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CARTA AO LEITOR
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RECORTES DO COTIDIANO
odos os dias, os jornalistas destacam acontecimentos que chamam a atenção do público. Acidentes, guerras, paixões de celebridades, aventuras. Existem muitos fatos que facilmente transformam-se em notícias. Mas como funcionam aqueles lugares e serviços que fazem parte do cotidiano de todos? Responder a essa pergunta foi a proposta dos alunos-repórteres da Primeira Impressão ao escolher o tema bastidores para a revista deste semestre. A trajetória percorrida por uma carta, o funcionamento do Mercado Público de Porto Alegre, a rotina do Exército ou dos funcionários da Trensurb são exemplos de pautas que pretendem desvendar aquilo que está na nossa cara todos os dias, mas que, ao mesmo tempo, nos parece invisível. A diversidade de abordagens mostra a maturidade de um grupo que está pronto para chegar ao mercado de trabalho com olhos abertos para todos. A preocupação em contar como é a vida no Chocolatão, uma das vilas mais pobres da capital gaúcha, ou num acampamento do MST é a mesma do que a de explicar como é organizada uma missa ou como é o trabalho numa agência de modelos. O desafio foi cada um descobrir uma linguagem própria para contar uma história diferente. Por isso você vai encontrar alguns textos em primeira pessoa, que tentam se aproximar de um estilo de jornalismo mais literário. Além disso, as reportagens vêm acompanhadas de uma pequena descrição de como foi fazer a matéria, para que você possa acompanhar também os bastidores do nosso trabalho.
FOTO DE CAPA BRUNO ALENCASTRO
Thaís Furtado Professora-Editora
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ÍNDICE
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06 Morte
44 Recuperação
10 Arte
48 Exército
14 Comércio
52 Teatro
18 Correios
56 Escola de samba
24 Vida no campo
60 Chocolatão
28 Vulnerabilidade
68 Sem-Terra
32 Trensurb
72 Cinema
36 Camelódromo
76 Modelos
40 Hospital São Pedro
80 Televisão
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Célio Pedro Wolfarth DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs
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84 Reciclagem 88 Igreja 94 Supermercado 98 Música 102 Casamento 106 Cerveja 110 Motéis 114 Noite 118 Emergência
REDAÇÃO TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: primeiraimpressao@icaro.unisinos.br PROFESSORES-EDITORES Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia REPORTAGEM Alunos Alessandra Stieler, Ana Paula Sardá, Auryane Borges, Bruno Alencastro, Daniela Bittencourt, Fabiane Vieira Castro, Fernanda Calegaro, Fernanda Mineiro, Fernanda Preussler, Graziela de Souza Trajano, Greyce Vargas, Guilherme Brasil, Gustavo Blasco Kutscher, Hallan Klein, Juliana Athanasio, Kátia Hoffelder Dalcin, Manuela Quadros, Marcela Schuck, Marcelo Gomes, Márcia Lima, Maria Evana Ribeiro, Mariana D’Ávila Santos, Patrícia Gastmann da Silva, Raquel Barbosa Verardi, Régis Eduardo Rosa da Silva, Sandra Juliana Fagundes Vargas e Virginia Silveira. FOTOGRAFIA Alunos Ângelo Hector, Bruno Alencastro, Eudes Correa, Fabiana Reinholz, Fernanda Bernardes, Fernanda Calegaro, Gilberto Dutra, Graziela Trajano, Greyce Vargas, Kaiser Konrad, Larissa Amaral, Marcelo Gomes, Mariana Bechert, Marília Branco, Ramona Barcellos, Roberta Pacheco, Vanessa Reis, Natália Tonda, Neimar de Cesero e Tito Efrom. COLABORAÇÃO Jornalista Felipe Boff (estágio docente) e aluno José Eduardo Coutelle (monitoria da disciplina) PRODUÇÃO GRÁFICA Agência Experimental de Comunicação (AgexCOM) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: estagiários André Seewald e Maria Maurente, sob orientação do jornalista Marcelo Garcia. IMPRESSÃO: Gráfica Maredi PUBLICIDADE Os anúncios publicados nesta edição foram criados pelos alunos Carolina Freitas, Fabíula Azevedo, Márcio Rampi, Nathalia Freitas e Roniere Santos, da disciplina de Redação Publicitária II, dos professores Ângelo Cruz e Guilherme Caon, e finalizados pela estagiária Flávia Corrêa Pinto, sob supervisão do professor Ângelo Cruz e do publicitário Robert Thieme, da AgexCOM.
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QUANDO O FIM É O COMEÇO Poucas pessoas sabem o que acontece com o nosso corpo quando morremos
TEXTO VIRGINIA SILVEIRA FOTOS MARCELO GOMES
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corpo não tem mais vida. Quando os bombeiros são acionados, precisam fazer de tudo para tentar reverter esse quadro. “Mesmo sabendo que muitas vezes é irreversível, temos que investir, às vezes pelo fato de os familiares estarem observando”, explica Gilmar Paulo Hannauer, bombeiro há 18 anos, os últimos três deles passados em Carlos Barbosa, cidade da Serra Gaúcha, a 100 quilômetros de Porto Alegre. Se o coração parar de bater e a pessoa parar de respirar, ainda assim é preciso insistir. “Infelizmente tem vezes que não dá. É um sentimento de tristeza pelo fato de não ter conseguido salvar a esposa. Fico triste quando são conhecidos, amigos, pessoas da família. Essa sensação é horrível. É ruim.” Segundo Hannauer, na hora da morte muitos acabam fazendo confissões, para aliviar a mágoa que sentem. “Eles querem falar o que fizeram de ruim.” Mas ele tem consciência de que também corre riscos. “A gente sai de casa com a intenção de, se acontecer alguma coisa, morrer salvando alguém.” Diferente das outras pessoas, para os bombeiros, encarar a morte é uma coisa normal, ainda mais com a sensação de que nada pode ser feito. “A morte é natural. Todo mundo vai morrer de um jeito ou de outro, e a gente tem que aprender a conviver com a morte”, coloca. Se depois das tentativas de salvar uma vida ela não resistir, aí o trabalho encerrou para ele. Chega a hora do “Leandro da Funerária” entrar em ação. Assim que é feito o chamado, não importa a hora, Leandro Oliveira, normalmente em companhia do irmão Luciano, sai de sua casa e chega rapidamente à funerária que fundou há 13 anos. Para ele, lidar com os corpos sem vida é completamente normal: “A pessoa estava viva até há pouco. Por que o trata-
mento tem que ser diferente?”, questiona. Apesar da necessidade de lidar com frieza com os acontecimentos, segurar a emoção em meio a um local onde as lágrimas estão à flor da pele é um desafio. “Quando tu vês estás envolvido com aquela trama, e se tu não saíres disso, não podes trabalhar. Várias vezes durante uma despedida tu te pegas chorando junto com a família, porque tu conhecias, te davas bem, era pai de um amigo teu. Não somos de ferro. As pessoas acham que torcemos pela morte, mas bate na minha porta também. Estou consciente de que amanhã vou enterrar meu irmão, meu pai, minha mulher”, desabafa, contando que preparou os corpos de sua mãe e de sua madrinha para o velório, entre outras pessoas próximas. A preparação de um cadáver para a cerimônia de despedida não causa repulsa, como muitos acreditam, mas sem dúvida não é algo agradável, ainda mais se o corpo que jaz sem vida for de alguém conhecido. Alguns procedimentos são bem particulares e todos eles somente são presenciados por profissionais. Cada circunstância exige um cuidado diferente. O mais básico quando se trata de preparação do corpo é a aspiração abdominal, a injeção de fluido para conservação, o tamponamento e, por fim, a vestimenta, colocação no caixão com detalhes finais estéticos. Após acidentes ou nos corpos submetidos a necropsia, o processo é um pouco mais complexo, pois há uma reconstituição, onde são feitos pontos intracutâneos nos cortes abertos pelo médico ou nas feridas causadas pelo choque. Cadáveres que passarão por translado para locais distantes também têm tratamento especial, com tanatopraxia (que retarda a decomposição das células) ou embalsamamento. Uma sala de aproximadamente 25 metros quadrados, toda em azulejo branco, com apenas um balcão, uma mesa de alu-
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mínio com um pequeno motor embaixo, um cartaz que lembra os passos do processo na parede, três janelas basculantes e duas portas. Dessa simplicidade é o tanatório, o local onde toda a preparação do corpo é feita. Quem vê Leandro pronto para o preparo do corpo poderia confundi-lo com um médico. De jaleco branco, luvas cirúrgicas e máscara no rosto, ele inicia despindo o cadáver que será limpo, preparado e vestido então para o funeral. Durante todo o processo a família fica afastada do tanatório. “Precisamos fazer procedimentos que são inadequados para a família ver. É chocante”, avisa Leandro. De fato, os 30 centímetros da haste que perfura o tórax para realizar a aspiração abdominal assustam. A aspiração consiste em sugar os líquidos, inclusive o sangue, de órgãos vitais como coração, pulmão e estômago, com uma bomba que funciona a motor. É a aspiração que possibilita minimizar, em casos de infarto, o tom roxo forte do rosto e do pescoço. Feito este processo, é a vez de realizar o tamponamento, que é a obstrução das vias orais (nariz e boca) e eventualmente os canais íntimos quando há sangramento. Para isso o profissional usa muito algodão, juntamente com um pó granulado absorvente que se transforma em gel em contato com os fluidos e secreções. Para finalizar o tamponamento, é costurada a boca com dois grandes pontos internos, e os olhos recebem uma gota de cola instantânea.
Quando a morte chega de repente Em alguns casos em que o médico não consegue identificar a causa da morte, resta à família aguardar que o corpo seja encaminhado ao Instituto Médico Legal (IML), onde passa por uma necropsia. Inevitavelmente o corpo necropsiado recebe incisões em dois locais: na cabeça e no tórax. Assim que sai do IML, o corpo é levado para a funerária. Lá receberá tratamento para ter condições de ser velado
pela família. “A maioria das funerárias não faz a reparação (ou reconstituição) no corpo. Preferem enfaixar a cabeça, que é mais fácil. Fica um aspecto feio e a família fica traumatizada, porque muitas vezes já perdeu esse ente de uma forma inesperada, de morte súbita ou acidente. Na despedida tu vais ver teu ente querido todo remendado”, critica Leandro. Para evitar o choque, é feita uma reconstituição. Nesses casos a preparação do corpo pode demorar até cinco horas. “Vamos lá, pontinho por pontinho, com paciência, para fechar bem o corte e conter o sangramento das incisões.” Uma morte “normal” pode levar apenas uma hora e meia de preparação. Os cuidados com o corpo variam de uma funerária para outra. No final algumas cortam a roupa na parte de trás e apenas envolvem o corpo. Mas vesti-lo não é difícil e dá um aspecto mais agradável, segundo Leandro. Para finalizar, é feita uma massagem e maquiagem. Diferente das crendices populares, a massagem é a forma alternativa ao mito de quebra de ossos quando o corpo já está rígido. Às vezes, o cadáver chega à funerária em uma posição na qual membros estão dobrados ou mal colocados em relação ao costume de como o corpo deve ficar para o velório. “Massageando por 20 minutinhos, os músculos ficam todos soltos e dá pra vestir e transferir o corpo com tranquilidade”, explica. A massagem também tira o roxo das mãos, para poder colocá-las entrelaçadas sobre o corpo com o terço, prática tradicional entre os católicos. No caso das mulheres, um pó facial e um batom cor de boca, para disfarçar o tom roxo dos lábios, finalizam a preparação junto com a pintura das unhas. Depois de toda a função, pelas próximas 20 ou 24 horas o corpo fica sob os olhos chorosos da família. O processo se encerra com o enterro em um túmulo ou capela, onde o corpo irá se decompor pelos próximos anos.
No caixão, o corpo recebe os últimos detalhes, que incluem a pintura das unhas e a maquiagem
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Leandro encara com naturalidade o trabalho na funerária
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Ao decidir encarar a matéria sobre os bastidores da morte, senti um pouco de medo por ser um fato muito presente na minha família. Fiquei receosa de acabar me envolvendo demais com o assunto. O profissionalismo que encontrei nos entrevistados, no entanto, acabou com qualquer dúvida sobre haver escolhido o tema certo. Apesar de já trabalhar em jornal há quatro anos, poder abordar um assunto tão complexo como esse em uma reportagem mais elaborada foi uma experiência muito interessante. Com a possibilidade de abordar com
maior profundidade um tema, e tendo diversas fontes dentro de uma única questão, o texto de revista se torna mais rico, fator raro quando se fala em jornal. Acompanhando a preparação dos corpos para o velório e o enterro, pude desmistificar alguns pensamentos que estão associados à morte e entender também como é complexo esse processo. A relação que o tanatólogo desenvolve com o corpo é fascinante, e foi interessante observar o trabalho. A morte é um dos mitos que desvendamos na Primeira Impressão.
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DANÇAR PARA VIVER A história de uma família que faz da dança sua vida TEXTO FERNANDA MINEIRO FOTOS GREYCE VARGAS
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bailarina chega ao local pontualmente no horário de sua primeira aula do dia de ballet clássico já devidamente caracterizada: meias cor-de-rosa, malha preta, sapatilha preta e cabelo preso em um coque. Assim que entra na sala, Leslie cumprimenta carinhosamente cada uma de suas alunas, e logo começa a aula. A dança começou na família de Leslie cedo. Sua mãe, a coreografa Margoth Leni Taube, 54 anos, explica que, como a filha, também começou a dançar ainda pequena. Margoth entrou para o mundo da dança aos 13 anos e nunca mais parou de dançar. “Como já vinha de uma família voltada para o meio artístico, minha introdução neste ambiente ocorreu de forma natural”, enfatiza a coreógrafa. Sua mãe era professora de piano e seu pai era professor de Educação Física. Foi o próprio pai de Margoth quem a incentivou a abrir sua escola de dança, na garagem de sua casa, onde ela deu aula por cerca de quatro anos. Depois comprou uma casa e fundou de vez sua escola, a
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Studio Spasso, na qual a filha é professora, em Canoas. Leslie começa explicando para as alunas a rotina programada para aquela aula. Posteriormente, mostra um por um dos exercícios propostos para aquele ensaio, enquanto as alunas vão prestando atenção, repetindo os movimentos junto com a professora. Foi em Margoth que Leslie se inspirou para seguir a carreira de bailarina e de professora. Ainda menina, quando Margoth decidiu dançar profissionalmente, não havia no Estado uma faculdade focada na dança. O curso mais próximo desse meio era Educação Física, que acabou sendo sua opção. Depois de formada, quando surgiram cursos com enfoque na dança, realizou seu mestrado. Além de continuar com sua academia, passou a dar aulas de dança para o curso de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Participou por nove anos do Grupo de Dança da UFRGS. Foi nesse período que Leslie, sua primeira filha, nasceu. Desde pequena, Leslie, 25 anos, acompanhou a rotina da
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“Se pudesse expressar tudo que eu sinto com palavras, não teria a necessidade de dançar” Isadora Duncan, bailarina
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mãe. Demonstrou cedo o interesse pela dança. Seu pai, também formado em Educação Física, foi mais um incentivador para que seguisse a carreira nessa área. Aos três anos de idade já começou a fazer aulas de ballet clássico. “Nunca houve pressão por parte de minha mãe”, ressalta a bailarina, que também por falta de opções de cursos na área acabou cursando Educação Física. Mas Leslie teve mais sorte que sua mãe. Neste mesmo período abriram inscrições para a primeira graduação em Dança do Estado. Leslie então cursou as duas faculdades juntas. Sua rotina começou a mudar. De manhã, preparava suas aulas para a noite. À tarde, se dedicava para o curso de Educação Física. Nas noites em que não dava aulas na escola da família, dedicava-se à faculdade de Dança. Hoje formada nos dois cursos, Leslie explica como é a sua rotina: “Acordo bem cedo e, de manhã, é meu tempo de ficar em casa e preparar as aulas da noite. De tarde, faço cursos em Porto Alegre e à noite vou para a academia”. A dançarina tem sua agenda lotada de segunda a sexta. “Na época que antecede a espetáculos e festivais, é normal ensaiarmos também aos sábados e domingos.” Uma das maiores dificuldades encontradas para sobreviver neste mercado é o pouco ou nenhum incentivo à cultura por parte do governo e empresas.
Filho de peixe O filho caçula de Margoth, Arthur, 22 anos, não fugiu à regra da família: também formou-se em Educação Física. Mas foi o último a se envolver no mundo da dança. O interesse de Arthur por essa área começou há cerca de cinco anos. “Sempre tentei me encaixar em diversos esportes, porém foi na dança de rua que consegui encontrar satisfação”, conta Arthur, que na adolescência chegou a fazer algumas aulas de ballet clássico
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com sua mãe. Atualmente, a rotina de Arthur é focada nas aulas de dança de rua e de salão, na escola da família, onde atua como professor. Além disso, participa de dois projetos gratuitos, que ocorrem na escola e não contam com nenhum patrocínio. Ambos têm o objetivo de oportunizar a crianças e adolescentes menos favorecidos a experimentação e o conhecimento da dança de rua. “É muito emocionante ver a satisfação no rosto dos alunos após a participação nos festivais”, vibra Arthur. Leslie segue nas suas aulas o cronograma preparado por ela antecipadamente. E na maioria das vezes realiza os exercícios junto com as alunas. A sala onde ocorrem os ensaios é devidamente decorada para as aulas. Tem espelhos em praticamente todas as paredes, assim como uma barra de sustentação, que serve para a realização de exercícios de apoio. Há também um aparelho de som com duas caixas amplificadoras. A aula começa com exercícios leves, para aquecimento, que aos poucos vão aumentando de ritmo e intensidade. Ao longo dos exercícios, a professora chama a atenção das alunas para eventuais correções de postura, ao mesmo tempo em que as incentiva. No final da aula, Leslie se despede e se prepara para a próxima turma. Há duas gerações, o mundo da arte está presente, unindo a família através da dança. “Nossa maior fonte de inspiração para continuarmos neste meio é o reconhecimento que recebemos das pessoas, é conseguir levar arte e cultura para diversos lugares e meios através da nossa dança”, diz Margoth. As alunas da turma seguinte tomam conta da sala. Leslie está pronta para começar tudo de novo. O cumprimento carinhoso indica mais uma vez a certeza de ter feito a escolha certa: viver para dançar e dançar para viver.
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Leslie começou a ter aulas de ballet clássico aos 3 anos e hoje é professora
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Fazer a reportagem sobre a dança foi extremante satisfatório e compensador, uma vez que foi um exercício focado na observação. Com ele, tive a oportunidade de conhecer o mundo da dança sob outro aspecto. Revelo que fiz parte dele durante um longo período da minha vida. Para a realização desta reportagem, assim que ocorreu a seleção da pauta e a indicação da colega Greyce Vargas para fotógrafa, entrei em contato com as fontes, que logo se prontificaram a conceder as entrevistas, que ocorreram em duas etapas. A primeira foi em um domingo chuvoso, na
própria escola de dança da família, onde as três fontes estavam presentes. Já a segunda parte consistiu na observação da aula de Leslie, na qual acompanhei a rotina de exercícios de ballet clássico. Posteriormente a essa etapa de recolher as informações, veio a missão de decupar as entrevistas e organizar o material para, então, finalizar a matéria. Agradeço a oportunidade de ter feito parte desta edição da Primeira Impressão e de poder proporcionar aos leitores um pouco mais de conhecimento sobre os bastidores do mundo da dança.
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O MERCADO QUE NÃO É PÚBLICO Às 4h, três horas e meia antes de as portas se abrirem, os primeiros funcionários já começam a chegar nas 110 bancas do Mercado Público de Porto Alegre
TEXTO DANIELA BITTENCOURT FOTOS FERNANDA BERNARDES
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em um mundo de cheiros e cores que permanecem intactos 140 anos de história. Lá, experiências de vida se cruzam, personagens se encontram e parte da cultura porto-alegrense se mantém preservada. No centro da capital gaúcha, entre as avenidas Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, a Praça Pereira Parobé e o Largo Glênio Peres, está localizado o Mercado Público de Porto Alegre. O lugar é parte do patrimônio histórico e cultural da cidade e, como um espectador da vida cotidiana, recebe mais de 150 mil visitantes por dia, entre os que fazem compras em um dos 110 estabelecimentos e os que utilizam as calçadas como passagem para chegar ao seu destino. Entre peixes e frutos do mar, verduras e legumes, produtos regionais e especiarias, a vida se dá no Mercado Público: “Isso aqui é quase uma cidade à parte, a cultura do Mercado é única”, define Mário Angelo Pedron, 55 anos, responsável pela fiscalização do local. Desde a sua construção, em 1869, o espaço passou por reformas, mudanças, três incêndios e uma enchente. Quando o prédio foi inaugurado, com o objetivo de abrigar o comércio de abastecimento da cidade, a estrutura previa a circulação de carroças. Para acompanhar o crescimento da cidade e da demanda de público, adaptações foram necessárias. Em 1991, teve início uma grande reforma, que durou até 1997, com a reinauguração de um mercado mais moderno, com escadas rolantes, praça de alimentação no segundo piso, cobertura e sistema de gás centralizado. A bela arquitetura original, porém, foi mantida. A maioria das bancas do Mercado Público passou de pai
para filho, de avô para neto, criando laços tão fortes que resistem aos anos e às mudanças de mercado. Fortunato Garcia Machado, 39 anos, atual presidente da Associação do Comércio do Mercado Público de Porto Alegre e dono de uma banca de revistas, é parte dessa história há 30 anos. Como grande parte dos funcionários, começou a trabalhar com o pai, no Mercado. “Essa é nossa família e nossa vida, mais do que em casa”, afirma. Os anos de dedicação se estendem também aos fregueses. Atendentes e clientes conversam como velhos amigos em uma relação que não é apenas comercial. “O Mercado faz as pessoas conviverem, se conhecerem, interagirem. Aqui, se tu és frequentador, qualquer atendente te conhece, ou pelo teu time, ou pela tua religião, ou pelo teu partido político, sem contar que ele sabe os teus gostos. A pessoa não vem só para comprar o produto.” O comerciante Cláudio Klein, 58 anos, começou ainda guri, varrendo o chão e limpando prateleiras na Banca 43, conhecida pela venda de especiarias e por ser uma das mais antigas do Mercado. Hoje é dono do estabelecimento onde cresceu e, através da experiência adquirida, cativa novos e antigos clientes. Conhece diferentes gerações da mesma família. “Tem menina que vi pequeninha, hoje já é mãe, tem filha, tem neto. São mais do que clientes, se tornaram amigos da casa. Isso é gratificante”, garante. As palavras saem emocionadas quando relembra a dificuldade que passou para conquistar seus sonhos. Aliando o trabalho ao estudo, acordava às 5h da manhã para, uma hora depois, estar no emprego. À noite, saía para a aula e só às 23h retornava para casa. “Era uma rotina árdua, que não
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tinha flexibilidade, mas graças a isso conquistei tudo aquilo que tive como meta”, conta. Formou-se em administração, casou, teve filhos que puderam estudar e hoje continua, diariamente, trabalhando no lugar que considera parte da sua vida.
