anestesia, para que não houvesse alterações no resultado, a coleta do líquido foi através de agulhas perfurando o interior do osso esterno. A medula óssea é um tecido mole e esponjoso que se encontra no interior dos ossos, vulgarmente chamado de tutano. Sua principal função é produzir três tipos de células sangüíneas: glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas. Os exames confirmaram aquilo que ele já sabia. Suas defesas eram menores do que de uma pessoa com AIDS em estado terminal. O tratamento aplicado era um coquetel de setenta comprimidos diários. A droga era tão forte que certa vez vomitou no jardim da sua casa. Nunca mais cresceu grama naquele local. A leucemia é uma doença maligna dos glóbulos brancos, os chamados leucócitos, que tem como característica o acúmulo de células anormais na medula óssea. Segundo o médico hematologista Marcelo Capro, existem quatro tipos de leucemia: a mielóide aguda, a crônica e linfóide aguda e a crônica. As crônicas geralmente não possuem cura, mas têm remédios paliativos. Quando meu pai descobriu a doença, a estimativa de vida para o portador de LLC era de dois anos de vida. A Leucemia Linfocítica Crônica é mais comum em pessoas acima de 50 anos de idade. Hoje, com o avanço da medicina, a média de vida para quem descobre essa espécie

Altemar convive com a leucemia há dez anos

de câncer é de 15 anos. A Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) explica que a leucemia linfocítica crônica resulta de uma lesão adquirida (não hereditária) no DNA de uma única célula, um linfócito, na medula óssea. A doença não está presente ao nascimento. Era um pesadelo atrás do outro. Em 1999, nos mudamos para Gravataí para facilitar o tratamento. O mesmo médico que diagnosticou o resultado errado - já que piorou a situação depois de meu pai passar algum tempo apenas cuidando da coluna - foi o que indicou um especialista em oncologia na capital. Mesmo com todo o cuidado que lhe era recomendado, a leucemia agravou. No ano de 2001, começou a sentir sucessivas faltas de ar. Sua hemoglobina estava em 4%, enquanto que em uma pessoa saudável é de 15%. Tinha uma anemia muito profunda. Começavam ali a luta por doadores de sangue e as transfusões. Mas com todo o agravamento da doença, a medula parou de funcionar. Já não adiantariam mais as doações de sangue. Não bastava abastecer o corpo se algumas horas depois o sangue já não estaria ali. Essa foi uma das piores cenas. O médico chamou a família e explicou a situação. Era para nos preparamos para o pior. Do jeito que estava, até o final da semana ele não resistiria.

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Medula volta a funcionar

Quando parecia chegar ao fim, o inusitado aconteceu. Ele foi convidado para servir de cobaia de uma medicação que apareceu naqueles dias. Como o remédio vinha do exterior, o custo era muito alto. Tudo aconteceu rápido demais. A liberação do medicamento e o resultado. Talvez tenha sido um milagre, mas, quando tudo parecia estar perdido, a medula voltou a funcionar. Era algo inacreditável. Ele sempre transmitiu a vontade de viver e vencer essa doença, que, segundo a medicina, é incurável. O médico que, até aquele momento, era um homem sem muitas palavras, passou a ter uma admiração por meu pai. Ele mesmo não acreditava no que via. O nome de meu pai foi parar nos

livros de registro de medicina como o primeiro caso de medula que voltou a funcionar. A esperança reapareceu. Dessa vez, a própria medicina tinha dado uma ajuda no tratamento. Cada minuto de vida para quem carrega uma doença dessas no organismo é uma dádiva, mesmo com todas as dificuldades e com a baixa hemoglobina, o que lhe deixa propenso a qualquer tipo de doença. A força de vontade de viver é maior do que o mal que lhe atinge. Em 2007, depois de vários tratamentos rotineiros de quimioterapia, a medicação começou a não fazer mais efeito. O organismo tinha se acostumado com a droga. Ele precisou ser internado no hospital para recomeçar as transfusões de sangue. A medula não funcionava como deveria. Quando

fomos visitá-lo, o fiel médico nos explicou que a pessoa com esse tipo de leucemia tinha no máximo nove anos. E que não podia fazer mais nada. De repente, todas alternativas cabíveis tinham se esgotado. Todas as doenças têm um limite. E o filme chegava ao fim. Tem coisas para as quais não existe explicação. A força de vontade, a fé, os pensamentos positivos fazem a diferença em uma história. Diante de toda a situação, meu pai afirmava: “Ela não vai me vencer”. E não venceu. Ele conseguiu dar a volta por cima. A doença ainda existe. Já faz mais de um ano que o tratamento é feito apenas uma vez por mês em casa. Quem, por duas vezes, superou os limites da doença e da medicina pode afirmar: “No final, tudo dá certo!”.

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Muito mais que to 34

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e torcer

O clĂĄssico Grenal traduz em atitudes o sentimento dos torcedores

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[futebol]

[texto: Leonardo

E

m grego, metrom quer dizer a justa medida. É o limite com o qual deve conviver o ser humano, com moderação, sem ter nada em demasia. O contrário seria ibris, traduzido como arrogância, desmesura. No universo fundamentado na ibris, futebol é paixão. “Na cultura brasileira contemporânea, no futebol não existe meio termo. Não se pode, por exemplo, ser um pouco colorado. Se é sempre 100% colorado ou 100% gremista. E ser gremista implica em ser 100% anti-colorado e vice-versa”, diz o antropólogo e professor da Unisinos Edison Gastaldo. Muitos torcedores não têm uma atitude ponderada, sensata. “O futebol trafega na paixão, está na ordem do descomedimento, do superlativo”, justifica o professor. Por isso é tão difícil para alguns controlarem seus sentimentos na hora da derrota, por exemplo. A rivalidade entre dois times se estabelece pela neces-

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Zenatti]

[fotos: Bruna

Conforte e Fabiano Jung]

sidade de um povo de manter suas raízes. É o caso dos gaúchos. O clássico Grenal mantém acesa a paixão pelo futebol e a identidade de quem mora no Rio Grande do Sul. Passam-se os anos e cada vez mais torcedores, imprensa, dirigentes e jogadores sentem os nervos à flor da pele nas vésperas desse clássico que faz o futebol gaúcho ser respeitado em todo o mundo. Muitas vezes, um Grenal decide a vida dos dois clubes num campeonato. Uma derrota pode representar o infortúnio, e uma vitória, a afirmação diante do torcedor. A derrota gera cobranças. Torcedores já chegaram a incendiar vestiários descontentes com seu time ou raivosos contra o rival. Às vezes comentários ingênuos divulgados pela mídia provocam as equipes e os torcedores. Jogadores que nunca participaram de um Grenal quando o fazem relatam como se sentem surpresos diante da realidade nada amistosa do jogo. O professor Gastaldo diz que todos

os atores sociais que participam do evento deveriam ter cuidado para não estimular a violência. Os dirigentes dos clubes e os jogadores têm que pensar naquilo que vão dizer quando estão diante de um microfone. Cada repórter precisa escolher bem as palavras na hora de seu comentário. Ninguém deve fomentar a violência.

Desequilíbrio

Paulo Maia, torcedor gremista, acredita que o Grenal é um jogo de rivalidade única, comparável somente ao Derby milanês, o clássico italiano entre Internazionale e Milan. “Mas não há justificativa para atos de violência. Acho que os torcedores que são agressivos, na verdade, sofrem de algum desequilíbrio emocional e utilizam o futebol para extravasar. Não distinguem o limite entre a paixão e a justa medida”, comenta o tricolor. Para o torcedor colorado Adriano Frauches, o futebol não pode ser sinônimo de violência em hipótese algu-


ma. “Quando isso acontece é porque há alguma frustração envolvida, e os torcedores usam o esporte como válvula de escape”, afirma. A violência verbal é vista por Luciane Rocha Martins, também torcedora do Internacional, como uma das mais fortes. Ela acha alguns cânticos, com palavrões e expressões preconceituosas, muito agressivas. Luciane conta que aprendeu a amar seu time desde muito pequena, comprovando que a paixão por um clube não é racional. Normalmente, ela é estimulada por familiares. “Noventa e cinco por cento da minha família é colorada. Tenho orgulho do Inter, ele ganhando ou perdendo”, ressalta. Para Gastaldo, deve-se fomentar no futebol uma cultura da discussão racional e não de guerra, de morte ao inimigo. “Deve ser estimulada uma cultura da brincadeira. O torcedor deve saber que, se ele tocar flauta no adversário, vai ter a volta, pois a rodada de amanhã ninguém sabe como vai ser”, exemplifica. Mas o professor deixa claro que, em

sua opinião, as brincadeirasnão podem ultrapassar certos limites e, se isso acontecer, deve haver a intervenção imediata da lei, coibindo essa ir-

racionalidade. “Os torcedores que causam violência nos estádios e fora deles devem ser identificados e penalizados individualmente”, diz.

Rivalidade histórica A tensão que antecede um G renal já começa a ser sentida dias antes da partida. São colorados e gremistas sempre acreditando em uma vitória, mas o placar nem sempre corresponde aos palpites. O resultado às vezes é surpreendente. O primeiro G renal ocorreu em 1 8 de julho 1 9 0 9 , três meses depois da fundação do Sport Club I nternacional. O resultado foi mais do que expressivo para os torcedores gremistas, que viram seu time golear aquele que viria a ser o maior rival por dez a zero. O último G renal de 2 0 0 8 foi vencido pelos colorados, pelo placar de 4 a 1 frente a um B eira R io lotado.

E como não podia deixar de ser, teve confusão e violência envolvendo torcedores. A polícia precisou intervir através de bombas de efeito moral para acalmar os â nimos. J á se travaram 3 7 3 batalhas entre G rêmio e I nternacional, com 1 3 8 vitórias da equipe vermelha contra 1 1 8 da equipe azul. O I nter sofreu 4 9 6 gols, porém balançou as redes do time tricolor 5 3 2 vezes. A rivalidade histórica provoca ansiedade nos mais fanáticos. Alguns chegam a passar a semana inteira que antecede o clássico preocupados com o resultado. Quando o time perde, a tristeza toma conta e só resta esperar o próximo confronto.

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[suicídio]

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Ponto

Final Quando você terminar de ler este parágrafo, mais uma pessoa terá cometido suicídio. A cada 40 segundos, em algum lugar do planeta, segundo a Organização Mundial de Saúde, um indivíduo tira sua própria vida

[texto: José

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Eduardo Coutelle] [fotos: Raquel Bitencourt]

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[suicídio]

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or, sofrimento, solidão. Não é fácil descrever os sentimentos de um suicida. O isolamento total, a repugnância pela sociedade, o descaso pela vida. A ausência de um sentido. Por que continuar representando uma personagem que acorda, toma café, trabalha, almoça, trabalha novamente, volta para casa e dorme? De forma racional, percebe-se que a existência humana é desprovida de sentido. Então, por que continuar existindo? Talvez o medo da dor, ou ainda o medo de sentir medo da dor. Algo abstrato. Ou seria o medo do depois, do além, de um julgamento divino? Existem vários exemplos de suicídios em todos os períodos da história humana. Alguns senadores romanos que contrariavam a vontade de Nero eram “convidados” a suicidarem-se. Caso contrário, eram apedrejados em praça pública. Os kamikazes japoneses, que entregavam a sua vida em devoção ao seu imperador, e os samurais, que realizavam o seppuku, ou seja, abriam suas próprias entranhas com espadas para reconquistar a honra, são outros exemplos. Por fim, atualmente homens-bomba prendem-se a um cinturão de dinamite e explodem em lugares públicos. São pessoas que tiram a sua própria vida por um ideal. No mundo ocidental moderno, no entanto, as pessoas se matam por uma falta total de objetivos. O fato é que o suicídio é um mal que assola a sociedade devido ao seu modo de vida superficial e vazio. As pessoas são valoradas pelo que têm e não pelo que são. Toda essa obsessão de aparência, de poder aquisitivo, faz com que o verdadeiro sen-

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tido da vida fique obscuro. E é exatamente neste ponto que os jovens sofrem mais, por não se encaixarem neste mundo desregulado. “A cultura às vezes faz o papel de se antecipar a nós, de nos dizer onde encontrar a felicidade. Ela cria arquétipos de seres humanos felizes e totalmente falsos. Uma pessoa pobre de mundo, que não tem consciência crítica, cria da televisão, obviamente vai estar muito mais exposta a esses arquétipos e, quando não consegue alcançá-los, começa todo o dilema”, explica o professor de filosofia da Unisinos Eduardo da Silva Pereira. “O suicida acaba fazendo uma crítica radical à sociedade”, afirma o psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), Mário Corso. Questionar o sistema é uma coisa natural. O problema é não refletir sobre ele e viver na alienação. Contudo, tirar a própria vida não resolve nada. Não se muda o mundo suicidando-se. “É uma saída covarde, ou melhor, não é uma saída. É fugir da questão. O suicida é fruto dessa sociedade. É um revolucionário que não propõe nada”, completa Corso. A maior parte dos suicidas é composta por pessoas deslocadas, que não possuem vínculos, não têm lugar na turma, no trabalho, não têm namorada, diz o psicanalista. Esse isolamento pode ser causado devido à incapacidade do indivíduo em manter relações humanas. “Uma experiência importante para uma pessoa é ela sentir que faz falta, é experimentar ser amada por alguém. É muito mais difícil você se deixar ser amado do que amar. Porque amar é involuntário. Não se escolhe quem se ama. Para se permitir

ser amado por outra pessoa é preciso gostar de si, pois, caso contrário, você se fechará para o amor do outro”, opina o professor Pereira. Um dos principais fatores que levam uma pessoa a cometer o suicídio é o seu grau de isolamento. Corso conta que existem algumas pesquisas que descobriram que, se uma pessoa tenta suicidar-se e um profissional da área da saúde é informado e dá atenção a ela, as chances do suicídio se concretizar são pequenas. “Não é preciso visitá-lo, nem fazer consulta, nem dar remédio. Apenas perguntar: você está vivo? Só mostrar o interesse já tem uma eficácia enorme. É incrível. É a oferta de alguém poder fazer algo, mesmo que não faça”, complementa.

Conexões perigosas

Centenas de pessoas, principalmente adolescentes, navegam nas águas turvas da internet procurando respostas para seus dilemas existenciais. Blogs, fóruns e sites de relacionamentos como o Orkut propõem debates sobre suicídio. Alguns criam discussões e outros incitam ou pelo menos apresentam formas de como executar o suicídio sem dor. Mário Corso vê a internet como uma ferramenta muito perigosa neste caso. Ele acredita que todas as pessoas devem encontrar a sua tribo, mas não a tribo dos suicidas. “Como essas pessoas podem dar opiniões sobre o valor da vida, se elas mesmas estão se questionando? Eu não acho que um adolescente frágil e desesperado deva discutir com outros adolescentes frágeis e desesperados”, enfatiza ele. Na comunidade do Orkut “Já pensei em suicídio”, foram

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[suicídio] postadas as mais diversas respostas para se continuar vivendo. “Não quero ir para o inferno. Quero mesmo é ir pro céu e ter uma eterna vida sossegada; “Quero morrer sem sentir nada”; “Só não tentei novamente porque tenho medo de não dar certo e ficar com seqüelas”; “Prefiro ver todos da minha família morrerem e sentir eu sozinho a dor da perda do que fazê-los sofrerem por minha causa”, são alguns dos relatos dos usuários. Para o professor Pereira, a dúvida em matar-se ou não leva a pessoa a questionar se a vida tem algum valor intrínseco. “Existe de fato a dignidade humana? Nossa existência se resume a essa vida temporal? Tudo isso são dilemas que fazem com que muitos hesitem antes de se matar”, explica o professor. Para o psicanalista Mário Corso, a discussão sobre

o suicídio é uma filosofia barata para esses jovens. “É uma discussão importante saber se vale ou não vale a pena viver e quais razões a gente não teria para continuar vivendo. Só que ela é rebaixada, por pessoas que estão perturbadas, a matar-se ou não”, conta Corso. Alguns adolescentes levantam a questão de que o suicídio é o preço que a sociedade humana paga pela conquista do livre-arbítrio, da racionalização, daquilo que nos distingue dos nossos antepassados símios. Seria a expressão máxima de liberdade tirar a sua própria vida. Para o professor Pereira, é difícil se falar em liberdade dissociada de realização humana. Em geral, se poderia dizer que, na verdade, é uma possibilidade e não uma liberdade. “Tu podes te matar, mas não significa que faças isso livremente. Porque a liberdade

Seitas religiosas e o suicídio em massa T emplo do Povo – Seita evangélica criada em 1 9 5 5 nos EU A pelo norte-americano J im J ones. Acusado de desviar fundos de seus fiéis, ones emigrou com centenas deles ara a uiana rancesa m novem ro de , ele comandou o suicídio em massa de 9 0 9 seguidores. R amo Davidiano líder da seita nos , avid ores suicidou se unto de mais seguidores, rovocando um inc ndio no ranc o onde se encontravam, r imo de aco, no e as, de ois de resistir dias a um cerco do , em aneiro de O rdem do T emplo S olar onstituída elo elga uc ouret e elo franc s ose i am ro em , a seita ossui ouco mais de seguidores no mundo, a maioria locali ada na uíça, no anad e na rança m , mem ros suicidaram se em um vilare o na uiça Portão do Céu seita foi fundada nos em or ars all le ite e onnie ettles m março de , le ite e mais mem ros se suicidaram na casa onde moravam, na alif rnia les acreditavam que o cometa ale o os levaria ara um laneta no qual uma forma su erior de e ist ncia os aguardava

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está associada ao “eu autêntico”, a uma realização humana, a um sentido e a um propósito. Em geral ninguém se mata por estar feliz”, afirma o professor. “Eu não vejo o suicídio como uma coisa racional, mas sim como uma fuga. Porque a racionalidade te levaria a soluções. Te levaria, inclusive, a perceber que os teus argumentos são falhos”, conclui ele. A literatura está repleta de exemplos sobre essa questão. Talvez o personagem mais excêntrico, racional e doentio já criado seja Kirilov, do romance Os Demônios, de Dostoievski. Para ele, a vida é nada mais que dor e medo, e continuar vivendo é indiferente. “Aquele que se matar apenas para matar o medo imediatamente se tornará Deus”, diz ele. A literatura romântica também influenciou pessoas a cometerem o suicídio no século XVIII. Os Sofrimentos do jovem Werther, clássico do romancista e escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, foi acusado de causar uma onda de suicídios na Europa. Na história, Werther mata-se por não conseguir ficar ao lado de sua amada. Hamlet, personagem de William Shakespeare, também vivenciou a dúvida do suicídio no diálogo “ser ou não ser, eis a questão”.

A função da fé

Karl Marx já dizia que a religião é o ópio do povo. Pode até ser, mas quando o tema tratado é o suicídio ela dá uma sustentação moral para as pessoas. A religião tenta de fato dar um sentido para a existência. De modo geral, o suicídio é condenado por todos os credos. O budismo diz que a pessoa que se suicida vai para o reino dos infernos. “O inferno na verda-

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de é um estado mental. A pessoa que se suicida, automaticamente, entra num estado de inferno, e depois é muito difícil voltar para a lucidez”, explica o morador do Templo Caminho do Meio, em Viamão, Henrique Lemes da Silva. Assim, de acordo com o budismo, ela pode ficar um longo tempo no reino dos infernos, até conseguir, por mérito, chegar a uma posição positiva que a permita encontrar um caminho e seguir novamente. Para Tânia Maria Costa da Rosa, trabalhadora do Centro Espírita Fonte de Luz, de Santo Antônio da Patrulha, o suicida tem uma caminhada difícil após a morte. “O espírito do suicida vai permanecer interligado ao seu corpo físico durante o tempo que teria de vida na Terra, pré-estabelecido na encarnação. Caso se suicide aos 40 anos, mas tenha de viver até os 90, ele entra num inferno mental de muito sofrimento, até cumprir o restante do tempo que deveria viver. Depois disso, ele é encaminhado para o vale dos suicidas e lá vai ter a oportunidade de uma nova vida”, relata. Conforme o Pastor Jaime Martins, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em Santo Antônio da Patrulha, não dá para saber ao certo o destino de um suicida. “Pois, mesmo no último momento, na hora da agonia da morte, a pessoa poderá ter oportunidade de pedir perdão, conforto e salvação para Deus. Não tem como saber quem é que aproveita esta oportunidade. O verdadeiro destino dos suicidas pertence somente a Deus”, diz o pastor. Segundo o padre da Igreja Católica Jair Peres de Pinho, da mesma cidade, o suicídio pode ser concebido

como a perda da sensibilidade. “Naturalmente ninguém põe a mão no fogo e a deixa queimando.” Para ele, o suicida vai para um purgatório para purificar a sua alma. “São as próprias pessoas que se condenam através da consciência”, diz. Mas será que o suicídio é uma característica desenvolvida unicamente pela espécie humana? São raros os animais que tiram sua própria vida. Pelo contrário, eles têm um forte instinto de sobrevivência. Contudo, a ciência já comprovou a existência do suicídio no microcosmo. O fenômeno foi batizado como apoptose. Em grego arcaico, significa “o ato de cair”. Ele é caracterizado pelo suicídio celular programado, ou seja, a própria célula participa da sua destruição. Este

processo é necessário para eliminar células supérfluas ou defeituosas, como ocorre durante a gestação humana quando os dedos das mãos são ligados por uma membrana. Questionado sobre a relação do suicídio entre a natureza e a espécie humana, o psicanalista Mário Corso é enfático. “Não é porque existe na natureza que vai existir um mecanismo particular na cultura. Não existe uma natureza humana. O ser humano não é um sujeito natural. Desde que o homem inventou a palavra, ele perdeu a natureza.” Assim, a grande incógnita da existência humana continuará indecifrável. Cada indivíduo terá seus próprios motivos para seguir ou não vivendo. E essa decisão continuará sendo individual e intransferível.