Vidas que não se vê É também com carinho que Sandro Moreti, 27 anos, fala do Mercado Público. Trabalhando no local há mais de dois anos, ele vive uma rotina diferente da maioria dos colaboradores – como são chamados os funcionários – e dos permissionários – os donos das bancas. Quando despontam os primeiros raios de sol, o jovem sabe que seu turno de trabalho está chegando ao fim. Acompanhado de outros dois colegas, é um dos vigilantes noturnos responsáveis pela abertura e fechamento do prédio. Durante a madrugada, por volta das 4h, quando começam a chegar os primeiros funcionários das bancas, Sandro já passou da metade de seu expediente. Cerca de uma hora e meia depois, os primeiros produtos, como carnes e peixes, começam a ser descarregados no Mercado. O movimento aumenta com a chegada do restante dos trabalhadores, mas as portas só são abertas para o público às 7h30min. O final da jornada leva Sandro e seus colegas à sala da coordenação, no segundo piso, onde, com café preto, comentam e repassam aos vigilantes do próximo turno os detalhes e serviços da noite anterior. O trabalho só se repetirá às 20h, quando o Mercado encerra suas atividades e o vigilante inicia sua jornada. A primeira tarefa de Sandro é auxiliar no fechamento das portas do prédio, deixando aberto apenas o portão do Largo Glênio Peres, que permite o acesso do público à praça de alimentação, no segundo andar. A partir das 23h, esse portão é fecha-
do. “Não entra mais ninguém. Por isso, lá pelas 23h20min, começo a apagar as luzes, e o povo sabe que está fechando”, explica. Durante a madrugada, todo o barulho que se ouve vem da rua. Para passar o tempo dentro do prédio vazio, o jeito é caminhar, conversar ou ouvir rádio. Apesar da calmaria, os vigilantes sempre ficam atentos aos movimentos no entorno do local. “Não queremos bancar o herói, mas quando é necessário, intervimos. O bom é que sempre tivemos o apoio do posto da Brigada, que fica aqui perto”, afirma, finalizando: “Eu gosto muito de trabalhar aqui”. A satisfação parece ser comum entre os colaboradores do Mercado. Apesar da jornada trabalhosa, Juraci Mendes Pereira, 49 anos, diz que ama o lugar e acha que nunca foi tão feliz. Segurando vassoura e esfregão, seus instrumentos de trabalho, a mulher de olhar simpático conta que, há quase dois anos, saiu da casa de família onde trabalhava para aceitar um emprego no Mercado Público. Das 8h às 20h, com intervalo para o almoço, ela é encarregada de manter limpos e organizados dois banheiros femininos abertos ao público. Membro da cooperativa responsável pela limpeza do prédio, conta das dificuldades da sua função. “As pessoas não respeitam o trabalho da gente. Eu limpo aqui, saio e limpo o outro banheiro. Quando volto aqui já está horrível de novo. As pessoas colocam papel no chão, passam coisas na parede, sujam tudo.” Muitas não aceitam pagar os 30 centavos, taxa cobrada pelo uso dos sanitários. Para Juraci, esse valor é muito baixo, já que o serviço oferece papel higiênico e papeltoalha e é grande o gasto com produtos de limpeza. Ela acha que, se o preço do serviço aumentasse, seu trabalho também seria mais valorizado: “Iriam entrar aquelas pessoas que realmente estão apertadas, que necessitam do banheiro, que não
Durante a madrugada, o vigilante Sandro é uma das poucas pessoas a circular pelo mercado
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querem só fazer maldade”, acredita. Mesmo assim, a alegria com o emprego é grande, principalmente quando sua dedicação é reconhecida. O capricho, que é sua marca registrada, já lhe rendeu boas gorjetas, como na vez em que ganhou R$ 20,00 de uma cliente, pelo trabalho bem-feito. Mas, além do dinheiro, existe algo que, para Juraci, também é gratificante. “O carinho das pessoas vale muito”, completa.
Caminhos do Mercado Além das histórias pessoais, o Mercado Público também é espaço de cultura e preservação. Atualmente, diversas manifestações artísticas, como peças de teatro, acontecem no mercado. Encontros e práticas das religiões afro também são
uma tradição do local. Esses rituais costumam acontecer bem no centro do mercado, onde, acredita-se, estaria localizado o orixá Bará, entidade responsável pela abertura dos caminhos e pela fartura. Quem conta essa história é Leonel de Paoli, 63 anos, permissionário da primeira flora (loja especializada em artigos de religião afro) fundada no Mercado, a Banca Bandeira: “Pela história de que temos conhecimento, o prédio foi construído pelos portugueses, mas quem trabalhou de fato foram os negros. Durante a obra, um dos escravos faleceu e diz-se que foi enterrado no centro do mercado, por isso a tradição.” Se a lenda é ou não verdadeira, não há comprovação. Mas que os caminhos do Mercado sempre farão parte da história gaúcha, não resta dúvidas.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Desde quando conheci a revista Primeira Impressão, esperava com ansiedade pela disciplina e pela oportunidade de apresentar uma grande reportagem mais aprofundada. Talvez também por isso não tenha sido difícil o processo de produção da revista. É claro, foi trabalhoso. A escolha do tema, por exemplo, foi o momento de unir ideias divergentes em um assunto que interessasse aos repórteres e aos leitores e que fosse, ao mesmo tempo, criativo. Decidimos por bastidores. Essa possibilidade de transitar entre mundos distintos
é uma das mágicas da profissão. A mim, coube a pauta sobre o Mercado Público. Muitas vezes já havia ido lá, mas não com olhos de repórter. Guiada pelo fiscal Mário Pedron, conheci lugares que nem imaginava. Uma das entrevistas foi às 7h, quando os vigilantes noturnos deixam seu posto e abrem o mercado ao público. Conheci a câmara fria. Aprendi a lenda do Bará. Mas o mais interessante foram as histórias de pessoas que não vemos, mas que, com seu trabalho, são fundamentais para manter o Mercado funcionando.
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Um passeio por dentro de uma das maiores empresas de logística do mundo mostra como os funcionários trabalham, dia e noite, para garantir que tanto cartas como encomendas expressas cheguem no prazo ao seu destino
Débora costuma postar cartões para o mundo todo
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s Correios chegaram ao Brasil com a família real portuguesa e, desde então, muita coisa mudou no cenário de entrega de correspondências. As dimensões continentais do país exigem um planejamento logístico sofisticado de captação, tratamento, transporte e distribuição.
Quarta-feira, 15 de abril de 2009 16h15min Em uma tarde quente de outono, típica desta época do ano na cidade de São Leopoldo, a aluna do curso de Realização Audiovisual da Unisinos Débora Calegari Hertzog, de 17 anos, se apressa pelos corredores da universidade para levar um cartão postal à agência dos Correios que fica no prédio administrativo. Ela tem urgência, pois pretende retornar à sala de aula antes do fim do intervalo, às 16h30min. A mesma pressa com que Débora percorre o caminho da sala de aula à agência é uma constante na vida dos cerca de 108 mil funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, com a diferença de que as distâncias percorridas e o volume de carga transportado são infinitamente maiores. O cartão que ela irá postar tem como destino a China. “Eu mando postais pelos Correios por causa de um site chamado Postcrossing, que promove a troca desse tipo de correspondência entre várias pessoas ao redor do mundo. Gente que não se conhece, mas que disponibiliza seu endereço na internet através desse serviço”, diz a estudante. O cartão irá percorrer um longo caminho e passará por muitas mãos até chegar ao destinatário, do outro lado do mundo. ”Os primeiros postais que eu mandei levaram certo tempo para chegar e eu fiquei na expectativa. Aí, quando as pessoas recebem, elas respondem por e-mail, agradecendo. Trocando essas correspondências, se aprende muito sobre outras culturas”, esclarece Débora.
16h20min O tempo que um objeto postal leva para chegar depende do tipo de serviço escolhido e do local de destino. No caso do cartão de Débora, a jornada começa com a postagem no balcão da agência Unisinos, uma das 12.644 espalhadas por todo o país. Recebe o selo, que servirá como prova de que ela pagou a tarifa. Em seguida, o selo é obliterado (carimbado de forma que não possa ser usado novamente) por um atendente. O carimbo indica data de postagem e local de origem. “A maioria das cartas postadas é de empresas, mas ainda existem pessoas que gostam de enviar cartas para seus familiares e amigos”, revela a atendente comercial Ana Fick. “Aqui na Unisinos há uma grande quantidade de cartas postadas para o exterior pelos estudantes, que possuem contatos para intercâmbio e muitas vezes parentes e amigos morando fora”, lembra Ana. Apesar do advento da internet, a carta ainda tem um diferen-
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cial físico que causa fascínio entre seus adeptos. Débora explica o que desperta seu interesse pelas cartas: “O mais legal não é por ser antigo, é por ser físico. Tu podes pegar, podes encostar numa coisa que alguém preparou para ti, elaborou para ti, em uma história que a pessoa vai contar que é só para ti, palavras que ela vai usar com a sua caligrafia, o que é muito legal. Os orientais, por exemplo, quando escrevem com nossas letras, fica bem estranho, porque parece com as letras deles, mas são as nossas, e isso é bem bacana”.
17h O funcionário responsável pela expedição da agência Unisinos, Eugênio Luz da Cunha - o Gegê, como é conhecido pelos colegas de trabalho -, olha no relógio e se desloca até o setor de atendimento para avisar que iniciará o fechamento da carga. Tudo o que for postado a partir daquele momento terá o carimbo DH, que apesar de óbvio para quem trabalha nos Correios deixa muitos usuários intrigados. DH significa “depois da hora”, ou seja, seguirá somente na próximo dia útil. “Às 17h, vou ao balcão da agência e peço aos atendentes o que têm para trazer, pois esgotou-se o horário deste dia. Após, somente com DH. Faço uma triagem, fechando as correspondências nas caixetas e nas malas para, quando o motorista chegar, a carga estar pronta para seguir seu destino”, explica Eugênio. Essa expedição feita nas agências é uma pré-separação de todos os objetos postais segundo sua característica e seu destino. São utilizados unitizadores primários, ou seja, recipientes plásticos especiais para envelopes e malas de lona para caixas e pacotes, devidamente identificados por rótulos que são lidos e registrados por um sistema próprio dos Correios, o que torna possível rastreá-los em todas as fases do processo.
17h30min Vrumm, vrumm, vrumm, uuuuuurrrrrr. Mais que depressa a clássica van amarela dos Correios estaciona na área destinada ao carregamento. Sem tempo a perder, pois é responsável pela carga de mais quatro agências, o carteiro motorizado Sebastião Antunes Domingues, o Tião, vai enchendo o baú da Kombi. Em cerca de vinte minutos, os unitizadores coletados deverão estar no Centro de Entrega de Encomendas (CEE) de Novo Hamburgo, a 14 quilômetros dali. Todos os dias, Tião enfrenta o trânsito caótico da BR-116, que nesta hora costuma estar congestionada.
18h30min Os funcionários do CEE Novo Hamburgo têm cerca de 30 minutos para processar a carga de mais cinco vans lotadas que chegam ao mesmo tempo e deverão estar dentro do caminhão de uma das linhas tronco regionais (LTR), que sai pontualmente às 18h30min, com destino a Porto Alegre. As caixetas e malas trazidas por Tião agora são agrupadas
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No Centro de Tratamento de Cartas de Porto Alegre são triadas todas as correspondências que chegam e saem do Rio Grande do Sul
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Todos os dias bem cedo os carteiros separam os objetos postais por distritos antes das entregas
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em contêineres desmontáveis leves (CDLs) e contêineres aramados, que são unitizadores secundários maiores, facilitando a remoção. Toda essa operação não pode atrasar, sob pena de comprometer as encomendas e cartas de uma série de cidades nas quais o caminhão já coletou a carga.
19h Todos os dias, quando o operador de triagem e transbordo (OTT) Célio Ruibasciki volta do intervalo do turno 2, ele encontra o Centro de Tratamento de Cartas (CTC) lotado de objetos postais esperando por ele e seus colegas. Aproximadamente 32 toneladas de carga chegam por dia. O CTC Porto Alegre, o mais automatizado dos 17 espalhados por todo o Brasil, é o centralizador de cartas. Funciona 24 horas por dia, em três turnos, com 250 funcionários que fazem a triagem de tudo que sai ou entra no Rio Grande do Sul. O gigantesco armazém é dividido com o Centro de Tratamento de Encomendas (CTE), responsável pela triagem dos pacotes, caixas e malotes. São expedidos cerca de 2,1 milhões de objetos por dia, sendo que a capacidade operacional é de 4,2 milhões. “A operação logística dos Correios é bastante complexa. Temos alguns padrões e prazos a cumprir para que consigamos fazer com que a cadeia toda funcione a contento e tanto as correspondências quanto o Sedex cheguem no horário correto. Trata-se de uma rede integrada com uma capilaridade bastante grande”, explica o gerente do CTC, Alan Faller. Em cerca de 30 minutos, os contêineres retirados dos caminhões das linhas de transportes devem estar prontos para triagem. O tempo é uma preocupação constante na rotina desses trabalhadores. Para cumprir os prazos, eles contam com a ajuda das máquinas.
21h Depois de descarregados, cada caixeta, carta ou pacote passa por esteiras, elevadores, scanners, escorregadores, máquinas de triagem automáticas que irão conduzi-los novamente para os contêineres de destinos, prontos para serem carregados até as 21h. Os dezoito paletes aeronáuticos (uma espécie de plataforma metálica onde são empilhados os contêineres que serão transportados por avião) expedidos diariamente são carregados de caminhão até o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre.
Quinta-feira, 16 de abril de 2009 3h Um voo fretado leva tudo para o Terminal de Cargas de Guarulhos, em São Paulo, que é um dos centralizadores da Rede Postal Noturna (RPN). Lá são trabalhados somente unitizadores secundários, ou seja, contêineres aramados e CDLs. Deste ponto, o cartão de Débora vai para o Centro de Tratamento de Cartas Internacionais (CTCI) do Rio de Janeiro, onde em até dois dias será encaminhado aos Correios da China, que, como membro da União Postal Universal, deverá dar o
mesmo tratamento que os Correios do Brasil dispensam à correspondência. Quando é uma entrega dentro do país, o objeto faz o caminho inverso, ou seja, vai para o CTC da região de destino e de lá segue, se for encomenda, para o CEE mais próximo da residência do destinatário; se for carta vai para o Centro de Distribuição Domiciliar (CDD), onde trabalham os personagens dos Correios mais conhecidos: os carteiros. Vestidos com suas tradicionais camisas amarelas e calças azuis, eles irão entregar as correspondências nas residências de todo o Brasil. Um carteiro como Fábio João Backes, de 23 anos, quatro deles dedicados à profissão, caminha 10 quilômetros em média por dia e entrega cerca de 700 cartas. “Me identifico muito com a minha profissão. Gosto de ser carteiro pelo contato com as pessoas nas ruas e por exercer esta atividade física constante, o que acabou me influenciando a escolher a minha futura profissão, que vai ser professor de Educação Física”, conta Backes.
Dia 30 de abril de 2009 Depois de percorrer 18.333 km, atravessar o Oceano Atlântico, o Continente Africano, o Oceano Índico e parte do Continente Asiático, a correspondência finalmente chega ao destino. Segundo Débora, Linda Zhang recebeu o cartão postal na sua casa em Hong Kong, oito dias úteis após a postagem.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER O entra e sai dos caminhões no terminal de carga, a grande movimentação de pessoas exercendo funções diversas ao mesmo tempo e a automatização de grande parte dos processos no Centro de Tratamento de Cartas dos Correios me impressionaram muito. O galpão gigantesco, repleto de máquinas de triagem, esteiras, elevadores, estações de trabalho e caminhos marcados pelo chão, mais parece uma cidade futurística iluminada por suas inúmeras fluorescentes. Acompanhado pelo gerente de turno Giovani Salcedo de Oliveira, com seu inseparável walkie talkie, percorri todos os setores do complexo. Para os funcionários, aquela seria apenas mais uma noite de trabalho comum se não fosse um maluco com duas câmeras, um tripé e um gravador na mão fotografando e fazendo perguntas. Muitos olhares curiosos, uma certa timidez no início e algumas brincadeiras em pouco tempo dão lugar a uma relação de confiança com o repórter que permite o recorte do cotidiano daquele lugar.
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VIDA NO CAMPO
UNIÃO PELO LEITE DE CADA DIA TEXTO KÁTIA HOFFELDER DALCIN FOTOS TITO EFROM
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vento gelado da manhã movimenta a pastagem, que no escuro, coberta pelo sereno, toma a cor prateada do reflexo da lua. A cidade ainda dorme. No campo, com os primeiros cantos do galo, os agricultores já estão de pé. Para a população dos grandes centros, a realidade no meio rural pode parecer um tanto inusitada. Cheia de particularidades, a pesada rotina da produção de leite é ame-
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nizada pela união das famílias. Em uma propriedade leiteira de Carlos Barbosa, no interior do Rio Grande do Sul, avós, pais e filhos trabalham juntos, com o mesmo entusiasmo, respeitando a tradição da família na atividade. Na manhã gelada, chapéu de palha e botas são o uniforme para a lida com os animais. Antes das 6h, o som da ordenhadeira mecânica toma o lugar dos ruídos do vento e das aves que anunciam o dia de outono. Nos bastidores da produção de leite, a rotina é cansativa. “É sábado, domingo, feriados. Sempre. Não tem folga”, conta Zenaide Dalcin
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Enquanto o sol ainda nasce, trabalhadores do campo já iniciam a lida com os animais
Três gerações juntas pela produção diária e pelo crescimento da propriedade
Denicol, 65 anos, que é filha de produtores de leite e desde a infância ajudou a trabalhar na atividade junto com sua numerosa família de descendência italiana. Zenaide, o filho Abílio e o neto Dânio empenham-se todos os dias para tocar a sua propriedade, que há anos produz o leite como principal fonte de renda da família. Outros filhos e a nora também entram na roda. Nessa atividade, homens e mulheres trabalham de igual para igual, isso quando não são elas que trabalham mais. Aliás, já que muitas vezes o homem vai à cidade fazer os trabalhos administrativos, comprar insumos, assistir a
palestras, são elas que assumem toda a mão-de-obra. A vida de Zenaide foi dedicada ao campo, mais precisamente à produção de leite. A tecnologia trouxe facilidades ao dia a dia, alavancando o progresso. Hoje, tratores, ensiladeiras, ordenhadeiras e uma infinidade de equipamentos automatizados reduzem a necessidade de mão-de-obra. Mas nem sempre foi assim. “Antes tinha que cortar o pasto a mão, colocar na carroça. A ordenha era à mão também. Demorava bastante e tínhamos menos animais”, lembra. Brincando, diz que hoje o trabalho é uma diversão. É bom fazer.
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VIDA NO CAMPO
Abílio e a mãe Zenaide trabalham juntos na ordenha matinal
Moradora da comunidade de Torino, no interior de Carlos Barbosa, onde há uma das maiores bacias leiteiras do Rio Grande do Sul, a família Denicol não estranha a rotina, pelo contrário: é assim entre os vizinhos, foi assim com os pais e avós. Mas entre as pessoas que vêm da cidade, a curiosidade é maior. O neto de Zenaide, Dânio, 20 anos, acha graça da reação dos seus amigos “da cidade” quando chegam à propriedade: “Meus amigos volta e meia vêm aqui em casa e querem ver como é. Acham tudo bonito, tudo bonito. Só olhar é legal. Me sinto orgulhoso disso. É o que a gente faz”. Zenaide, o filho Abílio, 40 anos, e o neto Dânio trabalham juntos todos os dias. Faça chuva ou faça sol. Sem contar que geadas e até neves são comuns no inverno serrano. Não importa. A atividade é a mesma. Três gerações dedicadas ao trabalho no campo, em contato com a natureza. O cheiro de esterco e de silagem (preparo de milho que serve para a alimentação do gado) se misturam e, depois de alguns minutos, tornam-se sutis ao olfato. As 54 vacas leiteiras parecem já saber o procedimento. Aliás, elas sabem. Entram uma a uma na
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sala de ordenha. Posicionam-se e aguardam a limpeza e a retirada do leite, que enche os úberes e parece até dificultar os passos. Depois de uma hora e meia, as vacas estão soltas na pastagem. Os primeiros raios de sol iluminam a paisagem, antes quase imperceptível. O encanto das terras entre as montanhas cobertas de verde é digno de contemplação. Mas o trabalho não acabou. A família não tem tempo de observar a beleza do nascer do sol e o canto das andorinhas. Ainda falta cuidar da lavoura, alimentar as terneiras, preparar a silagem e dar atenção aos outros animais, e isso tudo ainda antes do almoço. Na fazenda, o trabalho inicia de manhã e segue até a noite. Um dos segredos do sucesso nesta atividade é o planejamento. Por isso, o trabalho de hoje é feito pensando no amanhã. Em 40 hectares de terra, a família Denicol garante o alimento do gado. Para os dias em que as pastagens não são fartas, é necessário encher os silos, num serviço bastante rigoroso. Apesar de vir do leite o sustento, já que a matéria-prima é recolhida diariamente pelo leiteiro, que leva à cooperativa para a industrialização e distribuição, uma horta, pomar, criação de
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Chapéu de palha e avental são o uniforme de Zenaide
galinhas e porcos também fazem parte da fazenda, e suprem boa parte da alimentação da família. “Faço figada (geléia de figo), matamos porcos, temos as galinhas. Muita coisa temos em casa e não precisamos comprar”, conta Zenaide, satisfeita. Mesmo com tantas tarefas em um só dia, o trabalho é recompensado ao ver que a propriedade cresce e os filhos seguem o que os avós começaram. “Seria uma pena abandonar tudo. A gente está ficando velho”, lamenta Zenaide. O filho Abílio assumiu a produção quando o pai faleceu, há um ano. Junto com ele, Dânio trabalha diariamente, dividindo seu tempo com a universidade.
Futuro Abílio já fez a sua opção. É o filho que permaneceu na propriedade e trabalha para modernizá-la e seguir a atividade iniciada pelo avô. “Para mim é um orgulho estar na terceira ou quarta geração e cada vez com a propriedade se desenvolvendo mais. Se alguns estão à nossa frente, muitos estão atrás. Nos últimos 10 ou 15 anos, demos um salto. Eu e o pai sentávamos e conversávamos sobre como é que havíamos conseguido atingir estes números. Mas também nunca se mediu esforços para alcançar isso.” Ele mesmo garante que a união é o fundamento para tantos anos de trabalho: “É o principal. A mão-de-obra é difícil, mas quando se trabalha junto, reduzindo custos, a gente consegue atingir os objetivos. Enquanto um faz uma coisa, outro faz outra”. Dânio ainda não tem certeza do rumo que dará à sua vida. Estuda Informática, mas gosta da lida com os animais. Como jovem, só lamenta ter que acordar cedo todos os dias, inclusive em sábados e domingos. “Eu acordo às 7h. Depois disso, é difícil. Às vezes o pessoal vem chamar antes, daí tem que levantar. Dormir até meio-dia, tá louco! Seria para arranjar uma encrenca. Eu, se pudesse não trabalhar no domingo, não reclamaria de mais nada. Mas por outro lado é um orgulho para mim. Meu avô foi bem corajoso. Começou do nada. Depois foi indo. Eles são um exemplo.” O futuro não é incerto. Abílio estuda diariamente alternativas para dar sequência ao trabalho e tem investido forte no crescimento: “Quero melhorar. Queremos aumentar a produ-
ção e para isso colocamos mais máquinas. Hoje chegamos aos 1,4 mil litros de leite por dia, mas ainda neste ano queremos entregar 2 mil por dia”. Enquanto trabalha para isso, a família Denicol segue a rotina, que se por um lado é ingrata pela quantidade de trabalho a desenvolver, por outro é muito satisfatória pelos resultados de crescimento e reconhecimento. E o trabalho segue, até a hora em que o sereno volta a molhar a pastagem. As luzes se apagam e logo mais começa outro dia. Muito parecido com o anterior, muito parecido com o amanhã.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Às 5h, eu e dois repórteres fotográficos seguimos, ainda no escuro, pela estrada de chão até a propriedade rural escolhida. Quando chegamos, os moradores já estavam acordados e preparavam-se para iniciar o longo dia. Era um sábado. Mas podia ser uma segunda-feira, quarta-feira ou domingo. A rotina é sempre igual. E essa rotina é o que mais impressiona. A cultura muda. Os valores são outros. E a acolhida é incomparável. Pessoas simples, mas
esclarecidas, abrem as portas de suas casas, com muito carinho, para pessoas estranhas. Logo vão se soltando e tornam-se amigas. Nesta reportagem, não foi difícil encontrar assuntos que rendessem boas linhas. O mais complicado foi selecionar, entre tantas alternativas, coisas que quem mora na cidade não conhece. Quem recebe o leite em casa, na caixinha, nem imagina quantas pessoas são envolvidas no processo de ordenha até a industrialização.
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Amparar jovens abandonados e encorajá-los é a missão da Fundação de Assistência a Criança e Adolescente
TEXTO E FOTOS GUSTAVO BLASCO KUTSCHER
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o Rio Grande do Sul, há um local chamado de Fundação de Assistência a Criança e Adolescente, em São Leopoldo. O abrigo, fundado em 1996, acolhe jovens entre 0 e 18 anos que foram abandonados pela família ou que sofreram abusos. Essas crianças chegam ao abrigo por meio judicial para mais tarde serem adotadas por alguma família. O Conselho Tutelar também faz encaminhamentos ao abrigo. No local, há uma cancha de esportes, brinquedos ao ar livre e uma sala de pedagogia, que conta com um espaço para que os jovens possam desenvolver atividades artísticas. O local é dividido em dois espaços: Casa Abrigo Maria Emília de Paula, onde ficam as crianças entre 0 e 11 anos, e Casa Aberta Padre Cândido Santini, onde ficam jovens entre 12 e 18 anos. No total, a Fundação abriga 45 jovens, e a ideia central é que seja uma passagem que envolva conhecimento, desenvolvimento e esperança na vida desses jovens. “Essas crianças vêm de lares desestruturados. Eles não têm muitos sonhos. Não têm muita expectativa. Nós tentamos fazer com que esses jovens busquem seus projetos de vida”, conta Ângela Maragno, psicóloga da Fundação. A instituição é mantida por doações e uma verba dos governos municipal, estadual e federal. De acordo com a diretora da Fundação, professora Rose Mari Ritter, mesmo com o apoio recebido, ainda falta mantimentos em alguns momentos. “Sem conhecer a nossa realidade, as pessoas não têm a visão que nós precisamos de aparelhos de barbear, xampus, sabonetes, chinelos de dedo e até pentes.“ Algumas pessoas fazem doações sem saber do que a Fundação está necessitando. Muitas vezes sobram mantimentos
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por algum tempo e faltam outros. Mas há também aqueles que mantêm uma rotina de doações e que, antes de enviar alguma coisa, fazem uma consulta por telefone para saber qual a necessidade do momento. Todas as doações são aproveitadas na Fundação. Inclusive um piano, que é novidade para as crianças, terá uso nos próximos meses. Só está faltando um professor para ensinar a arte de Mozart aos jovens. Chegando ao local, tudo parece estar em harmonia. Mas o trabalho diário dos profissionais é o que proporciona a sincronia no dia a dia dos menores abrigados. Carinhosamente, os jovens chamam os profissionais de “tio” ou “tia”. O bom humor das pessoas que lá estão é cativante, demonstrando que o que mais precisam os abrigados nesse momento que estão vivendo uma experiência única nas suas vidas é amor. E o afeto é o que não falta para as crianças da Fundação. Parece vir dentro dos
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sacos de açúcar que lá desembarcam, através de doações, a todo o momento. Os abrigados estão sempre com roupas bem cuidadas sem nenhum furo, incomum entre menores de idade que costumam abrir buracos nas calças ao redor dos joelhos. São tratados com atenção e recebem grande apoio das pessoas que trabalham na Fundação. Mas também se pode perceber que eles sentem falta de estar com suas famílias, pois as pessoas que chegam ao local para visitá-los são recebidas com muitos afagos. Isso prova que estão carentes do amor que não tiveram de seus pais. Eles estão sob cuidados de uma equipe que acompanha a sua rotina.
Equipe entrosada Quem faz acontecer a Fundação são os 29 funcionários. São 16 educadores, diretora, motorista, duas cozinheiras, psi-
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cóloga, assistente social, auxiliar de enfermagem, pedagoga, nutricionista, faxineira, entre outros. O trabalho desses profissionais é essencial para contribuir com o futuro dos abrigados. Segundo Ângela, o trabalho em equipe é fundamental para o bom andamento do abrigo. “Se um falhar na equipe, surge a desorganização.” Os próprios abrigados também contribuem nas tarefas diárias como forma de aprendizado e responsabilidade. “A criança, quando usa o prato, lava a sua louça, porque ela tem que aprender a fazer esse manejo”, relata Ângela. Os jovens têm regras a cumprir e uma agenda cheia de atividades. Para os que são menores, há a hora do conto e um momento de orações. Para que as crianças tenham uma boa passagem pelo local, o profissionalismo dos educadores é fundamental. A responsabilidade deles é o atendimento integral aos jovens. Eles trabalham 12 horas por dia, sete dias por semana, alternando-se em duas equipes a cada 12 horas. As educadoras usam um relatório como meio de comunicação entre as duas equipes. Nesse relatório, escrito em um caderno, constam os fatos mais importantes que ocorreram no período de cada grupo. Funciona como um diário. Assim que um educador chega ao abrigo, o primeiro dever é ler o relatório que o seu antecessor escreveu. “Tudo que ocorre na parte da higiene, educação e saúde fica registrado no relatório”, afirma a educadora Rose Marie Machado. Os jovens fazem as refeições no abrigo. As cozinheiras preparam café da manhã, almoço, lanche da tarde e janta. Antes de dormir, os menores ainda tomam um copo de leite. Toda alimentação conta com a supervisão de uma nutricionista. Ela elabora os cardápios para que os abrigados tenham uma alimentação balanceada. O refeitório é um ponto de encontro sagrado entre os jovens e funcionários, além da sala de estar equipada com televisores. Além das atividades internas, há trabalhos realizados em outros locais que colaboram com o crescimento dessas crianças. O PEI (Programa Esporte Integral) é um exemplo. Realizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o PEI tem como parceiro o Instituto Ayrton Senna e
oferece atividades como dança, música e esportes coletivos. Durante as tardes, alguns jovens do abrigo frequentam as atividades como forma de buscar o desenvolvimento social. Porém, para se deslocar à universidade, que fica distante quase 10 km do abrigo, é necessário um transporte. O responsável por levar e buscar as crianças para qualquer destino, seja no PEI, no médico ou na escola, é Sílvio Loeser. O motorista carrega as crianças numa Kombi e fica disponível sempre que for necessária a condução. Sem o trabalho de Sílvio, os jovens não teriam a mobilidade comum do ser humano, pois a responsabilidade da guarda das crianças é do abrigo. Sílvio também colabora na busca de doações para a Casa. “Busco doações quase diariamente. Os móveis eu primeiro desmonto para carregar na Kombi e remonto assim que chego na Casa.”
Missão Satisfeita com a união da equipe, a diretora Rose Ritter sabe da importância que os funcionários da Fundação têm para as crianças e conclui no que isso reflete: “Para o dia a dia funcionar, a gente dá o suporte para os funcionários cumprirem a missão de acompanhar e educar os jovens, na busca por uma vida de muito sucesso, tanto pessoalmente quanto profissionalmente. E que mais tarde possam voltar até a Fundação com suas famílias constituídas.” Os voluntários que ajudam na Fundação também tentam vincular sua família ao trabalho social. Há casos em que os jovens recebem aulas particulares, de algum familiar de um voluntário, para que tenham melhor desempenho na escola. Além de contribuir no amparo aos menores, eles tentam acrescentar alegria na vida daqueles que mais precisam. Estão sempre presentes e prontos para o que for necessário. É raro ver alguém disposto a combater esta realidade no Brasil, pois cada vez mais as pessoas estão preocupadas com elas mesmas, aflorando o individualismo humano. Para essas pessoas, pouco importa se há alguma criança sendo violentada pela mãe ou abusada sexualmente pelo pai. Entretanto, na Fundação, esses jovens podem voltar a sonhar.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Assim como optei por realizar a reportagem sobre um local que abriga menores abandonados ou vítimas de abusos, optei por um trabalho amparado por pessoas incomodadas com uma das mais preocupantes questões sociais do Brasil. Tive algumas surpresas logo que cheguei, pois esperava encontrar jovens mal arrumados, desiludidos e sem sonhos. Mas foi completamente o inverso. Os
jovens da Fundação são educados, receptivos e interessados. O que chamou mais a atenção foi a maneira como todos do local se tratam, sobressaindo-se o respeito e o amor. Esse é o significado da harmonia que o ambiente transmite. Fiquei satisfeito com aquilo que presenciei na Fundação e, assim como eu, espero que você, leitor, tenha uma boa primeira impressão do abrigo.
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SEM SURPRESAS,
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POR FAVOR Nos trilhos, o inesperado tem cheiro de morte TEXTO MÁRCIA LIMA
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ó uma coisa tira o bom humor de quem trabalha na Trensurb: pessoas que se jogam na frente dos veículos. Todo o resto – cantores-mirins que viajam escondidos e trocam moedas por sertanejo, pedintes “que poderiam estar roubando” ou mesmo o fato de a companhia funcionar 24 horas, sete dias por semana – é tirado de letra. E são muitos os fatores que tornam possível a viagem de 45 minutos entre as estações Mercado e São Leopoldo. “É como um iceberg. Todos vêem apenas o trenzinho, a maior parte não aparece”, conta Rubens Pazin, gerente de operações da Trensurb. A começar pelo horário de funcionamento da empresa. Se engana quem pensa que após a partida dos últimos dois trens, às 23h05, é o início do descanso. Pelo contrário. Quando ambos chegam às estações terminais, entram em cena os times de manutenção. Um deles é responsável por analisar e consertar a chamada via permanente (os trilhos) e a rede aérea (a fiação que é ligada aos trens) até as 4h da manhã seguinte. O outro time fica no pátio da empresa – um imenso espaço aberto junto à estação Aeroporto. Neste local, são realizados a limpeza e o conserto de trens em galpões que parecem relativamente frágeis, mas que contam com estrutura suficiente para erguer as locomotivas a metros do chão. Em cada um dos 365 dias do ano, um trem vai para a manutenção. Não interessa se é Natal, Ramadã ou dia de Gre-Nal. Tudo para não dar chance ao azar. “Somos muito chatos, muito exigentes. Se a equipe desconfia de algo, interfere e elimina o risco. É por isso que nunca batemos um trem. Nunca descarrilamos”, orgulha-se Pazin. Somente em 2008, foram transportados 47 milhões de passagei-
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ros e, por mais sufocante que seja a viagem nos horários de pico, a empresa compromete-se com o mantra “não é carga o que está sendo transportado, mas pessoas”. Poderia ser apenas um discurso corporativo, não fossem os 93% de passageiros satisfeitos, segundo pesquisa realizada em 2008 pela consultoria Kepeler. Para levar cerca de 170 mil pessoas por dia são escalados 100 operadores de trem. Nos horários de pico, 19 carros se deslocam pela via, com velocidades que variam entre 30, 50, 70 e 90 km/h. Para que os operadores tenham um tempo mínimo de descanso entre as viagens, seja para fumar um cigarrinho ou tomar um café, 25 profissionais se revezam. Geralmente, o maior problema de um piloto é o tédio. “É empolgante nas primeiras voltas, mas imagine fazer o mesmo caminho durante anos. Não é um trabalho cansativo, mas é monótono”, confidencia Pazin, que foi contratado como operador, antes que a empresa estreasse comercialmente, em 1985. O pessoal daquela época é, basicamente, o mesmo de hoje. Apenas nos últimos anos chegaram novos pilotos. Para todos eles, a regra é a mesma: ficar atento a tudo o que acontece na via. E não largar, de jeito nenhum, uma alavanca chamada Controlador Mestre. Se o fizer por cerca de 30 segundos, é acionado o alarme conhecido como “homem morto”, que liga o freio de emergência e faz o trem parar automaticamente. As dores musculares e a monotonia de uma jornada de 35 horas semanais são pagas com um salário de R$ 1.500,00. De brinde, os funcionários são recompensados com porções de anedotas. Eloy Roberto Antunes conta uma delas. Certa noite, quando fal-
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tava menos de 15 minutos para o fechamento das estações para o público, ouviu no rádio a comunicação de pessoa nos trilhos. Diminuiu a velocidade até que avistou “um velhinho de uns 80 anos, bem humilde, com duas malas, caminhando pela via”. O senhor, de Tupanciretã, desceu na estação Sapucaia por engano. Pensou ter perdido o último trem e decidiu caminhar tranquilamente pelos trilhos até chegar a São Leopoldo. Ganhou uma carona na cabine do piloto. “O fato foi engraçado, mas também preocupante, pelo risco de atropelamento”, diz. Maior preocupação dos operadores, o atropelamento é, na maioria dos casos, o nome oficial de um grande tabu: o suicídio na via. Evita-se a exposição dos fatos, para não incentivar novos casos. Pouco se pensa, no entanto, no lado de quem está no comando do trem. “É uma coisa terrível. Tem operadores que piram. Isto reflete muito no psicológico. Não é à toa que o ambulatório localiza-se ao lado da sala de pilotos”, conta Rubens Pazin. Como se o impacto mental não fosse suficiente, os operadores respondem processo criminal por homicídio culposo. Pelas estatísticas, as tentativas acontecem principalmente nas plataformas e nos locais de alta velocidade, e os funcionários são treinados para identificar suicidas em potencial. Geralmente, a pessoa reflete por um tempo, vacila, chora. Enquanto isso, os operadores são avisados por rádio e diminuem a velocidade quando entram nas estações. Mas nem sempre é fácil prever. Existe o tipo classificado como convicto, e sua decisão dificilmente poderá ser impedida. Nesse caso, é acionado um “kit de atropelamento” com o material necessário para realizar a remoção: sacolas, luvas, máquina fotográfica, tudo de forma a agilizar o trabalho da perícia.
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Além dos operadores, outro setor invariavelmente afetado pelo acontecimento é o Centro de Controle, onde 320 câmeras monitoram tudo o que acontece nas 17 estações. O aparato consiste no maior sistema de vigilância do Estado e cada equipamento conta com zoom óptico de 30x e zoom digital de 20x, o que permite alcance de até dois quilômetros. Citando o livro 1984, de George Orwell, Pazin – advogado por formação, com rápida passagem pelos cursos de Engenharia e Jornalismo – afirma que tamanha observação tem gerado um debate sobre controle e vigilância. “O objetivo é monitorar, não é controlar. Temos que ter muito cuidado”, filosofa. Outra forma de não interferir na privacidade do indivíduo é o recurso de câmeras inteligentes. Ao todo, são 57 equipamentos fixos que encontram as ocorrências sozinhos. Em determinados locais, como os trilhos do trem, as câmeras são sensíveis a mudanças atípicas de imagem. Se uma pessoa desce na via (o que acontece mais do que deveria, para juntar documentos, principalmente) as câmeras avisam a Sala de Controle. Além de dar ordem ao caos, é nesta sala que toca o telefone de emergência – estampado em todos os trens. Geralmente as ligações dão conta de um problema de saúde e o atendimento é logo encaminhado. “Nossa resposta é rápida e isso deixa o usuário muito satisfeito”, diz Mário Luiz Lima, com um sorriso genuíno estampado no rosto. O controlador, que também está na Trensurb desde o início das operações, é uma das figuras lendárias da empresa. Estudante de Música na Universidade Federal do Rio Grande do
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Sul (UFRGS), descrito como “genial” pelos colegas, é visto, em certas madrugadas, tocando sax. A sala de controle, que não pode nunca ficar abandonada, é tomada então por música da melhor qualidade. Palavra dos colegas. Mas a diversão não se resume aos momentos musicais de Mário Luiz Lima. Quem trabalha nas estações, seja na bilheteria ou na segurança, também divide boas histórias. Acyr Winckler Martins, assistente de operações, é o campeão delas. “Alguns usuários pedem seus bilhetes dizendo apenas o nome do destino. Sendo assim, pode escrever, quando você dá uma integração (passagem que combina ônibus e trem), ele queria unitário. Mas se você der unitário, ele queria integração”, diz. “A ciência para acertar está em olhar bem para o usuário, adivinhar o que ele está pensando e pegar o bilhete contrário. Mas se o usuário percebe que você está tentando adivinhar o que ele quer, não funciona. Você tem de saber blefar”, faz graça – com o humor típico daqueles dias em que todas as pessoas seguem paradinhas na plataforma. Dias cada vez mais presentes, é bom que se diga.