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[liberdade] Existem fronteiras que devem ser respeitadas tanto pelo cidadão comum quanto por quem detém o poder [texto: Rogério

[fotos: Pauline

do Espírito Santo] Costa]

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escartes, que foi considerado o primeiro filósofo moderno, com importantes contribuições à espistemologia e às ciências naturais, definiu liberdade como espontaneidade, um ato da própria vontade, simplesmente, o livre arbítrio. É dessa forma que a maioria das pessoas está habituada a vivenciar e sentir o conceito de liberdade. Mas o ser humano acaba por tencionar a liberdade de tal forma que parte para a inversão de valores, ao ponto de romper seus limites, suas fronteiras, mudando os sentidos socialmente aceitáveis e configurando acontecimentos graves. Na história do Brasil, os universitários representam um grupo que tem relação direta com a liberdade. A liberdade de idéias, de comportamento, de inovação são marcas de quem está saindo da posição de estudante para passar a ser o futuro do país. Essa postura libertária, no entanto, nem sempre é bem vista por quem detém o poder. Na história brasileira, um período marcou claramente o rompimento dos limites da liberdade dos cidadãos, entre eles os universitários. Em 1964, o regime militar instaurou a política de linha dura. Políticos e jornalistas foram presos. Mesmo com o apoio do empresariado, de parte da imprensa, dos proprietários rurais, da igreja católica e de alguns governantes, muitas pessoas sofreram. “A liberdade era vedada através da censura brutal em filmes, peças de teatro, letras de música, jornais e outros”, diz João Alberto Figueiró, diretor do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, um dos mais reconhecidos por ter um movimento estudantil atuante na época. “Quem decidia o que devia ser dito era o censor”, acrescenta ele, se referindo a uma pessoa, que, a mando dos militares, restringia o conteúdo de

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tudo aquilo que atingia o grande público. O professor conta que, como estudante do ensino médio até a universidade, sofreu o peso das restrições do período da ditadura. Segundo ele, o medo, a paranóia de viver em uma época como aquela foi uma violência para o jovem universitário. “Nós amávamos o Brasil tanto quanto eles, que se diziam donos do país”, acrescenta. O professor Nelson Eduardo Rivero, da área de psicologia social da Unisinos, comenta que os regimes totalitários foram aclamados pelas populações e ainda hoje são sustentados em grupos menores de manifestação política. “Lembro deste fato para dizer que a liberdade não é um estado ou uma condição inerente à pessoa como uma característica da sua humanidade. Liberdade é uma ação, um exercício que deve ser tomado como responsabilidade daqueles que se implicam neste movimento”, explica o professor, que é doutorando em psicologia na PUC-RS na linha de pesquisa de estudos culturais e modos de subjetivação. Segundo Rivero, antes de uma tomada de poder por facções políticas ou institucionais, há uma construção subjetiva e uma certa condescendência com a usurpação da possibilidade do exercício da liberdade. Ou seja, quando, mesmo pela força, um governo totalitário se impõe, provavelmente ele tem sustentação da população. “A extrapolação e usurpação da liberdade de um povo é também um reflexo de uma abdicação do poder ou de uma servidão voluntária de um povo”, comenta. Ainda, segundo o professor, esses fatos não são construídos pela disciplina moral somente, mas principalmente pela produção de subjetividades conformadas ou resignadas com a falta da liberda-

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de. Neste momento, por exemplo, vivemos uma relação deste tipo em várias ocasiões, onde suspendemos os direitos civis ou mesmo humanos face a determinadas condições. “Veja, por exemplo, a reação junto ao filme Tropa de Elite. Para muitos, foi a denúncia da existência de um estado de exceção onde vale a lei do mais forte. Para outros, foi um deleite, por realizar muito do que gostariam que acontecesse com seus semelhantes fora-da-lei. Ou seja, em nome de um estado de segurança, se interpõe um estado de exceção cotidianamente, apoiado por boa parte da população brasileira. É o tratado do estado de soberania”, explica. O professor acrescenta que esse é um tema importantíssimo, discutido por autores como Giorgio Agamben, Zygmunt Bauman e Michel Foucault. Ele esclarece que esses autores, embora não sejam psicólogos, consideram a subjetividade um aspecto fundamental para avaliar essas situações.

O trote universitário

Longe da época do regime militar, os universitários brasileiros hoje têm liberdade de agir e pensar. Mas é nas universidades que acontece um dos maiores exemplos de cerceamento da liberdade: os trotes. Já foram registradas ocorrências com morte em várias universidades brasileiras por causa de práticas consideradas graves, como agressões, ingestão forçada de bebidas alcoólicas, ingestão de misturas de alimentos com paladar desagradável, entre outras. O primeiro caso de trote universitário ocorreu em 1831, em Recife. Na ocasião, um estudante morreu a facadas e bengaladas. De lá para cá, o trote se espalhou, e a lista de acontecimentos fatais aumentou. Nenhuma medida

eficaz foi tomada pelo Ministério da Educação ou por parte da maioria das universidades. Sem uma política anti-trote e a prévia investigação sobre o que vem associando a violência ao ingresso nas universidades, a cultura do trote permanece no país. “O fenômeno da violência, da usurpação da liberdade ou mesmo do desrespeito aos direitos humanos são considerados complexos e multicausados. O trote universitário é mais uma das tantas tradições que temos na universidade moderna. Tanto o agressivo como o politicamente correto são modos apresentados como possíveis, como repertórios, para nossos estudantes viverem este momento”, explica o professor Rivero. Segundo ele, as pessoas podem pensar na forma como vivem a relação com seus semelhantes. Muitas vezes, os indivíduos percebem o próximo como uma ameaça ao bem estar próprio e não como uma possibilidade de convivência. De acordo com o professor, existe uma valoração das pessoas. É possível, por exemplo, entender as classes populares como perigosas para uma minoria mais afortunada, de uma classe rica. “Subjetivamente, o efeito que tem este discurso é de que existem pessoas melhores, aquelas que valem a pena, e outras que não valem”, analisa Rivero. “Seria importante alguma destruição, como abandonar a idéia de que a liberdade é uma propriedade individual. Ela, na verdade, é um direito”, acrescenta o professor. Ele diz que é preciso perceber a liberdade como uma ação, um exercício entre sujeitos livres. Aproximar-se da idéia de que liberdade é uma realidade política e coletiva, uma conquista e não um presente. Essa deveria ser uma das lições mais ensinadas aos universitários.

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eja o primeiro, mas seja correto.” Antigamente era comum ver essa frase nos murais das redações dos jornais norte-americanos, como conta Eugene Goodwin, professor de jornalismo da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, em seu livro Procura-se ética no jornalismo. Mas nem sempre a teoria funciona na prática. Na mídia, muitas vezes há uma confusão e uma invasão de limites na ética da informação. Alguns profissio-

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nais ou veículos extrapolam essa linha tênue que divide a pauta da real ocorrência dos fatos, que tem por finalidade o interesse social e coletivo, da matéria puramente especulativa que viola a vida privada. O artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 diz que todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão. Este direito inclui não ser incomodado em virtude das suas opiniões, poder coletar e receber notícias

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Mídia

desenfreada O direto à verdade e à liberdade de expressão sem ultrapassar a ética

[texto: Leandro [fotos: Katia

e difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão. O atual Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros foi aprovado pelo Congresso Nacional dos Profissionais em setembro de 1985. O Código reúne 27 artigos e trata do Direito à Informação e da Conduta Profissional do Jornalista. Ele fixa as normas a que se deverá subordinar a atuação nas suas relações com a comunidade, com as fontes e entre os colegas jornalistas. Vale sublinhar

Molina Dalcin]

que o código diz que o acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade. Portanto, nem o Estado, nem as instituições ou as organizações jornalísticas podem cercear este direito. Uma das palavras da moda é ética. Fala-se muito em ética profissional. Muitos veículos abordam a comunicação de maneira ética. Mas outros esquecem-na em nome dos índices de audiência, no caso da mídia eletrônica, ou pelo aumento nas

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[Mídia]

vendas da mídia impressa. Os resultados da audiência e das vendas suplantam a postura dos princípios geradores de notícia e causam distorções jornalísticas. E, se entrarmos no aspecto das revistas dirigidas ao mundo da fama, teríamos centenas de casos para análise e discussão. Há 15 anos um caso marcaria a história do jornalismo brasileiro. Um ano depois do Congresso ter aprovado o impeachment do presidente Fernando Collor, a CPI do Orçamento cassou parlamentares acusados de corrupção. No centro do caso estava o deputado federal gaúcho Ibsen Pinheiro. Ele foi cassado. A base da acusação foi o suposto envolvimento com a “máfia do orçamento” publicado na revista Veja de 17 de novembro de 1993. A matéria afirmou que Ibsen movimentou U$$ 1 milhão em suas contas. O jornalista que escreveu a reportagem confessou o erro e detalhou que a movimentação, na verdade, foi de U$$ 1 mil. O erro histórico que incinerou o deputado foi detectado, mas como a edição estava praticamente fechada, o editor-executivo da Veja mandou o jornalista encontrar alguém que sustentasse a versão de U$$ 1 milhão, de acordo com as informações publicadas em matéria da revista IstoÉ de 18 de agos-

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to de 2004. Após a verdade ter vindo à tona, Ibsen Pinheiro recuperou a vida política. Ele diz que os exageros da mídia têm várias causas. O deputado acredita que, após o país ter saído de um período de autoritarismo com a ditadura, a imprensa caiu no outro extremo. Ressalta que os veículos optam pela sacralização e demonização da vida pública e privada. Ibsen Pinheiro é contrário a qualquer movimento de supressão da liberdade de imprensa, mas observa que a liberdade nem sempre é usada com responsabilidade. Optou por não pedir ressarcimento financeiro à revista, pois acredita que a reparação é sempre incompleta. Ibsen diz que a mídia está num processo de aprimoramento cultural e já vê sinais de que a sociedade rejeita a conduta sensacionalista. “Aquela definição do político norte-americano Adlai Stevenson de que a imprensa separa o joio do trigo e publica o joio está passando para a percepção das pessoas. E esse é o caminho da correção e da construção cultural do equilíbrio. O melhor remédio para a liberdade de imprensa é o exercício da própria liberdade”, pondera.

Um dos princípios constitucionais diz que a inviolabilidade da vida privada é a garantia para traçar um limite à liberdade de informação. O princípio não visa censurar, mas estabelecer um divisor do que é íntimo ou de interesse público.

Prova de fogo

Diariamente a ética da informação enfrenta uma prova de fogo. Os princípios da conduta humana não mudam, mas as situações sim. Desde o aparecimento da imprensa lá pelos idos de 1500, a ética da comunicação reconhece a primazia da verdade sobre a mentira e o respeito à honra pessoal contra a difamação e calúnias em geral. O clima conflitante entre a imprensa e poderes públicos complicouse com o aparecimento dos jornais no século XVIII. A imprensa escrita surgiu como um novo poder contra os políticos profissionais. Mas esse poder nem sempre era exercido por profissionais honestos. O uso abusivo da linguagem jornalística causou a ira de políticos, intelectuais e autoridades eclesiásticas. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os profissionais dos meios de comunicação inspiravam-se na reflexão filosófica e se autogeriam por meio de códigos de conduta

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Revista Veja cometeu erro histórico com Ibsen Pinheiro

e conselhos de imprensa. Somada ao exibicionismo, a intromissão na vida dos outros é uma das maiores tentações do jornalismo. Os processos de comunicação sofisticaram-se e contribuíram para disseminação do sensacionalismo informativo, que consiste no exagero intencional do conteúdo da notícia, embora tenha caráter de verdade. Para a presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Angelina Nunes, o trabalho da mídia brasileira tem qualidade. Ela conta que os repórteres aprofundam-se nas matérias de forma séria e documentada. A jornalista diz que, embora haja contestação e tentativas de amordaçar a imprensa por parte de algumas autoridades, ninguém está fazendo jornalismo leviano. “A associação fomenta a importância da apuração, principalmente entre os estudantes que estão saindo das universidades. A base da imprensa está na formação. Se houver apuração e ética, o profissional não vai avançar os limites”, afirma. No livro Iraque, a Guerra pelas Mentes, da jornalista pernambucana Paula Fontenelle, o diretor de mídia do Ministério da Defesa britânico, David Howard, confessou

que permitiu um número sem precedentes de jornalistas no campo de batalha. Ele revelou que a quantidade de jornalistas na Guerra do Iraque rendia reportagens positivas. A autora conta na obra que os dossiês militares que tentavam comprovar a existência de armas químicas e o trabalho dos jornalistas faziam parte de uma estratégia de relações públicas construída pela coalizão para moldar as informações que seriam divulgadas. Os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul são os campeões em ações contra jornalistas. A maioria por danos morais. De acordo com o advogado, jornalista e dirigente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul Marco Chagas, o gaúcho é contestador. Por isso há um patrulhamento em relação ao que é dito e publicado na imprensa, principalmente na capital. Isso gera inúmeros processos contra as empresas de comunicação. “Normalmente as pessoas processam as empresas, pois sabem que jornalista não tem patrimônio suficiente para arcar com a indenização”, esclarece. Marco Chagas diz que o jornalista associado ao sindicato pode sofrer censura pública ou privada e ter seus direitos suspensos em caso de irrespon-

sabilidade ética. O advogado cobra da imprensa um padrão médio de comportamento onde haja apuração, confirmação e cautela. E ressalta que a maioria dos processos acontecem por negligência e imprudência de alguns jornalistas. “Embora nem sempre haja o dolo, que é a intenção de prejudicar, é preciso evitar a afobação de publicar a notícia ou comentário com falta de fundamentação, o que resulta em processo”, orienta. Todos tem direito à informação, e os jornalistas, à liberdade de expressão. Mas é preciso selecionar o que será divulgado. O limite disso tudo é que deve ser examinado. O jornalista tem o dever de levar a notícia para o povo. Então é necessário colocar na balança o que vai ser publicado e ter cuidado e responsabilidade. Acima de tudo, é preciso saber que existem valores constitucionais. Quando divulgamos uma informação, deve-se levar em conta o valor e o interesse público. Se o cargo é público, o cidadão perdeu muito de sua privacidade, que não pode ser confundida com intimidade. A liberdade de imprensa é tão importante quanto a honra e a privacidade. Constitucionalmente elas tem o mesmo peso. O desempate se dá pelo interesse público.

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O mercado da estética cresce a cada dia, com cada vez mais produtos e serviços a disposição daqueles que buscam a beleza, muitas vezes a qualquer custo [texto: Luana

Reis] de Borba]

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ra uma vez um jovem que encantava a todos pela sua beleza. Porém o seu orgulho era ainda maior, e nenhuma, nem a mais bela das ninfas conseguia a sua atenção. Um dia, ao se refrescar no lago, viu a sua imagem refletida e se apaixonou perdidamente por si mesmo. O rapaz estava tão embriagado pela sua imagem que nunca mais saiu de lá até a morte. Esta é a história de Narciso, da mitologia grega, é claro, mas nestes tempos de exaltação à beleza não são raros aqueles que se perdem na busca de algo que jamais irão alcançar. A vaidade e os padrões estéticos mudaram e a cada dia ganham maior espaço e importância na sociedade. Há quem culpe a mídia pela superexposição do corpo. Há os que dizem que ser vaidoso é importante para elevar a auto-estima. Há aqueles que pregam a beleza interior. Com tantos cosméticos, tratamentos estéticos, academias de ginástica e cirurgias plásticas, fugir da vaidade seria algo equivalente a uma das tarefas de Hércules. No entanto, algumas pessoas perseguem um ideal de beleza a qualquer custo ou se utilizam de técnicas não muito convencionais.

Barriga pra dentro

ética

Uma forma pouco comum de cuidar da silhueta é o uso de corset, muito usado nos séculos XVI e XVII. Na época, a idéia era ocultar as curvas femininas. Este modelo foi muito usado pelas rainhas Elisabeth e Maria Antonieta. No século XVIII, as crianças usavam diariamente a peça, e até os homens o vestiam para disfarçar a barriga e para fins ortopédicos. Por conta da Primeira Guerra Mundial, o uso da peça foi diminuindo, porque os metais usados na estru-

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[vaidade] tura do corset eram muito importantes para a indústria bélica. A roupa virou artigo raro e se tornou, com o tempo, uma peça ligada ao mundo do fetichismo. Ainda explorando o lado fetichista do corset, o estilista britânico Jonh Galliano fez o figurino de shows da turnê Erótica, da cantora Madonna, trazendo à tona e aos holofotes o glamour e a feminilidade da peça nos anos 90. Como tudo que a diva usa vira moda, a partir daí pode se dizer que houve um novo olhar da moda para a roupa. O corset, popularmente chamado de espartilho no Brasil, é uma peça de roupa que, quando ajustada, diminui rapidamente o tamanho da cintura. Esta técnica é chamada de tight lacing (laço apertado). Se praticada diariamente, começando com cinco horas e aumentando progressivamente, curva as costelas flutuantes. Com o tempo, a mudança se torna definitiva. A estudante de Design Juliana Robin começou a usar corsets há três anos. Porém a jovem de 21 anos não faz tigh lacing por conta de alguns fatores. “Com as altas temperaturas do verão é impossível, a peça chega a ter três camadas de tecido, fica muito desconfortável”, explica Juliana. Segundo a estudante, ela chama muita atenção quando usa os corsets. “Imagina usar todos os dias no trabalho! As pessoas chegam a virar o pescoço pra ver”, diz. Tem também o problema da circulação, que fica um pouco comprometida com o uso da peça, portanto ela, que trabalha em escritório, sofreria algum desconforto. Quando utiliza seus corsets, sua cintura passa de 68cm para 60cm. No entanto, o que realmente importa para Juliana é o envolvimento que tem com a peça. “Eu vejo como uma roupa de luxo. Você escolhe todos os detalhes: a cor, o tecido, as aplicações, nas suas medidas. É um trabalho artesanal, geralmente a média de espera por corsets é de um mês cada um”, diz. Realmente a peça de roupa pode ser considerada de luxo. No Brasil, ainda são poucas as chamadas corsetmakers, estilistas que criam as roupas. Geralmente, as clientes interessadas descobrem o trabalho ou entram em contato pela internet. Os preços dos corsets da marca Madame Sher, por exemplo, vão de R$ 310, para o modelo mais simples, a mais de R$ 1 mil, dependendo do modelo e tecido utilizados. Para Juliana, o corset é um acessório que tem que ser usado com bom senso. “Faz parte do meu padrão de beleza. Fico com uma postura melhor, me sinto mais alta, mais magra, mais bonita. E também ajuda a emagrecer, porque a peça aperta e não dá para comer muito”, relata. Além de ser uma apaixonada pela peça, ela também é pesquisadora sobre o assunto. Está desenvolvendo o seu trabalho de conclusão da

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faculdade de Design sobre a marca mais famosa de corsets do Brasil, a Madame Sher.

Peito para fora

A modelo Sheyla Hershey virou notícia este ano quando pôs sete litros de silicone nos seios. A capixaba de 28 anos carrega o título de mulher com o maior peito da América Latina, mas ainda quer mais. “Meu sonho é bater o recorde mundial, que é de 10 litros em cada seio” diz. A primeira vez que Sheyla colocou próteses de silicone foram apenas 175 mililitros por seio em 2001. O número do seu busto era apenas 32. Desde então, ela já fez nove vezes cirurgias para aumentar o busto. O interesse por ter seios grandes começou quando Sheyla se mudou para os Estados Unidos há oito anos. A sua grande referência de beleza é a cantora americana Dolly Parton, que é famosa pelo busto farto. Ela mora em Huston, no Texas, estuda Jornalismo na Kingwood Colege e trabalha como produtora na rádio The Buzz. Depois de ter entrado no sutiã tamanho 90, Sheyla tem acompanhamento quase diário com um fisioterapeuta para prevenir danos em sua coluna. E também tem outros pequenos problemas, como escovar os dentes sem cair pasta nos seios. Almoçar à mesa é mais difícil, assim como calçar os sapatos. “Todo sacrifício do mundo vale a pena. Nada paga a felicidade que sinto neste momento”, analisa Sheyla. Além dos sacrifícios físicos, a recordista tem dificuldades para comprar roupas. Geralmente precisa mandar fazer sob medida seus sutiãs, biquínis e vestidos. Após a última cirurgia, Sheyla Hershey virou figurinha fácil nos programas de tv do Brasil e dos Estados Unidos. Tudo isto acabou lhe rendendo também um contrato com a rede de televisão americana CBS, que, ainda este ano, exibirá um reality show mostrando o diaa-dia da brasileira.

Entre a vaidade e a sanidade

As preocupações com a estética estão presentes há milênios na humanidade. Grandes mitos de poder e beleza de séculos ainda são referências atuais, como Cleópatra e Nefertiti. E, assim como a própria humanidade, a vaidade foi mudando e se reinventando dentro de cada sociedade. Segundo a doutora Sílvia Benetti, professora do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Unisinos, os valores estéticos já estiveram até vinculados com a possibilidade de comer. “Na época das grandes pestes na Idade Média, as mulheres deveriam ser opulentas, o que significava que elas tinham alimento em abundância, hoje elas seriam consideradas obesas”, diz. A vaidade ainda é considerada pela maioria uma

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busca feminina. Isto se deve ao fato de no passado a mulher necessitar de alguém que provesse sua casa e seus filhos. Cabia a ela a função de seduzir o marido para manter este padrão. Mas não é de hoje que os homens se preocupam com a beleza. Durante séculos eles usaram peruca, maquiagem e até batom para ficarem mais vistosos. Porém a grande revolução da estética começou depois da Segunda Guerra Mundial. Houve uma possibilidade de massificação da venda tanto de produtos, como de um padrão de beleza representados pelas divas do cinema hollywoodiano. “A partir daí se criou uma exigência que as mulheres jamais poderão cumprir, porque nós somos diferentes, física e psicologicamente e, no entanto, temos um único padrão estético”, afirma a psicóloga. A sociedade tem medo de envelhecer, de encarar os limites da vida, de que o corpo se transforme com o passar dos anos. Conforme Sílvia, hoje a época é de ideais representativos de sucesso, quem é feliz é aquele que tem grandes ganhos financeiros, está sempre em festas, vestido impecavelmente e com uma aparência

de adolescente. “Isto provoca uma pressão e faz com que o indivíduo comum se sinta desvalorizado, porque não possui estes atributos”, reitera. A vaidade, porém, não é uma temível vilã. Cuidar de si mesmo é um aspecto positivo, porque ao fazer isto o indivíduo ressalta aquilo que tem de melhor, se valorizando. E também faz com que perceba as qualidades que existem no outro. O problema é quando o cuidar de si vira uma obsessão. Se você não é capaz de enxergar suas qualidades e se deixa subjugar pelos padrões exigidos, buscando uma perfeição estética, tome cuidado. Pessoas assim podem desenvolver algum tipo de transtorno alimentar, como a aneroxia, ou de imagem. Pode-se chamar de comportamento patológico quando alguém se engessa numa posição inflexível, de pouca criatividade, e, por conta disto, sente um profundo mal-estar. “Uma pessoa que não sai de casa de jeito nenhum se não estiver com a chapinha em dia, maquiada, enfim, que não se permite não ter este padrão, pode sim estar com algum transtorno de imagem”, alerta a psicóloga.

Já dizia Ovídio Não é de hoje que os cuidados com a beleza permeiam o dia a dia feminino té mesmo o fil sofo romano vídio se dedicava a dar consel os e ensinar cosméticos caseiros cerca de dois mil anos.

“ Aprendei, jovens beldades, que cuidados tornam atraente nosso rosto e de que modo deveis preservar vossa beleza” “ A idade irá devastar a beleza, e o rosto será sulcado pelas rugas. V irá um tempo quando nos será penoso olhar no espelho, e o pesar será motivo de outras rugas”

“ T em dado também resultado misturar ervadoce à mirra perf umada ( para cinco escrópulos de erva-doce, nove de mirra) e de pétalas de rosa seca, quanto uma mã o possa apanhar, e incenso macho, junto com sal amoní aco. D eita sobre eles uma papa f eita de cevada ( que o peso do incenso e do sal seja igual ao das rosas) . Ainda que seja por pouco tempo aplicado num rosto delicado, não ficará nele mancha alguma”

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[raves]

Um caminho

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Embalados pela música eletrônica e estimulados por drogas sintéticas, jovens buscam o ilimitado [texto: Carolina

[fotos: Mariana

Schubert] de Borba]

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hecido

som ultrapassa o último volume. As pessoas superam a resistência do corpo humano. As cores, luzes e telões se confundem com a paisagem natural. E o céu não é o único infinito. As festas embaladas pela música eletrônica superam todos os limites. Isso é uma rave. Normalmente, as raves são realizadas em sítios ou grandes estruturas, afastadas dos centros urbanos. Com duração de mais de 12 horas, as festas contam com uma série de apresentações de Djs, telões psicodélicos, decoração colorida. Alguns participantes ainda fazem malabares e acrobacias. O evento também é caracterizado pela moda. São óculos escuros, bonés, boinas, botas, cintos, que formam um estilo de vestir. Contrastando com o que parece apenas um grande parque de diversões, estão as drogas. O consumo de substâncias ilícitas em raves é praticamente unânime. Não se engane, balas e doces estão longe de ser gu-

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[raves] loseimas. Os termos são sinônimos de Ecstasy e LSD, respectivamente. O estimulante e o alucinógeno classificados como drogas sintéticas, ou seja, produzidas em laboratório, garantem disposição para encarar as longas horas de balada, entretanto podem trazer sérias conseqüências. A psiquiatra e terapeuta Jamili Vancato, que trabalha há 10 anos com recuperação de jovens dependentes e na emergência do Hospital Centenário, de São Leopoldo, diz que cada vez mais os jovens aparecem no Pronto Socorro tendo arritmias e outros efeitos colaterais causados pelo abuso de drogas. As substâncias como Ecstasy e LSD não chegam a causar dependência orgânica, ou seja, a falta da droga não leva o usuário a apresentar alterações físicas, como pressão alta e con-

vulsões, o que já acontece no caso do álcool e da cocaína, por exemplo. O que não quer dizer que quem consome está longe do vício. Consumir droga todo o fim de semana, somente em raves, já é considerado dependência psicológica. De acordo com o IBGE, entre os anos de 2001 e 2005, o consumo de drogas na região Sul do país teve um declínio de 2,3%. Entretanto, no mesmo período, o uso de estimulantes e alucinógenos cresceu. O consumo de Ecstasy aumentou de 2% para 2,6%. Uma alta similar a do uso de LSD, que passou de 0,6% para 1,1%. A maioria dos jovens adeptos às raves é de classe média alta. O preço dos ingressos, o deslocamento até locais distantes e a compra de entorpecentes tornam a festa relativamente cara. Traduzindo em núme-

ros, pode-se calcular por baixo, um valor mínimo de R$ 100. É instigante tentar entender por que pessoas com uma situação econômica estável e que provavelmente têm conhecimento sobre todos os danos aos quais estão se sujeitando ainda assim optam por não ter limites. A doutora Jamili Vancato, que está fazendo sua dissertação de mestrado em psicanálise, explica que o abuso de drogas entre jovens esclarecidos acontece porque a juventude precisa ir além do intenso. “Não existe um padrão, o que eu vejo é que esses jovens das festas raves estão em busca de superestímulos, sensações muito intensas. Não basta uma boa festa, tem que ser tudo muito forte para que eles aproveitem. Também acredito que essas pessoas têm alguma dificuldade em sentir prazer pelas

Glossário do vício B ala ou Ecstasy : é conhecida como a droga do amor, por aguçar os sentidos do toque. T raz sensação de bem-estar e adrenalina. Os efeitos aparecem de 2 0 a 6 0 minutos após a ingestão e duram entre duas a cinco horas. Produzida em laboratório, em formato de comprimido, causa alteraçõ es na percepção sensorial, taquicardia, mudança de temperatura e desidratação. Sintomas de depressão podem aparecer após a sensação de êxtase. O uso freqü ente pode causar doenças psicoativas, como esquizofrenia. Doce ou L S D: Dietilamida do Á cido L isérgico, uma das mais potentes substâ ncias alucinógenas. Sensaçõ es de bem-estar, euforia e ansiedade são os efeitos esperados e variam conforme a personalidade de quem consome e o ambiente de uso. O tempo para agir no organismo é de 2 0 a 6 0 minutos depois de ingerido. Os sintomas podem durar de duas a cinco horas. Normalmente

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tem forma de papel secante ( como selo) e pode causar alucinaçõ es, angústia, pâ nico, de ress o, dificuldade de concentraç o, perturbaçõ es da memória, náuseas, dilatação das púpilas, aumento da pressão arterial e do ritmo cardíaco e debilidade corporal. Pirulito: o consumo de L SD e Ecstasy faz com que as pessoas serrem os dentes ou mordam os lábios, por isso é comum encontrar pirulitos em raves. Além de repor energia por ser extremamente doce, o palitinho preso a bala protege a boca das fortes mordidas. Á gua: a bebida mais procurada em raves. Como um dos efeitos colaterais das drogas sintéticas é a desidratação, o consumo de gua é inevit vel s garrafin as c egam a custar R $ 5 . Caso o usuário de L SD e Ecstasy não tome água pode até morrer de insufici ncia renal

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coisas. Então, buscam nas drogas o que não encontram sozinhos.” O grupo de amigos e o ambiente também são fatores associados ao consumo, a chamada influência. O jovem precisa da droga para mostrar ao meio que faz parte do mesmo universo ilimitado.

Sem segredos

A droga está tão presente no cotidiano, que alguns chegam a romper limites estabelecidos dentro da sociedade. Enquanto que para a maioria procurar manter os filhos longe das drogas a todo custo é o ideal, outros enxergam a realidade da criação de maneira diferenciada. É o caso da família Juliana*. O relacionamento entre pais e filha é tão aberto que o consumo de drogas não é um tabu. Juliana, 19 anos, freqüenta raves e usa ecstasy com o conhecimento de seus pais. A mãe de Juliana, 48 anos, explica que ela e o marido não fazem apologia ao uso de drogas, mas, como sabem que elas estão presentes no universo da filha, tentam falar abertamente sobre o tema. “Quando o assunto é pais e filhos, acredito que não existem limites para se tentar manter um bom relacionamento. Muitas pessoas podem achar que nossa relação não tem limites, mas acredito que se estiver sempre próxima da minha menina poderei saber a que pé anda a situação e como ajudá-la. Proibir não adianta nada e pode até piorar o relacionamento familiar”, diz. Juliana acredita que alguns jovens não têm limites e tão pouco reconhecem que estão exagerando, mas não considera o seu consumo descontrolado. “Tem gente que vê a droga como algo normal, acha que a

bala é inofensiva e não está nem aí com o fato de que o consumo pode até matar, mas eu não sou assim. Não uso sempre. Experimentei na primeira rave que fui e continuei tomando, porque o efeito é muito bom. A sensação é diferente e inexplicável.” A jovem diz que chegou a seu limite quando passou 16 horas na balada, sob o efeito de 2 comprimidos de ecstasy. Além disso, já gastou cerca de R$ 150 em uma noite com ingresso e estimulantes para festa. “Nas primeiras vezes que você freqüenta raves sem conhecer muita gente, não tem como gastar menos do que isso se pretende consumir drogas. Mas, com o tempo, conhecendo mais gente, tendo mais contatos, você acaba conseguindo comprar balas e doces mais barato, às vezes consegue até de graça”. Juliana defende as festas de música eletrônica. “Rave não é só balinha, por mais que sejam poucos, existem jovens que não consomem drogas na balada e, além disso, é uma festa ao ar livre, com um contato direto com a natureza, as pessoas curtem numa boa, sem brigas.” As festas da música eletrônica acontecem faça chuva ou sol. Normalmente, são fiscalizadas por seguranças particulares, o que facilita a movimentação das drogas. Além disso, os comprimidos e adesivos de Ecstasy e LSD podem ser escondidos sem nenhuma dificuldade. Lugares afastados, música a todo volume, centenas de pessoas entusiasmadas, pulando por horas e horas. Um universo sem limites. Se fosse possível traduzir a palavra rave, seria um lugar que você vai, mas não imagina onde pode chegar. *O nome foi trocado.

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[sexo]

Busca pelo

prazer

As pessoas não têm mais tempo nem para o sexo. Uma série de fatores externos está cada vez mais presente nas relações e isso acaba impondo limitações

[texto: Luciano

A

rotina estressante do dia-a-dia, a preocupação com as finanças, com os filhos, o uso de métodos contraceptivos e, muitas vezes, o desgaste do relacionamento, além de causarem um cansaço físico e mental, podem fazer com que as pessoas deixem o sexo em segundo plano. Todos esses aspectos trazem uma série de distúrbios na hora da relação sexual, principalmente de ordem emocional. De acordo com a psicóloga Laura Meyer, que trabalha com terapia sexual e há 22 anos atua junto ao laboratório de urologia

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Gasparini]

[fotos: Mônica

da Santa Casa de Misericórdia, de Porto Alegre, essas preocupações acabam sendo grandes fatores limitadores na busca pelo prazer. Laura aponta a ejaculação precoce e a disfunção erétil como os principais motivos que fazem os homens procurarem tratamento psicológico. No primeiro caso, são aplicados exercícios que ajudam a trabalhar a percepção dos momentos que antecedem a ejaculação. Para os que têm dificuldade de manter a ereção, são recomendados alguns exercícios para trabalhar a

Patrícia]

musculatura do pênis. Além disso, também é feita uma dessensibilização sistemática que ajuda a cessar o medo da aproximação e a aumentar a capacidade de concentração. No sexo feminino, Laura cita a falta do desejo e a anorgasmia, ou inibição do orgasmo, como os fatores que mais reprimem as mulheres na hora da relação sexual. A psicóloga acrescenta que a mulher tem a sua sexualidade reprimida desde a infância e que este tipo de comportamento pode trazer problemas para a vida sexual. Laura traz um dado sur-

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[sexo] preendente: de cada 10 pacientes, nove são homens e um apenas é mulher. “É difícil para os homens buscarem ajuda, mas ainda assim o fazem muito mais que as mulheres”, revela. E justifica: “Para ter relação, o homem precisa da ereção e a mulher pode fazer sexo sem ter vontade. A dificuldade do homem é visível, a mulher pode fingir que está tudo bem”. A terapia é extremamente importante para quem está com dificuldade de resolver seus problemas, mas, mesmo assim, o simples fato de se ter ajuda de um profissional habilitado não é garantia de resolução dos casos. “É

muito triste quando se chega à conclusão de que a situação entre o casal é tão ruim que é preciso até mesmo ajudar a se separarem”, afirma Laura em tom de resignação. Por fim, ela deixa uma mensagem àqueles que colocam empecilhos a si mesmos na hora de fazer sexo: “As pessoas se privam quanto ao aproveitamento da vida sexual. Elas têm problemas e não buscam ajuda. O sexo não tem limites. Entre quatro paredes vale qualquer coisa na busca pelo prazer, desde que haja concordância, é claro! As pessoas precisam dar vazão as suas fantasias.” O urologista João Batista

Reis, que tem uma seção no jornal Diário Gaúcho, na qual esclarece dúvidas sexuais dos leitores, aponta a preocupação com o tamanho do pênis, a anorgasmia, a ejaculação precoce e a falta de desejo da mulher como questões campeoníssimas. Tal qual a psicóloga Laura, ele também levanta o aspecto cultural da sexualidade reprimida da mulher. Inclusive, relembra algumas frases que muitos pais dizem às suas filhas: “Tira a mão daí, fecha as pernas, abaixa a saia”. Segundo Batista, este comportamento inibe a mulher e pode trazer empecilhos futuros na busca pelo prazer. Batista entende

Estímulo é O V iagra foi um verdadeiro sucesso nos anos que sucederam seu lançamento, ocorrido em 1 9 9 8 . No B rasil, chegou a ser o remédio mais vendido, com cerca de um milhão de comprimidos comercializados por mês. Animados com os resultados financeiros, outros laboratórios investiram na criação de drogas contra a disfunção erétil. Atualmente, há no comércio quatro similares, dois fabricados por laboratórios estrangeiros ( o L evitra, da B ay er, e o Cialis, da Eli L illy ) e outros dois produzidos por empresas brasileiras ( o V ivanza, da Medley , e o H elleva, da Cristália) . No B rasil, o V iagra e o Cialis estão entre os cinco medicamen-

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que o seu trabalho de esclarecer dúvidas no jornal é uma espécie de utilidade pública: “A maioria dos problemas com sexo é de fundo emocional ou falta de informação. Por isso, este trabalho é extremamente importante. A população é muito carente deste tipo de orientação”. E ele observa avanço na quebra de tabus e limites. “As mulheres se tocam mais hoje, as pessoas estão amando mais a si. A auto-estima está melhor.”

Sexo para qualquer sexo

Renato Pinto, homossexual, 42 anos, cabeleireiro há mais de 20, praticante do

budismo há 12, se diz muito bem resolvido quanto a sua orientação sexual. Ele entende que o homossexualismo é uma questão hormonal. “Achar que um dia a pessoa vai se tornar homossexual por opção é mito. A pessoa nasce assim. É química”, afirma. Embora tenha sido criado no meio de irmãs, entende que isto não teve influência alguma. Desde os cinco anos de idade já mostrava grande afinidade e sensibilidade com universo feminino. “Eu era o último filho. Uma criança sempre muito ativa, artista, fazia caras e bocas, gostava de teatro. Hoje as mulheres são minhas grandes ami-

gas e confidentes”, conta. Renato revela que teve seu primeiro contato homossexual aos seis anos de idade ao ser molestado sexualmente por vizinhos. “As crianças são muito molestadas neste país.” Aos 13 anos, deu início a sua vida sexual com homens. A fase que mais sofreu com o preconceito foi na vida colegial. “Eu não jogava futebol. E na adolescência tem aquela coisa de querer mostrar a masculinidade, mas nem por isso eu me cobrava por não fazer as mesmas coisas que os meninos. Sempre fiz o que tive vontade.” E acrescenta: “Antes de qualquer coisa, a pessoa tem que vencer o

o é o melhor remédio tos mais vendidos, ao lado de analgésicos populares, de venda livre, como or e , lenol e Neosaldina. Segundo o próprio laboratório fabricante, estima-se que, até o início deste ano, data em que comleta de anos de e ist ncia, o V iagra tenha sido consumido por mais de 3 5 milhõ es de homens em 1 2 0 países. dgar orell, urologista há 4 0 anos, revela que os pacientes que mais utilizam o medicamento são os que estão acima dos 5 0 anos e, em muitos dos casos, por já terem passado por intervenção prostática. Apesar de ter sido criado com o objetivo de combater os problemas que causam a disfunção erétil, muitos

jovens têm utilizado este tipo de medicamento. “Eles usam porque têm medo ou ansiedade em relação ao desempenho se ual esde que em estimu lados, os jovens não precisam disso , ressalta le afirma ainda que os medicamentos não causam os malefícios que se imagina. “Eles agem como o igenadores da microcircula ção. Não causam dano algum, até eneficiam anto que ro duto semelhante é dado para pacientes com hipertensão ulmonar ara mel orar a o i genação”. Porém, ele faz um alerta: “A não ser que os usuários sejam cardiopatas, tenham problemas de angina ou que tomem remédios para as coronárias. Esses sim podem

ter alguns riscos.” orell garante que o me dicamento não causa dependência física. Porém, pode causar dependência psicológica. “Às vezes o paciente utiliza marcas diferentes em ocasiõ es distintas, tem desempenho melhor em uma delas e acaba acreditando que teve melhor performance por causa do efeito do medicamento, o que não é verdade. Ele é que estava melhor naquele dia”, revela. O médico salienta que o medicamento não é mágico. “É preciso estímulo, por si só o remédio não provoca a ereção. Os comprimidos só funcionam se houver atração ou relação amorosa , afirma | novembro/2008 | primeira impressão|

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[sexo] preconceito consigo mesma”. Ele entende que as pessoas carregam muita culpa consigo. Para se libertar do sentimento de se achar um transgressor, entregou-se a um pensamento religioso: “Se Deus me fez a imagem e semelhança dele, então ele também deve de ser assim. Não tenho porque me sentir inferiorizado”. Renato teve relações heterossexuais, mas aos 18 anos assumiu de vez a homossexualidade perante si e a todos. Hoje, seus pais são falecidos, mas conta que desde cedo manifestou abertamente, principalmente a sua mãe, a sua opção sexual. Porém, admite que a família ficou distante. “A maioria dos homossexuais sai de casa com o compromisso de não ter que voltar. Quando começam a mostrar que podem sobreviver sem depender dos pais, eles mudam. As visitas se tornam esporádicas. A homossexualidade te leva a outros caminhos, mas no fundo somos pessoas comuns. Queremos ser felizes como todas as outras”, revela. Hoje, Renato tem apenas relação homossexual e diz gostar de uma vida pacata. “Sei onde está a badalação, mas gosto de formar família, de casar. Estou há cinco anos com o meu parceiro atual e antes dele fiquei 17 anos com a mesma pessoa”. Ele entende que os homens homossexuais são muito liberais: “A maioria é pervertido. É importante lembrar que somos homens que gostamos de homens, mas com libido de homem. O gay é mais solto. Não há limites. É preciso se deixar levar, se sentir bem com o que se faz. A ocasião faz o ladrão. Basta a curiosidade e um dia tudo pode rolar”, conclui.

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A segurança é o limite Segundo o Relatório Global do Programa Conjunto das Nações Unidas para a Aids (Unaids), divulgado em julho deste ano, o Brasil tem 730 mil casos da doença. E apesar do relatório apontar que desde 2000 o país apresenta estabilidade quanto ao número anual de infectados, o Brasil ainda tem 30 mil novos casos por ano. Portanto, como será que as pessoas portadoras do vírus da aids lidam com o sexo? Será que há barreiras físicas ou psicológicas na hora da relação? Cristina*, 43 anos, dona de casa e natural de Porto Alegre, convive com o vírus da aids há aproximadamente 13 anos. Soube que era portadora a partir da descoberta da infecção de seu filho, que adoeceu quando tinha pouco mais de um ano de vida e morreu em 1998 com três anos de idade, vítima das fragilidades causadas pelo vírus do HIV. Cristina imagina que tenha contraído a doença através de relação sexual com o pai do seu filho, também falecido. Dois anos mais tarde, num consultório de uma médica especialista em HIV, conheceu o seu atual companheiro, Felipe*, 50 anos, técnico em manutenção predial, que também contraiu a doença através de relação sexual com uma ex-parceira. Hoje, ele tem uma situação mais controlada do que a da atual companheira. É apenas portador de um vírus que nunca se manifestou, então não toma nenhum tipo de medicamento e faz exames periódicos semestrais para acompanhar a doença. Felipe conta que o pior é a pressão psicológica na descoberta da doença. “Quando fiquei sabendo que estava contaminado, a expectativa de vida era de três anos. Já faz mais de dez que convivo com isso.” E lembra que uma boa estrutura familiar é importante, mas, se a pessoa coloca na cabeça que está derrotada, de nada adianta o apoio dos familiares. “Ou eu me entrego, ou começo a pensar que estou bem e continuo sendo a mesma pessoa que sempre fui. Eu vou lutar”, revela Felipe. Quando o assunto é sexo, ambos entendem que levam uma vida normal e não vêem limitações a não ser o uso do preservativo. Mesmo os dois

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sendo portadores do HIV, explicam que têm tipos e quantidades diferentes do vírus e um contato sexual pode ser prejudicial para um ou para ambos, na medida em que podem surgir novos tipos virais ou replicar a quantidade dos já existentes. Portanto, o uso do preservativo se faz necessário em 100% das vezes. “No início eu me incomodava muito com a camisinha, pois a sensibilidade não é a mesma, mas há diferença entre um sexo casual e o sexo por amor, onde se tem uma preocupação com a parceira. Então, é sagrado, sempre usamos”, revela Felipe. Para o sexo oral eles utilizam papel filme, pois a saliva em contato com os órgãos genitais também é um meio transmissor da doença. Para eles, a sexualidade é algo normal. O fato de serem portadores do vírus da aids não traz limites à intimidade do casal.

Quando apenas um tem o vírus

Roberto*, 35 anos de idade, 15 deles acostumados a conviver com o vírus da aids, se contaminou a partir de uma relação sexual. “Eu usava preservativo apenas com as desconhecidas, com as conhecidas eu achava que não precisava”, admite. Este descuido lhe deixou a beira da morte. Teve meningite seguida de pneumonia e, durante três meses, a sua vida se resumiu a permanecer 24 horas por dia num leito hospitalar. Hoje, passados 20 anos, Roberto tem uma saúde estável. Diariamente, quatro comprimidos são ingeridos com o propósito de vencer a doença e, de quatro em quatro meses, faz exames para acompanhamento. Há 10 anos, Roberto assumiu um relacionamento com Cláudia*, com quem mantinha amizade desde os tempos de infância. Hoje, ela tem 40 anos e um único filho adolescente de 17. Quando resolveram viver juntos, ela estava separada havia seis anos e o filho tinha apenas sete. “Na época, lembro que fui procurar o GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção à Aids) e me disseram que a expectativa de vida dele era de 10 anos. A força de vontade que ele sempre demonstrou me motivou a tomar a decisão de ficar com ele”, conta Cláudia. E a força de vontade de Roberto é expressa quando ele relembra os momentos difíceis que viveu: “Voltei para casa de cadeira de rodas e hoje vivo muito bem. Ou eu esperava a morte chegar ou vivia bem. Fiz a segunda opção. É preciso sempre colocar um objetivo na frente. Sem objetivos, não há motivo pra viver. A Cláudia é um desses motivos”.

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Em determinado momento do relacionamento, pensaram em ter filhos, mas logo desistiram da idéia. Roberto revela que a lavagem de esperma, feita para separar os espermatozóides com HIV, não é realizada pela rede pública, portanto, custa muito caro. Além da inviabilidade financeira, temem pelo risco de contaminação. “Temos os sobrinhos e os nossos dois cachorros que suprem esta necessidade”, revela Cláudia, em meio aos risos. Roberto ainda acrescenta que o estilo de vida que o casal tem hoje não comportaria a presença de uma criança. Na hora do sexo, entendem que não sofrem limitações de qualquer natureza. O uso do preservativo em todas as relações já é uma rotina do casal. Roberto entende que todos têm que se cuidar e não somente aqueles que têm o vírus. Porém, mesmo aparentando tranqüilidade ao falarem do risco de ela contrair a doença, ambos admitem ficar muito apreensivos toda vez que Cláudia tem que fazer os exames periódicos. “Tenho muito medo do resultado”, afirma Cláudia. “Eu me sentiria muito culpado se ela contraísse o vírus”, complementa Roberto. Uma vez estourou o preservativo e o medo que já é grande se tornou ainda maior na hora do exame, mas para alívio de ambos, nada constou. Os limites sempre existem, em toda e qualquer instância. No sexo não é diferente. Na maioria das vezes, as limitações são impostas por causa de tabus, de preconceitos, de preocupações que podem ser minimizados através do diálogo. Afinal, o que todos buscam não é ser feliz? Então, o sexo é uma parte importante na busca desta felicidade. Portanto, desnude-se de preconceitos, tome os devidos cuidados e dedique-se ao sexo como algo valioso na sua vida. *Os nomes foram trocados.