Quando o tema bastidores foi escolhido, lembrei das histórias de mortes nos trilhos abafadas pela mídia, mas recorrentes no mundo todo. Os relatos que ouvi são tristes, preocupantes, e me fizeram compreender a campanha iniciada em Paris, em janeiro deste ano, que tenta desestimular as pessoas a pôr fim à vida dessa maneira. Também por aqui o suicídio é um fantasma com o qual todo operador de trens convive. Basta inverter a perspectiva para perceber que o homem ou mulher que está na cabine terá sua vida afetada para sempre após este acontecimento. No entanto, esse não é o único aspecto intrigante sobre a empresa. Um verdadeiro exército se alterna dias e noites na busca pela perfeição, seja nos trilhos, segurança, limpeza ou atendimento. Usuária do serviço por dois anos, diariamente, sempre na hora do rush, eu não tinha esta percepção. Bastou inverter a perspectiva outra vez para entender que o processo é muito mais complexo do que parece, exatamente como o iceberg descrito por um dos entrevistados. Ficarei feliz se a reportagem servir para quebrar um pouco deste gelo e apresentar fatos novos sobre um velho conhecido dos gaúchos: o Trensurb.
O Centro de Controle tem 320 câmeras que monitoram as 17 estações
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DE CAMELÔS A EMPRESÁRIOS O Centro Popular de Compras de Porto Alegre mudou não só a paisagem da cidade, mas também a vida de muitos trabalhadores informais TEXTO ANA PAULA SARDÁ FOTOS VANESSA REIS
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egunda-feira, oito horas de uma manhã ensolarada no centro de Porto Alegre. Aquela típica movimentação dos camelôs montando suas barracas para mais uma jornada de trabalho na Praça XV não existe mais. Agora, a movimentação se dá em outro local, também na mesma região, no Centro Popular de Compras (CPC), apelidado carinhosamente pelos trabalhadores de Camelódromo. Dentre as mais de 800 lojas, muitas histórias. Os números passam a ganhar identidade com divertidos e surpreendentes relatos. O local, inaugurado em fevereiro deste ano, ainda é desconhecido por grande parte da população. O que antes podia ser visto por todos na rua, agora ganha uma nova estrutura. A casa dos comerciantes passou a ser um mini-shopping, e eles
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já não se consideram mais camelôs, e sim microempresários. Anderson Vargas, 36 anos, é um homem de porte imponente, expressão séria, mas com alguns minutos de conversa descobrimos o lado descontraído e alegre do responsável pelos funcionários de segurança e limpeza do Camelódromo. A rotina é cansativa, pois sua equipe, composta por 22 seguranças e 13 auxiliares de limpeza, trabalha 24 horas por dia no local, não importando se é feriado ou fim de semana. Os seguranças se dividem em dois turnos de 12 horas, e os funcionários da limpeza em três turnos. Durante o horário comercial, a turma da limpeza atua “arrumando a bagunça” deixada pelo descarregamento de mercadorias e pelos trabalhos de manutenção do local, explica
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Anderson. À noite, os funcionários do terceiro turno efetuam o trabalho de limpeza do chão e das escadarias, entre outros. Neste ramo de atuação desde 1996, antes trabalhando como vigilante em Canoas, Vargas coordena essas equipes no Camelódromo desde sua inauguração, em fevereiro deste ano. Uma das partes que o público não vê é o quão fundamental é o trabalho desses profissionais. E para que tudo funcione corretamente, o bom entrosamento e a união são necessários. Para o coordenador, a equipe já é como uma família, pois sempre encontram o apoio dos colegas, tanto em questões particulares quanto profissionais. “Nos defendemos, nos apoiamos, o problema de um é o problema de todos”, revela Vargas. Casado e pai de duas filhas, diz sentir orgulho de seu
trabalho. Além de gostar muito do que faz, apesar de considerar a profissão de segurança arriscada, o trabalho e a recente função de coordenador lhe permitem proporcionar uma vida melhor para sua família. No CPC as relações profissionais vão além do simples coleguismo. Muitos trabalham em família, pais, filhos, primos, namorados, e não é raro que os problemas particulares venham à tona no local de trabalho. Algumas vezes, é preciso que os seguranças interfiram. Vargas conta que numa ocasião teve que apartar uma briga de namorados. “Eu sempre via o rapaz com a namorada e um dia vi ele com outra. Fiquei meio acanhado, mas não disse nada. Não deu dois minutos e a namorada chegou. Daí tive que me meter e apaziguar a situação, mas tudo foi
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Os funcionários coordenados por Vargas se revezam para proteger o camelódromo 24 horas por dia. A segurança, antes inexistente na rua, é um dos motivos para Alexsandra aprovar o novo local de trabalho
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resolvido”, diverte-se. Esse tipo de situação é comum no local, mas nem só de brigas e picuinhas vivem os comerciantes que trabalham com seus familiares. Alexsandra Szewzynski, 35 anos, mãe de duas meninas e um menino, teve sua primeira e única experiência profissional como camelô, muito devido ao pai, que atua no ramo há quase 40 anos. Proprietária de uma banca de bichinhos de pelúcia com o pai, Alê, como é chamada pelo pessoal do CPC, tem sua vida misturada com os desafios e alegrias da profissão de camelô. A interação com os colegas ultrapassa as relações profissionais. Alexsandra considera como irmã uma das amigas que fez durante os anos de camelô. “A Raquel não é minha irmã de sangue, é minha irmã de coração, e nos conhecemos nos camelôs”, revela. Além disso, uma de suas filhas namora atualmente um dos lojistas, e a própria Alexsandra conta já ter namorado alguns colegas. Suas duas filhas estudam pela manhã e trabalham à tarde como babás no local, cuidando dos filhos de outros proprietários de bancas no Camelódromo. Um dos bebês é o filho de Raquel, e o outro, de uma lojista vizinha. Antes trabalhando na Praça XV, Alexsandra afirma que as melhorias com a ida para o CPC foram significativas, pois anteriormente perdia muito de sua mercadoria devido às chuvas. Além disso, as vendas foram facilitadas com a implantação das máquinas de cartão de crédito. A estrutura do local permite aos comerciantes um melhor atendimento aos clientes, com segurança, banheiros, praça de alimentação e caixas eletrônicos. Uma das poucas reclamações que tem quanto à mudança é em relação aos colegas. “Eles agem como se ainda estivessem na rua, não pensam que agora não são mais camelôs, e sim lojistas. Muitos deixam tudo sujo em volta de suas bancas, e isso é um desrespeito aos colegas e clientes”, desabafa Alexsandra. Como passa os dias dentro do local, atividades pessoais como cuidados estéticos também acontecem dentro do CPC. Alexsandra utiliza os serviços de uma manicure e pedicure que vai até as bancas dos lojistas. Os bichinhos de pelúcia que comercializa são trazidos semanalmente do Paraguai pelo
pai, ainda vazios, e quando chegam à capital são preenchidos pelos dois com fibras de silicone, compradas ali mesmo na região do centro de Porto Alegre. Como nunca venderam material ilegal, Alexsandra afirma não ter tido problemas com a fiscalização, que ocorre constantemente dentro do local e em todo o centro, mas já presenciou cenas tristes. “Esta semana mesmo, vi um brigadiano levar toda mercadoria de uma senhora ali na Praça XV. Tudo bem que é ilegal, mas é o trabalho dela”, lamenta.
Família unida Provando que família que trabalha unida permanece unida, Eunice Albrecht, 56 anos, 25 como camelô, descobriu a profissão através de seu esposo, Paulo Mallmann, camelô desde a infância, que sempre acompanhou o trabalho dos pais. A rotina é corrida. Eunice, Paulo e a filha mais nova, Jaqueline, trabalham das 9h às 20h, de segunda a sábado, vendendo lingeries em sua loja, maior que as demais por terem alugado três boxes. “Pagamos três vezes mais, é puxado, mas precisávamos de lugar para expor a mercadoria”, revela Paulo. Ao contrário de Alexsandra, a relação da família com os colegas de trabalho não se tornou tão próxima. Seus outros dois filhos e as noras atuam fora do Camelódromo. “Como sempre morei em Cachoeirinha, e meus filhos estudavam lá, a relação deles com nossos colegas de trabalho não era muito próxima”, relata Eunice. A família já vendeu diversos tipos de mercadorias, começando com bijuterias e relógios, passando por vestuário, na época em que trabalhavam na Praça XV, e hoje com lingeries. Eunice e a família dão muito valor ao seu pequeno empreendimento, que sempre garantiu o sustento de toda a família. Formaram filhos, adquiriram bens, tudo devido ao trabalho como camelôs. “Quando eu passo na frente de certos lugares aqui no centro e vejo as enormes filas de pessoas procurando emprego, dou mais valor pro meu trabalho”, conta Eunice. Cada um desses trabalhadores tem diferentes histórias de vida que os levaram aos seus atuais empregos, mas uma coisa é comum a todos eles, o orgulho do que fazem e a certeza de que dão o seu melhor pelo Camelódromo.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Por muito tempo trabalhei no centro de Porto Alegre. Sua paisagem rodeada de camelôs e pessoas ávidas pelas novidades made in Paraguai acabou se tornando usual para mim e, por vezes, passando despercebida. Ao retornar à região muito tempo depois, deparei com uma praça vazia, sem gritos, sem barracas, com menos pessoas. Parecida com fotos antigas do centro, retratadas por fotógrafos lambe-lambe. A construção do Centro Popular de Compras, ou Camelódromo, mudou radical-
mente uma das principais paisagens porto-alegrenses. Se para melhor ou para pior, só o tempo irá dizer. Na minha opinião, o centro agora pode exercer melhor sua função turística, tornando pontos como o Mercado Público e o Chalé da Praça XV mais destacados. Ao mesmo tempo, os loucos por compras e novidades, como eu, têm um espaço muito melhor, seguro e limpo, para libertar seu lado consumista, com 800 lojas organizadas e com mercadorias mais visíveis ao seu dispor.
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Como funciona a maior instituição psiquiátrica da América Latina e o espaço artístico dos pacientes TEXTO E FOTOS RÉGIS EDUARDO
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ificilmente alguém passa em frente ao número 2460 da avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre, e não se sente atraído a observar o descampado e a imponente construção de estilo imperial ali localizada. É exatamente nesse prédio que funciona o maior manicômio da América Latina, o Hospital Psiquiátrico São Pedro, que em 2009 completa 125 anos. A unidade de saúde atende a uma área que compreende 88 municípios das 1ª, 2ª e 18ª regiões de saúde do Estado, cobrindo aproximadamente 5 milhões de pessoas. De acordo com o diretor-geral, Luiz Carlos Illafont Coronel, nos tratamentos realizados são utilizados apenas os métodos convencionais, confirmados pela ciência. Apesar de estar localizada em Porto Alegre, a instituição não atende a pacientes da capital, devido à administração estar submetida à Secretaria Estadual da Saúde, exceto em dois casos: crianças e adolescentes. Excepcionalmente são acolhidas pessoas de outros estados, até mesmo do exterior, para o tratamento psicoterapêutico. Atualmente, recebem tratamento em torno de 500 pacientes, 55% mulheres e 45% homens. Desses, 370 são de longa permanência. A maioria idosos, abandonados por suas famílias. Os outros 130 são de curta permanência, chamados de casos “agudos”, que recebem atendimento na internação psiquiátrica. A estimativa é que a reincidência após o tratamento seja de aproximadamente 40%. Através do número crescente de pessoas com dependência de crack que chegavam ao hospital, surgiu um importante diagnóstico da saúde mental no Rio Grande do Sul, a chamada “epidemia do crack”. Hoje, o grande consumo da droga entre adolescentes e adultos é um dos mais graves
problemas de saúde e segurança enfrentados por governo e sociedade gaúcha. Internamente, o São Pedro é separado por unidades destinadas a públicos específicos, como crianças, adolescentes, dependentes químicos, homens, mulheres, entre outros. Cada ala tem por volta de 30 leitos. Segundo a direção, existe um grande déficit em relação à demanda de vagas para internação. Os leitos estão permanentemente lotados e a fila de espera é grande. A paciente mais antiga está com 91 anos, internada há mais de 40. Conforme Coronel, a instituição enfrenta deficiências de infraestrutura, falta de materiais e recursos humanos. Estando na chefia desde 2007, início do governo de Yeda Crusius, ele acredita que o futuro do hospital será sua transformação em um centro de atenção integral à saúde mental. As vagas da equipe diretiva - diretor-geral, diretor-médico, diretor-técnico, diretor-administrativo e diretor de ensino e pesquisa - são preenchidas por indicações de cargos de confiança do governo do Estado, os chamados CCs.
O espaço de expressão e criatividade Quatro de maio, 9h. Em uma das entradas do prédio principal do São Pedro fica o espaço destinado à Oficina de Criatividade. Aos poucos os pacientes vão ocupando a sala ampla e arejada, ali encontram mesas largas e compridos bancos de madeira. A iluminação artificial é complementada com a claridade que entra pelas grandes janelas localizadas lateralmente. Bem próxima à porta de acesso encontra-se uma pequena bancada, sobre a qual estão dispostos vários pincéis e pedaços de papel craft, prontos para serem utilizados. Os que chegam são em sua maioria pacientes de longa permanência, que partici-
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pam da oficina, alguns terapeutas e auxiliares do setor. Alguns internos têm suas roupas marcadas por códigos para identificar a unidade a que pertencem. Muitos têm dificuldade para falar, caminhar, porém todos têm uma grande expressão no olhar. Um olhar que “fala”, que comunica muito de suas histórias de vida. A Oficina de Criatividade foi criada em 1989, por uma equipe interdisciplinar composta de enfermeiros, psicólogos e profissionais das artes, com o objetivo de proporcionar um meio de vazão à inventividade dos pacientes. No ano de 1996, a oficina começou a receber crianças, e, em 1999, adolescentes. Hoje atende ao ambulatório e à rede de saúde mental da capital. “A Oficina de Criatividade é um local de vida, uma janela
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dentro do São Pedro, onde ocorrem trocas, um ambiente de convivência, de resgate da subjetividade das pessoas que vêm aqui”, afirma Giselle Silva Sanches, uma das psicólogas responsáveis pelo setor. O trabalho realizado nesse setor foi inspirado na prática desenvolvida em 1946 pela psiquiatra Nise da Silveira, no Centro Psiquiátrico Pedro II, nos ateliês do Engenho de Dentro, no Estado do Rio de Janeiro. Com o mesmo método de “expressão livre” desenvolvido por Nise, os terapeutas da Oficina de Criatividade acompanham a expressão do paciente, observando seu comportamento durante o processo criativo, desta forma, incentivando e facilitando sua experiência. De acordo com Giselle, além de funcionar como atividade artística, a oficina está aberta a várias abordagens terapêuti-
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Às quartas-feiras, na Oficina de Criatividade, pacientes produzem trabalhos artísticos
cas, sendo também um local para pesquisa acadêmica. “Aqui também conseguimos fazer um acompanhamento sistemático e terapêutico dos pacientes que chegam. Através de suas participações podemos fazer uma abordagem clínica pela análise de seus trabalhos, mesmo não sendo essa a proposta inicial”, relata Gisele. A Oficina de Criatividade está aberta a projetos de pesquisa de professores e estagiários de várias áreas, desde que proponham um trabalho que seja direcionado aos pacientes e que colaborem em seu desenvolvimento psíquico e afetivo. No local são prestados, mensalmente, em torno de 600 atendimentos. Destes, 45 são pacientes de longa permanência, 20 da rede de saúde mental, além de crianças, adolescentes e adultos da área de internação. Alguns funcionários do hospital também participam da oficina. Estes desenvolvem trabalhos buscando o lazer e o relaxamento. Quando surge a necessidade, também são recebidos pacientes da rede de saúde mental de Porto Alegre, apesar de a instituição estar ligada ao governo do Estado. Giselle relata que alguns pacientes, após participar dos trabalhos, deixaram de usar a medicação prescrita por estarem com um quadro mais estável. A psicóloga relata um fato ocorrido em 1997, de uma moradora que era considerada o caso mais difícil da unidade de saúde. “Ela não frequentava a oficina, vinha mais pra ser escutada. Aos poucos, fomos criando um vínculo entre ela e os materiais para pintura. Após algum tempo, ela começou a pintar e a expor seus trabalhos no hospital. Suas internações, que eram frequentes, diminuíram consideravelmente e hoje ela está estabilizada”, diz Giselle. É verdadeiramente motivador encontrar um ambiente de sociabilização como este que possibilite a troca de experiências entre pessoas tão especiais. Apesar das inúmeras dificuldades que estes sujeitos enfrentam, desde a marginalização familiar, o abandono, a precariedade no tratamento de saúde mental fornecido pelo Estado e, sobretudo, o preconceito social, ainda assim é possível perceber que existe um envolvimento e um forte vinculo afetivo por parte dos pacientes.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Quatro de março de 2009, 9h30min. Passo pela portaria e sigo pelo caminho principal. Minhas mãos suam mais que o de costume. Estou em um dos lugares de Porto Alegre que mais mobilizaram meu olhar desde a infância, o Hospital Psiquiátrico São Pedro. Consegui uma entrevista com a psicóloga Giselle, uma das responsáveis pela Oficina de Criatividade. Caminhando pela área interna do São Pedro tenho uma sensação constante de desacomodação interna e inquietude de espírito. É o medo da loucura, talvez da minha loucura. Do lado de cá da cerca, me sinto desprotegido sem a couraça protetora do mundo “normal”. No deslocamento, a cada instante, cruza-se
com pessoas que não se tem certeza de por que estão lá, em visita, a trabalho ou como paciente. Quanto mais me aproximo do prédio principal, mais aumenta a ansiedade. Subo as escadas. Estou no interior do prédio. Peço pela terapeuta. Um atendente aponta uma porta e me informa que ela está ocupada. Aguardo. Alguns minutos depois uma pessoa sai da sala. Entro. Na conversa, Giselle me passa várias informações importantes sobre o hospital. Essa foi a primeira vez que caminhei pelo pátio do São Pedro. Me apropriar do ritmo das pessoas que circulavam ali, das cores e da textura do ambiente foi uma experiência muito interessante e enriquecedora.
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A HISTÓRIA O Centro de Atendimento em Semiliberdade abriga 16 adolescentes infratores que buscam a reintegração na sociedade TEXTO E FOTOS MARIA EVANA RIBEIRO
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ntre as belas casas da rua Padre Reus, em São Leopoldo, há uma com paredes de pedra bruta e discretos telhados. É a residência de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Lá, eles descobrem, no decorrer da convivência, novos laços afetivos, valores e conceitos, além de permanecerem unidos em busca de um bem comum: a liberdade. Nos finais de semana, ensaiam o regresso definitivo à casa dos pais e à comunidade. O Centro de Atendimento em Semiliberdade (Casemi) é uma casa pequena, não muito diferente das demais. Abriga jovens infratores que agora frequentam a escola, fazem cursos e oficinas profissionalizantes e praticam esportes. Essas atividades são imprescindíveis e servem como regras de permanência na casa. Ao chegar no Casemi, um socioeducador me guia por dentro da instituição. A entrada é pela garagem, reformada para funcionar como escritório. Na parte inferior ficam os setores técnicos e administrativos e depósitos de materiais de expediente e de alimentos. A primeira sala que se avista do corredor é a menor. Lá funciona a checagem. Os rapazes que saem ou chegam são submetidos a uma revista para evitar a entrada de objetos indesejados na unidade. Na segunda sala há um pequeno posto de enfermagem, com kits de primeiros socorros em cima da mesa. É lá que a enfermeira Clarisse Wuttke atende por duas horas todos os dias, desde a criação do local. Suas palavras revelam o carinho pelos jovens: “São bons meni-
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nos e muito espertos, fazemos tudo que podemos para deixá-los à vontade”. No estreito corredor, encontro outras salas que servem para as oficinas de pintura, aulas de reforço e conversas com psicólogos e pedagogos. A sala da a dministração é simples e organizada, tem apenas duas cadeiras, uma mesa e um armário. A parede é decorada com pinturas manuais feitas pelos internos em tons de azul e branco, que representam a paz.
O sistema de semiliberdade Em São Leopoldo, há alguns anos, instituições nãogovernamentais se uniram para recuperar dependentes químicos numa tentativa de diminuir os altos índices de violência e de reincidência entre os jovens que saíam da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase). A ação começou com a desintoxicação de moradores do bairro Rio dos Sinos, tido como o mais perigoso da região. O trabalho envolvia também acompanhamento psicológico e pedagógico, cursos e encaminhamento ao mercado. Conquistou bons resultados e a simpatia das autoridades. Em 2003, o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu a qualificação do atendimento nas medidas socioeducativas de semiliberdade e de meio aberto tendo como paradigma o fortalecimento de vínculos familia-
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res e comunitários. Dessa forma, a Fase criou em São Leopoldo o Casemi, primeira casa no Estado a atender crianças e jovens no regime de semiliberdade. O Casemi abriga hoje 16 adolescentes de 12 a 19 anos, todos vindos do regime fechado da Regional de Novo Hamburgo, uma das unidades da Fase. Cerca de 300 jovens já passaram por lá e recomeçaram suas vidas com profissão, emprego, estudo e um novo jeito de encarar a vida. O diretor, o pedagogo Pedro Rosa, trabalha há 17 anos com adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Pedro conta como o jovem vai parar lá: “De acordo com a avaliação do psicólogo, ele pode ou não vir para a semiliberdade. Tudo depende do comportamento, do estado psicológico e da liberação do juiz”. Em alguns casos, o cumprimento de uma medida já começa pelo Casemi. De acordo com a Fase, cerca de 1.172 adolescentes estão em liberdade privativa no Rio Grande do Sul, mas apenas 36 no sistema de semiliberdade, que é uma forma de benefício. Para concedê-lo, são feitas avaliações a cada semestre. O diretor conta com uma equipe social multidisciplinar. São dois psicólogos, um assistente social, uma enfermeira, um educador pedagógico e seis socioeducadores que acompanham os internos em todas as atividades. Para uma convivência pacífica, todos têm tarefas
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diárias, horários programados e regras a cumprir. “São apenas seis meses da sentença estabelecida pelo juiz, mas o suficiente para o processo de reinserção na comunidade e na vida social. Por isso eles têm que se readaptar com responsabilidade, pois lá fora vão ter que cumprir tarefas também”, ressalta Pedro. A psicóloga Ana Lúcia Czermainski, há sete anos no Casemi, acredita que o diferencial é a atenção individual aos menores. Ana Lúcia enfatiza que as famílias e o ambiente doméstico têm papel importante na recuperação. Por isso, os psicólogos fazem visitas periódicas às residências e incentivam o acolhimento do jovem. “É importante conhecer o ambiente para onde vão retornar ao fim do processo. Eles têm de se preparar para o que vão encontrar lá fora”, ressalta.