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[sĂ­ndrome]

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Certo alguém na

Terra do Nunca Quem nunca sentiu vontade de voltar à infância para reviver algum momento bom? Esse sentimento é normal, o problema é continuar vivendo como criança na idade adulta

[texto: Fahra

Q

uem nunca desejou reviver algum momento da infância? Sentir novamente um cheiro ou reencontrar alguém que já não está ao seu lado? Este sentimento é normal. Isso é o que chamamos de saudade. Entretanto, algumas pessoas não conseguem aceitar a sua idade, tendo um comportamento infantil, sem responsabilidades e agindo de maneira imatura. Esses podem estar vivendo a síndrome de Peter Pan. Essa síndrome foi aceita pela psicologia após a publicação de The Peter Pan Syndrome: Men Who

Wittée]

[fotos: Bruna

Conforte]

Have Never Grown Up, ou “síndrome do homem que nunca cresce”, escrito pelo médico Dan Kiley em 1983. Um sucesso também entre o público, o livro de auto-ajuda foi um dos mais vendidos na história. O nome da doença é baseado no personagem da Disney que não aceita crescer e vive num mundo irreal. Para a psicologia, esse mundo é criado por pessoas que não assumem responsabilidades da vida adulto. A psicóloga Maria Estelita Gil comenta que a maioria dos homens apresenta na adoles-

cência sintomas dessa síndrome: “Eles fazem isso por resistir às mudanças impostas pela sociedade, de que meninos após os dezoito anos viram homens, e com a idade já devem ser responsáveis, maduros. Mas, na realidade, isso não funciona bem assim”. Alguns homens não assumem um relacionamento a sério por acreditar serem novos demais para tal, agindo de maneira imatura. Em análise: essa pessoa quer viver como homem, mas com o comportamento de uma criança. “Desejar voltar à infância para reviver alguns mo-

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[síndrome] mentos é normal. O que não é aceitável é viver como se fosse ainda uma criança aos 30 anos de idade”, diz Estelita. A psiquiatria e a psicologia não caracterizam essa síndrome como grave, mas sabem que esse comportamento pode dificultar a vida dessa pessoa na sociedade e dos que convivem com ela. Segundo Estelita, a doença apresenta algumas características: a pessoa foge de suas responsabilidades e por comodidade não sai da casa dos pais (em idade adulta). Tem pavor a compromissos, usa roupas e acessórios comuns a crianças ou adolescentes, freqüenta baladas ou outros eventos onde o público dominante está longe de sua faixa etária, ou se interessa somente por companhia bem mais nova.

Saindo do imaginário

“Nunca fui do tipo responsável, mas, me destacava como um empreendedor de sucesso. Tenho 24 anos, sou casado e hoje estou esperando meu primeiro filho. Há menos de oito meses, me tornei um homem fiel”, comenta Luiz Carlos*, comerciante paulistano. Para alguns estudiosos, o nascimento do primeiro filho pode significar uma ruptura entre a vida imatura e a madura para alguns homens e mulheres. Luiz, que é filho de uma professora, comenta que sua mãe o chamava de “Peter Pan” quando criança. Mas nunca pensou se isso seria bom ou ruim. “Desde que minha esposa deu-me a notícia que iria ser papai, isso mexeu comigo! Comecei a enxergar que meus comportamentos eram muito imaturos e que deveria agora ser um exemplo para meu filho”, diz Luiz. Entretan-

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to, admite que nunca contará a esposa sobre suas traições. A psicóloga Simone de Andrade trabalha clinicamente no tratamento da síndrome de Peter Pan há três anos. Hoje fazendo mestrado na cidade de Porto, em Portugal, comenta que esta síndrome é uma predisposição de personalidade que o ambiente e a educação podem ou não acelerar. “Uma mãe superprotetora pode auxiliar a desencadear esse tipo de comportamento aos que já possuem a pré-disposição. Há casos em que se desenvolve uma personalidade preocupante”, alerta Simone. A formação do caráter de uma pessoa se inicia no elo familiar. Os pais, segundo a psicóloga, têm o papel fundamental de diferenciar o certo do errado. O diálogo pode auxiliar na construção deste ser em processo de amadurecimento. Aceitar comportamentos imaturos ou agressivos pode fazer com que a pessoa passe a considerar esses comportamentos aceitáveis. “O dever, neste caso, é de que a família incentive desde cedo que seus filhos tenham responsabilidades e assumam seus atos, mesmo errando ou aceitando, mas tendo um elo de responsabilidade e afirmação”, comenta Simone. “As meninas, por motivo biológico, viram mulheres mais cedo. Os meninos amadurecem mais tarde, mas amadurecem. Entretanto, o sexo masculino tem mais probabilidade de ter esta síndrome”, diz. O problema acontece quando alguns se negam a crescer depois de um determinado tempo. “Esse tipo de homem prefere não resolver os problemas. Se precisar, ele resolve, mas ele prefere não ter que fazer isto”, explica Simone.

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Luciane*, 21 anos, estudante de Psicologia de Porto Alegre, comenta que diagnosticou o ex-namorado com a síndrome de Petter Pan. Para ela, a experiência do namoro serviu para alertar que uma pessoa imatura e uma brincalhona têm comportamentos bem diferentes. “No começo ele era um cara legal, o verdadeiro ‘Pateta’, mas depois isso cansa. Você não quer alguém somente para fazer você rir de palhaçadas, e sim um cara bacana, com quem você pode estar em qualquer lugar, a qualquer hora. Falar sobre tudo.” Quando começou a estudar psicologia, percebeu que o comportamento do namorado não era normal. Pode ser natural que haja demora no amadurecimento, mas ele deve ocorrer. “Como meu ex tinha 30, percebi que isso só aconteceria na ‘Terra do Nunca’, por isso recomendei que fizesse um tratamento com profissionais. Ele não entendeu a minha intenção e terminou comigo”, diz Luciane. É importante destacar que qualquer pessoa pode ter a síndrome de Peter Pan, mas não quer dizer que este tenha um diagnóstico de distúrbio mental. O comportamento humano deve evoluir como o passar do tempo, e irresponsabilidade ou imaturidade não devem ser associadas a espontaneidade, felicidade ou qualquer manifestação de alegria. Pessoas que possuem o comportamento de não aceitar a responsabilidade de seus atos devem procurar o auxílio de um profissional. A partir daí, conseguirão enxergar o mundo real. Sem o tratamento, é possível que queiram viver para sempre na “Terra do Nunca”. *Os nomes foram trocados.

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[reações]

No limiar do comportamento humano Pessoas são expostas a situações que as levam ao limite durante todo o tempo. Mas o que faz algumas ficarem paralisadas, enquanto outras agem instantaneamente? [texto: Paulo

Maia]

[fotos: Emerson

N

a madrugada do dia 1° de maio de 2006, o carro do estudante de Publicidade e Propaganda Lucas Braga foi fechado por um Fiat Marea. Dele saíram três homens armados. Durantes os primeiros momentos, o motorista não se deu conta do que acontecia, mas a reação nervosa dos dois amigos que o acompanhavam resumia a situação. Antes de saírem do carro conforme ordenavam os assaltantes, Lucas conseguiu manter a calma e falar aos companheiros para entregarem o que fosse pedido, inclusive o seu automóvel Gol. Momentos depois, estavam os três deitados de bruços no meio de uma das avenidas mais movimentadas

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Machado]

de Porto Alegre, vazia, no início de madrugada do feriado, enquanto os bandidos levavam suas carteiras, bonés, celulares, tênis, relógios e a chave do carro. No entanto, quando os três amigos pensavam estar livres, uma ordem do mais velho dos assaltantes deu certeza a Lucas de que estava diante de uma situação limite: “O motora vem com a gente!” As próximas cinco horas foram marcadas por ameaças, exigências de resgate e incertezas. Até ser solto, às 5h30min, na Vila Safira, zona norte da capital, Lucas ficou preso em um porta-malas ou sob a mira de um revólver: “Me apavorei, achei que fosse morrer”, conta. Nesse período, o foco de sua

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[reações] concentração foi a possibilidade de fugir do cativeiro, aparentemente uma casa próxima ao local do seqüestro. Inclusive no momento em que os indivíduos prenderam suas mãos com cadarços, o jovem deixou-as separadas para que pudesse se soltar. Isso possibilitou a ele retirar um plástico posto em sua cabeça que o asfixiava. Entretanto, continuou com as mãos colocadas atrás do corpo para não denunciar sua vantagem. Sua intenção: fugir, se possível. Durante o período em que esteve sob domínio dos seqüestradores, o estudante passou por diversos momentos marcados pela tensão. Como nas duas oportunidades em que foi colocado de joelhos e ameaçado de morte ou quando obrigado a falar por telefone com familiares como pedido de resgate e prova de sua condição física. Durante o pagamento do resgate, os bandidos notaram a presença de policiais à paisana no local combinado. Com isso, a sentença de morte foi decretada para ele e, por telefone, para os familiares. Mesmo no momento em que foi solto, Lucas temeu que cumprissem a promessa e lhe alvejassem pelas costas: “Não consegui olhar pra trás”. O caso do estudante não é exceção. Todos os dias acontecem seqüestros, assaltos, brigas, acidentes e desastres naturais. Em todas essas situações, pessoas são levadas aos seus limites e obrigadas a, de alguma forma, reagir. Entretanto, essas reações dificilmente são as mesmas. “Pessoas expostas a situações limites reagem de forma individualizada. Assim como algumas têm comportamento impulsivo – agredindo ou fugindo –, outras ficam paralisadas”, conta o psiquiatra forense Rogério Cardoso.

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Para ele, o próprio conceito de limite não pode ser aplicado da mesma forma para todas as pessoas: “Por exemplo, observamos que algumas pessoas assaltadas mantêm a calma, sugerindo que esta situação, mesmo limite, foi interpretada de maneira administrável. Outras reagem de forma que caracteriza ter sido, o evento, além da sua capacidade para enfrentá-lo”.

Primeiro sinal

O julgamento do quanto a situação pode ser considerada ameaçadora depende da interpretação pessoal. Segundo a psicóloga Luciane Piccoloto, do WP Centro de Psicoterapia Cognitivo-Corporamental, a estrutura cerebral chamada amídala é o local responsável pelo primeiro sinal em uma ocasião de perigo. “É uma estrutura bem primitiva, presente também nos animais”, afirma. Este caráter instintivo será racionalizado, ou não, de acordo com a ocasião, no lobo frontal, estrutura mais avançada, passando por um circuito no encéfalo. “Um acidente de carro pode ser encarado como uma situação tranqüila ou complicada. O que vai fazer com que se seja racional são as emoções. Se a minha ansiedade for muito alta, provavelmente não vou conseguir fazer nada”, revela. Segundo a abordagem cognitivo corporamental, utilizada pela profissional, algumas pessoas conseguem agir de forma racional, altruísta ou com menos ansiedade e desespero das demais, por conseguir dissociar o afeto e as emoções da situação. Em alguns casos, pacientes relatam “se ver” ao realizarem alguma ação, como se estivessem fora do corpo. “Essas emoções fazem falta, no sentido de

que devem ser vividas em algum momento”, afirma. Podem aparecer sintomas como o não esquecimento do fato ou a sensação de não passagem de tempo: “Coisas que aconteceram há cinco anos são vividas como se acontecessem hoje. Porque o cérebro não fez o processamento dessa informação”. O ser humano é biologicamente preparado para enfrentar situações difíceis em nome da necessidade mais básica, a sobrevivência. “Nosso organismo em geral e nosso cérebro em particular têm a função primordial de nos manter vivos. Por isso, temos todas as funções corporais e capacidades integradas pelo encéfalo”, revela o psiquiatra Cardoso. Para isto existem mecanismos biológicos e instintivos chamados de “luta ou fuga”, que nos capacitam a nos defender, atacar ou fugir, de acordo com as alternativas apresentadas. Segundo o psiquiatra, em determinados momentos poderemos reagir de um modo mais instintivo, não racional, e, em outros, de maneira tranqüila e adaptada à situação-problema. Todas as pessoas dividem essas características que garantem ações em busca da sobrevivência. Os fatores determinantes nessas situações costumam ser multifatoriais. Segundo a psicóloga Luciane, um deles é a vulnerabilidade biológica, que compreende alterações no funcionamento da neuroquímica cerebral e propensão ao desenvolvimento de vários transtornos mentais, como depressão. Além disso, padrões cognitivos relativos à criação, meio social e cultural são decisivos. “As questões de criação e aprendizado criam um conjunto de esquemas e crenças de como temos que reagir”, conta a psicóloga.

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Independente da reação, grande parte dos indivíduos costuma apresentar efeitos após situações estressantes, como a Reação Aguda ao Estresse ou o Transtorno de Estresse Póstraumático, males mais comuns de acordo com os critérios da Classificação Internacional das Doenças (CID-10). Para o mestre em Psiquiatria e diretor da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Jair Segal, eventos traumáticos são “estressores catastróficos fora do alcance da experiência habitual humana”. A Reação Aguda ao Estresse é caracterizada por iniciar logo após o evento traumático e apresentar um estado de “atordoamento” acompanhado de diversos sintomas relacionados a sentimentos conflituosos e desconfortos físicos, como inquietação, dor de cabeça, taquicardia, tontura e tremores. “Em geral esses sintomas têm uma duração menor que 8 horas se o evento for transitório e não devem durar mais que 48 horas”, afirma Segal. Esses sintomas aliados ao ato de reviver persistentemente a situação traumática, por meio de lembranças, sonhos, pensamentos e percepções, caracterizam o Transtorno de Estresse Pós-traumático. “Muitas vezes o sujeito tenta evitar circunstâncias que possam se assemelhar ao ocorrido”, conta o psiquiatra. Pode ocorrer, ainda, a incapacidade de relembrar alguns aspectos do acontecimento e aumento da sensibilidade e excitação psicológicas. Segundo Segal, esses sintomas manifestam-se mesmo após decorrido um mês do evento e podem persistir por seis meses ou mais. “Quando um carro pára do meu lado à noite, já fico com medo”, atesta Lucas.

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[diferenças]

É preciso

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A rotina de individualismo, impulsionada por um capitalismo envolvente e passível de corrupção, mina as relações interpessoais e torna os sujeitos cada vez mais intolerantes ao seu próximo [texto: Fernando

U

Zanuzo e Daniele Ghidini]

ma rápida passagem pela História comprova que o tema tolerância rende longas discussões desde a Grécia antiga. Heródoto, o pai da História, destacou a repulsa dos gregos pelos bárbaros, só porque estes não eram gregos. As grandes navegações, primeira atividade a estreitar ligações entre diferentes etnias e culturas, acirrou o desrespeito pela diferença. No século XVI, o conflito religioso entre cristãos e protestantes acentuou a importância do tema e derivou o fundamentalismo. O termo, cunhado pela idéia de verdade única, hoje é atrelado ao costu-

[fotos: Fernando

me religioso de alguns países do Oriente. O filósofo francês André Lalande lembra que a expressão permeou as relações na Igreja até que os católicos acabaram por tolerar os protestantes, e reciprocamente. A partir do século XIX, a tolerância estendeu-se ao pensamento livre dos iluministas e, no século XX, embasou o acordo internacional firmado na Carta aos Direitos Humanos, de 1948. O tema é sempre atual e tem até dia: em 16 de novembro comemora-se o Dia Internacional da Tolerância, instituído a pedido das Organizações das Nações Unidas (ONU), um órgão inoperante

Zanuzo]

diante dos conflitos étnicos ainda vigentes, principalmente no Oriente Médio. A tolerância transcendeu os campos religioso, político e moral para se tornar fundamental no cotidiano, definida por Dom Paulo Evaristo Arns como a harmonia na diferença. É a virtude para praticar a paz e a civilidade. É, por exemplo, compreender que o idoso já não tem disposição para ficar em pé no trem e precisa que alguém ceda o lugar. No trânsito, entender que um motorista com pouca experiência talvez possa cruzar nossa frente, sem a intenção de furar a fila. Por isso, não precisa-

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[diferenças] mos buzinar violentamente. A psicóloga, de orientação psicanalítica, Dione Alice Batista afirma que o intolerante é intolerante com tudo, desde nas relações, até no trabalho e com a família. “A pessoa intolerante age pelos instintos e não pela razão”, afirma Dione. Ela destaca ainda que o prejuízo do intolerante vai além do mal contra si, prejudica os outros e pode redundar em doenças psicossomáticas. “Ansiedade, estresse, queda do desempenho funcional, desatenção e descontrole são características de um intolerante”, completa. A especialista alerta que a intolerância pode ser fruto de uma criação muito rígida, de traumas da infância, perdas ou frustrações. Para Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz, PHD em Filosofia, professor do Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Unisinos e coordenador da Cátedra Unesco de Direitos Humanos e Violência, existem dois tipos de tolerância. “A res-

ponsável e a chamada tolerância permissiva. O primeiro sentido implica o reconhecimento da diferença do outro como uma riqueza humana, porém, essa diferença reconhecida não exime ninguém da responsabilidade para com o outro. Já a tolerância permissiva se caracteriza pelo respeito indiferente do diferente. É comum na nossa sociedade liberal. A pessoa é tolerante com todos os outros diferentes porque, na verdade, não se importa o que lhes possa acontecer, significa uma indiferença ética com o outro.” O filósofo lamenta que as sociedades estejam marcadas pela “mercadolatria”, em que os preceitos morais viram pó diante do valor econômico. “O sistema econômico estimula a sensação de liberdade como tática ideológica de sujeição dos indivíduos ao sistema. Todos devem ser tolerantes com modas, novidades, tendências, consumos, estilos. A tolerância permissiva é profundamente estimulada, porque reforça o individualismo indiferente do outro, padroniza os indivíduos nos valores consumistas do sistema e cria a grande ilusão de vivermos numa sociedade com ampla liberdade”, finaliza.

Atenção ao cotidiano

A síndica Deisi tem que resolver os problemas dos moradores de 47 apartamentos

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Em tempos pós-modernos de culto ao individualismo, a tolerância cede progressivamente lugar à intolerância. A relação entre vizinhos de edifício ilustra bem o estágio atual. A secretária Deisi de Amaral confirma: as pessoas não toleram conviver umas com as outras. Há onze meses, ela ocupa o cargo de síndica no edifício Dom José, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. São 47 apartamentos

“ O sistema econô mico estimula a sensaç ão de liberdade como tática ideológica de sujeiç ão dos indiví duos” Castor Ruiz, filósofo

ocupados, em média, por duas pessoas cada. “Tem muita gente boa, mas com algumas não há diálogo. Elas não percebem que todos têm direitos iguais. Cometem erros e exigem punição. Quando erram, não admitem a falha”, conta Deisi, apontando principalmente para os mais velhos. O escritor Martin Norberto Dreher, no livro Fundamentalismo, versou que o trágico nas formulações de nossos dias é que os fundamentalistas são sempre os outros, jamais nós. Geralmente, o primeiro a receber as queixas é o zelador Maurício Groths. Aos 33 anos, há quatro na função, ele conta que já viu de tudo. Episódios mais comuns: um morador coloca a roupa pingando na janela. Quando o dono do apartamento de cima faz o mesmo, reclama do problema. Um dos desentendimentos mais recentes do prédio envolve moradores do nono andar. “Uma moradora abre a janela do corredor do prédio, o outro fecha. Ela vai e abre de novo, ele fecha, sendo que podiam revolver na conversa. Mas preferem vir reclamar comigo”, detalha, resignado, o zelador. O autor da confusão é o servidor público e músico Henrique Guimarães, 47 anos. Mais de uma vez foi visto esbravejando no corredor por causa do vento que entra pela janela, aberta pela vizinha, ex-síndica. “No caso, eu fui intolerante! Mas tem muito a ver com o tipo de vida que a gente leva hoje. É uma paranóia, a pessoa sai para rua com medo

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Uma janela aberta fez Guimarães romper relações com a vizinha

de ser assaltada e aí chega em casa com vontade de brigar com o vizinho. Depois eu pensei com calma na atitude boba que eu tomei”, admite o músico, separado e pai de um filho de 10 anos, sob os cuidados da mãe. Guimarães lamenta a falta de confiança generalizada provocada pela corrupção nos vários setores da sociedade, entendida por ele como um dos fatores responsáveis por fragilizar a tolerância. “As pessoas preferem se fechar numa bolha em vez de abrir a guarda e conversar, sem falar no orgulho de cada um”, conclui. O sentimento do músico reflete, em parte, a postura intolerante assumida por parte das pessoas. A doutora em antropologia, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Ceres Victorino, pondera que a intolerância provém do medo. “Tem a ver com a ameaça. A diferença é intolerável quando desconhecida, gera medo. À medida que a diferença é conhecida, o temor tende a desaparecer”, acrescenta a especialista. A pesquisadora toma como exemplo o homossexualismo. Há pouco tempo, o tema era tabu abso-

luto e carregado de muito preconceito. Graças ao trabalho de organizações e do movimento gay, a homofobia cede espaço ao respeito, mesmo que parcial. A Justiça já homologa casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Viver em coletivo

Do latim tolerare, a expressão significa respeitar o próximo independente de credo, cor, classe social e opção sexual. “Sem exercitar a tolerância, fica difícil viver em coletivo”, chama a atenção o doutor em sociologia e professor do Programa de Pós- graduação em Ciências Criminais da PUC-RS Rodrigo de Azevedo. “As pessoas estão mais fechadas. Se reúnem, mas em grupos menores, em tribos. Esta convivência não dá abertura maior para as diferenças. Os jovens têm gostos e comportamentos específicos, por exemplo, e só aceitam conviver com pessoas que tenham o mesmo tipo de gostos que eles.” Outro fator a considerar é o acelerado processo de comunicação, desenvolvido a partir da tecnologia, que permite contato imediato de qualquer lugar. A miscigenação cultural cibernéti-

ca enfraquece valores e provoca o deslocamento do indivíduo. “Com isso nasce o fenômeno do fundamentalismo contemporâneo: as pessoas acabam se apegando em valores mais tradicionais, até pouco tempo atrás tidos como antiquados, para tentar se proteger e lidar com esta transformação”, pensa ele. O sociólogo defende que é função da imprensa promover o intercâmbio cultural sem preconceitos por meio da divulgação de costumes e aspectos culturais de diferentes grupos. Contudo, cabe ao poder público a responsabilidade de fomentar políticas de tolerância no processo educativo da população. O indicado, portanto, é tolerar. Aceitar que cada um tem um ritmo de assimilar conhecimento e desenvolver atividades. De pensar, amar e agir. Reflita e, se puder, ajude. Mas atenção: tudo tem limite e, como disse certa vez o escritor português, prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, “não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se”. *Produção de fotografia: Emerson Machado

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[arquitetura]

Desafiando o

tempo A cidade universitária que mantém suas principais características medievais [texto e fotos: Eduardo

O

xford não é a cidade mais antiga da Inglaterra, mas abriga e dá nome à primeira Universidade do Reino Unido. Com suas construções, algumas com até 1000 anos, o local desafia os limites do tempo. Seus famosos Dream Spires – detalhes arquitetônicos de formato pontiagudo – e as bibliotecas monumentais são símbolos deste verdadeiro patrimônio histórico que se reconstrói constantemente. Com as várias e freqüentes restaurações, a cidade reafirma suas origens com orgulho. A arquitetura quase milenar da região, conservada em perfeito estado, confere à Oxford esta identidade única. Um simples passeio pelas ruas, repletas de prédios históricos e imponentes, principalmente pelo desenho artístico impressionante da maioria, acaba sendo uma viagem ao passado. Mas e como isso é possível? A verdade é que a maioria daqueles que vão até essa cidade

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Trindade]

universitária não faz idéia das dificuldades que os profissionais de restauração arquitetônica e urbanística têm para romper os limites do tempo e deixar tudo como era no século XV.

Restaurar não é reconstruir

A arte da restauração de um prédio histórico é muito mais que simplesmente deixá-lo novo. É preciso seguir em detalhes, e rigorosamente, o projeto original, incluindo-se nesta exigência a procura por materiais idênticos aos utilizados na época da construção. No caso específico de Oxford, muitos remontam à Idade Média. Para Manuela Aguiar, bacharel em arquitetura pela Universidade de Brasília e mestre em restauração pela Universidade de Roma, o principal desafio dos restauradores históricos é fazer com que o resultado não fique caricato. “Restaurar não é reconstruir. O melhor trabalho de restauração é aquele que

preserva os elementos arquitetônicos originais, sem acrescentar elementos novos que finjam ser antigos. Qualquer intervenção feita na obra original deve respeitar completamente o seu projeto, inclusive na busca dos materiais utilizados na época de sua construção”, explica. É também a própria mestre quem alerta: as maiores dificuldades dos profissionais da área residem justamente em encontrar o material adequado. Muitas vezes o tipo de pedra ou madeira utilizado não ocorre mais em abundância no local como possivelmente ocorria na Idade Média. Ou simplesmente não é mais utilizado pelas construtoras por ser muito caro comparado com outros recursos de construção. E a arquiteta vai além. “Também as técnicas de construção utilizadas devem ser o mais próximo possível daquelas usadas na Idade Média. E isso não é fácil, por mais que se pense em novas tecnologias

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Detalhes arquitetônicos de formato pontiagudo, chamados de Dream Spires, aparecem em várias construções, como a All Souls College

As fachadas da Oxford University Press atestam a união funcional entre o velho e o novo

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[arquitetura] disponíveis, é preciso largálas um pouco de mão e viajar no tempo para se aproximar ao máximo das técnicas que levaram ao projeto original.”

O Velho e o Novo

A Ponte dos Suspiros na Hertford College

Broad Street, uma das mais tradicionais ruas de Oxford

Cabine telefônica com computador e acesso à internet

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A sensação de estarmos vivendo na Baixa Idade Média em Oxford só não é maior pelo contraste, saudável e interessantíssimo, proporcionado pelas novas construções e tecnologias, como as cabines telefônicas com computador para envio de e-mails, ou o acesso aberto à internet wi-fi – conexão sem fio por meio de laptop ou palmtop – em vários pontos da cidade. Basta sentar em um banco qualquer, por exemplo, e acessar seus mails ou websites favoritos, o que, de certa forma, desconfigura a viagem no tempo que as ruas de Oxford proporcionam. A convivência entre o velho e o novo está em todo o lugar. É possível, por exemplo, estudar em Exeter, umas das mais antigas colleges da Universidade, e viver a incrível sensação de ser residente em um prédio universitário fundado em 1314. Mas o mais impressionante é que, ao mesmo tempo, o aluno pode estar conectado via wi-fi, 24 horas por dia, em qualquer ponto da faculdade. E não é apenas a tecnologia e os serviços de comunicação que representam a modernidade e o contraste em Oxford. Construções modernas também dão o ar da graça e se apresentam sem cerimônia em meio a este verdadeiro museu arquitetônico. E o fazem muito bem, por sinal. Na opinião da arquiteta Manuela Aguiar, o convívio harmonioso entre o velho e novo é justamente um dos maiores desafios da arquitetura atual

em locais históricos. “É, sem dúvida, uma das maiores missões do urbanismo moderno. Para isso ocorrer, porém, é necessário bom senso dos arquitetos e construtores. Edificações de épocas diferentes não devem ofuscar umas às outras, como se estivessem competindo. Com um planejamento urbanístico bem feito, as obras modernas podem, inclusive, enaltecer as antigas.” Um ótimo exemplo do cumprimento à risca dessa necessidade de harmonia e funcionalidade entre diferentes gerações arquitetônicas é o complexo da Oxford University Press, editora da Universidade. A entrada original, datada de 1830, com seus enormes pilares na Walton Street, mantém-se intacta, mas recebeu a companhia da parte nova em 1993, na Great Clarendon Street. A fachada envidraçada desta moderna ala contrasta com o restante. Ao mesmo tempo, sua funcionalidade e plena integração com as instalações antigas da editora, no mesmo quarteirão, unem perfeitamente duas construções com praticamente 200 anos de diferença. Sem que uma tente sobrepor a outra. Na opinião de Shaun Crowley, gerente de produto da editora Oxford para a América Latina e Oriente Médio, que trabalha no complexo, a harmonia é perfeita entre as duas alas. Contudo faz questão de destacar que a maioria dos empregados da empresa prefere trabalhar na parte nova, pois esta possui escritórios maiores e permite ar condicionado. Shaun trabalha na ala nova, mas fala da sensação que tem ao passar para o lado antigo do complexo. “Até o cheiro muda. Vai do odor de ar condicionado

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e carpete novo para o cheiro de livros velhos e empoeirados à medida que você passa para as partes velhas do prédio. Em alguns casos, é como se estivessemos voltando no tempo.” Apesar de também preferir trabalhar na ala nova, considera muito especial a sensação de poder caminhar diariamente por locais que mantém praticamente intactas as características de quando os funcionários trabalhavam na confecção do primeiro Oxford English Dictionary. E reforça: “Gosto desta união entre o velho e o novo do jeito que foi feito aqui.”

Sem limites

Todos esses exemplos apontam para uma comunidade avançada tecnológica e cul-

turalmente e que, ao mesmo tempo, mantém-se tradicional e conservadora com relação a sua própria imagem. E na mesma medida em que avança, procura valorizar a história riquíssima de sua cidade milenar. Talvez por essas aparências primordialmente medievais de muitos prédios, Oxford chegue às grandes telas (quadro abaixo) sempre que os diretores pretendem retratar tempos antigos, como a Idade Média, por exemplo. O trabalho cuidadoso de restauração, incluindo a preocupação na busca por materiais idênticos aos da época, ajuda e não deixa dúvidas acerca da resistência efetiva e concreta desta cidade aos limites normalmente impostos pelo tem-

po às construções mais antigas que, em outras cidades, acabam ruindo e sendo substituídas por obras modernas. Mas possivelmente não seja apenas o serviço de qualidade desempenhado pelos restauradores que faz com que o local seja o que é. Sua forte ligação com o passado e o orgulho do povo com sua história milenar reforçam suas características históricas constantemente. Oxford é, por tudo isso, uma cidade mágica que preserva sua arquitetura original de forma impressionante, sem abrir mão do futuro que, aos poucos, vem chegando e se misturando com o passado. Sempre de maneira harmônica e funcional, desafiando os limites do tempo.

A sétima arte em Oxford I nspiração para muitos autores, como C.S. L ew is e J .R .R T olk ein, além de L ew is Carroll, Oxford empresta seu ar medieval para dar vida à boa parte da escola dos bruxos mais famosos do mundo: o castelo de og arts, dos filmes de H arry Potter, de J .K . R ow ling. As cenas mais marcantes foram filmadas rinci almente em dois locais que são referência turística na cidade ustamente or desafiarem o tempo, mantendo suas estrutras de origem na I dade Média: Christ Church e B odleian L ibrary . O principal ponto de reunião de H arry , seus colegas e professores no castelo do cinema é o salão comunal que, na vida real, é o salão de jantar dos alunos que estudam em Christ Church College. Anteriormente chamada de Cardinal College, a instalação foi originalmente construída para ser uma I greja ( Priory Church) no século X I I , entre

os anos 1 1 7 0 e 1 1 9 0 , e re-batizada pelo rei H enrique V I I I em 1 5 4 6 . F oi, também, aqui que L ew is Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, ou melhor Charles Dodgson ( seu nome de batismo) , lecionou matemática por 4 3 anos e escreveu seu best seller, inspirado em Alice, fil a do reitor enr iddel A famosa B odleian L ibrary , biblioteca central da U niversidade, aberta aos acadêmicos em 1 4 8 8 , também empresta duas locaçõ es marcantes para levar os atores ao passado e trazer às telas o impressionante visual medieval da película. No complexo do século X V são filmadas as cenas da enfermaria onde ermione fica etrificada em Harry P otter e a C â mara S ecreta – e as cenas da própria biblioteca de og arts, em todos os filmes em que esta aparece. É a sétima arte também usando Oxford para romper os limites do tempo.

O Salão Comunal de Potter mantém as características da arquitetura da sala de jantar reconstruída em 1529

A escadaria onde a professora Mc Gonnagall recebe os jovens bruxos no primeiro filme da série

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[consumo]

batalha

A entre a sacola de compras e a razão A necessidade de suprir carências por meio do consumo sem limites pode trazer sérias conseqüências [texto: Juliana

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Jaeger]

odos podem achar um jeito de serem felizes, o problema é saber onde procurar a felicidade. Assim pensava o filósofo Epicuro, que nasceu em Atenas, em 341 a.C.. Seu legado defende que o ser humano não deve se culpar por desejar uma vivência prazerosa e divertida. Mas buscar uma vida feliz é um tema mais difícil do que parece. A essência da filosofia de Epicuro traz a idéia de que as pessoas não sabem bem o que as faz felizes. Nessa busca, muitas vezes, são atraídas pelo consumismo, presente diariamente em suas vidas. Consomese em restaurantes, shoppings, supermercados, em livrarias, em cinemas. Há, porém, quem leve esse hábito ao extremo. O consumo aparece então como uma forma de compensar problemas, carências e a depressão. Sintomas como esses estão presentes na vida da professora Zailda Coirano, 50 anos, que diz ter passado por várias fases consumistas. Quando começou a gostar de plantas, por exemplo, teve mais de 100 vasos em casa. Já teve 23 gatos e oito cachorros. Nos últimos dois anos, comprou pelo menos 15 celulares e mp3, mp4 e mp6. Hoje, ela tem cinco celulares. “Não tenho mais porque dou de presente quando compro novos.” Já para a professora aposentada Simone*, 54

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[fotos: Giovanni

Rocha]

anos, todo e qualquer objeto de consumo sempre foi motivo para seu desejo. Para ela, nunca existiu data ou horário preferido para as compras, bastava entrar em uma loja, shopping ou galeria comercial. “Não comprava uma bolsa porque achava bonita. Comprava a mesma bolsa em três cores diferentes. Ou cinco pares de sapato de uma só vez. Não conseguia sair de uma loja sem levar nada”, afirma. Zailda, moradora da cidade de Diadema, no ABC paulista, e Simone, que vive em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, têm em comum a compulsão por compras, chamada pelos especialistas de oneomania. O comprador compulsivo sente uma necessidade de comprar sem limites. E geralmente vai ao extremo. Porém, depois das compras, aparecem sintomas de depressão e a culpa. “Na hora da compra, fico realizada. Preencho um vazio interior. O problema aparece no outro dia, quando vem o sofrimento, a dor e, principalmente, o arrependimento. Aí vejo que a compra não preenche o vazio nunca”, afirma Simone. Para Zailda, acontece a mesma coisa. “Sinto vontade de comprar quando estou com problemas ou deprimida. Depois, vem a culpa, aí fico mais deprimida ainda”, conta. Para o comprador compulsivo, a utilidade ou

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[consumo] o valor das coisas fica em segundo plano e o desejo passa por cima de qualquer razão. “Quando a gente vê a mercadoria que desperta a vontade de comprar, sente uma necessidade extrema, como se não pudesse mais passar nem um dia sequer sem ela”, diz Zailda. Os problemas, então, começam a aparecer, principalmente entre a família. Para tentar driblar o marido e os filhos, Simone escondia as sacolas em armários, ou as deixava em alguma vizinha para ninguém vê-la entrando com as compras em casa. “Meu descrédito ainda hoje é total com meu marido e meus três filhos”, lamenta ela, que se separou após 30 anos de casamento. Simone relata que um de seus principais problemas foi ter alguém da família que cobrisse suas dívidas. Como professora aposentada, ela afirma que os empréstimos de crédito consignado (com desconto em folha) sempre foram a grande tentação. Certa vez, 99% de sua aposentadoria ficou comprometida com pagamento de bancos e financeiras. Além de comprar coisas para si, Simone admite que seu ponto fraco é querer presentear os outros. “Sei que tenho essa necessidade de comprar as pessoas com presentes, para tentar agradar e deixar os outros satisfeitos comigo”, afirma.

Sob os olhos de Freud

A psicanálise explica o comportamento compulsivo como uma atitude de busca sucessiva e interminável por algo indefinido. A atitude parte de uma inquietação, uma angústia, a necessidade de suprir um desejo. Enquanto a pessoa está cometendo o ato, pensa estar satisfeita, pois, de certa forma, está realizando algo. No entanto, após a ação, aparece a depressão e o arrependimento, pois, apesar de agir, o desejo não foi satisfeito. “Toma-se uma atitude, mas como o desejo é desconhecido, as atitudes não são certeiras e não têm o efeito que teriam que surtir, ou seja, a satisfação. A pessoa, então, volta a agir da mesma forma, por mais mal que faça, para tentar novamente suprir aquela necessidade inicial”, afirma a psicóloga Liege Horst Didonet, que integra o grupo de formação em Psicanálise da Associação Psicanalítica Sigmund Freud, de Porto Alegre. Liege explica que não existe diferença entre ser compulsivo por compras, por beleza, por comida ou por álcool e drogas. Tudo parte de uma mesma raiz, que é a pessoa ter ou não um comportamento compulsivo. E não existe idade para o quadro se manifestar: até nas crianças ele pode estar presente em forma de compulsão por co-

“ S into vontade de comprar quando estou com problemas ou deprimida. Depois, vem a ul a, a fi o ais deprimida ainda” Z ailda Coirano, professora

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mida ou por limpeza. É uma tendência que está inerente à pessoa e pode se manifestar em qualquer estágio da vida. Para a psicanálise, a explicação da compulsão vai muito além do comportamento manifestado. Pode existir, por exemplo, algum fato no passado que seja o ponto de ligação e que está inconscientemente associado à compulsão. “É uma pulsão solta, não-nomeada, que vem desde a infância. Algum desejo da pessoa quando criança pode não ter sido representado da forma correta.” É como quando se tem fome, sede, frio ou sono. As mães atendem aos desejos dos bebês quando eles choram. Eles sabem, inconscientemente, que, chorando daquele “jeitinho”, vão ganhar colo ou comida. Mas se a criança não for atendida, não irá codificar esse desejo, e pode passar a vida em busca de algo que não sabe bem o que significa. O desejo pode ser simplesmente por amor, atenção ou carinho.

Compartilhando o drama

Simone já havia superado um grande problema em sua vida: o alcoolismo. Há 11 anos, ela freqüenta um grupo de Alcoólicos Anônimos (AA). Para ela, uma compulsão levou à outra, apesar de não saber especificar desde quando sofre com o consumo compulsivo. Mas foi o próprio tratamento contra o alcoolismo que a fez iniciar também um meio de combater a compulsão por compras. No mesmo local onde acontecem as reuniões do AA, em Porto Alegre, Simone criou um grupo de Devedores Anônimos (DA). Cinco pessoas que sofriam do problema se juntaram para compartilhar suas histórias. O primeiro encontro aconteceu no dia 24 de agosto deste ano. Um mês depois, Simone percebeu as mudanças: não havia feito nenhuma compra por impulso desde então. “É difícil, sinto muita ansiedade, me sinto triste. A compra me deixaria melhor, com certeza. Mas tenho que seguir em frente.” Já em Diadema, a professora Zailda encontrou outro meio de compartilhar as suas histórias e angústias: criou um blog para tratar da compulsão (compulsiva.wordpress.com). Segundo ela, a idéia do blog era antiga. “Falo da compulsão nesse blog como falo de cinema em outro. Comecei a escrever blogs e acho que já tenho uns 100!”, diverte-se, mostrando um outro tipo de desejo incontrolável. A compulsão por compras pode ser considerada uma doença moderna, assim como o vício pela beleza, pelo trabalho e até pela Internet. Apesar

de o comportamento compulsivo ser algo existente desde que o homem é homem, pois é inerente ao ser humano, à medida que a tecnologia vai avançando, esse tipo de conduta vai assumindo as “caras” do mundo contemporâneo. E nada mais contemporâneo do que o consumismo. As facilidades de crédito e os variados meios de obtê-lo (cheques, cartões de crédito, cheque especial, empréstimos) são tentações para os compulsivos. Um projeto-piloto da Escola Superior de Magistratura da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul (Ajuris) vem tentando ajudar pessoas que enfrentam problemas com o chamado “superendividamento”. Em sua maioria, o programa atende àqueles que contraíram dívidas involuntárias conseqüentes, por exemplo, de separações, falecimentos, perda de emprego, redução da renda ou gastos maiores que a renda. Apesar de não serem os mais freqüentes, casos de compradores compulsivos também são atendidos pelo projeto. Só não são negociadas dívidas por pensão alimentícia, fiscais, créditos habitacionais e decorrentes de indenização por ilícitos civis ou penais. Idealizado pelas juízas Clarissa Costa de Lima, da 2ª Vara Judicial de Sapucaia do Sul, e Karen Rick Danilevicz Bertoncello, da 2ª Vara Judicial de Sapiranga, o projeto-piloto propõe a renegociação da dívida com credores como financeiras, bancos e prestadoras de serviço. O ingresso no programa pode ser solicitado nos diversos parceiros, entre eles o Procon-RS, a Defensoria Pública e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No Procon, por exemplo, são atendidas em média 25 pessoas por mês, sendo que cerca de 80% delas têm êxito na negociação da dívida. Este é apenas um dos vários meios existentes para quem quer se libertar dos problemas ligados ao endividamento e ao consumo excessivo – sejam eles provocados pelo acaso ou por situações que realmente fogem do controle do indivíduo. Pessoas como Zailda e Simone, por exemplo, encontraram seus próprios caminhos para tentar dominar o que tantas vezes lhes pareceu um sentimento incontrolável. Afinal, na busca pela felicidade sempre existirá a batalha entre a razão e a emoção. Mas como já dizia Epicuro, o homem não deve se punir por querer encontrar a felicidade – e ela pode estar onde menos se espera, em coisa simples da vida que, muitas vezes, não custam nada. * O nome foi trocado.

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[religião]

Com o amparo da

Em um mundo onde a liberdade de comportamento é cada vez mais defendida, fiéis afirmam que os limites impostos pelas religiões são uma forma de proteção [texto: Amanda

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Fetzner]

[fotos: Marco

ara quem não acredita, é difícil compreender por que viver a castidade, ir à missa todo domingo ou não aceitar uma transfusão de sangue. Mas a fé não existe para ser entendida e, sim, vivida, com todas suas regras e simbolismos que agregam e também afastam muitos fiéis. O montenegrino Marconi Rodrigues Tavares segue os preceitos das Testemunhas de Jeová. O pai do empresário Marconi se converteu quando o filho tinha cerca de cinco anos. “Eu sou uma testemunha de Jeová não porque ele era, mas porque pesquisei o que a Bíblia diz e vi que tinha fundamento.” Marconi é chamado de ancião dentro da sua Igreja, por ser um dos líderes do

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Antônio Filho]

grupo. Entre as características das testemunhas de Jeová, está a adesão à Bíblia como Palavra de Deus em sua totalidade. E é no momento de interpretar e viver os preceitos escritos na Bíblia que os fiéis acabam mostrando que as crenças não impõem limites, mas apresentam um modelo de vida. Uma das orientações da religião de Marconi é em relação ao uso do sangue. Ele afirma que esta é uma questão polêmica entre os que não compartilham da mesma fé. As testemunhas de Jeová se apóiam em passagens bíblicas para justificar a decisão que parece tão extrema. “A Bíblia deixa bem claro que o sangue representa a vida e a vida pertence a Deus. A testemunha de Jeová

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As testemunhas de Jeová se apóiam na Bíblia para justificar suas atitudes

não come, bebe, recebe ou doa sangue por uma questão de respeito.” Os seguidores também usam a medicina para legitimar a decisão. “Estamos carecas de saber que o sangue é um fator de contaminação.” Marconi enfatiza que as testemunhas de Jeová buscam sempre o melhor tratamento existente, respeitando suas crenças religiosas. “Não fazemos nenhum procedimento cirúrgico que tenha que usar sangue, mas isso não quer dizer que não façamos um tratamento de qualidade.” Segundo o ancião, os fiéis se preocupam tanto com a saúde que foi criada a Comissão de Ligação com Hospitais (Colih), grupo que capta informações sobre o que existe de mais recente no que diz respeito à medicina.

Desta forma, se uma testemunha de Jeová adoece e o médico acredita que é necessária uma transfusão de sangue, por exemplo, a Comissão é acionada para buscar alternativas. “Alguns acham que somos fanáticos e deixamos nossos filhos morrerem por causa disso. Não existe isso, pelo contrário, estamos muito bem informados.” O ancião ressalta que tudo o que a Bíblia menciona visa o bem da humanidade. Ele exemplifica através da doutrina de fidelidade e de castidade antes do casamento. Não seguir estas orientações poderá resultar em divórcio, gravidez indesejada ou doenças sexualmente transmissíveis. De acordo com Marconi, hoje se vive o lema “comamos e bebamos que amanhã morreremos”, ou seja, as

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[religião] pessoas fazem o que querem porque sabem que vão morrer. “No nosso caso, queremos usufruir o melhor modo de vida enquanto estamos vivos.”