Os moradores e as atividades No andar superior, as paredes bem limpas e as escadas brancas comprovam o bom trabalho dos internos, responsáveis pela limpeza do ambiente. Um carpete verde-escuro forra o chão da sala até os quartos. Oito adolescentes se reúnem em frente à pequena televisão. Na sala, sempre arrumada, os meninos sentam, levantam e caminham o tempo todo. No canto esquerdo, um armário de metal cinza guarda os pertences pessoais. A chave fica com o acompanhante de plantão. Uma prateleira expõe casinhas artesanais de madeira, jornal ou outro tipo de papel. Três sofás cobertos por mantas coloridas dão um ar alegre ao ambiente. No interior dos três quartos da casa há beliches e camas arrumadas, armários, tênis no chão e um pequeno varal de toalhas usadas. Alguns garotos descansam no quarto. Os que estão na sala assistem e debatem sobre o filme O terno de 2 bilhões de dólares, estrelado por Jackie Chan. Três deles se dedicam aos pequenos quadrados de papel de seda coloridos que são alinhados em várias camadas, formando origamis. A prática do artesanato japonês os ajuda a combater o ócio e a desenvolver a cognição. André*, 18 anos, que tem nas mãos cicatrizes da violência das ruas, chegou no Casemi há quatro meses e meio. Faltando pouco para o cumprimento da medida, se diz ansioso, mas preparado para enfrentar a vida lá fora com responsabilidade. “Aqui é muito diferente. A gente acaba se sentindo útil e amado. Na Páscoa ganhei chocolates, acredita?”, diz ele, enquanto encaixa pedaços de papel. Recuperado das drogas, André se sente mais próximo da família do que nunca. “Todo fim de semana vou pra casa e levo presentes. Minha mãe fica muito feliz.” O rapaz não gosta de lembrar do sufoco que já viveu. Prefere sonhar com o primeiro emprego, que, assim como a liberdade, está a caminho. Enquanto isso, passa os dias se dedicando à arte do origami, vai ao futebol três vezes por semana e faz curso de informática. Léo* também se envolveu com drogas desde a infân-
cia. De família classe média, sempre teve tudo que quis, o que não evitou que seguisse o caminho errado. Recém chegado ao Casemi, já percebeu que a atenção, o respeito e o carinho vão ajudar na sua recuperação. Acredita que a experiência na casa é muito importante para sua volta ao seio da família. Segundo ele, o principal já foi aprendido: dar o devido valor à liberdade. É a primeira vez que cumpre uma medida, e espera que seja a última. O rapaz passa boa parte do tempo a escrever poesias e letras de músicas. Como os demais, encontrou no origami uma forma de combater a ansiedade. Seu maior desejo é terminar a sentença e se dedicar à filosofia. “Já está tudo certo para eu prosseguir meus estudos. Minha família me aguarda ansiosa.” Enquanto os meninos do Casemi arrumam as dobraduras de seus origamis, repensam seus valores e alimentam a esperança de nunca mais viver sem liberdade. * Os nomes foram trocados
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Sentir o local e vivenciar uma situação é o que todo repórter precisa para soltar as ideias. Acredito que a palavra certa é a recompensa. Eu resumiria assim a experiência de passar uma tarde dentro de uma unidade socioeducativa. A minha matéria, que trata de um assunto tão polêmico e ao mesmo tempo tão limitador para boa parte da sociedade, me mostrou que a liberdade e o limite são palavras diferentes, mas uma não é total sem a outra. Boa parte dos meninos que entrevistei no Casemi sonha com um futuro de liberdade, incluindo profissão e responsabilidade. No Casemi, percebi que os valores mais apreciados ensinam que o respeito é a maior lição da vida. Pode ser respeito pelos outros ou por si mesmo, mas deve ser valorizado. Senti que o local me envolveu, mostrando que todos podem reconhecer seus erros e recomeçar. Mesmo quando o erro é dos outros devemos respeitar. Deparei com uma longa estrada ao sair de Porto Alegre para São Leopoldo, e a cada quilômetro percorrido, me incomodava a ideia de ter que perguntar os porquês dos meninos estarem na liberdade assistida. Finalmente, quando cheguei ao local, decidi que o melhor mesmo não era falar e sim escutar, pois naturalmente veio a resposta para as perguntas, mesmo as mais difíceis.
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ROTINA DE REGRAS Amizade, disciplina e coragem são valores presentes na vida militar TEXTO FABIANE CASTRO FOTOS KAISER KONRAD
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uem passa em frente ao 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, em São Leopoldo, enxerga os portões fechados e uma guarda muito atenta a cada movimento de quem se aproxima. Uma placa de “Pare”, com a seguinte instrução: “Apague os faróis, acenda a luz interna, desligue o motor, identifique-se”, caracteriza uma primeira comunicação de ordem e zelo pela segurança da Força de Ação Rápida, como também é chamado o batalhão. O que acontece ao passarmos por estes portões e as histórias que lá podemos encontrar é o que dá vida ao cenário que no primeiro momento pode parecer um tanto hostil, pela seriedade expressa nos rostos destes militares, na postura e no fuzil que carregam.
Na recepção, chama a atenção uma luz que não se apaga sob dois monumentos patronais: o primeiro presidente do regime militar, Humberto Castelo Branco, e o político, jornalista e escritor Moniz Barreto. São simbologias dos valores e objetivos militares que prezam pela preparação de uma nação e relembram a luta de antepassados para inspirar atitudes. O tenente-coronel Israel Guimarães de Souza Martins, comandante do 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, destaca a importância dos patronos e lê a carta de Moniz Barreto ao Rei de Portugal. Um dos trechos diz: “Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si. A gente conhece-os por militares...”. E justamente
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isso que estremece pode ser o penetrar em um ambiente desconhecido, onde o verde da farda predomina, onde continências são cumprimentos, onde histórias se revelam em cada questionamento. O dia ainda não clareou totalmente. São 6h30min e os militares começam a chegar no quartel. No estilo civil, eles passam pelos portões, vigiados pela guarda de prontidão. Alguns chegam carregando o cabide com a farda, mochila nas costas e passos apressados. É um dia atípico, os recrutas e demais militares experientes irão participar do Teste de Avaliação Física (TAF). A corrida é de 12 minutos – cada faixa etária tem um índice estabelecido de quilometragem para percorrer. É uma prova realizada a cada três meses para verificar o estado de saúde de cada militar. Do outro lado do pátio, é interessante perceber a postura dos recrutas, que há tão pouco ingressaram nesta rotina de regras, de disciplina, de costumes e muitas vezes de hábitos tão distintos dos quais estavam acostumados no berço familiar. Para o comandante Israel, uma das dificuldades em passar aos jovens os valores militares está relacionada à educação construída na família, dadas as mudanças que ocorrem na sociedade. “Minha maior gratificação é ver o brilho no olhar dos familiares, vendo seus filhos desenvolverem a liderança, camaradagem e disciplina em uma instituição como o quartel”, destaca. No pátio, nos caminhos entre uma companhia e outra, os soldados também se comunicam mencionando abreviaturas. São códigos. Os militares utilizam muito o rádio e a abreviatura é uma característica forte nessa rotina militar. Algumas delas: Pel (pelotão), Op (operação), GLO (Garantia da Lei e da Ordem), SU (subunidade). Entre as atividades diárias, o comandante Israel cita o tiro, exercícios e preparação dos soldados no objetivo de proteger a nação. “Zelar pelas riquezas de um país para que o seu próprio povo usufrua seus direitos e evitar que a democracia seja uma demagogia minando a liberdade são objetivos patrióticos em nossas atitudes.” A voz experiente do comandante e o olhar observador expressam força e responsabilidade na liderança de transmitir conhecimentos aos militares. Já não tão experiente e adaptando-se à nova fase de sua vida com o recente ingresso no quartel, o soldado Guilherme Luiz Ferreira de Oliveira, que também reside em São Leopoldo, avalia que a visão da maioria das pessoas sobre o exército é equivocada em certos momentos. “Nós aprendemos muito, tanto em conheci-
mentos gerais como em questão de disciplina e respeito. Além disso, aqui desenvolvemos uma postura de homem, e não mais de criança”, afirma. O próprio soldado admite que sua percepção antes de ingressar na instituição era muito fantasiosa. “Eu imaginava a instituição a partir do que eu assistia pela tevê. Meu pai serviu e meu tio também, eles diziam que eu iria me divertir, que era muito legal o campo e outras experiências. Mas não é nada disso. Eu imaginava algo mais descontraído, não tão calmo.” Outro aspecto que o soldado Luiz Ferreira destaca é a amizade entre os militares: “Uma coisa é muito certa: chegou aqui, fez amigo”, garante, com empolgação. E nessa vivência, o jovem vê no exército uma oportunidade de crescimento profissional e pessoal. Entre as atividades, Luiz Ferreira destaca que o que ele mais gosta de fazer é a manutenção do fuzil. E quando questionado sobre o que não gosta muito de fazer em seu dia a dia, sem hesitar, responde: “Faxinão!”. A saudade é um sentimento presente na vida militar. Sendo músico, o recruta comenta que a música é a sua maior saudade, tendo em vista que atualmente não está dispondo de tempo para se dedicar a ela. Outra saudade está relacionada à família, seja nas
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Para mim, o interessante de uma pauta é penetrar um ambiente desconhecido. Ir com olhos e ouvidos cheios de curiosidade. Estar atento aos detalhes, enxergar além do que os entrevistados mostram e ler a linguagem corporal, que também fala, simultaneamente com a fala dos entrevistados. É um desafio e um exercício do “fazer jornalístico”. Foi assim que a experiência de realizar a pauta no quartel me proporcionou enriquecimento pessoal e profissional. Enquanto realizei este trabalho, construí relacionamentos fundamentais para nossa car-
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reira. Conheci pessoas e suas histórias. Estive presente nos momentos mais marcantes de suas atividades através de seus relatos. Trazer as impressões obtidas em forma de reportagem é um modo de compartilhar as dificuldades e a gratidão de realizar esta matéria. E se por um lado o ambiente militar era desconhecido para mim, por outro, para o meu fotógrafo, Kaiser, é um ambiente familiar, o que facilitou a troca de informações e percepções sobre a pauta. Aprendi muito com o colega também, foi uma grande parceria!
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missões realizadas pelos militares mais experientes ou no período de confinamento dos recrutas. “No internato foi pior! Duas semanas internado aqui, e na última semana estávamos todos chamando por nossos pais”, relembra. Nas paredes das companhias é possível verificar frases que estimulam a coragem dos militares. Uma filosofia de vida, visando à colaboração para a construção de um caráter. A religião também se faz presente. Imagens de São Jorge, por exemplo, são encontradas nos alojamentos. São detalhes que falam entre o silêncio do recinto. São detalhes que acompanham e influenciam a rotina desses militares. No quartel também é possível encontrar profissionais civis que possuem seus estabelecimentos comerciais dentro das dependências. É o caso da cabeleireira Eva Rosane Soares Tramontin. Ela, que também trabalha em outro salão, em São Leopoldo, compara o trabalho dentro e fora do quartel: “Os militares são menos exigentes, o atendimento é por ordem de chegada e o corte é mais prático”, destaca.
Missão de paz Nesta rotina militar, histórias de vida se somam e compartilham-se experiências. E uma dessas experiências foi a missão do Haiti, realizada em 2004. Para o cabo Tiago de Oliveira Seganfredo, que dará baixa do quartel no próximo ano, a vivência na missão do Haiti foi algo que ele levará como enriquecimento pessoal e profissional. No dia 12 de maio de 2004, o militar partiu para uma fase de superação, de colocar em prática o que no dia a dia é simulado nos exercícios. Amizade e coleguismo facilitaram a experiência na missão. O cabo revela que a maior dificuldade foi ver as crianças muito pobres chorando com sede. O irmão, também militar, participou da missão e amenizou o coração aflito de sua mãe ao saber da convocação dos filhos militares para o embarque rumo ao Haiti, já que estariam unidos dando força um para o outro. “No Haiti, o
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clima é diferente, muito quente. Além disso, a gente se sente meio perdido. Mas o povo haitiano nos recebeu muito bem, ainda mais quando ocorreu o jogo da Seleção Brasileira”, conta. O sargento Vilson da Silva Franco, que liderou a missão no Haiti, revela que foi motivo de orgulho a realização das atividades no país. “Sair de uma experiência de treinamento para uma situação real nos orgulha muito”, destaca. Franco conta que os soldados foram preparados na parte física, técnica e psicológica para essa missão. A maior dificuldade para o sargento foi o idioma crioulo do Haiti (mistura de francês, espanhol e inglês). Para amenizar a saudade do seio familiar, momentos de lazer com atividades físicas, churrasco, chimarrão e até um piquete gaúcho serviam de alento aos militares durante o período de seis meses que estiveram na missão. Entre uma entrevista e outra, o grito do pelotão: “Guerreira!”. Um grito puxado pelas vozes graves dos militares que se encontravam no pátio em exercício. O grito de guerra é algo que surge como uma expressão de força e ao mesmo tempo de proteção. Neste momento, é possível entender as palavras da carta de Moniz Barreto: “Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si”. Mesmo que o coração não esteja cansado, quando eles passam, em fila, alinhados, com a postura imponente e unidos pelo grito de guerra, é impossível não notar a sintonia do pelotão. O expediente dos militares se encerra às 17h, momento em que alguns seguem para a faculdade, outros se encontram com os amigos ou retornam para o berço familiar. Mesmo assim, as regras e disciplinas se fazem valer até mesmo fora. Pois no dia seguinte eles retornam, pontualmente, sob a recepção de uma guarda atenta. Antes do dia clarear totalmente e depois que a farda está bem passada. A cada dia vivenciam novos desafios por trás dos portões do quartel. Somando histórias e compartilhando experiências. Assim segue a vida por trás destes portões.
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TEATRO
NO ESCURO DAS COXIAS TEXTO MARIANA D’ÁVILA FOTOS FERNANDA CALEGARO
Os camarins escondem o encanto e a magia do espetáculo
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teatro surgiu na Grécia Antiga, no séc. IV a.C., em decorrência dos festivais anuais em consagração a Dionísio, o deus do vinho e da alegria. A palavra teatro significa uma determinada arte e designa o local onde o ator realiza o drama frente à audiência. No Brasil, sua implantação ocorreu devido ao empenho dos jesuítas em catequizar os índios, no século XVI. Desde então suas técnicas vêm sendo aprimoradas e a grandiosidade dos espetáculos cada vez surpreende mais. No entanto, há ainda muitas peças amadoras, sem patrocínio ou divulgação nos meios de comunicação, e esses espetáculos precisam de um grande esforço para chegar aos palcos. É o caso de duas peças que ficaram em cartaz durante os finais de semana do mês de março na Casa de Cultura Mário Quintana, sala Carlos Carvalho, em Porto Alegre: a infantil
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Baú de Histórias e Ardidos de Paixão. As duas apresentações foram dirigidas por Edwilson Nunes da Silva, o Edye, que além da responsável pela coordenação é, também, um dos atores do elenco e o que mais for necessário. É aí nos bastidores que se vê como tudo é realizado e como imprevistos precisam ser resolvidos de maneira rápida e eficiente. A primeira apresentação do dia é voltada ao público infantil, no meio da tarde. Os atores interpretam algumas fábulas conhecidas, contadas de maneira divertida por jovens artistas, na faixa dos vinte e poucos anos, apaixonados pelo teatro. Um a um, eles chegam, aproximadamente duas horas antes do início da peça, e já nesse momento se cumprimentam com um ar de despedida, pois esse seria o último dia de apresentações. Conversam, se arrumam, fazem a maquiagem e vão para as calçadas do centro da Capital, onde tentam atrair o público que
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O ator e diretor Edye se prepara para mais uma apresentação
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está andando pelas ruas. Com suas roupas coloridas e folhetos em mãos, saem conversando com as crianças, chamando-as para conhecer a história que, mais tarde, será apresentada no palco. Faltando aproximadamente 30 minutos para o início do espetáculo, os atores sobem as escadas até os camarins do teatro, onde terminarão de se arrumar, enquanto o público começa a chegar. A pessoa responsável pela iluminação não aparece, e Bruna Ruiz dos Santos, umas das atrizes da peça adulta, com apresentação marcada para algumas horas mais tarde, estava por lá e aprendeu, nos últimos segundos, como trabalhar nessa área. Ao lado dela está Bruna Paula Rodrigues, de 14 anos. Durante a temporada, a adolescente teve a sua primeira experiência trabalhando com som, sendo a responsável pela mesa de áudio na peça. Em razão desse período no teatro, hoje não pensa em mais nada que não seja fazer um curso de Artes Cênicas para que possa atuar. “Preciso muito começar a estudar. Não vejo a
hora de me apresentar, ficar em cima do palco, com o público me olhando o tempo todo”, deseja a menina. Faltam poucos minutos para o início da peça. Nos bastidores, os atores do espetáculo, Edye, Kariny Schoenfeldt e Lucas da Costa Furno, acertam os últimos preparativos, fazendo os retoques na maquiagem e separando o figurino para a troca de roupas que acontece durante a apresentação. Assim que soa o primeiro sinal, antes dos dois que antecedem a primeira cena, as portas se abrem e o público vai entrando. As crianças - muitas delas no teatro pela primeira vez - arregalam os olhos, observam o palco vazio com muita curiosidade e fazem perguntas aos pais demonstrando a sua emoção. Quando soa o segundo sinal, quase todos já entraram. As portas se fecham, as instruções para saída de emergência e para os celulares serem desligados, repassadas pelos auto-falantes, podem ser ouvidas. É o terceiro sinal. Os pequenos batem palmas, inquietos. As luzem se apagam, dá pra sentir a euforia do público, tão exigente, tão
O elenco colabora com a montagem do cenário
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Ter feito a matéria foi realmente muito bom. Passei diversas horas nos bastidores de um teatro, observando e conversando com os atores. Vi que uma produção pequena e sem patrocínios precisa de muito esforço e vontade dos artistas para ser concretizada de fato. Toda a organização necessária e o esforço individual de cada um deles são muito importantes para que o espetáculo seja realizado. E ter participado disso, visto como é toda a correria e o “jogo de cintura” imprescindível na hora de resolver imprevistos, foi realmente interessante para que a matéria pudesse ser escrita. Conheci a revista Primeira Impressão no início da faculdade de Jornalismo e lembro de ter ouvido os alunos-repórteres da época contarem suas experiências. Ao mesmo tempo, fiquei me perguntando se um dia seria capaz de escrever bons e enormes textos como os deles, e se conseguiria entrevistar as pessoas, independentemente do tema. Hoje sei que é possível, sem dúvida, e deixo a universidade com a certeza de que aprendi e valeu a pena.
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Para quem assiste à peça, todo trabalho de preparação é invisível
inocente. Atrás do palco, todos posicionados, esperando o momento de entrar em cena. O texto começa a ser dito pelo narrador e as crianças nem piscam, acompanhando a história. A primeira personagem, interpretada por Kariny, entra em cena, com uma roupa de leão, e fala, em voz alta, bem alta. Algumas crianças, muito novinhas, se assustam, mas são tranquilizadas pelos responsáveis que as acompanham. Assim que a primeira troca de figurino acontece, os atores já sentiram o público e sabem o que fazer: nesse dia, especialmente, com espectadores tão pequenos na plateia, os atores, já experientes, sabem que precisam controlar o tom de voz, para que os pequenos não chorem. “Hoje não posso ser um rato muito espalhafatoso”, brinca Kariny. Já as crianças maiores adoram tudo e querem participar em todas as situações possíveis, avisando às personagens que escolheram o caminho errado, ou que o inimigo se aproxima, por exemplo.
Detalhes Durante toda a peça, há muita movimentação atrás e ao lado do palco (onde está alojada a parte técnica). É nesse universo que acontecem detalhes que o público não vê, como a habilidade dos atores na troca de roupa em menos de um minuto e a correria ao atravessar o palco, por trás, de uma ponta a outra, no escuro e sem cair. Assim que o espetáculo termina, as luzes são acesas e o público vai embora, depois de aplaudir muito. Atrás das cortinas, os atores comemoram,
com um certo ar de saudade, pois lembram que foi o último dia da temporada. Mas não há tempo para despedidas, pois, em algumas horas, uma nova apresentação será feita. Lucas e Edye também fazem parte da próxima peça e juntam-se a eles Bruna, “a menina emprestada para a luz”, Raquel Nunes Rocha e Souza, Alvaro Dimare e Itanir de Souza. Agora a apresentação é para adultos: Ardidos de Paixão. Dentro do camarim, todos fazem a maquiagem ao mesmo tempo. Mulheres se transformam em homens e vice-versa. Faltando dez minutos para que as cortinas se abrissem, Raquel ainda não havia chegado. Ninguém conseguia contato através do telefone, até que, faltando três minutos, ela passa correndo por trás do palco, ser explicar o motivo do atraso, e se arruma em segundos, como num passe de mágica. Esses atores são como se fossem uma família e, assim como na peça infantil, se apresentam pela última vez. A sala está cheia e já é hora do terceiro sinal. Durante o espetáculo, todos estão concentrados, e o diretor Edye confere tudo até o último momento. Mesmo durante a peça, nas cenas em que não está no placo, ele consegue se aproximar do local onde fica a parte técnica e regular o áudio dos microfones. “Tenho que estar atento a tudo, mas é isso que eu gosto e sei fazer na vida.” Assim que a apresentação termina escutam-se os aplausos. Algumas atrizes se emocionam e choram, no clima da despedida. É o momento final. O público, de pé, se prepara para sair. É a magia do teatro e de seus bastidores que, por enquanto, terminou. As luzes se acendem.