Sacrifícios são necessários

Maria Francisca Crocoli Longhi, a Xica, sempre foi “do contra”, como ela mesma define. A caxiense nasceu em uma família católica, estudou em colégios religiosos e se encantava com as passagens do Evangelho, principalmente nas quais Jesus mostrava muita sabedoria. “Elas me deixavam apaixonada.” Há 20 anos, Xica fundou a comunidade Oásis, formada por leigos que consagram sua vida a Deus e se dedicam a evangelização. Para Xica, a religião, como outras coisas, é um processo de descobertas, opções e perseverança. “Eu creio que o que me trouxe ao conhecimento e ao experimento de Deus que eu tenho foi ter perseverado, não ter trocado de Deus e me iludido com tantas coisas que hoje são tão apelativas.” A fundadora da comunidade Oásis se diz muito feliz no que crê, tendo consciência de que toda fé exige sacrifícios. Para ela, os limites impostos pela religião são formas de combater o pecado original, ou seja, a tendência que os humanos têm para o mal. “Limite é colocar a coisa certa, no lugar certo, no tempo certo.” Xica usa o exemplo dos Dez Mandamentos para mostrar que as leis de Deus visam o bem da humanidade. “Que maravilha se todos seguissem esses mandamentos, você não teria medo de assalto, de ser assassinada, não precisaria cadeia, nem armas. Aquele que tem a graça de entender isso não vê o limite como algo mal, que castra, mas como algo que protege.” Apesar da família religiosa e do amor por Deus, o amadurecimento da fé de Xica não foi tão fácil como parece. Ela lembra que, na época em que foi educada, a religião recebida era embasada no medo e na dominação. Por isso, quando casou, deixou a Igreja de lado. “Eu disse: chega de religião, não agüento mais este tipo de coisa!” Mesmo decidida a não obedecer mais aos limites da religião, a caxiense recorda que sentia um grande vazio. “Eu sofria por não ir à Igreja.” Após o Concílio Vaticano II começaram a surgir muitos movimentos, e Xica, juntamente com seu esposo, foi convidada a participar do Cursilho de Cristandade, onde foi retomando sua fé. A católica percebeu que estava acontecendo algo de diferente de tudo aquilo que tinha vivenciado. Já não era mais passada a idéia de um Deus terrível, que anotava todas as coisas e esta-

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Na comunidade Oásis, em Caxias do Sul, os católicos valorizam a simplicidade e o afeto

va sempre atento aos erros das pessoas, mas um Deus que amava. “Demorei muito para entender e experimentar o amor de Deus.” Depois de anos atuando em grupos como Cursilho e Emaús, Xica ingressou na Renovação Carismática Católica, onde nasceu a inspiração da comunidade Oásis. No final do milênio passado, o papa João Paulo II convocou uma grande mobilização visando preparar os católicos para evangelizar. Embora Jesus e o conteúdo da fé permanecessem iguais, era necessária uma nova forma de ser apóstolo, apresentando primeiro Jesus e seu amor às pessoas e, depois, suas doutrinas. Xica foi convidada a participar da primeira escola de formadores para evangelização que ocorreu em 1988, em Goiânia. Durante 15 dias, ela teve contato com fiéis de todo o Brasil e, especialmente, com jovens que pertenciam às comunidades Canção Nova, de São Paulo, e Shalom, de Fortaleza. “Quando eles começaram a dizer a forma como viviam e o que faziam, meu coração começou a bater, pois era isso que eu procurava.” Assim que retornou de Goiânia, ela convidou algumas pessoas e iniciou a comunidade Oásis, em Caxias do Sul. Xica revela que, no começo, foi muito difícil. “O título que melhor recebemos foi o de loucos. Porém, quando vemos os frutos, perce-

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consagração da vida.” O grupo se sustenta através de doações, tanto em dinheiro como em roupas e mantimentos, dos sócios-amigos e da sociedade em geral. A despesa mensal da comunidade, principalmente em virtude das rádios, está em torno de R$ 60 mil. “Em uma terra de muita segurança, nós vemos isso como um verdadeiro milagre. Vivemos uma experiência dos cuidados de Deus.” Além do trabalho com as rádios, a comunidade possui outros serviços, como atendimento em asilo, retiros e escolas de formação. No centro de Caxias, é mantida uma casa onde são feitos aconselhamentos. Em média, 3 mil pessoas procuram o local por ano. “Elas buscam consolo, uma palavra, um novo ânimo.”

Pessoas têm medo da liberdade

bemos que não é loucura.” Segundo ela, houve rejeição por parte do povo, das famílias e da própria Igreja. A fundadora compara a criação da comunidade com um órgão novo transplantado no lugar de um doente, que o corpo leva algum tempo para se adaptar. “A hierarquia era absoluta na Igreja e, de repente, os leigos começam a pregar, se movimentar.” Para Xica, as comunidades são grupos de pessoas que, desde toda eternidade, foram criadas juntas. A caxiense relata que a pessoa é tão sensibilizada na convivência com os demais que desenvolve a capacidade de amar, tolerar, ajudar e se deixar ser ajudado. Na comunidade, vive-se uma espiritualidade e um jeito próprio de se relacionar com Deus, através da simplicidade, da sinceridade e da afetuosidade. Na Oásis, moram 20 pessoas, entre solteiros e casados, que compõem o que se chama de comunidade vida. Outros cinco membros formam a comunidade aliança, que partilham da mesma espiritualidade, mas residem em suas casas. Os membros da comunidade administram e trabalham nas rádios Mãe de Deus (AM 1.370 e FM 107.9). Para isso, não recebem salário, assim como não pagam para residir na comunidade. “Aqui se recebe e se dá a vida. A pessoa faz trabalho voluntário, em termos de lei, mas faz uma

É impossível saber o que leva alguém a seguir uma determinada religião, mesmo quando esta impõe limites e exige sacrifícios que, aos olhos do mundo, muitas vezes parecem absurdos. O doutor com especialidade em Sociologia das Religiões José Ivo Follmann, vice-reitor da Unisinos, tem algumas hipóteses. A primeira delas é que muitos se sentem inseguros diante do desafio da liberdade e buscam amparos para levar uma vida mais sossegada com a própria consciência. Follmann observa que até na política ocorrem processos parecidos. “Quantas vezes, em tempos de maior manifestação da democracia, as pessoas passam a ter saudade dos tiranos e dos ditadores?” O despreparo para o livre exercício cidadão e da condução da existência causa insegurança e pavor, segundo o professor. Também deve ser levado em conta o poder carismático de persuasão que muitas das lideranças dessas religiões têm. A religião passa a ser um bem consumido como um dos muitos ingredientes dentro da vida agitada que se leva e na qual se consome de tudo. “O sucesso das propostas religiosas restritivas se deve ao fato de serem uma espécie de contrabalanço, de equilibrador, face a muitas outras propostas liberalizantes.” Para Follmann, a fé é sempre um ato que lança a pessoa para fora de seus limites. “É como um salto no escuro, mas com confiança, baseada na promessa de Alguém Superior.” Contudo, o que acontece muitas vezes é uma adesão mal digerida ou infantil. Quando a fé vira obsessão, é sinal de que não era algo maduro. “De fato, a fé quanto mais é cultivada autenticamente, mas ela ajuda a libertar a pessoa.”

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[deficiência]

Sem cor, sem som, com vida Duas histórias mostram como superar o que é imposto pelo destino [texto: Vinicius

Brito]

[fotos: Emerson

Machado]

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amila dorme tarde e acorda cedo. É estagiária em jornalismo na Assembléia Legislativa e diariamente chega no início da manhã ao trabalho. É repórter e apresentadora da TV Assembléia, onde escreve e edita suas matérias. Depois do expediente de reportagens nas ruas e ancoragens em estúdio, Camila embarca no trem ou em uma van e vai até a Unisinos para estudar. Quando volta para casa, em Porto Alegre, ainda lê livros, emails e realiza os trabalhos da faculdade antes de dormir. Na manhã, o ritual se repete e ela desperta para mais um dia do seu cotidiano atribulado. Ao lado da publicitária Juliana Carvalho, apresenta o programa Faça a Diferença, que vai ao ar quinzenalmente na TV Assembléia.

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Camila Nunes ĂŠ apresentadora da TV AssemblĂŠia

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[deficiência] Camila Lopes Rodrigues Nunes tem 26 anos e nunca se imaginou fazendo outra coisa. Cresceu brincando de entrevistar irmãos, tios, pais e amigos. Cresceu preferindo notícias das rádios jornalísticas às trilhas das rádios musicais. Nasceu jornalista. Nasceu com uma catarata congênita que evoluiu para um glaucoma. Nunca enxergou. A deficiência a encurralou entre duas escolhas. Trancar-se em casa lamentando eternamente pelo problema ou encarar a realidade que tinha para viver. Ela escolheu a última, com o apoio fundamental da família: “Fui criada para superar limites. Não fui educada diferente dos meus irmãos, e minha mãe nunca me colocou em uma redoma de vidro e nem me prendeu em casa”. Cheia de compromissos profissionais e acadêmicos, os momentos de lazer são cada vez mais raros. Mas quando sobra um tempo, Camila bate papo no MSN, manda recados pelo Orkut, torce pelo Grêmio, passeia no shopping, ouve música, curte uma balada ou vai a um show com os amigos.

No ar

Ela entrou na Assembléia Legislativa em novembro de 2007 para trabalhar como recepcionista no Departamento de Obras e Manutenção. Em junho deste ano, decidiu correr atrás do sonho e buscou uma vaga na área de sua paixão. Conversou com os diretores de Recursos Humanos e virou apresentadora de televisão. O Faça a Diferença promove os direitos humanos e o respeito à diversidade. No ar desde maio, é um arauto que dá voz àqueles que sofrem com o preconceito e lutam para superar os limites impostos pelo destino. Veiculado aos domingos, às 16h, também

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entra aleatoriamente nos intervalos da programação da TV Assembléia, em programetes com dicas de inserção social. Camila dedica a semana inteira ao programa, já que, além da apresentação no estúdio, faz a produção, auxilia na criação do roteiro, na edição das reportagens e ainda atualiza o blog (www.facaadiferencaalrs.blogspot.com). Para entender o volume de trabalho realizado, basta conhecer a definição dela mesmo para sua função: “Eu sou uma faz-tudo, pau pra toda obra”, conta. Mas, antes, a televisão era a última das mídias em que Camila arriscaria construir o seu futuro. A impossibilidade de consumir a imagem, elemento principal deste meio, pavimentava seu caminho mais próximo do rádio e dos veículos impressos. Depois de um estágio de sete meses no site

do jornalista Diego Casagrande, é com enquadramento, iluminação, vinhetas e caracteres que Camila vai alicerçando sua carreira. A apresentadora não se assusta na frente das câmeras. Atenta às instruções dos cinegrafistas, está sempre preocupada com os gestos e com o direcionamento do olhar para a lente ou para o entrevistado, além da maquiagem. Dispensando o ponto eletrônico e o roteiro em braile, ainda fala o texto decorado com serenidade e brilha na tela da TV, com matizes variados que aquarelam a tela de sua trajetória.

Simbolizando palavras

A infância de Ana Luiza Caldas foi feliz. Nascida e criada em Porto Alegre, cresceu brincando com vizinhos, primos e amigos, sempre contagiando com um

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Direito de aprender

O ensino da linguagem de sinais é a especialidade da professora Ana Caldas

sorriso constante. Certa vez, um vento forte fez a porta da sua casa bater com violência, e a pequena Ana continuava sorrindo. O vento virou um forte temporal, com raios e trovões estrondosos, e Ana permaneceu com o sorriso estampado, o que fez sua mãe levá-la ao médico para tentar entender por que ela não se assustava com barulhos tão potentes. O médico diagnosticou surdez profunda, apavorando a mãe, que até aquele momento não tinha informações sobre educação de surdos. Chegou a pensar que a filha era a única pessoa que não ouvia. Passado o desespero, buscou em bibliotecas e órgãos de governo obras sobre educação especial. Em 1970, aos dois anos de idade, a sorridente Ana iniciava os seus estudos na escola especial Concórdia. Quando ingressou na escola regular, passou por dificuldades,

pois os professores não conheciam nada sobre os surdos e a achavam igual aos ouvintes. Em algumas aulas, simplesmente copiava o que estava no quadro sem saber o que estava fazendo: “Parecia que a escola não estava realmente preocupada com a minha aprendizagem. Era um trabalho atrás do outro, mas eu não compreendia nada do que estava em minha volta”, recorda. Apesar dos limites, assim como Camila, Ana Luiza foi sempre estimulada a explorar o mundo: “Meus pais sempre me incentivavam e levavam para conhecer tudo: praça, teatro, cinema, restaurante e outros lugares”, conta. Seus limites de comunicação nunca foram vistos como empecilhos para que ela vivesse. Bem pelo contrário, pois das dificuldades começou a fazer sua vida profissional.

Aos 40 anos e casada há 15, é mestre em Educação e desde 2006 ministra a disciplina de Cultura Surda e Libras (Língua Brasileira de Sinais) no curso de graduação em Pedagogia da Unisinos. Orgulhosa de poder transmitir, interagir e discutir sobre sua especialidade dentro de um ambiente universitário, principalmente na formação de professores, ensina teoria e prática da linguagem de sinais. Oficializada através da lei 10436, de 24 de abril de 2002 e, mais tarde, pelo decreto 5626 de dezembro de 2005, a Libras não é expressa por mímica e nem por gestos. É equivalente a língua portuguesa, pois tem sua gramática e seus parâmetros. Configuração de mão, movimento, ponto de articulação, expressão facial e orientação de mão são como verbos, acentos, pontos, advérbios e adjetivos. Essa singularidade explica a dificuldade de Ana, quando criança, de aprender em uma sala de aula em que era a única que não ouvia. Por isso, tornou-se especialista da linguagem. Trabalha dividindo seu conhecimento e defende que todo jovem tem o direito de aprender em escola de surdos: “O surdo tem o direito de aprender e opinar em língua de sinais para o professor entender o que ele disse. O professor precisa observar o aluno surdo, entendê-lo e provocar o questionamento das atividades”. Sorridente como nos tempos de criança, Ana Luiza vai levando a vida jogando frases pelo ar, por mãos transmissoras de superação. E escreve sua história em silêncio: “A língua é viva. Há vida na língua das mãos”. A mesma vida que está nas imagens de Camila: “Vivo, acima de tudo. E é vivendo que eu vejo a vida”.

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[jogos]

Muitas pessoas não sabem o limite entre a brincadeira e o vício e acabam buscando nos jogos de azar as soluções para seus problemas

Divertimento [texto: Marcio

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Fonseca Azambuja]

ada dia existe um número maior de pessoas que faz dos jogos de azar não apenas um divertimento, mas sim uma fuga de seus problemas. Para a Organização Mundial de Saúde, o jogo patológico passou a ser reconhecido como doença em 1992. Não existe um limite certo entre divertimento e dependência, mas a patologia se caracteriza quando a pessoa não consegue controlar seu hábito de jogar, mesmo a despeito de todos os inconvenientes que isto possa estar proporcionado. Jogar compulsivamente pode causar problemas financeiros, familiares, profissionais, entre outros. Segundo a psicóloga e professora da Unisinos Susana Gib Azevedo, o jogo começa com pequenas apostas, normalmente na adolescência, entre grupos de amigos e familiares, mais freqüentemente com os homens. Em primeiro lugar, o jogo representa desafio e está associado com lazer,

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[fotos: Ângelo

Daudt]

mas, para a psicanálise, ele tem relação com instinto de vida e princípio do prazer. Todas as pessoas buscam satisfação através do divertimento. Os transtornos, no entanto, estão relacionados a um descontrole nessa busca pelo prazer, passando a ser compulsivo, repetitivo e sem adequação. A compulsão e o abandono de certas prioridades levam a perdas materiais e afetivas. Apesar de o vício pelo jogo ser mais comum em homens, isso vem sofrendo alterações. Há um expressivo aumento no número de mulheres que praticam jogos de azar, principalmente devido às mudanças do papel feminino na sociedade. Um exemplo é o caso de Olívia*, 47 anos, que começou a jogar bingo por divertimento em 1989 e, a partir de 1998, passou a ter problemas. “Perdi dinheiro, talões de cheque, cartão de crédito e ficava das 14h até o outro dia pela manhã jogando para tentar conseguir recuperar

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[jogos] alguma coisa. Foram anos de muito jogo e dependência”, comenta.

As fases da doença

Normalmente, o intervalo de tempo entre começar a jogar e perder o controle varia entre um a 20 anos, sendo mais comum num período de cinco anos. Conforme artigo publicado no site oficial do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesf) pela psicóloga Maria Paula de Oliveira, do Ambulatório de Jogo Patológico, existem três fases do jogo. Primeiro acontece a fase da sensação de vitória. Os pequenos lances de sorte vão sendo rapidamente substituídos pela habilidade no jogo, e as vitórias tornam-se cada vez mais excitantes. A freqüência com que a pessoa procura o jogo aumenta e ela manifesta um otimismo nãorealista. Aos poucos, os valores das apostas vão aumentando e a perda passa a ser mais sofrível. “Nos primeiros anos era sensacional, ganhava muito mais que perdia. Depois as coisas apertaram e tentava empréstimos com amigos e financeiras para tentar pagar as contas, mesmo assim continuava jogando”, lembra Olívia. Então vem a fase da perda, caracterizada pelo aumento de tempo e dinheiro gastos com o jogo, bem como o progressivo afastamento da família. O dinheiro do jogo é utilizado para jogar mais, podendo comprometer todo o salário e as economias. Por fim, chega a fase do desespero. Ao perceber o tamanho de sua dívida, o jogador fica sem saber o que fazer. Embora tenha vontade de pagar o que deve, de recuperar a convivência familiar e a reputação junto aos amigos, não consegue controlar o impulso de jogar ainda mais. Nessa fase, por desespero, alguns passam a utilizar formas ilegais para obter dinheiro, ficam fisicamente exaustos e podem apresentar depressão e pensamentos suicidas. “Levei nove anos, de 1998 até 2006, para conseguir pagar todas as contas. Cheguei ao desespero e não sabia mais o que fazer. Por sorte não fiquei distante da família e dos amigos e hoje consigo controlar meus impulsos”, lembra Olívia. Um dos maiores problemas para saber o limite entre o divertimento e a compulsão é que cada pessoa age de uma maneira diferente em relação ao jogo. Não existe uma regra para o descontrole. Normalmente, as pessoas que perdem o controle tendem a esconder e dissimular a dependência e dificilmente reconhecem a gravidade do caso.

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Também existe o fato de que muita gente acredita que dependência só pode ser relacionada ao uso de drogas, o que não é verdade. Segundo a psicóloga Susana Gib, o perfil do jogador em geral é de uma pessoa ansiosa, que tolera poucas frustrações, fantasiosa, com tendência a infantilidade nas expectativas, sonhadora em excesso, por vezes com problemas nas suas relações interpessoais. A maioria das pessoas com jogo patológico afirma que está mais em busca de ação do que de dinheiro e, por causa dessa busca, apostas cada vez maiores podem ser necessárias para continuar produzindo o nível de excitação desejado. Os indivíduos que não têm limites freqüentemente continuam jogando, apesar de repetitivos esforços no sentido de controlar, reduzir ou cessar o comportamento. Para o dependente, ganhar é um reforço po-

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sitivo imediato e perder, apenas uma circunstância aleatória. Ele está sempre na expectativa de ganhar, tal como já conseguiu anteriormente. O jogo pode tornar-se uma grande forma de prazer, podendo vir a ser a única emoção para o indivíduo, principalmente para os mais solitários e desencantados com seu entorno social ou familiar. A euforia do jogo pode ser semelhante àquela induzida por drogas ou álcool. Por sinal, muitas vezes, o dependente do jogo também tem problemas com álcool e outras drogas. No Brasil, ainda não existem dados seguros sobre a dependência de jogos, mas, devido a popularidade crescente dos jogos computadorizados e das casas de bingo, os números não devem ser baixos. O bingo pode ter a preferência por sua conotação cultural, ou seja, reforçada por haver maior aceitabilidade social em relação a

outros jogos, tendo em vista a forma amadora, recreacional ou beneficente. Como se trata de uma doença nova, existe pouca literatura médica sobre os tipos de tratamento para o jogo patológico, mas já há no Brasil alguns grupos de apoio para jogadores, mas a aderência a este tipo de tratamento ainda é muito baixa. “Não precisei de ajuda de medicina ou de um grupo de apoio, eu mesmo consegui me recuperar aos poucos. Hoje ainda jogo, mas em menor quantidade e colocando limites a cada vez que vou à casa de bingos”, garante Olívia. A recuperação sem apoio especializado, no entanto, é muito difícil. Para quem é dependente, um lance pode ser o primeiro de vários que levarão ao fundo do poço. * O nome foi trocado.

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[vida]

Experientes ou não, mulheres se rendem ao dom de ser mãe [texto: Taís

Hatzenberger] Boff]

[fotos: Aline

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nexplicável! É assim que descrevo o momento mais fantástico do ser humano, o nascimento. Acompanhar o parto de Inês Falcad e as semanas que antecederam a chegada do seu segundo bebê foi uma grande experiência. É incrível como em nove meses um ser humano pode mudar tanto a vida de uma pessoa. Talvez esse seja o fascínio de ser mãe, poder experimentar todas essas mudanças: física, psicológica, emocional e muitas vezes reavaliar condutas e valores durante a gestação. Difícil saber quando será exatamente a hora de dar à luz, é o corpo que, ao chegar ao seu limite, começa a sinalizar, mesmo quando esse for programado. É o caso da cesariana de Inês, que estava marcada para o dia 7 de outubro. Mas, em uma ligação repentina, fico sabendo que o parto foi antecipado, já que o bebê estava muito gran-

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O filho de Inês, Otávio, nasceu às 19h do dia 6 de outubro

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de e a mãe começava a sentirse mal. Foi uma correria, como se eu e a fotógrafa fizéssemos parte da família. Com certeza, esse era o grande dia! Após conhecer o casal e até o quarto do bebê, me sentia parte daquele momento. Às 19h do dia 6 de outubro, a mãe entra para o bloco cirúrgico e, com um abraço caloroso, pai e filho desejam boa sorte. Era o momento de conhecer aquele que durante meses fez a mãe chegar ao seu limite. Duvidoso, mas com muita vontade de estar junto de sua esposa, Rogério Rodrigues decide assistir ao parto. Cortes profundos, muito sangue, cenas que chocam, marcam o corpo e deixam para sempre uma cicatriz, mas, como diz a mãe: “A alegria de ver um pequeno ser nos braços supera tudo”. Assim nasceu o personagem principal dessa história, com quatro quilos e 290 gramas, o Otávio. “Esse é meu irmão”, dizia Guilherme para todos que se aproximavam querendo conhecer o recém nascido. O choro era de estremecer, mas quem dá bola para o choro, diante do fascínio de uma nova vida que surge. Lágrimas e sorrisos, gestos que se confundem ao ver aquele saudável bebê, que mudou a vida de sua mãe e mudará a história da sua família. Em dezembro do ano passado, quando foram para o Rio

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de Janeiro passar suas férias, Inês e Rogério decidiram dar um irmãozinho para Guilherme. Esse era o presente de aniversário que ele havia pedido. As primeiras mudanças ocorreram nos seios, que começaram a crescer. Depois, o quadril ficou mais largo e, após os três primeiros meses, começou a engordar. “Não senti enjôos, nada disso, me sentia poderosa.” Não teve desejos, mas muita azia, que no final da gravidez ficou mais intensa, devido a posição do bebê, que pressionava a válvula do estômago. Da primeira para a segunda gestação, teve muitas diferenças. Na primeira sentiu muita câimbra, engordou 15kg, não teve manchas, nem estrias. Já na gravidez do Otávio, apareceram muitas espinhas, o que a surpreendeu, e outras mudanças no corpo a fizeram acreditar que era uma menina. Mas a ecografia mostrou que seria um menino, companheiro de futebol do Guilherme. As mudanças emocionais foram muitas. Mesmo sendo mãe experiente, a sensibilidade ficou à flor da pele. Inês conta que chorou muito sem motivo, ao mesmo tempo em que se sentia feliz, também ficava triste. Como representante comercial de acessórios para calçados, ela costuma se relacionar com muitas pessoas. Isso

faz com que sua rotina diária seja muito intensa, mas, mesmo com um enorme barrigão, deixou de trabalhar apenas nas duas últimas semanas. No decorrer da gestação, muitas dúvidas surgiram: “É importante saber que, quando se opta por se ter um filho, a maior responsabilidade é da mãe, por mais que o pai seja presente em todos os momentos. Detalhes e outras situações dependem exclusivamente da mãe, e por isso muda muito para a mulher”, ressalta Inês. Quanto a forma de educar o filho, ela diz que algumas coisas irá procurar não repetir, como é o caso de ser muito rígida na educação. Embora considere seu filho de dez anos muito amável, talvez a firmeza na educação pudesse ter sido menor. A vida financeira atual mudou muito comparada há dez anos. O primeiro parto foi pelo SUS. Desta vez, deu à luz em um dos melhores hospitais de Novo Hamburgo. No entanto, para ela o amor e dedicação não mudam, independente da situação econômica. “A criança não quer um brinquedo novo, ela quer rolar na grama com os pais. Por isso é importante dedicar um bom tempo para o filho.” Hoje, Inês pensa em diminuir o trabalho para se dedicar à família. Abriu mão de fazer muitas coisas quando jovem

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para junto com seu marido adquirir bens duráveis, como sua casa e o carro. Hoje pensa que o importante é manter o que tem e vai dedicar maior parte do seu tempo cuidando do seu maior tesouro, a família. “Não adianta trabalhar, ganhar mais e não ter tempo para os filhos”, comenta. Para o pequeno Otávio, ela deixa um recadinho: “Você é muito bem-vindo, e iremos amá-lo como amamos seu irmão”. E, é claro, o pai Rogério, mesmo sem palavras para expressar momento de tanta alegria, também ressalta: “Que ele seja tão bom quanto o Guilherme. Vamos amá-lo muito”.

Transformações

É incrível, mas tanto faz se é experiente ou não, toda mulher quando engravida passa por situações semelhantes e, no final, se rende a esse espetáculo da vida. Não foi diferente com a mãe de primeira viagem Lozane Furtado Nunes, que também trabalha na área calçadista. Mesmo sendo extremamente metódica, a gestação fez com que mudasse muito. Antes mesmo de saber que estava grávida, as colegas de trabalho e amigas diziam que estava diferente, mas Lozane não percebia nada. Segundo Neila Shneider, ginecologista e obstetra da gestante, muitas coisas mudam no corpo

da mulher de forma gradual. “Muda a expressão corporal, a taxa hormonal, ocorre retenção de líquidos, o abdômen cresce, as mamas ficam túrgidas, preparando-se para aleitar, e também crescem. Há inclusive inchaço”, enfatiza a obstetra. Apesar de querer muito ter filhos, Lozane ainda esperava engravidar no final deste ano, já que em seu cronograma de projetos para o ano de 2008 o bebê era para o mês de dezembro. No entanto, a vida se encarregou de adiantar alguns meses sua agenda, e o bebê nasceu no dia 24 de outubro. Extremamente controlada, lembra de ter chorado poucas vezes em sua vida, mas durante a gravidez ficou uma “manteiga derretida”, como ela mesma diz. Com o passar do tempo, as coisas ficam mais complicadas para as grávidas. Surgem dores nas costas, azia, náuseas, enjôos. Depois, a gestante se acostuma com o barrigão e quer fazer tudo o que era habitual, principalmente se a futura mamãe tem muitos compromissos. Mas é preciso cuidado com os excessos. Além de o corpo atingir o seu limite de elasticidade e seus nervos ficarem descontrolados, o espaço físico do lar também começa a ser modificado e chega ao limite. Lozane precisou fazer reformas em sua casa, construiu um

novo quarto e deu o seu para a futura moradora, já que essa precisa de espaço para todos os móveis e seus brinquedos. Mais uma etapa vencida. Os objetos pequenos nas prateleiras foram removidos, e a decoração cedeu espaço a bichinhos de pelúcia. Mas qual será o nome dessa criança que já fazia tanta bagunça antes mesmo de nascer? O nome dela é Fernanda, mas, segundo o pai, Cleber, será doutora Fernanda. Mesmo gostando do seu trabalho e de sua faculdade, que precisou trancar, ela abandonaria tudo para cuidar da Fernanda, sem hesitar. “Sim, largaria tudo, porque hoje eu estou mais flexível com a vida. Antes eu me preocupava com bens materiais e era muito consumista. Hoje, meus familiares e amigos até se surpreendem comigo, porque estou fazendo tudo conforme eu posso, sem me angustiar”, ressalta. Mesmo sem experiência e com muitas dúvidas, Lozane sabe o que quer para sua filha: “Ser mãe é ter muita responsabilidade. Não quero me vangloriar em ser a melhor mãe do mundo, mas quero ser a melhor amiga de minha filha.” Dores, sorrisos, abraços, lágrimas; uma explosão de sentimentos e ações que surgem. Que a chegada de Fernanda e Otávio tragam mais alegria para essas famílias.

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[realidade virtual]

mundo

online Quando a diversão dos jogos de RPG se transforma em um vício

[texto: Gilberto

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Dutra]

s computadores estão cada dia mais presentes em nossas vidas. Cresce pela cidade o número de cyber-cafés e lan houses, locais onde se pode acessar a internet. Para quem quer comodidade, os preços dos computadores estão mais acessíveis. Junto com a diversão de poder participar de jogos online, existe o fascínio do “mundo virtual”. Na Tailândia e Co-

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[arte de Diego

Senger sobre foto de Daniela Villar]

réia do Sul, jovens morreram após ficarem mais de 30 horas em frente ao computador. No Brasil, ocorreu outro caso sério, um garoto de 16 anos matou seu amigo após uma briga por causa de um jogo de RPG online. Quando Andreia Vilela percebeu que o filho Iago passava muito tempo na frente do computador, procurou saber o que estava fazendo. Ele brin-

cava em um jogo de RPG online, um mundo virtual na internet. Parecia um passatempo ingênuo, mas o garoto que na época tinha 14 anos começou a trocar as noites de sono pelo computador. “Eu começava e não conseguia parar”, lembra Iago. Preocupada, após uma conversa com o filho, Andreia começou a colocar limites. “Ele podia jogar no máximo duas horas”, explica a mãe.

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[realidade virtual] Os amigos também participavam do jogo. Um deles chegava a matar a aula para ficar em uma lan house perto da escola. Acabou perdendo o ano letivo. Quando eles se reuniam, a conversa era sobre o RPG online. Passavam o fim de semana no computador. Após dois anos, alguns amigos ainda continuam jogando. Agora, com 16 anos, Iago prefere namorar e praticar esportes. Andréia acredita que existem fases na vida, mas que os pais devem ter o controle das atividades dos filhos. As conversas e os limites impostos por ela fizeram o filho voltar à vida real. Mas Iago acrescenta um fator importante para sua decisão de parar. Ele se considerava “muito ruim”, não sabia jogar direito e isso o ajudou a desistir.

ros a se conectar ao servidor de Tibia e assim ter privilégios no mundo virtual. O que ele considerava um “jogo ridículo, com gráficos péssimos”, depois que aprendeu a jogar, se tornou um vício. Chegou a ficar 24 horas direto no computador, sem dormir. Durante um tempo, ele e seu irmão, Márcio, jogaram com seu personagem para torná-lo o mais forte do servidor. Para conseguir esse objetivo, se revezavam em turnos de 12 horas cada, mantendo o jogador sempre online. Jonatan costumava ficar com o turno da noite. Esse processo era proibi-

do no Tíbia, mas como outros usuários faziam, tornou-se uma questão de sobrevivência para os irmãos no mundo virtual. Na realidade de Tíbia, existia um grupo de pessoas que dominavam a cidade por serem os mais fortes. Os melhores locais para caçar e treinar eram proibidos para outros jogadores. Era a lei do mais forte retratada no mundo virtual. Quem ousasse ultrapassar esses limites, poderia até ser morto por eles. Essa ação é conhecida por PA (Abuso de Poder). Quando Márcio e Jonatan começaram a jogar, tiveram diversas vezes seus personagens

Senhor de Balera

Jonatan Santos da Silva, com apenas 21 anos, era conhecido por “Jack Walker”, um Knight, guerreiro com um excelente escudo e hábil no manuseio da espada. Era o mais forte e, com isso, senhor da cidade de Balera, onde mantinha a paz com ajuda da sua Guild, grupo de amigos e pessoas de sua confiança. Essa realidade é possível no mundo de Tíbia, um jogo estilo RPG, onde pessoas de todo mundo participam com seu Char, personagens criados pelos jogadores para aventurarse nesse mundo virtual. Jonatan jogou Tíbia por três anos. Nesse tempo, explica que chegou a deixar de sair e se afastou dos amigos. “Era só o computador direto!”, diz. Mudou toda sua rotina para se adaptar ao jogo. Começou a dormir a meia-noite e acordava às 6h para ser um dos primei-

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assassinados e seus pertences roubados. Decidiram, então, ser o mais forte da cidade. Márcio vendeu seu char por R$ 400 e continuaram apenas com o personagem do Jonatan. Em um ano, dominaram o servidor e tinham uma cidade só para eles. “Sendo um jogador forte, ninguém iria querer desafiar, mas sim juntar-se a nós”, explica Marcio.

Ordem na cidade

No tempo em que “Jack Walker”, personagem que os irmãos jogavam, era o mais forte do servidor, a cidade de Balera tornou-se um lugar tranqüilo

para outros jogadores. Marcio e Jonatan criaram uma guild só com amigos e pessoas de confiança. Eles proibiram PA com outras pessoas, mantendo a ordem e a paz na cidade. Tratavam com diplomacia cada caso de desobediência de suas leis, mas, se fosse preciso, utilizavam a força para manter a calma no local. Márcio parou de jogar Tíbia antes de seu irmão, em razão de ter começado a trabalhar e por causa do jogo, que sofreu alterações, o que o desanimou. Jonatan continuou jogando por mais um tempo e, quando resolveu parar, também quis

vender seu char, que na época era o mais forte da cidade. Era proibida a venda no jogo, então anunciou em sua página pessoal na Internet. Após o contato de alguns interessados, acabou vendendo o personagem para um paulista pelo preço de R$ 5.000, depositados em sua conta no mesmo dia. Mesmo depois de parar de jogar, continuou lucrando com o jogo, vendendo o material adquirido nos três anos que jogou. Jonatan não acredita ser um precursor da venda de char de Tíbia, mas tem a consciência de que o comércio na rede ficou mais intenso. Por mais que tenha aprendido inglês, feito novos amigos e comprado um computador com o dinheiro da venda de seu personagem, Jonatan confessa que o jogo foi perda de tempo. “Poderia ter aproveitado minha vida com meus amigos na rua e em festas!”, afirma. Depois de toda sua experiência no mundo virtual, avisa que, se tivesse um filho, não deixaria jogar Tíbia. Hoje Jonatan apenas se diverte no computador e evita jogos tipo RPG, que ele considera “viciantes”. É o que pensava Carlos Alberto da Silva, pai dos irmãos Márcio e Jonatan. Ele explica que não adiantava falar, que chegou a deixar cortar a Internet. Considerava semelhante à dependência de drogas. Lembra que tinha dias que Jonatan não comia, porque não dava tempo. Passava 24 horas no computador. Carlos concorda com todas as declarações de seu filho e tem consciência de que, infelizmente, ele perdeu de viver. “É um tipo de jogo que eu não aconselharia pai nenhum a deixar seu filho jogar!”, resume Carlos Alberto.

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[trabalho]

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Os policiais rodoviários federais enfrentam limites físicos e emocionais na hora dos acidentes e das perseguições [texto: Aline

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Boff e Mariana de Borba]

ocê é capaz de manter a calma diante de uma situação trágica, em que há vítimas fatais e muito sangue? Mais do que isso, os policiais rodoviários federais precisam manter a ordem, controlar o trânsito e ainda acalmar os familiares. O mais difícil, entretanto, é deixar as emoções de lado e lidar com cautela diante de situações limites. “ É necessário um equilíbrio, pois, como policiais, às vezes temos que ignorar o lado emocional”, afirma o policial João Auri Silveira da Silva, 61 anos. Além de limites emocionais, esses profissionais enfrentam limites físicos: passam por cima do sono e do cansaço, encarando jornadas de trabalho de até 24 horas. “Viver no limite é extremamente estafante. Após uma ação de salvamento ou perseguição, sente-se reações musculares pelo corpo todo”, sublinha João Auri, que veste a

[fotos: Mariana

farda há 36 anos. Lindomar de Borba, 45 anos, concorda. Nos 14 anos de profissão, já passou por poucas e boas: “Enfrentei bandidos da pior espécie, me envolvi em tiroteios e sofri ameaças, inclusive na frente de delegados e juízes.” Isso sem falar dos acidentes terríveis envolvendo automóveis, ônibus, motocicletas e caminhões que ambos atendem a cada serviço. Não se pode esquecer dos atropelamentos que, ocorridos nas auto-estradas onde se anda com muita velocidade, quase sempre resultam em morte. Cada serviço, conforme De Borba, como é chamado na polícia, parece uma partida de futebol. O resultado se mostra ao final de cada jogo. “Assim é o nosso trabalho. Como diz o ditado: fé em Deus e pé na estrada.” Por vezes, os policiais arriscam a própria vida em seu trabalho. João Auri nunca es-

de Borba]

quece dos momentos que passou com um colega enquanto faziam a ronda na BR 116 em Sapucaia do Sul. “Fomos informados pelo rádio da viatura de que dois elementos haviam roubado um veículo em Novo Hamburgo e estavam se deslocando pela BR 116 em direção a Canoas”, conta. Ele e seu colega fizeram uma barreira, combinaram a estratégia e aguardaram a chegada do carro. Ao se aproximarem do bloqueio e perceberem a armadilha, quatro bandidos – e não dois, como havia sido informado pelo rádio – desceram do veículo com armas em punho, disparando na direção dos policiais. Houve um intenso tiroteio. “O motorista do carro que meu colega usava para se proteger arrancou assustado, deixando-o na mira dos delinqüentes. Ele levou dois tiros que, por sorte, não atingiram regiões vitais. Eu alvejei um

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[trabalho] elemento e os outros fugiram em direções diferentes.” Uma história marcante para De Borba aconteceu em 1995, na BR 290, a famosa Free Way. Dois automóveis se chocaram e caíram num barranco de quinze metros no município de Glorinha, às 2h da madrugada. Seis pessoas saíram feridas. Na época não havia telefone celular e o rádio da viatura, uma Caravan, não transmitia sinal. “Enquanto meu colega monitorava os feridos no local, eu me desdobrava em quatro viagens, levando as vítimas até o Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre. Todos sobreviveram”, lembra. O policial afirma não temer nada no que diz respeito ao seu trabalho. Porém, sempre reza para chegar em casa e abraçar sua esposa e sua filha. “Sou consciente de que, na minha profissão, tenho hora para iniciar o serviço e não tenho hora para encerrar. Sei que vou, mas não sei se volto”, declara. Na opinião de João Auri, o medo é um remédio para prolongar a vida.

O salvamento

Juliana Paz Ramalho, 20 anos, sofreu um acidente na BR 116 em 1998. O veículo era conduzido pelo seu avô pater-

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no, Osmar Ramalho, no dia 12 de outubro. Juliana conta que o carro estava cheio de presentes para os seus primos, em decorrência do Dia da Criança. Ela estava sentada no banco traseiro do veículo. “As lembranças ficaram muito marcadas na minha memória. Toda vez que passo pelo local, vem um filme na minha cabeça.” A Ipanema, veículo em que estavam, colidiu com um Monza . O choque aconteceu quando Osmar foi sair para a pista lateral da BR 116, próximo a Canoas. “Como naquela época a campanha para o uso de cintos de segurança não era tão forte como nos dias de hoje, obviamente eu estava sem cinto.” Com o choque, a pequena Juliana acabou caindo no chão do carro e batendo a cabeça no banco do motorista. Seu avô teve o braço esquerdo quebrado e alguns cortes no rosto. Além de muita dor, Juliana estava com medo. Emocionada, a jovem conta que parecia estar vendo a luz no fim do túnel com a chegada dos policiais rodoviários federais. Ela afirma não lembrar o que houve com os passageiros do Monza. Juliana estava tensa e os policiais procuraram acalmá-la, pedindo para que ficasse tranqüila, pois tudo se resolveria.

“Parecia que Deus estava com eles. Senti um alívio tão grande ao vê-los.” Juliana e seu avô foram socorridos pelos policiais, que sinalizaram o local do acidente e chamaram resgate. A estudante conta que jamais esquecerá aquele momento em que foi salva pelos policiais. “Agradeço todos os dias por termos uma polícia assim, tão eficiente. Não é à toa que levam o nome de ‘ Anjos do Asfalto’.”

Situações limite

Hoje, roubos de carros e cargas acontecem a todo instante. São centenas de milhares de veículos que trafegam nas rodovias. No meio de um turbilhão de usuários, infiltram-se os delinqüentes. “Quando há necessidade de perseguirmos bandidos em flagrante delito, é sempre preocupante, pois muitos deles dispõem de armamentos mais sofisticados do que os nossos. Então entra aí a aplicação das estratégias de combate que, constantemente, buscamos aperfeiçoar”, detalha De Borba. Em perseguições, não se pode agir por impulso ou emoção . O fugitivo não se preocupa com as conseqüências do seu ato. Então o policial precisa ter cautela, porque, além de

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poder ser alvejado pelos bandidos, há o risco de colidir em outro veículo, de atropelar um pedestre ou perder o controle da viatura. “Sem falar que, ao revidar os tiros, pode-se acertar a um transeunte qualquer”, destaca João Auri. Para ele, não há limites para um salvamento, desde que se faça um planejamento seguro, pois, caso contrário, o policial pode acabar sendo a vítima em vez de salvar a pessoa que está em apuros. “Por ter escolhido essa profissão, por vezes tenho que arriscar a minha vida, desde que seja para salvar a vida de outra pessoa de bem, ou para tirar do convívio da sociedade uma pessoa danosa à própria sociedade”, argumenta. Mas os esforços exercidos pelos policiais rodoviários federais também são recompensados. Por volta do ano de 1980, João Auri estava estacionado com a viatura nas imediações de Dois Irmãos. Uma senhora parou o automóvel, desceu e foi na direção do policial. “Ela disse: ‘Vocês são nossos anjos da guarda quando estamos viajando. Sou uma admiradora do seu trabalho. Quando viajo e os vejo na rodovia me sinto segura’”, lembra o policial. “Foi neste dia que percebi como era importante a minha função”. É por essas e outras que os policiais sentem-se gratificados pelo seu trabalho. De Borba afirma procurar sempre estampar um sorriso no rosto, mostrando a todos que por trás de sua farda existe um ser humano, igual a todos os outros. Quando decidiu ser policial, ele sabia que tinha que ser duro consigo mesmo. Passaria por situações muito complexas: não é fácil, por exemplo, atender um acidente quando a

vida de uma criança se foi. Na hora, De Borba diz reunir forças para suportar o que presencia e ainda confortar as vítimas. Já houve casos em que depois de muitas horas, já em casa, desabou em lágrimas por não ter conseguido salvar uma vida. “Talvez isso seja o pior de minha profissão. Nem sempre conseguimos ser o herói que todos esperam de nós. Às vezes, quando chegamos no local do acidente, é tarde demais. Infelizmente.” João Auri é policial rodoviário há 36 anos

PRF: história e missão A Polícia R odoviária F ederal ( PR F ) existe há 8 0 anos. No começo, com a construção das rodovias, foi criada a patrulha rodoviária: um braço de apoio do extinto Departamento Nacional de Estradas e R odagem ( DNER ) para disciplinar a movimentação dos veículos. Com o passar dos anos, o trabalho foi evoluindo. H oje, os policiais não atuam mais como simples patrulheiros ou guardas de trâ nsito: são polícia de fato e de direito, pois estão presentes e prontos para atuar em tudo o que se passa nas rodovias federais, se a no tr nsito ou nos con itos criminais. O policial J oão Auri Silveira da Silva explica que a função da PR F é orientar, auxiliar, fiscali ar, autuar e dar condiçõ es de trâ nsito para os usuários das rodovias, além de dar condiçõ es de segurança contra os possíveis delinqü en-

tes que estejam trafegando pelas estradas. A evolução no decorrer destes oitenta anos foi tanta que, já no próximo concurso público para provimento de novas vagas no cargo de PR F , será exigido dos candidatos o nível superior como grau de escolaridade. Os policiais, por seu trabalho, acabaram recebendo o apelido carinhoso de “Anjos do Asfalto”. Conforme o policial L indomar de B orba, o nome se deve a toda a história da instituição, que foi congratulada como a polícia mais simpática do país, especialmente pelos salvamentos reali ados ao longo dos anos Além disso, há todos aqueles serviços rotineiros de auxílio aos usuários nas rodovias, sem, contudo, deixarem de ser rigorosos por ocasião do agrante de infrações de trâ nsito cometidos por alguns motoristas.