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ESCOLA DE SAMBA
NEM TODO CARNAVAL TEM SEU FIM TEXTO PATRÍCIA GASTMANN FOTOS MARCELO GOMES
A festa popular acontece uma vez por ano, mas dá trabalho o ano inteiro
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bateria dá o ritmo da folia, as fantasias, o encanto, os carros alegóricos, a grandeza, e o sorriso no rosto dos componentes completa a magia do Carnaval. Mas nem só de sorrisos é feita a maior festa popular brasileira. Para chegar até a avenida e cruzá-la com muito samba no pé, é percorrido um longo caminho. Seiscentos componentes, três carros alegóricos e cinquenta minutos para desfilar o trabalho de um ano. Concorrendo pela segunda vez, a escola Estação Primeira de São Léo trouxe em 2009 um enredo sobre a primeira estação de trem do Rio Grande Sul, localizada em São Leopoldo. Conquistou o vice campeonato do Carnaval leopoldense. Mas essa conquista só foi possível pelo trabalho e empenho do pessoal que não usa fantasias, nem pode ao menos sambar no momento do desfile. São eles que fazem o Carnaval acontecer.
Enredo O primeiro passo para se iniciarem os trabalhos é decidir o enredo, ou seja, o tema que a escola vai mostrar na avenida. A responsabilidade estava nas mãos de Édson Luis Dutra, 19 anos, estudante e carnavalesco da escola. Ele, que sonha em ser jornalista, sempre teve o gosto pela escrita e escrevia roteiros de novela, como passatempo. Tudo começou como uma diversão e depois se tornou coisa séria, lembra ele. Sua história com o Carnaval teve início na infância, quando seu pai ajudou a fundar uma das escolas de samba de São Leopoldo. Em 2008, Édson foi a uma das reuniões da Estação Primeira de São Léo com o seu irmão, que havia desfilado pela escola, e teve, então, a oportunidade de apresentar a sua proposta de
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enredo. O projeto feito por Édson consiste em toda parte de pesquisa, e a partir dela é montada a sinopse, que é a história do enredo e o roteiro que a escola vai seguir. Tudo é posto no papel, com direito a capa com símbolo da escola, seguida do texto da sinopse e toda a organização do que vai ser mostrado na avenida, ala por ala, e também nos carros alegóricos. “O meu trabalho é mais a ideia, depois converso com o figurinista e ele coloca as minhas ideias no papel, faz os desenhos das fantasias”, explica Édson. O primeiro projeto que ele apresentou à Estação Primeira de São Léo era sobre o rádio. A diretoria elogiou, mas queria falar a respeito da cidade, e surgiu o tema da primeira estação de trem do Rio Grande do Sul, que hoje é o Museu do Trem. Édson assumiu a responsabilidade sobre o enredo e junto com uma historiadora começou as pesquisas na internet, em livros e revistas e com os funcionários do Museu. A segunda etapa foi “carnavalizar” o tema, que por ser um enredo histórico tem suas particularidades. “Tem que falar dos fatos sem perder o lado lúdico do carnaval, para não ficar monótono”, conta Édson. Em maio de 2008, ele já estava com o projeto em mãos, pronto para ser apresentado ao compositor, responsável por fazer o samba-enredo, e o figurinista, encarregado dos desenhos das fantasias. Em agosto estava tudo concluído: os desenhos das fantasias, a decisão de quem iria desfilar na escola como destaque e o samba- enredo. Aí começou a corrida atrás de recursos, patrocínios, apoio e a realização de eventos para conseguir fundos. Além de ter que ir atrás do espaço para fazer os ensaios, pois até então a escola não tinha uma sede. Após meses de empenho em que Édson dedicava mui-
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Com apenas 19 anos, Édson vai para o seu terceiro ano como carnavalesco
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ESCOLA DE SAMBA
O casal Gilberto e Zana trabalha o ano todo confeccionando as fantasias
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tas horas do seu dia à escola, chegou o tão esperado dia do desfile, mas Édson não assistiu. O desfile aconteceu no sábado e, na sexta, ele havia embarcado para o Rio de Janeiro. A convite da madrinha, foi assistir ao Carnaval carioca. “Fiquei com peso no coração, mas fui com a consciência tranquila de um trabalho bem feito”, ressalta. Para 2010 Édson já tem um enredo pronto, que começou a ser montado em novembro do ano passado, mas faz segredo a respeito do tema. Para 2011 e 2012, diz ter várias ideias, afinal, para ele o Carnaval é uma terapia. “Eu não me estresso no Carnaval, é algo que me renova. É um desafio a cada ano fazer algo diferente, não podendo ser igual ao apresentado no Carnaval passado, nem igual ao que se viu na escola que acabou de desfilar”, resume ele.
A rainha Toda escola tem sua rainha, e o cobiçado posto caiu de paraquedas nas mãos de Elisângela Janaína Caetano Macalão, 18 anos, estudante e estagiária em uma empresa de cobrança. Sua história com a escola de samba começou por acaso. Elisângela, em uma noite do mês de dezembro, ao sair do curso que fazia e ir para a parada de ônibus, não resistiu ao som que vinha do barracão da escola, que ficava próximo. ”O barulho me chamou e eu fui”, diz ela, que entrou na quadra em companhia de uma amiga e desde aquele dia não perdeu mais nenhum ensaio da escola. O convite para fazer parte da corte aconteceu naquela noite mesmo, quando a rainha da bateria disse que ela deveria ser a rainha da escola. Elisângela a princípio hesitou, pois tinha medo que os pais não aprovassem. Mas após ser convidada pela diretoria, que chegou a conversar com a família dela, acabou aceitando o convite e começou a se preparar para a festa. “Eu não tinha noção nenhuma sobre o Carnaval, até agora estou aprendendo”, confessa Elisângela, que conhecia a folia de São Leopoldo apenas das arquibancadas. O samba no pé não foi problema. Apesar de ter que assimilar o ritmo mais agitado, essa parte ela tirou de letra, assim como a simpatia e o sorriso constante no rosto. Manter a pose e estar sempre elegante foi um dos primeiros ensinamentos recebidos, assim como ser gentil, cordial e ouvir as pessoas. Durante o período de Carnaval, Elisângela se dedicava à escola de quinta a domingo, participando dos ensaios e de eventos. “Carnaval é alegria, é um momento que tu tens pra liberar toda tua energia, para colocar os maus pensamentos para fora”, define. Neste ano, ela pretende começar a se preparar em julho ou agosto. O Carnaval conquistou mais uma foliã apaixonada.
Fantasias Entre plumas e paetês, e com a responsabilidade de fazer as fantasias dos destaques da escola Estação Primeira de São Léo, está Rosana Pinheiro Marins, 36 anos, artesã, mais conhecida como Zana. Ela e o marido, Gilberto Edim Marins, 40 anos, trabalham juntos no ateliê do casal, Zmarins. Ele confecciona as armações e ela faz a decoração e revestimento das fantasias. “Ao receber os croquis do figurinista, a gente tenta
tirar do papel, o que é bem difícil”, conta Zana. A artesã recebe os croquis com a indicação da cor, mas a escolha do material fica por conta dela e, claro, do orçamento. “Eles sonham e a gente executa o sonho deles”, sintetiza. Para o último Carnaval, o casal confeccionou cerca de 14 fantasias para a escola. O trabalho vai desde a produção de cada detalhe de uma peça e continua no dia do desfile, quando ela e o marido ajudam o pessoal a se vestir e a fazer os últimos ajustes. Zana, que sempre gostou de Carnaval e desfilava, hoje acha que vale a pena ficar de fora da folia, pois é gratificante ver seu trabalho na avenida. Gilberto, torneiro mecânico de profissão, descobriu seu talento através da necessidade. A ala em que ele desfilava precisava de um adereço que era muito caro, então ele foi até a loja onde a peça era vendida, observou, chegou em casa e fez um protótipo. O modelo foi aprovado pela ala e ele, com arames, fez o adereço. A partir desse dia descobriu a arte de fazer alegorias. Durante o período de Carnaval, Gilberto conta que o dia começa às 8h e só termina às 3h do outro dia. O casal contrata reforços para ajudarem no ateliê. Em fevereiro, até os parentes de Zana que vieram do interior para desfilar acabaram colocando a mão na massa e ajudando na confecção das fantasias. Quatro vidas, quatro histórias e uma razão unindo todas elas. O Carnaval, que é logo associado ao feriado estendido e a folia, também é sinônimo de diversão levada a sério, de fonte de renda, da consagração de um trabalho, de uma nova perspectiva, e claro, de muita dedicação.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER O Carnaval sempre me encantou. Eu me lembro, com carinho, dos confetes, das serpentinas e de todas as personagens que pude viver na minha infância. Por um dia, fui bruxinha, palhacinha e carrego a frustração de nunca ter sido odalisca. Mas muito mais que encanto, o Carnaval sempre me despertou também curiosidade. Quando vi aquela pauta escrita no quadro, logo pensei: é sobre isso que quero falar! É o que eu chamo de unir o útil ao agradável. O trabalho e todo o esforço para colocar uma escola na avenida já me pareciam um prato cheio para preencher sete mil caracteres, que era o espaço destinado à matéria. Meu objetivo inicial era contar sobre toda a preparação de uma escola para o Carnaval. Ao entrar em contato com as fontes, descobri belos personagens que iriam constituir a base da minha reportagem. As histórias de vida e a ligação que cada um tinha com o Carnaval mexeram comigo. Sinto que dessa forma, além de mostrar os bastidores de uma escola de samba, consegui contar um pouco sobre aqueles que fazem toda a magia ganhar forma.
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Para muitos, a Vila do Chocolatão é vista como um pesadelo no centro da capital. Para os moradores, é o seu lar
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ogo na entrada da Vila do Chocolatão existe um armazém. Ele ocupa uma posição estratégica: da mesma forma que consegue atender os moradores locais, fica visível aos frequentadores do Parque Harmonia, um dos maiores de Porto Alegre. Não sei exatamente em que medida essa localização consegue trazer mais ou menos dinheiro para o mercado, afinal, o preconceito é bastante presente. No entanto, foi graças a esse armazém que eu tomei coragem em seguir com a minha reportagem e revelar como é o cotidiano no Chocolatão. Não que eu tivesse medo de ser agredido ou assaltado pelas pessoas que vivem lá. Muito pelo contrário. Atualmen-
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te, experiências cotidianas nos mostram que não existe mais horário, local ou dia para a ocorrência dos mais variados crimes. Contudo, do ponto de vista jornalístico, uma boa fonte é fundamental para o desenvolvimento de qualquer reportagem. Nesse caso, imaginei que a dona do armazém poderia ser uma entrevistada interessante. Encorajado, atravessei a rua e fui para o trabalho. A dona Neci me ouviu atenta, no entanto, foi ela que não se encorajou a falar. Mesmo assim, foi extremamente atenciosa e me sugeriu falar com o presidente da Associação de Moradores, o Léo. “Ou então com o Luiz, que também é da Asso-
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ciação”. Ela até que tentou me explicar como encontrar o Léo, mas, talvez pela minha cara de interrogação mesmo depois da explicação, um dos frequentadores que estava por ali se dispôs a me levar até ele. No caminho, descobri o seu nome: Samuel, “o Samuca”. O nome Vila do Chocolatão faz referência ao prédio da Receita Federal que, pela sua cor, lembraria um chocolate. Entretanto, a realidade dessa vila localizada no Centro de Porto Alegre, numa área ocupada em meio a prédios públicos, não é nada doce. O cotidiano no local é amargo e, em muitos momentos, até indigesto. Percorrendo as ruas internas – que mais
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parecem corredores –, percebo que o lixo se mistura com as crianças, que se misturam com os cachorros e assim por diante (não necessariamente nessa ordem). E foi caminhando por esse triste cenário do nosso cotidiano que cheguei até o barraco do Léo. Que por sinal não é apelido, é nome mesmo: Léo Antonio Genovêncio Maciel, um metalúrgico de 56 anos que mora há 14 no local. Pela demora em me atender eu ainda pensei: deve estar dormindo... Dito e feito. Porém, a inconveniência de ter sido acordado não influenciou em nada a disponibilidade do entrevistado de conversar. Durante quase uma hora, mais ouvi do que perguntei.
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O homem Ainda na década de 1980, quando o hoje senador Paulo Paim era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas, Léo integrou uma comissão formada por ele. Aí de tanto nós fazê aquelas greve... naquela época que tava dando muito poblema... não depositava o fundo de garantia... não pagavam o pagamento... sabe?... aí eu não arrumei mais emprego... entrei na lista negra. Resultado: vendeu a sua casa em Esteio e foi morar com os seis filhos e a então mulher na casa da tia dela, numa outra vila de papeleiros de Porto Alegre. E ali eu comecei... os meus filho mais pequeno começaram a trabalhar puxando carrinho... aí eu fiquei com vergonha de ver as minhas criança puxando e eu fui puxá. Depois disso, o “carrinheiro” trabalhou ainda na Contravipa – uma cooperativa prestadora de serviços
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– e na Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC). Aí depois eu comprei uma casinha aqui com os meus guri e vim pra cá. Doze anos depois, as mulher aí se reuniram tudo aí e foram na minha casa pra mim ficar de presidente. Léo foi democrático. Mesmo que grande parte das pessoas o quisesse como presidente, fez questão de convocar os moradores para montar uma chapa e concorrer à eleição. Como não apareceu ninguém, assumiu. E parece que a figura dele exerce não apenas a admiração, mas também o respeito de todos: quando dois meninos tentaram iniciar uma briga perto de onde estávamos sentados, com chutes e xingamentos, bastou um olhar de Léo para que cada um tomasse o seu rumo, ambos visivelmente constrangidos.
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A terra Fiquei impressionado quando descobri que a Vila do Chocolatão tem a minha idade, 24 anos. Afinal, se hoje é difícil para mim passar alguns dias num camping – com banheiro coletivo, energia elétrica improvisada e água racionada –, tentei imaginar o que seria viver tanto tempo nessa situação. Essa é a realidade no local: a água é escassa, a luz é “gato” e esgoto não existe. Aqui o pessoal que não faz (as necessidades) na latinha, faz na sacolinha... aí larga lá no lixo. Definitivamente, não dá pra imaginar. Dos seis banheiros coletivos, apenas um está inteiro. Vandalismo dos moradores? Não, da polícia. Uma vez que a Polícia Civil entrou aqui ela arrebentou tudo as porta, os vaso, tudinho isso aí. Porque tava chaveado, e eles acharam melhor meter os pé, quebrar tudo, do que pedi a chave. Agora, existe apenas um banheiro público para os quase mil moradores da vila. E quantas crianças são no total?, perguntei. Agora andou nascendo mais um punhado aí... então já vai pra umas 400 mais ou menos. Quanto à luz, apenas três pontos clandestinos levam energia elétrica para toda a comunidade. Sabendo disso, fica fácil entender as causas dos seis incêndios que já aconteceram por lá. No último, ocorrido em janeiro desse ano, dezenas de barracos foram consumidos pelo fogo. E se eles não botar essa luz provisória que a gente quer vai dá de novo. Porque, só nas casinha que queimou, eram 64 casa ligada na mesma rede de luz. Aí esquenta os fio lá na frente... e uns ainda botam pedaço, imendam...
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IMPRESSÃO DE REPÓRTER É difícil expressar em palavras as minhas impressões de repórter ao desenvolver essa pauta na Vila do Chocolatão. Talvez essa tarefa seja mais complicada do que a de traduzir, através de fotografias e texto, o produto final das minhas visitas ao local. Mesmo assim, a grande lição que eu trago dessa experiência é a mesma que me motivou a ingressar no curso de Jornalismo: a possibilidade de conhecer pessoas e suas histórias e escrever sobre elas. Essas histórias poderiam render livros ou filmes,
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tendo em vista a dimensão desse verdadeiro “baú de tesouros” que descobrimos a cada dia. E o mais interessante de tudo é que, para além das páginas das publicações, sempre herdamos algo desse processo. O que é muito bom. Afinal, é isso que nos inspira a sempre querer conhecer esse cotidiano tão complexo e contraditório que vivemos. É também isso que nos motiva a exercer, com ética e autonomia, o verdadeiro papel da Comunicação Social.
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A luta O “prazo de validade” da Vila do Chocolatão está chegando ao fim. O terreno, que pertence à Justiça Federal, deve ser retomado em, no máximo, dois anos para a construção de um estacionamento. Quanto às famílias, tudo indica que serão transferidas para um loteamento que será construído na avenida Protásio Alves, a mais ou menos 12 quilômetros dali. Mas no que depender de seus moradores, ainda será preciso muito diálogo antes que isso aconteça. Eu até agora não vi esse processo aí. Além de não aprovar a ideia de deixar o Centro da cidade, a preocupação de Léo é ainda mais complexa. Para ele, de nada adianta dar casas para as pessoas se não houver melhoria na qualidade de vida. Isso porque, ganhando R$ 0,02 por quilo de jornal e gastando R$ 2 em cada litro de leite (100 vezes mais!), o receio do papeleiro é enfrentar os mesmos problemas de outros loteamentos. Como as pessoas não têm dinheiro para se manter, já venderam o vaso, pia, janela.... arrancaram porta... colocaram fogo dentro de casa. Por quê? Não mudaram o modo de trabalhar. Depois de uma longa conversa, percebi que o futuro da Vila do Chocolatão é incerto. A única certeza é que a realidade de “acampamento” vai continuar por ali, sem as mínimas condições necessárias para a vida de qualquer ser humano. Como no clássico Crônica de uma morte anunciada, do colombiano Gabriel García Márquez. E, nesse caso, sabendo dos riscos que as pessoas sofrem – com as péssimas condições de saúde e o iminente risco de incêndio –, a referida “morte anunciada” não é nenhum exagero. É no sentido literal da expressão.
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BARRACO 22 No Acampamento Jair Antonio da Costa, 200 famílias, como a de Ana Maria, de 7 anos, lutam por uma vida mais digna longe das lonas pretas TEXTO E FOTOS GREYCE VARGAS
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u gosto de ser sem-terra!” Essa frase fechou os dois dias que participei da rotina do Acampamento Jair Antonio da Costa, às margens da BR-386, em Nova Santa Rita. E ela não foi dita por um dos homens ou mulheres que lutam há vários anos pelo seu pedaço de terra, de onde possam tirar o seu próprio sustento e viver com dignidade e não debaixo de uma lona preta. A frase foi dita por uma menina sorridente, que está trocando os dentes. Ana Maria é uma menina cheia de energia que se encarregou, junto com sua família, de me mostrar o acampamento, contar como é a rotina de quem vive no Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e, principalmente, mostrar um lado da sua história que normalmente não é contado. História essa que encontra aqui espaço para se apresentar de modo peculiar. Cerca de 200 famílias se dividem, neste acampamento, em grupos, e assim cuidam da saúde, da produção de alimentos, da força de trabalho, da escola, da biblioteca, da articulação política e da comunicação. Maria, a mãe da menina, faz parte do grupo da produção e, assim, ajuda no que diz respeito à alimentação de todos. O marido, Gringo, algumas vezes está no grupo que faz a segurança, noutras é “escalado” para trabalhar fora do acampamento e, assim, obter dinheiro que contribui para o complemento das necessidades que o governo não custeia.
quando temos tantos espaços próprios para agricultura. Mas o Estado, ao invés de ter uma divisão justa dessa terra, chega a ter latifúndios com mais de dez mil hectares, como era o caso da Fazenda Southal, em São Gabriel, na fronteira oeste. Depois de uma luta intensa, o MST conseguiu que cinco mil hectares fossem desapropriados e garantiu o assentamento de 270 famílias. Destas, pelo menos cem saíram do Jair Antonio da Costa. Outras 200 ficaram. A história deste acampamento começou em setembro de 2005, na cidade de Nova Hartz. Meses depois, os sem-terra foram despejados e se alojaram numa área comunitária num dos assentamentos de Nova Santa Rita. Quase quatro anos depois, eles vivem um novo drama. Um promotor conseguiu na Justiça o fechamento das escolas itinerantes, um modelo de educação criado há 12 anos que previa que as salas de aula se deslocassem junto com o movimento e, assim, as crianças não perdessem o ano. As manifestações contrárias foram tão fortes
Um dia de luta Para quem segue pela BR-386, as três bandeiras do MST que balançam com o vento em frente ao acampamento evidenciam que ali está mais um grupo de famílias que luta por terra. E lutar por terra no Rio Grande do Sul parece estranho
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SEM-TERRA A família Machado optou por sair da cidade grande e acompanhar o MST
que o Ministério Público voltou atrás e as escolas itinerantes retomaram a sua rotina. Logo depois, em abril deste ano, o Judiciário coordenou uma ação que ordenava que as famílias fossem novamente despejadas. Cheguei ao acampamento quando faltavam apenas três dias para o prazo final dado, e reuniões eram realizadas para que pudessem pensar em formas de lutar pelo espaço que ocupam. Enquanto isso, um grupo produzia trincheiras para dificultar o acesso da polícia.