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Medo

CÍNTIA PEROZZA A experiência em produzir a reportagem para a revista Primeira Impressão foi única. É, além de tudo, mais uma etapa de aprendizagem. Sair a campo é fundamental, pois agrega conhecimento e permite ver na prática, a teoria que aprendemos em sala de aula. A pauta “limites do medo” foi muito interessante e ao mesmo tempo desafiadora. Como fazer? Quem entrevistar? Aos poucos, as idéias foram surgindo e as fontes também. A professora que tem medo de falar em público, o vice-campeão brasileiro de vôo livre que tem medo de altura e a psicóloga que realizou um estudo sobre o tema. As dificuldades foram as esperadas, fontes com horários complicados, mas no final tudo deu certo. O trabalho permitiu conhecer histórias surpreendentes e foi muito satisfatório. Obrigada a todos que contribuíram. [Pág. 6]

Aprendizagem

PRISCILA MILÁN Quando a temática da revista foi definida, optei por fazer uma matéria sobre educação, com foco na aprendizagem baseada no respeito às limitações do aluno. Fazendo uma análise das dificuldades e facilidades na produção da reportagem, aponto como maior obstáculo agendar as entrevistas. Conciliar os horários foi difícil! Contudo, o diálogo com as fontes ocorreu da melhor maneira possível. Todos os entrevistados traziam muita experiência na bagagem e mostraram isso de forma simples e objetiva. Além da experiência profissional, ficou a lição de que não adianta forçar a superação, assim como induzir à acomodação diante das dificuldades. De fato, não há receitas para educar. [Pág. 10]

Loucura

GABRIELA JORGE Um dos pontos mais fascinantes do jornalismo é o fato de que a cada matéria aprendemos coisas novas. Ao pesquisar e falar com pessoas sobre a loucura, acabei descobrindo que ela não existe. Entendi que as doenças mentais são apenas doenças, muitas vezes controladas. É claro que, como uma doença do organismo, cada uma tem a sua gravidade. Por fim, mudei meus (pré)conceitos em relação ao assunto. Um dos pontos altos da reportagem foi conversar com a paciente esquizofrênica. Antes das primeiras palavras, confesso, senti medo. Mas que bobagem! Uma psicoterapeuta uma vez me disse algo interessante que ilustra esta história: existem pessoas que são completamente normais aos olhos da sociedade, mas no consultório apresentam alguma doença mental. Da mesma forma, o contrário também existe. Quem somos nós para julgar. [Pág. 14]

Gula

THAYNÁ CANDIDO DE ALMEIDA A gula sempre foi figurinha carimbada na minha vida. Desde que me conheço por gente, a minha família teve problemas com peso e soluções com a comida. E como a fruta não cai longe do pé, cá estou eu, escrevendo esse texto com um bombom bem na minha frente, insistindo para se infiltrar na minha dieta. Não foi fácil escrever sobre esse vilão que é um perigo iminente na vida de todo mundo que come por prazer ou pra esquecer. E não foi fácil entrevistar uma grande amiga que está só agora conseguindo reparar os estragos que a comida fez com a vida dela. Mas no final deu tudo certo, eu espero que as pessoas se dêem conta de que a comida não pode ser a válvula de escape e nem o foco principal da vida de ninguém. [Pág. 18]

Infância

VANESSA WAGNER Quando defini o tema limites na educação das crianças, busquei os vértices da questão: em primeiro lugar, os pais, como autoridades do primeiro núcleo social da criança; em seguida, a figura do educador escolar e, para completar, busquei a opinião de um mediador de conflito – o psicólogo, para os casos onde a relação de autoridade com respeito mútuo não se estabeleça naturalmente. Educadores e psicólogos são profissionais e, como tal, têm a questão relacionamento com crianças equacionada. No universo dos pais, a relação se estabelece na base da experimentação de erros e acertos. Quando os pais possuem uma boa carga de informação e conseguem construir sua própria receita de rigor e flexibilidade, a formação das crianças sai ganhando e a vivência em outros núcleos, como na escola, se torna menos conflituosa. [Pág. 22]

Solidariedade

FABIANO JUNG A produção da reportagem sobre solidariedade me surpreendeu bastante. Aprendi muito sobre a minha personalidade. Descobri uma realidade abandonada, onde o medo de lidar com pessoas excepcionais é uma grande barreira para a sociedade. O processo de coleta de informações foi impactante, assim como o processo fotográfico. O ambiente me fez refletir, pois é difícil aceitar a realidade dos internos após avaliarmos o quanto eles têm para nos oferecer. É inaceitável acreditar que pessoas tão puras, amorosas e inocentes estejam enfrentando tamanha dificuldade. Admiro o trabalho de todos os funcionários e voluntários que contribuem para o desenvolvimento da instituição, pois realmente não é um trabalho fácil. [Pág. 26]

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Medicina

RITA CARDOSO Quando escolhi fazer a pauta sobre os limites da doença, lembrei da força de vontade do meu pai. Queria mostrar para as pessoas que nem sempre a medicina oferece a resposta certa e muito menos pode determinar o tempo de alguém. Fazer a matéria sobre um ente querido não é fácil. Juntamos o nosso lado de testemunha ocular com o lado de quem convive diretamente com essa batalha. Foi diferente a sensação de entrevistar um médico e ouvi-lo explicar as dificuldades dos pacientes, sendo um desses o meu próprio pai. No início tive receio de que pudesse machucar meu pai relatando essa história. Mas persisti com a idéia de que essa superação e força de vontade deveriam ser publicadas. Quem sabe assim eu consiga levar esperança para alguém. [Pág. 30]

Futebol

LEONARDO ZENATTI A reportagem feita sobre torcidas de futebol traz à tona um tema polêmico. Sendo assim, as reações são as mais diversas possíveis. A maioria das pessoas por mim procuradas prontamente se propôs a conceder a entrevista em relação ao clássico Grenal. As fotos da matéria traduzem bem o que chamamos de paixão no futebol. Tatuagens que marcam a pele dos torcedores para sempre deixam clara a forte presença dos clubes na vida das pessoas. As considerações do professor da Unisinos Edison Gastaldo foram fundamentais para o bom andamento da matéria, travando um diálogo entre paixão e comedimento diante do clássico. [Pág. 34]

Suicídio

JOSÉ EDUARDO COUTELLE A experiência de construir uma reportagem sobre o suicídio teve

valor singular para mim. O fato de poder me aprofundar no tema que sempre tive curiosidade, e por vezes até afinidade – coisa que segundo a psicologia é natural refletir – me deu bagagem sobre o assunto. Contudo, para produzir o texto, me isolei das pessoas que me rodeiam e nutrem algum afeto por mim para sentir o que o psicólogo Mário Corso disse ser o principal fator para o suicídio: o isolamento. A reportagem tenta exprimir o tom correto, nem científico como em um tratado, nem piegas demais como em muitas reportagens sentimentalistas. O resto foi pura pesquisa de campo. [Pág. 38]

Liberdade

ROGÉRIO DO ESPÍRITO SANTO Via uma fonte apenas como um informante, mas não foi assim que aconteceu desta vez. Ao entrevistar o professor João Alberto Figueiró, diretor do Colégio Júlio de Castilhos, que viveu o período de 68, pude perceber sua vivência e senti orgulho por abordar o tema. Esse sentimento se completou com a entrevista do professor Nelson Eduardo Rivero, da psicologia social da Unisinos. Ele abriu os horizontes sobre como entender a liberdade. Seu depoimento trata da liberdade como uma conquista, uma luta, um abandono ao conformismo. Foi muito esclarecedor para mim e tenho certeza que vai surtir o mesmo efeito no público leitor. [Pág. 44]

Imprensa

LEANDRO MOLINA Questionar os limites éticos do trabalho da mídia é uma tarefa que nem sempre fazemos. Há um certo receio em olhar para o próprio umbigo. Talvez isso pudesse fechar portas nas empresas futuramente. A verdade é que a mídia faz um corporativismo implícito. A reportagem sobre os limites da mídia

foi uma oportunidade para lançar um olhar diferente no trabalho dos colegas. A idéia não era fazer uma crítica, apenas compreender um pouco mais sobre a atividade de uma classe que, muitas vezes, ultrapassa o sinal vermelho em nome da audiência ou venda de jornais. Descobri inúmeros casos de erros e exageros da imprensa pelo mundo. Aprender com os erros é a maneira de aprimorar nossa vida e nosso trabalho. [Pág. 48]

Vaidade

LUANA REIS Nesse mundo da imagem, a vaidade ocupa lugar de destaque. Até onde uma pessoa é capaz de ir pela aparência? Procurei casos que fogem do comum e até assustam um pouco pela ousadia. Nesse tema da vaidade, a primeira coisa que precisa ser deixada de lado é o seu próprio conceito de beleza. O bom, e necessário, nesta reportagem foi entrar e descobrir a beleza que estas mulheres enxergam no espelho todos os dias. Criticar o culto estético é muito fácil, mas como ficar imune? Acho que a beleza é algo tão pessoal quanto religião, cada um tem a sua. O limite depende do tipo de relação que temos com a nossa imagem. [Pág. 52]

Raves

CAROLINA SCHUBERT Quando o tema limites foi colocado em pauta, não tive dúvida, minha matéria seria sobre Raves e o consumo de drogas sintéticas. Gosto do tema, freqüento esse tipo de festa, conheço um pouco sobre o universo da música eletrônica. Isso fez com que minhas impressões sobre essa reportagem fossem muito positivas. Quando estamos diante de uma temática que nos agrada, o trabalho se torna um prazer e ultrapassar os obstáculos fica bem mais fácil. [Pág. 56]

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[impressões de repórter] Sexo

LUCIANO GASPARINI MORAIS O sexo é feito de muitas fantasias, tabus, bloqueios e preconceitos. Talvez por isso a excitação em torno do tema. Então, escrever sobre um assunto que desperta muito o interesse de todos é desafiador. Estar a frente de profissionais e falar sobre algo que eles dominam é mais desafiador ainda. Oito foram os entrevistados. Procurei trazer perfis de pessoas que ajudassem a quebrar alguns destes preconceitos e tabus que o sexo traz consigo. Portanto, concluí o trabalho me sentindo bastante gratificado. A cada entrevista, uma lição de vida. Espero que para você, leitor, também tenha sido assim. Desta forma, minha gratificação se torna ainda maior. [Pág. 60]

Síndrome

FAHRA WITTÉE Ao iniciar minha reportagem sobre a Síndrome de Peter Pan, conheci a realidade de pessoas que sofrem, mesmo sem saber, dessa doença. Após terminar meu trabalho, fiquei feliz ao perceber que consegui compor uma reportagem de fácil acesso. Qualquer pessoa, independente do nível de escolaridade, pode compreender o que quis transmitir, ao contrário das matérias sobre saúde, que normalmente vêm carregadas de jargões médicos, com códigos indecifráveis aos leitores. Agradeço a oportunidade de estar presente nesta edição e poder informar a todos sobre esta realidade que muitos desconhecem. [Pág. 66]

Reações

PAULO MAIA Aprender aspectos sobre a natureza humana sempre é interessante. Foi exatamente o que aconteceu ao falar com especialistas sobre os motivos que levam determinadas pessoas a terem diferentes rea-

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ções em situações que testam seus limites. Além disso, foi interessante reviver uma situação traumática acontecida há algum tempo, pois o personagem, o seqüestrado, é um grande amigo. Talvez o mais rico nesta matéria tenha sido repensar o próprio conceito de limite, ver que, inclusive isso, é relativo. A forma como as pessoas enxergam as situações é ponto determinante. Somos obrigados a decidir através da soma de todas as experiências passadas, de toda a carga cultural e social, em milésimos de segundo, se uma situação pode ou não representar perigo real; se estamos no limite. Mas, afinal, qual é o limite? [Pág. 70]

Diferenças

FERNANDO ZANUZO E DANIELE GHIDINI Insistimos no tema (in)tolerância a partir da observação do comportamento de pessoas próximas. Não é fácil lidar com as diferenças, agüentar atitudes que nos desagradam ou simplesmente entendermos que nem todos têm a mesma capacidade. É comum nossos vizinhos mal se falarem. Por quê? A intenção da matéria foi buscar respostas e assim abrirmos o pensamento para um tema em discussão há séculos, porém, pouco refletido no dia a dia. Depois de entrevistarmos especialistas, percebemos que é preciso reciclar o pensamento. Tentar entender os motivos que levam o próximo a ter determinada atitude, antes de chutar o balde e criar caso. Enfim, é preciso tolerar, mas sem ser conivente com a má fé. [Pág. 74]

Arquitetura

EDUARDO TRINDADE Fazer a reportagem sobre Oxford foi extremamente divertido e empolgante. Tive a oportunidade de conhecer um lugar de outro mundo e saber um pouco mais

sobre as dificuldades em manter uma cidade com visual medieval por mais de 500 anos. Nunca havia estado na Europa e confesso que em Oxford as primeiras impressões que tive foram, como coloco na reportagem, de ter voltado no tempo. A viagem ao local ocorreu em agosto passado e, obviamente, não tinha como principal meta a reportagem, já que fui a estudo. Mas com a oportunidade de escrever algo sobre limites, um local como aquele, que desafia constantemente os limites do tempo, não merecia ficar de fora. Outro ponto que me causou extremo prazer foi poder fazer também o papel de fotógrafo e ser responsável pela reportagem inteira. Espero que gostem. [Pág. 78]

Consumismo

JULIANA JAEGER Escrever para a Primeira Impressão foi um grande exercício de persistência, em que aprendi a importância de saber lidar com o fator “tentativa-e-erro”. Fiquei mais de duas semanas atrás de uma fonte que eu considerava essencial e para quem eu ligava praticamente todos os dias ao chegar em casa, mas não a encontrava no trabalho e nem no celular. Quando ela respondeu a um dos tantos e-mails que havia enviado, soube que ela estaria ocupada demais para uma entrevista. Mesmo decepcionada, segui em frente. Para minha surpresa, fui achar, onde eu menos esperava, a personagem que faltava para dar vida a minha matéria. Foi como encontrar o “pote de ouro”! Não é à toa que, além da técnica, a sorte e o lema “não desistir nunca” são essenciais para o trabalho de qualquer jornalista. [Pág. 82]

Religião

AMANDA FETZNER Sou católica e, como as pessoas gostam de caracterizar, “pratican-

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te”. Portanto, logo o tema fé me interessou. Para tentar fugir da mesmice, fui a Caxias do Sul conversar com a fundadora de uma comunidade católica. Em uma segunda à tarde, perdi algumas horas de serviço (com a permissão do chefe) e encarei três horas de ônibus. Fui muito bem-recebida em um 21 de setembro, durante uma comemoração Farroupilha com carreteiro de charque. Pernoitei no alojamento das meninas e, na manhã seguinte, já estava em um outro ônibus (com o mesmo motorista). No outro dia, foi preciso sacrificar uma aula de música para entrevistar um ancião testemunha de Jeová. Por quase uma hora, todos os meus questionamentos foram respondidos com igual simpatia e paciência. Assim também aconteceu com o professor, teólogo, vice-reitor e padre José Ivo Follmann, que falou sobre esta relação entre limite e religião. De tudo que vi e ouvi, a impressão que ficou foi que, independente da crença, o importante é estar em paz com os outros e consigo mesmo. [Pág. 86]

Deficiência

VINICIUS BRITO Sei que a percepção auditiva dos deficientes visuais é apurada. Mesmo assim, fiquei impressionado quando fui convidar a Camila Nunes para ser personagem da minha reportagem e ela me identificou antes mesmo que eu me apresentasse. Não nos falávamos há mais de um ano e, antes disso, não precisaria de todos os dedos de uma mão para contar as poucas vezes que conversamos. Confesso que estava preocupado em falar sobre os limites impostos pelas deficiências. Que termos usar? Como perguntar? Mas a Camila não permite qualquer constrangimento e, com muita naturalidade, conta sua história, recheada de superação. Liguei o gravador e o papo fluiu,

com as impressões da Camila sobre a sua vida, uma verdadeira lição de felicidade. [Pág. 90]

Jogos

MÁRCIO FONSECA AZAMBUJA Não houve grande dificuldade de fazer a reportagem. Primeiramente, entrei em contato com duas psicólogas para colher informações e solicitar material bibliográfico para coleta de dados. Após analisar alguns materiais e escrever sobre eles, também fiz entrevistas com as profissionais que comentaram e abordaram assuntos relativos ao limite que me interessava: dependência, atos e personalidades de pessoas que têm ou podem ter problemas com Jogos Patológicos. A única parte difícil da matéria foi localizar e achar alguém que comentasse sobre os problemas que teve com os jogos de azar, já que não é algo que muitos gostam de falar. O que a reportagem mostra é que este assunto não é algo incomum e que muitas pessoas sofrem deste problema no mundo e cada vez mais jogam no Brasil. [Pág. 94]

Vida

TAÍS HATZENBERGER Participar de um dos momentos mais inesquecíveis de uma família é muito bom. O nascimento é um desses momentos. Fazer parte dos últimos instantes de uma gestante e conhecer seus planos, desejos, medos e realizações foi necessário para que eu pudesse expressar toda a emoção dos nove meses e o seu limite: o parto. Quero ressaltar que, para o resultado final do trabalho de um repórter ser um sucesso, é preciso ter um fotógrafo que abrace a pauta e tenha o mesmo entusiasmo. É o caso da colega Aline Boff, que, com muita dedicação, fotografou todos os detalhes do parto. A intenção era apresentar esforço, mudanças, transformações, mas também o

prazer que uma mulher tem de ser mãe. Parabéns para todas que optam pela maternidade, a dedicação de vocês é exemplar! [Pág. 98]

Realidade virtual

GILBERTO DUTRA Por mais experiência e conhecimento de jogos online, adquiridos desde os tempos de internet discada, descobri que não era o suficiente para fazer a matéria. Foi ótimo para ter um ponto de partida, mas no mundo digital seis meses é tempo suficiente para ficar totalmente desatualizado. Lembrei dos meus tempos de RPGs. Poderia ter sido eu um dos personagens da matéria. Mas toda reportagem também tem seu lado divertido: estava entrevistando dois irmãos, quando atravessa pela sala o Roberto Carlos. Era o pai deles. Conhecido “cover” do cantor. Por mais que você saiba que não é ele, acaba levando um susto. Hoje posso dizer: “Eu entrevistei o ‘Rei’!” Ou pelo menos o sósia dele.[Pág. 102]

Trabalho

ALINE BOFF E MARIANA DE BORBA Escrever uma reportagem sobre policias rodoviários federais foi superinteressante e nos trouxe muito aprendizado. Conhecemos mais sobre a profissão e sobre o dia-a-dia desses anjos do asfalto, que dedicam suas vidas a salvar outras. Muito atenciosos, nos receberam de braços abertos e com um sorriso no rosto, sempre dispostos a responder nossas perguntas e contar histórias. Histórias, aliás, dos mais variados tipos. Cada policial com a sua própria experiência na estrada, despertando ainda mais nossa curiosidade como repórteres. Encontrar alguém que foi socorrida pela PRF também foi importante para o nosso trabalho. Mostrou o quanto a atuação dos policiais pode marcar uma vida que foi salva. [Pág. 106]

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[impressões de fotógrafo] 114

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ALINE BOFF

A experiência de fotografar um parto com certeza foi muito marcante. A ansiedade, a expectativa, a curiosidade e o medo foram sentimentos que estiveram presentes o tempo inteiro, mas a sensação de felicidade e de dever cumprido foram os mais marcantes, sem dúvidas. Este dia não será esquecido, muito menos apagado da memória, pois além de tudo serviu para o meu crescimento como pessoa, assim como serviu para revermos muitos conceitos sobre vida.

DANI BITTENCOURT

Não é sempre que nos sentimos preparados para uma tarefa. Sobre as fotos para a Primeira Impressão, eu não me sentia. Mas, já que seria um desafio, que ele fosse o maior possível. Foi assim que escolhi as pautas sobre os limites da doença e da aprendizagem, das colegas Rita de Cássia e Priscila Milán. De fato, não foi fácil: assumir-me como fotógrafa e mostrar, em imagens, que todos têm a capacidade de aprender; ignorar a dor alheia ao entrar em uma UTI, ou passar duas horas no setor de emergência de um hospital. Mas, sendo fácil, talvez não fosse tão gratificante.

GIOVANNI ROCHA

Ambas as pautas – consumismo e medo – chamaram-me a atenção pela necessidade de se trabalhar com mais criatividade, em ensaios especiais para cada um dos assuntos, do que procurar por flagras. Para a matéria sobre consumismo, fotografar manequins legítimos foi uma experiência interessante e certamente irá pautar algum trabalho meu no futuro. Tive a oportunidade de criar condições que necessitaram muito do controle da luz para chegar ao resultado final. Medo foi um desafio por ter sido meu primeiro ensaio dirigindo modelos, que dessa vez eram vivos. Pedir expressões faciais e corporais que fizessem relação com o assunto causou mais risadas do que medo.

KATIA DALCIN

Fotografar algo tão abstrato quanto os limites da mídia foi um desafio. Em contato com o repórter, soube que um dos casos que seria apresentado na reportagem seria o de Ibsen Pinheiro. Decidimos usar imagens da televisão. O problema seria conseguir um vídeo, em alta resolução, que ocupasse todo o tamanho da tela. Não foi possível. Parti então para a internet. Busquei fotogra-

fias em alta resolução para fotografar na tela. Tentei fazer isso no computador, mas o efeito “pixelizado” não é o mesmo que em uma televisão. A dificuldade era agora levar essas fotos da tela do computador para a televisão. Depois de inúmeras tentativas usando DVD, câmeras fotográficas, CDs e pen drives, a alternativa foi fotografar a tela do computador, baixar as imagens em jpg, gravar em DVD e rodar na televisão. Foram feitas literalmente centenas de fotos para chegarmos às selecionadas, já que a televisão deixa aqueles “risquinhos” na foto, dando diferentes efeitos à imagem.

MARIANA DE BORBA

Fotografar não é uma tarefa fácil. Principalmente quando as imagens vão parar nas páginas da Primeira Impressão – uma revista tão conceituada no meio acadêmico, com textos e fotos de grande qualidade a cada semestre. Se cumprir uma pauta já é complicado, imagina se comprometer com três! A experiência de clicar os policiais rodoviários federais em seu trabalho foi superinteressante. Entretanto, a pauta mais difícil de cumprir. Foram precisos três encontros – e mais de 150 imagens – para se ilustrar as quatro páginas de matéria. As outras situações foram mais light. Foi mais fácil soltar a criatividade e conseguir boas imagens. Clicar uma rave me possibilitou brincar com as luzes e com as sombras, passar o clima da festa. Com pauta da vaidade, dirigi uma modelo num ambiente cheio de possibilidades: um antiquário. Em outras situações, fotografei o lado mais banal da vaidade, como a hora da maquiagem e a escolha dos sapatos.

PAULINE COSTA

Fotografar para a pauta sobre liberdade para a Primeira Impressão foi uma grande responsabilidade, afinal, “uma imagem vale mais do que mil palavras.” Buscar fotografias conceituais não é nada fácil, no entanto, assim como a responsabilidade, a criatividade também tem de ser bem rechonchuda. A harmonia entre a fotografia e o texto é fundamental para que a matéria, em sua totalidade, seja um sucesso, e esse é o maior desafio. Acredito que fizemos um ótimo trabalho e que ainda há muitas situações a serem eternizadas pelas lentes de minha câmera, a diferença é que, desta vez, ela não só foi eternizada, como também está sendo compartilhada com todos vocês. Bom proveito!

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