A organização “Segunda, quarta e sexta, tem reunião”, explica Gringo. “O pessoal se encontra na bandeira, faz a formatura, depois a gente vai para reunião com os núcleos de base e terminamos com gritos de ordem.” Assim começa o dia dos acampados. Os encontros acontecem na bandeira localizada na área central do acampamento. Ali, eles se encontram para discutir as tarefas da semana e as novas atividades que surgem e avaliar o desempenho e as dificuldades do grupo. Para marcar o fim das reuniões, um grito é dado por todos: “Pátria Livre, venceremos!”. Em seguida, os sem-terrinha, grupo formado pelas crianças, soltam a voz: “Bandeira, bandeira vermelhinha, o futuro da nação está nas mãos dos sem-terrinha”. Nas terças e quintas-feiras, Maria participa das atividades especiais para mulheres. “Quando eu estava lá fora, minha vida era cuidar das crianças e aqui eu aprendi que a mulher tem capacidade para lutar por alguma coisa. Eu não tenho estudo e, por isso, as pessoas não têm respeito por nós.”
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Nenhum dos barracos deste acampamento tem luz, cada espaço é iluminado com velas e candeeiros. Mas isso não chega a ser um problema perto das dificuldades que eles têm que enfrentar na área da saúde. A farmácia interna disponibiliza xarope, pomada, curativos, tudo feito pelas mulheres de forma artesanal. No entanto, é nas situações mais sérias que enfrentam adversidades. “Muitas vezes nós somos menosprezados até dentro dos postos de saúde da cidade”, salienta Gringo ao lembrar-se da primeira vez que participou do MST, no Paraná. A filha mais velha passou por vários problemas de saúde e, em função das dificuldades para tratar a menina, ele e a família optaram por sair do movimento.
As crianças e as famílias Maria e Gringo depositaram no MST um sonho que foi tomando conta de toda a família. Eles trabalhavam no Paraná como camponeses, mas sempre quiseram ter a sua própria terra e assim entraram para o MST. “Mas a gente teve que sair por causa de saúde.” Tempos depois, mudaram-se para um dos bairros mais violentos de Canoas, no Rio Grande do Sul. Quem já viveu situações de grande violência se impressiona com o cuidado que um tem pelo outro e que todos têm pela segurança do acampamento. “Aqui é o lugar mais protegido de tanta coisa”, diz Maria, justificando a volta da família para o MST. Andrei, o filho do meio, pela idade, deveria estar cursando a quinta série, mas acabou de passar para a segunda. “Aqui eu passei no colégio e vou todo dia, depois eu brinco e ajudo o pai
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e a mãe”, expressa o menino. Viver acampado, num espaço restrito, onde sua casa é um barraco, pode parecer um limitador, mas para aquelas crianças é um lugar seguro, onde podem estudar a partir daquilo que vivenciam. Segundo a mãe, a escola atrai mais os filhos pela forma diferente com que os educadores ensinam, mas principalmente porque ali eles não são discriminados. “Até da produção da merenda eles participam. Eles não chegam lá na escola e só, é diferente para melhor, porque aqui eles participam de todo o processo”, comenta. Apesar de terem voltado ao movimento e estarem felizes pela escolha de abandonar “lá fora”, Maria e Gringo confessam que a luta é cansativa e que não é fácil enfrentar as pessoas que os consideram “baderneiros”. “Meu maior sonho é lutar pela terra e formar meus filhos. Não quero jogar eles na enxada.” Enquanto isso, as crianças, com sua típica curiosidade, me rodeiam, sedentas por compreender os equipamentos que uso, e prontas para contar como é viver dentro do acampamento. “Aqui a gente é tudo da mesma família”, conta Andrei.
O final do dia é marcado pelas rodas de amigos. “Uma das coisas boas é isso, a gente mora perto, os vizinhos vão se juntando, tomando mate”, relata Maria já trazendo a cuia para a roda a fim de me aproximar desse momento de integração. E para “dar uma animada”, o núcleo da comunicação coloca músicas na rádio do acampamento, que nada mais é do que uma sala com equipamentos de som e algumas caixas penduradas em postes que levam notícias e músicas do movimento para os acampados. O dia vai caindo e o tempo vai avisando que é hora de me despedir de todo esse universo por detrás das trincheiras, dos bonés e bandeiras vermelhas. O que vi neste acampamento é um espaço libertador. As crianças se sentem livres para aprender, para brincar, para aproveitar as características da idade. Os homens se sentem livres para lutar pelo melhor para sua família, para aprender uma função nova e, principalmente, para conhecer uma força que geralmente fica escondida. As mulheres estão livres para serem fortes, assumirem posições que geralmente não podem e para ver sua família batalhar por algo melhor e justo. Uma verdadeira lição de união e vida.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Passei dois dias neste acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-terra em Nova Santa Rita. Esperava ver uma realidade diferente e queria entender a lógica de uma família e, principalmente, de uma comunidade que vive nesse “outro tipo de sociedade”. Embora tenha convivido com uma família linda, que mostrou o quanto a sua luta é importante e que ter o seu grupo unido faz com que a luta seja ainda mais gratificante, a
realidade lá é dura. Imagine ter como teto da sua casa uma lona preta remendada? Ainda assim, foi uma lição de vida ver as crianças contentes por participar do movimento e ali aprender coisas que, como eles dizem, lá fora não teriam oportunidade. Foi uma grande lição ver que mesmo diante de tantas dificuldades eles ainda encontram forças para seguir lutando pelos seus sonhos e por um futuro melhor para os meninos e meninas do MST.
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CINEMA
Eduardo manuseia com cuidado o antigo projetor, fabricado antes da Segunda Guerra
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TEXTO SANDRA VARGAS FOTOS ANGELO HECTOR
E
duardo da Conceição bem poderia ter inspirado a história do grande clássico cinematográfico Cinema Paradiso. Assim como Totó, o menino que adorava cinema e que acabou trabalhando como operador de um projetor, Eduardo também passou de admirador a projecionista. Trabalhando na projeção de filmes há mais de 14 anos, ele lembra da sua adolescência, quando saía do supermercado, onde era empacotador, e percorria os cinemas de Porto Alegre. Passava para ajudar os primos e o irmão que já trabalhavam como operadores. Às vezes ficava na bilheteria, em outras pegava a lanterna e verificava as poltronas das salas de exibição. E, com isso, lá se vão mais de 20 anos em que a sétima arte faz parte da sua vida. No início, como lazer, e depois, como ofício. Começou na portaria, no Centro Comercial João Pessoa. Aproveitava os intervalos para aprender a operar o projetor, e assim que surgiu uma vaga se candidatou. Assumiu então o posto de operador e daí em diante esteve em vários estabelecimentos da cidade, até sua chegada, há oito anos, na Cinemateca Paulo Amorim. A Cinemateca foi criada em 1986 e funcionou em outros locais antes de se estabelecer definitivamente na Casa de Cultura Mario Quintana. A partir de 1990 é que a instituição começou a ter uma programação propriamente dita, como explica o gerente de cinema Sérgio Severo. O espaço hoje conta com três salas de exibição, a Paulo Amorim, a Eduardo Hirtz e a Norberto Lubisco. O público que frequenta as salas é bem variado, incluindo cinéfilos, estudantes e pessoas da terceira idade. A casa consegue manter uma programação através de parcerias e também traz cópias raras de outros estados e países. Uma fita entra com uma semana de exibição e pode se manter por mais tempo de acordo com o público. Para atrair mais espectadores, a cinemateca promove diversos ciclos, reúne obras premiadas, faz homenagens a diretores e artistas como estratégia de sobrevivência.
Uma cabine de projeção que revela mais do que a rotineira exibição de filmes
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Então adivinhe de qual sala é nosso operador? Sim, é da Eduardo Hirtz, mas não é só pela coincidência do nome que essa história chama atenção. Para começar, o acesso à cabine é estreito e deve ser feito através de uma minúscula escada em espiral. Assim que se entra pela porta, no acesso ao pequeno corredor já é possível notar a diferença na temperatura, bem mais quente do que fora. Essa é a principal queixa de Eduardo, mas não a única, pois a pequena sala retangular abriga dois projetores alemães do início do século XX que fazem muito barulho quando estão em funcionamento. Somado a isso, tem também o ronco de um antigo ventilador, que é uma das poucas formas de apla-
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CURIOSIDADES Um filme pode pesar até 35 quilos Todo projetor tem três tipos de lente, cada tipo de película exige uma diferente O filme deve ser colocado de cabeça para baixo no projetor Fitas que ficam guardadas por muito tempo acabam adquirindo um cheiro parecido com o de vinagre A cópia de um filme custa entre R$ 9 mil e R$ 10 mil
car a alta temperatura da cabine. Recentemente foi colocado um exaustor com o intuito de sugar parte do calor produzido no ambiente, que, diferentemente das outras salas da casa, não conta com uma janela. No espaço restante foram dispostas uma mesa de montagem no fundo, encostada na parede; algumas cadeiras, um pequeno armário e mais um projetor de filme 16 mm, lado a lado, atrás dos dois projetores; e na parede da frente, ao lado das máquinas, ainda cabe mais um armário, onde ficam as lentes e outros objetos. É nesse ambiente restrito, abafado e barulhento que Eduardo cumpre com seu labor. Embora os projetores sejam antigos, o operador afirma que nunca precisou suspender nenhuma seção por problemas no maquinário, e isso que eles eram movidos a carvão. Claro que hoje já estão adaptados, no lugar do carvão entrou uma lâmpada de 3.500 watts de potência, o suficiente para colocar o velho projetor alemão em operação. O resto continua com a mesma função. Para rodar um filme nesses projetores é preciso, além da habilidade manual, conhecer os detalhes escondidos em cada fita. É necessário saber o ponto exato do enquadramento, onde ficam os áudios analógico e digital, como devem ser feitas as emendas e como ajustar de maneira metódica as folgas da película nas peças do projetor.
O processo Assim que as cópias chegam à Cinemateca, o responsável pelo seu recebimento é o gerente de cinema Sérgio Severo. Depois de conferir o material e organizar os borderôs com a programação das salas, Sérgio leva os materiais para a respectiva sala.
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O operador prepara as duas máquinas (foto maior), que têm capacidade ara a enas u a ra e fi e ca a Juntando todas as partes de uma película, o rolo pode pesar até 35 quilos (foto à esquerda O a iente restrito torna o local muito abafado
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Buscar uma pauta que pudesse trazer conhecimento sobre algo que não sabemos foi meu maior desafio. Hoje, parece que tudo já foi descoberto e não existe lugar que possa ser desvendado. Diante dessa interpretação, procurei algo que fosse de conhecimento comum, mas que ao mesmo tempo tivesse seus mistérios. Depois de peregrinar entre várias possibilidades, acabei chegando até a Cinemateca Paulo Amorim. Nesse momento, toda dificuldade que enfrentei para marcar as entrevistas foi substituída pela minha curiosidade e expectativa. O local me surpreendeu desde o começo, bem diferente do que imaginava. A sala pequena, quente e barulhenta não foi empecilho para a conversa animada com Eduardo, o operador. Como meu interesse era no funcionamento da projeção de cinema, descobri que fui ao lugar certo, pois o personagem que conheci convive nesse ambiente há mais de 20 anos. Além de ficar sabendo como acontece a exibição de um filme, entendi como uma atividade pode acabar sendo reduzida quase só ao funcionamento de máquinas.
O operador recebe as latas com o filme divido em partes. A montagem da obra é o próximo passo. Cada recipiente contém 15 minutos de fita. Se um longa-metragem tem duas horas de duração, ele vai chegar em oito latas, todas com a descrição na tampa. A partir das informações de cada fita e com a programação em mãos, os operadores iniciam a montagem propriamente dita. Nesse momento as partes são emendadas uma a uma, com o auxílio da eficiente coladeira, uma espécie de prensa manual abastecida com fita durex. Antigamente se usava cola, o que trazia inúmeros casos de tela branca, uma vez que o filme volta e meia arrebentava na emenda feita com a cola. Esses incidentes ficaram no passado. “É mais fácil quebrar uma peça do que um filme arrebentar”, destaca Eduardo. Então colocam-se as pontas da primeira e segunda parte do filme dentro do aparelho, passa-se a fita durex de um lado e pressiona-se a área, vira-se a emenda e repete-se a ação. Eduardo faz esse ritual até o rolo chegar a uma hora de duração, pois os projetores só têm capacidade para esse tempo de fita. Depois que o rolo está pronto, ele coloca no carretel, que será acoplado no projetor. Agora só falta arrumar a fita nos encaixes das peças, operação totalmente manual para esse tipo de maquinário. Nos cinemas com aparelhamento digital, grande parte dessas etapas é realizada pela máquina. Quando está tudo pronto, o operador liga o projetor e acompanha para ver se está tudo certo, enquadramento, foco, legenda, áudio. Trabalho de montagem encerrado, então é só aguardar o término da exibição, que nesse caso vai acontecer depois de uma hora, quando o segundo aparelho deve ser ligado para passar a parte final do filme.
As histórias Enquanto a fita está rodando, Eduardo relembra algumas histórias desses tantos anos de profissão. Uma que nunca esqueceu, e que levou como lição de casa para ser um bom projecionista, foi a reação de um senhor que estava assistindo a um filme na primeira fileira no cinema do Shopping João Pessoa. Como de costume, sempre que o filme acabava, Eduardo esperava o sinal do porteiro para saber quando podia interromper a projeção. Olhou para o colega e recebeu o sinal de positivo, então desligou o projetor. Nesse momento percebeu a indignação do senhor que ainda estava sentado olhando os créditos finais do filme. O sujeito ficou tão fulo que foi direto na direção da cabine, xingou o operador e disse que ele não tinha o direito de cortar os créditos, pois ele havia pago por isso. Depois dessa, Eduardo nunca mais cortou crédito de filme nenhum. Não importa o idioma da obra, enquanto a fita não termina de passar na máquina, ele não desliga. Quando está sozinho, ele conta que prefere estudar para passar o tempo. Está fazendo um curso de técnico em refrigeração. Eduardo revelou que pretende largar o cinema antes que o cinema o deixe. Essa foi sua definição, visto que o público diminui a cada dia e logo todas as salas de exibição irão operar quase totalmente de forma digital, restando pouco trabalho para os operadores. Como o personagem Salvatore, que se torna cineasta, Eduardo também deverá sair da cabine, só que não para dirigir uma câmera. É possível que o operador sinta falta do cinema, mas devem ser os amantes da tela grande que perderão mais com a sua ausência. A dedicação e o conhecimento do projecionista nenhuma máquina é capaz de substituir.
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NATURALMENTE GLAMOUROSO No universo de aparências da moda, vários profissionais se empenham num exercício diário em busca da perfeição 76
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Ansiedade marca o momento de espera para o teste na agência
TEXTO AURYANE BORGES FOTOS NATÁLIA TONDA
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ituada em uma movimentada avenida da Zona Sul de Porto Alegre, a agência Mega Models RS pode até passar despercebida. O prédio é antigo. Ao lado há uma academia que rouba a cena com cartazes e imagens de corpos malhados. Uma grande placa prateada, estilizada e ao mesmo tempo luxuosa, indica a entrada da agência, porém, aparentemente há apenas um consultório odontológico. Estranho. Um minuto depois se avista uma porta no canto da parede. O interfone é mais decorativo que funcional. A porta está aberta, apenas encostada, e assim permanece ao longo do dia. Na entrada há um sofá e um espelho com armação em tom dourado envelhecido, algumas revistas e, em frente, uma escada. Mais tarde entende-se que aquele espelho reflete muito mais que imagens. Reflete expectativas, sonhos. Subindo as escadas, diversos ambientes se revelam. Tão ou mais variados que as cores das paredes. Lilás, vermelho, azul. O espaço clean favorece a serenidade do lugar. Não há exageros. Os móveis são bem escolhidos, assim como as capas de revistas emolduradas na parede. É, sem dúvida, um lugar bem decorado. Uma janela deixa a luz natural entrar na sala administrativa, mas a paisagem não é tão bela. Há outro prédio ao lado. O único aspecto destoante é a rádio que está sintonizada via internet: sertanejo moderno, um tanto brega. Na sala administrativa, que funciona como recepção, quatro mulheres trabalham atentas, em meio a telefones e computadores. Elas são jovens, sorridentes e bastante simpáticas com todos que chegam. A impressão é de que gostam muito do trabalho. Também não há como não reparar na harmonia do grupo. Estão vestidas com jeans, blusas soltas, usando calçados de salto baixo e cabelos sem chapinhas. Um jeito despojado no trato e no visual. As agenciadoras de modelos Francine Porto Alegre e Paula Richter, conhecidas no meio fashion
como bookers, demonstram ter muita experiência no mercado da moda. A busca por um novo rosto parece obstinação. Na sala de espera, mãe e filha aguardam atendimento. Grandes janelas abrem vista para a avenida. Uma movimentação intensa de veículos quebra o silêncio do ambiente. Os móveis têm cor ocre escuro, e os sofás pretos, grandes e bastante aconchegantes, acentuam o bom gosto na combinação de cores: vermelho, branco e preto. Há mais alguém na sala. É um rapaz de estilo moderno, tanto na vestimenta quanto no penteado. Depois descubro se tratar do agenciador Bruwin de Oliveira. Eloquente, ele puxa assunto com a mãe da garota. Seu sotaque evidencia não ser gaúcho. A jovem, Sancler Frantz, segunda princesa no concurso Garota Verão 2009, pouco fala. A mãe responde com mais presteza, dedicando grande espaço à exaltação das qualidades da filha. Sobra, também, algum comentário sobre o genro. “O fulano também tem jeito de modelo, sabia?”, observa. Sancler parece um pouco intimidada. Ao ser questionada sobre uma possível estadia em São Paulo, fica reticente. Sua expressão facial muda automaticamente. De sorridente fica nitidamente apreensiva.
O prazer e o desprazer do ofício Bruwin de Oliveira trabalha como agenciador de modelos há bastante tempo. É diretor da Mega Models de Curitiba. Há 20 anos titubeava entre ser modelo ou bailarino. Mas a vida se encaminhou de modo certeiro. Hoje, sente imenso orgulho de narrar sua trajetória. Nota-se pelo entusiasmo na fala, no sorriso... Não deixa transparecer insegurança quando o assunto é trabalho. Diz que a determinação é a essência para se conseguir tudo. Vindo do interior do Paraná, entoa um sotaque ainda carregado. Talvez o torne mais característico, afinal, não é do tipo que nega origem, ao contrário, conta a quem lhe
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Uma sessão de fotos costuma durar mais de três horas. Uma para o cabelo, aquia e e fi urin , e outras duas só para conseguir a foto ideal
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emprestar ouvidos. E foi assim que muita coisa foi descoberta. Passou fome, caiu em um buraco (literalmente) correndo como doido atrás de alguém com potencial para modelar. Essa última história, inclusive, lhe rendeu uma cicatriz na perna esquerda. Situações que constroem uma trajetória de vida. Claro, há muita determinação e capacidade em tudo isso. Gesticulando bastante, define-se como alguém muito criterioso: “Organizo desfiles de seleção, ministro oficinas preparatórias para modelos e mantenho contato com as melhores agências do mundo todo”, conta. Vida realmente atribulada, mas maravilhosa, como ele mesmo aponta. No seu encalço, o jovem Gilson Menger (secretário de Bruwin) observa tudo, como um pupilo que segue o mestre. Sua grande missão na vida: descobrir a nova Gisele Bündchen. Por enquanto, deleita-se ao falar de Renata Kuerten, a top model que rejeitou quando mais nova, por não a considerar preparada. Porém, há algum tempo resolveu investir na garota, sentindo que ela havia desabrochado. “De repente vi nela a cara de moda”, afirma. Hoje, Renata brilha nas passarelas, assim como Bruwin, só que este nos bastidores da fama. Algumas modelos começam a carreira ainda muito jovens. Brisa Kurtz que o diga. Aos cinco anos já modelava. Hoje ela é a diretora da agência Mega Models RS. Como modelo não servia de exemplo: surfava, descuidava da pele e do cabelo. Vivia levando puxão de orelha do pessoal da agência para a qual trabalhava. Com trejeitos calmos e voz ativa, porém doce, fala muito bem de seu trabalho atual. Diz que, junto com seu marido e fotógrafo da agência, Henrique Menezes, consegue ter prazer em tudo que faz. “Faço questão de tratar muito bem todas as pessoas aqui. Amo meus modelos e sinto que eles me amam também”, enfatiza. Se por acaso uma modelo sentir fome em meio a uma sessão de fotos, pode esquecer. Comer poderia sujar os dentes, e, depois de escová-los, teria que refazer a maquiagem. Isso só atrasaria o trabalho. Em média, a sessão costuma durar mais de três horas. Uma, no mínimo, para o cabelo, maquiagem e figurino, e outras duas só para con-
seguir a foto ideal. Enquanto três pessoas ajeitam o cabelo de Sancler, numa sala, meio improvisada, ouve-se a modelo comentar que acordou às 4h30min para estar ali. Não parece uma reclamação, mas apenas um desabafo. Depois de tudo pronto, a sessão segue pelo meio-dia, e os profissionais continuam ali. Maquiadora e fotógrafo insistem na foto perfeita. O glamour se esconde por trás de desejos reprimidos e de vontades não satisfeitas. Na verdade, todo ofício sacrifica.
Os olhos esguios da sala de seleção À tarde, algumas meninas, que haviam sido selecionadas anteriormente, chegam para uma palestra ministrada por Bruwin. Aos poucos também chegam as cadeiras do evento. Nada de mais. Uma sala simples e meninas jovens que apenas ouvem dicas e conselhos de quem está no mercado há algum tempo. Ser pontual, não exagerar na maquiagem nem no look, ser educada e manter os nervos sob controle. Parece simples, mas, quando o cenário muda e a situação se apresenta, as dúvidas aparecem. Alguns poucos sorrisos em meio a assuntos polêmicos e gozações propositais. As meninas estão nitidamente tensas. Apreensivas com a seleção. Sabem que, daquela sala lotada, apenas seis irão para São Paulo com a esperança de sucesso futuro. Depois de muito papo, a frase enfática: “Todas aqui têm potencial para ir em frente”. Pode até ser que Bruwin esteja certo, ou talvez tenha dito como praxe de seus discursos. Afinal, não está ali para derrubar o sonho de ninguém. As selecionadas vibram, sorrindo desmedidamente suas bocas saudáveis. As outras voltam para casa, um tanto frustradas. Gramado, Riozinho, Esteio. Tão longínquas as cidades que, durante a reflexão da viagem, o sonho gigantesco de ser modelo torna-se um tanto pesado. Nada que um pouco de blush, corretivo, rímel e olho certo de alguém não resolvam. Na moda, assim como na vida, eis o segredo para todo o sucesso: perseverança e sorte.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Imaginava chegar em um lugar onde a beleza fosse algo primordial. Um espaço para a frivolidade, sabe? Pensei que encontraria gente “emperiquitada”, alinhada na maquiagem e no salto. Mas não. Vi um universo gentil, com pessoas educadas e mais preocupadas com a qualidade do trabalho do que com a aparência. Depois de passar o dia inteiro na agência, comecei a me acostumar e até gostar de ouvir histórias sobre “como cheguei
aqui”, coisas nesse sentido. Mas ouvir os pais conversando na sala de espera foi o melhor: quantas esperanças depositam no futuro de seus filhos! Enfim, gostei tanto que chego a ficar com vontade de escrever sobre moda todos os dias. Não apenas sobre o que rola nos bastidores, mas sobre os eventos em si. Se é glamouroso, sinceramente não sei. Mas se for, em parte, parecido com essa matéria, acharia agradabilíssimo.
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POR TRÁS DAS CÂMERAS TEXTO JULIANA ATHANASIO FOTOS GABRIEL ANDRIOLI
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uando assistimos a algum telejornal percebemos que atrás da bancada com os apresentadores está a redação da emissora, com vários jornalistas em busca da informação. O local é sempre movimentado, com profissionais circulando, outros no telefone ou nos seus computadores. Além dos jornalistas existem outras pessoas que também fazem funcionar uma emissora de televisão. No prédio da TV Gaúcha em Porto Alegre, funcionam as emissoras RBS TV, afilia-
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da da Rede Globo, TVCOM, canal comunitário do Grupo RBS, e o Canal Rural, onde trabalham cerca de 600 profissionais divididos em áreas como marketing, vendas, administrativo, recursos humanos, produção, serviços gerais, financeiro, eventos, operações, técnica e engenharia. Uma dessas pessoas que está por trás das câmeras é Anselmo Silva, coordenador de operações da RBS TV, há 36 anos na empresa. A equipe de operações conta com cinegrafistas, motoristas, editores, auxiliares técnicos, que são escalados para trabalhar com as pautas jornalísticas, de produção, de esportes, marketing e comercial. Anselmo conta que sema-
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Anselmo começou a trabalhar na empresa como assistente de estúdio e logo passou para a função de cine rafista e, an s e is, c r ena r e operações e está a frente de uma equipe de 180 pessoas
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Nos corredores da RBS TV circula um grande número de profissionais que não aparecem na tela, mas são fundamentais para o funcionamento da emissora
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TELEVISÃO
O au i iar a inistrati s in , c n eci c , guarda mais de quatro mil fotos com os famosos que conheceu trabalhando
nalmente os coordenadores se reúnem para avaliar a semana que passou e já organizar a seguinte com as escalas. “A equipe conta com cerca de 180 pessoas. É uma ginástica diária para conseguirmos atender tudo”, conta Anselmo. Anselmo começou a trabalhar na emissora como auxiliar de estúdio em 1973 e lembra que a torre de concreto da RBS estava começando a ser construída e não tinha nenhuma casa em volta do prédio da TV. A rua José de Alencar, que fica no início do morro, podia ser vista da emissora. Das histórias que ele escutou pelos corredores da TV, uma chamou sua atenção: um antigo supervisor subia em uma antena de ferro e ficava procurando os funcionários que estavam em um bar na José de Alencar. Quando voltavam, ele dizia que tinha visto eles lá, pois conhecia os carros que ficavam estacionados na frente do bar. O coordenador de operações lembra que nos anos 1970 chegaram as primeiras câmeras portáteis no Brasil. A RBS havia comprado duas câmeras, que foram usadas pela primeira vez no jogo Internacional e Corinthians, na final do Campeonato Brasileiro de 1976. Segundo Anselmo, as pessoas ficaram admiradas com o novo equipamento. Anselmo começou aos poucos a trabalhar com essa máquina, que pesava em média 14 quilos. Na época, a RBS fazia videoclipes para o Fantástico, com cantores locais, ou aproveitava os cantores do centro do país que estavam no Estado para fazer gravações. Anselmo conta que ele e o assistente eram iniciantes na câmera portátil e foram fazer uma gravação com a banda 14 Bis em um trapiche na beira do rio. “Eu tinha que dar um close na boca do cantor e acompanhá-lo. Quando tu estás filmando, não enxergas nada em volta, e o cantor caminhava de um lado para outro. Eu fui andando pra trás e acabei caindo dentro da água, com câmera e tudo. Mas a câmera não estragou e funcionou por
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muitos anos.” Anselmo ficou conhecido como o primeiro cinegrafista que mergulhou com uma câmera no rio.
O apelido que virou nome Um dos casos mais curiosos da RBS TV é o de José Elvino da Silva, auxiliar administrativo da emissora. Ele trabalha há 31 anos no Grupo RBS e é conhecido por todos como 21, apelido dado por seus colegas na época em que trabalhava nas rotativas do jornal Zero Hora, pois ele tem um dedo a mais na mão esquerda. Sem nenhum constrangimento de falar sobre o apelido, até brinca com o dedo colocando várias sacolas nele como se fosse um cabide. E o apelido pegou, pois a maioria nem sabe que ele se chama José Elvino. No lugar do nome no seu crachá está escrito somente 21, um pedido feito pelo então diretor das rádios do Grupo, Renato Sirotsky. 21 também trabalhou como motorista da Rádio Farroupilha, levando os repórteres, na maioria das vezes, até as ocorrências policiais. “Era muito legal, mas tinha medo de tiroteio. Quando prenderam aquele cara chamado de maníaco da luz vermelha eu estava junto com a equipe de reportagem.” Nessa mesma época, 21 também ajudava a levar doações feitas por ouvintes da rádio a instituições de caridade. “As pessoas viam o carro da rádio e pediam para eu levar recados aos comunicadores, mandavam presentes, faziam pedidos.” No carro, 21 já tinha um papel e uma caneta para anotar tudo. Além do apelido, 21 tem uma risada única que ficou conhecida entre os funcionários e acabou rendendo um convite para participar do antigo Programa Y, da Rádio Atlântida. Todas as sextas-feiras o programa tinha o quadro Denúncia do 21, em que ele reclamava das condições do trânsito, dos ônibus que não paravam na parada, de carros mal estacionandos na
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rua. Logo ficou conhecido. Os ouvintes imaginavam que ele era um personagem feito por algum comunicador do programa. “As pessoas ligavam para a rádio querendo saber quem fazia o 21. Teve uma vez que um cara de Itajaí veio para Porto Alegre visitar a família e foi na rádio participar do programa. Disse que só tinha ido para me conhecer!” Atualmente no programa Expresso da Uma, na Rádio Cidade, 21 tem sua risada gravada, que vai ao ar após alguma piada contada pelo comunicador. Em algumas sextas-feiras, ele participa ao vivo do programa. “Acho que o pessoal está gostando. É muito engraçado! Os meus colegas ficam escutando o programa ao meio-dia e brincam que eu dou mais risada do que falo.” Cada pessoa que conhece 21 guarda um carinho especial por ele, até mesmo os famosos que circulam pelos corredores da RBS. “Eu conheci o Alexandre Pires uma vez que a Rádio Cidade promoveu um jantar e fui um dos convidados pra jantar com ele. Outro dia ele veio aqui e, quando me viu, disse: 21, tu tá ainda aqui! E a risada?” Suas fotos com os famosos estão guardadas em álbuns que somam cerca de quatro mil imagens. A cada famoso que chega para dar uma entrevista na TV, 21 já fica preparado para tirar uma foto e guardar de recordação. E ele também fica na memória de muitos que passam pelos bastidores da RBS TV. Anselmo e 21 são alguns dos muitos funcionários da emissora gaúcha que não são conhecidos pelos telespectadores. Mas os dois se sentem satisfeitos e têm muito prazer em trabalhar nos bastidores da TV. Para Anselmo, o reconhecimento vem dos colegas, clientes e amigos. “Eles sabem que procuro fazer o máximo no meu trabalho, mesmo não aparecendo no vídeo. Como meu nome aparece nos créditos de muitos programas, as pessoas sabem que eu faço parte da turma dos bastidores da TV.”
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Quando foi decidido o tema da revista, logo pensei em falar sobre os bastidores da TV, pois ele faz parte da minha rotina de trabalho. Só não lembrei como é complicado arrumar um tempinho para conversar durante o dia corrido das pessoas e também conciliar com os meus horários! Depois de combinar e desmarcar algumas vezes, as entrevistas aconteceram e fico feliz de ver a disponibilidade das pessoas em me ajudar, em querer contar um pouquinho da sua vida. Nos bastidores da TV conversei com duas pessoas, de funções totalmente diferentes, que são muito importantes para a construção da história da emissora. Ambos trabalham há mais de 30 anos na empresa e se orgulham de fazer parte dela e também de conhecer todos os colegas. Quando entrevistei o 21, ele perguntou quando eu iria tirar uma foto com ele para colocar de recordação em seu álbum. Fiquei feliz, pois eu sou mais uma pessoa que passou pelos bastidores da TV e vou ficar na lembrança dele, junto com os famosos que também passaram por lá.
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O LADO BOM DO LIXO Em São Leopoldo, 23 catadores de uma associação vivem do que é descartado pela sociedade “Pensei, então, que se eu fosse Papa, tomaria logo algumas providências. Primeiro, criaria uma ordem religiosa cuja missão seria catar o lixo do mundo. Ao lado das ordens que se dedicam a ensinar, das ordens que se dedicam a cuidar dos doentes, das ordens que se dedicam a pregar, das ordens que se dedicam a orar, haveria uma ordem que se dedicaria a catar lixo. Por onde que ela passasse, seria aquela felicidade: o lixo desapareceria.”
Rubem Alves, no texto O Lixo
TEXTO FERNANDA PREUSSLER FOTOS MARIANA BECHERT
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té que não seria má ideia se todos, não só os religiosos, tivessem esta missão: catar e também separar o lixo, pois viveríamos mais livres das doenças e em harmonia com a natureza. Quem trabalha como catador, no entanto, é desmoralizado e discriminado. Mas basta ir até um galpão de coleta para ver o quanto esses trabalhadores se submetem a condições quase nulas de higiene, tanto para se sustentar quanto para fazer o bem ao meio ambiente. Eles são mais que catadores. São coletores da falta de educação e da ignorância de uma sociedade que valoriza o consumo e não reflete sobre o descarte. Em São Leopoldo, município da Região Metropolitana de Porto Alegre, são produzidos 70 mil toneladas por mês de lixo e 12 mil chegam no galpão da Associação dos Trabalhadores Urbanos de Recicláveis Orgânicos e Inorgânicos (Aturoi) - Núcleo Vitória. Neste ponto, localizado no bairro Vicentina, com alto índice de violência, trabalham 23 catadores que juntos conscientizam, recolhem, vendem e se servem com o que encontram de bom no lixo. E lixo tem lado bom? Sim, muitas coisas úteis e boas são encontradas no lixo.
Conheci esse galpão de reciclagem em 2006 quando trabalhei num projeto social. Sempre pensei em voltar lá e desvendar o que havia de bom por baixo daquelas montanhas de lixo e das mãos calejadas dos trabalhadores. Na primeira vez em que estive no Núcleo Vitória, estava com receio de ver um lugar totalmente imundo e malcheiroso. Ao chegar, vi dois rapazes carregarem uma carga de lixo na frente do galpão. Eram 10h30min e eles estavam sem camisa. Mesmo assim, suavam muito, pois os sacos de lixo eram enormes, pareciam bem pesados e a distância que tinham que carregá-los era grande. Esse galpão de reciclagem é especial. Eles não só fazem a coleta nos bairros, mas conscientizam as pessoas. Isso ocorre da seguinte forma: seis coletores vão de bicicleta de casa em casa em seis bairros e entregam um panfleto explicando a importância de separarem o lixo e que tipo de material eles coletam. Também entregam um saco plástico, cedido pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, que o morador pode utilizar para colocar os resíduos secos. Eles passam cada dia em bairros diferentes. Os moradores conscientizados colaboram muito com os recicladores. “Muitos nós já conhecemos pelo nome”, afirma Cristiane da Rosa, assistente administrativa do galpão. Eles doam garrafas plásticas,
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televisores, microcomputadores, bicicletas, sucata e até mesmo geladeira e fogão.
A coleta porta a porta Um dos recicladores fica em uma esquina do bairro, em um local denominado por eles de “eco-ponto”. Então um caminhão cedido pela prefeitura passa e recolhe tudo que foi arrecadado no dia e leva para o galpão. O caminhão larga tudo na calçada em frente à reciclagem e os associados carregam para dentro do galpão e fazem a separação.
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O trabalho é de formiga. Pouco a pouco eles conseguem tirar tudo de frente da calçada. O galpão tem uma mesa de triagem onde trabalham, no mínimo, quatro pessoas. Elas separam papel, de um lado, e plástico, de outro. Cada material tem suas subdivisões. Por exemplo, o papel pode ser colorido, mais espesso, branco, e o plástico pode ser colorido ou transparente. Os catadores não usam proteção alguma. Suas mãos já fazem um pega-e-ensaca automático. Os olhos já são treinados. Tudo é separado devidamente. Os resíduos são os materiais aproveitáveis: garrafas de vidro, plásticos, papel e sucata. O lixo é tudo que
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não se pode reciclar (papel higiênico usado, fraldas descartáveis), e vai fora. Margerie Alvez da Rosa, 60 anos, que começou como catadora e hoje trabalha só no galpão, me explica que cada material é separado em grandes tonéis azuis e tem um nome e um valor diferente de venda. “Há mais de 20 anos trabalho nessa área. A diferença é que agora eu não preciso fazer a coleta na rua, apenas faço a separação na mesa de triagem”, conta Margerie, chamada de “vó” pelos outros recicladores. Na triagem, conheci Aura Bonciano, 45 anos, sua filha Juliete
Bonciano Pereira, 18 anos, e Vera Lúcia dos Santos Rodrigues, 50 anos. Elas estavam bem tímidas quando cheguei. Passados alguns minutos de entrevista, ficaram mais descontraídas e começaram a me contar o que de interessante já encontraram na triagem. Uma rindo da outra, foram contando que a brincadeira com Margerie é que ela vai para os bailes que acontecem na cidade “vestida de Aturoi”, em referência à sigla da associação. Ela conta então que vai mesmo aos bailes e não vê por que não ir com as coisas que encontra. Muito vaidosa, Margerie mostra o braço cheio de pulseiras e anéis que encontra no lixo. Em meio à demonstração da Vó Margerie, suas colegas gritam que o que mais gostam de encontrar é dinheiro. E que muitas vezes acham quantias altas. E a regra é: achou, pegou! Se a pessoa que achar não precisar do utensílio, ele é vendido para outro que tenha interesse dentro ou fora da associação. Existe até mesmo uma tabela de preços que aponta o valor dos itens mais achados e esse dinheiro extra que entra vai para a divisão dos lucros, que se dá pelas vendas de todos os resíduos arrecadados e vendidos no final do mês.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Como disse na matéria, já tinha estado nesse galpão de reciclagem de resíduos, e não lixo, como estamos acostumados a dizer. E desejava voltar lá para fazer alguma reportagem contando que por trás daquele lugar cheio de papéis, garrafas, sucatas e algum lixo havia pessoas dignas e que são discriminadas diariamente. A Vó Margerie me falou o tempo todo, enquanto eu fazia a matéria, que ela, às vezes, quando passa em frente a uma casa e pede o saco de resíduo, ouve o proprietário da residência gritar: “Vai trabalhar, vagabunda! Vai arranjar um emprego!”. Sinceramente, gostaria de ver essa pessoa fazendo a separação dos resíduos tão bem quanto Margerie na mesa de triagem. Garanto que essa pessoa não sabe a diferença entre o plástico colorido e o transparente. No entanto, as pessoas do galpão sabem disso e de outras coisas bem mais importantes. Enquanto estive lá, pude acompanhar o almoço delas e ver a solidariedade, que para muitos de nós seria inconveniente. Uma das recicladoras não havia trazido comida e a outra tinha bastante. Um pote plástico de sorvete. Então, ofereceu a metade da comida para sua colega. Ela aceitou. Comeu no mesmo pote e com o mesmo garfo. O importante era comer, e não as condições em que comiam. Aí me pergunto: não há um lado maravilhoso no meio de tanto lixo?
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ALÉM DOS TEXTO E FOTOS GRAZIELA TRAJANO
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S RITUAIS Mais do que de simbolismos e ritos, uma missa depende da dedicação de algumas pessoas
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de em paz, e o Senhor vos acompanhe.” Pouco a pouco os bancos vão sendo desocupados. Na saída, pessoas se cumprimentam afetuosamente. A igreja lentamente se esvazia. A missa acabou, mas o trabalho está recém começando. Atrás do altar muitas pessoas colaboram para que a missa aconteça. A grande maioria é de voluntários que se doam à igreja num ato de fé. O termo “missa” vem do latim mitere, significa enviar, remeter, e tem o sentido de missão. Com aproximadamente uma hora de duração, a missa é um ato solene em que os católicos celebram o sacrifício de Jesus Cristo na cruz, recordando a Última Ceia. Adelhardt Nelson Mueller tem 77 anos e há mais de 40 ajuda no Santuário do Sagrado Coração de Jesus, construído entre os anos de 1958 e 1968, nas imediações do cemitério particular dos jesuítas, na cidade de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. O Santuário abriga o túmulo do Padre Reus, falecido em 1947 e que, por causa dos milagres que lhe são atribuídos em vida, ganhou fama de santo. O pedido de sua beatificação foi enviado ao Vaticano em 1958 e ainda está em andamento.
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“Adelardo”, como é conhecido, foi professor de Português por 25 anos. Trabalhou como revisor das publicações da Unisinos e corrigiu toda a biografia do Padre Reus, dividida em cinco volumes. Começou a atuar como ministro em 1986 junto com a esposa, Sidola. Hoje, além de ministro, é liturgista e coordenador das equipes de liturgia da igreja. São 21 equipes e 33 ministros, totalizando quase cem pessoas que trabalham voluntariamente nas missas.
A igreja é do povo São sete e meia de uma fria manhã de outono. Pessoas chegam munidas de disposição e força de vontade. A igreja precisa estar impecável para receber os fiéis, e isso implica, além da limpeza, a decoração do local. Diva Rigo Gazzola tem 55 anos e é funcionária do Santuário há cinco. Ela é responsável pela limpeza e também ministra e sacristã. Repõe todos os dias a água benta das vasilhas dispostas na igreja. Já Maria Lúcia de Oliveira Kreutz, 62 anos, é voluntária e ajuda no santuário há 14. Faz parte da liturgia com o marido, Lúcio Kreutz, e também da equipe de ornamentação. Essa
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PÃO E VINHO Redonda, branca, com aproximadamente 3cm de diâmetro. A hóstia é um pão, feito com água e farinha de trigo, sem adição de fermento ou sal. É produzida em muitas localidades de forma artesanal, embora já existam máquinas para facilitar o processo. No Santuário Coração de Jesus, as hóstias utilizadas são fabricadas pelas irmãs do Carmelo Nosso Senhor dos Passos, de São Leopoldo. Antes de serem consagradas, as hóstias são armazenadas num recipiente chamado Cibório. Após, são guardadas no Sacrário. A consagração das hóstias se dá pelo padre, que representa Jesus na
transubstanciação. Esse termo significa a mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Cristo. A transubstanciação é adotada pelas Igrejas Católica, Ortodoxa e Anglicana. “Do mesmo modo, ao fim da ceia, ele tomou o cálice em suas mãos, deu graças novamente, e deu a seus discípulos, dizendo: tomai todos e bebei: este é o cálice do meu sangue...” A conhecida passagem bíblica faz alusão ao vinho e sua significação como sangue de Cristo. O vinho canônico em sua maioria é licoroso e tem alto teor alcoólico. É feito especialmente para a missa, mas pode
ser degustado como aperitivo, acompanhando doces, compotas, tortas. Fabricado por diversas vinícolas, custa cerca de R$ 12,00 a garrafa de 750ml. Antes de ser usado, o vinho é depositado numa galheta, bem como a água. Durante a celebração eles serão misturados. A pequena parte de água representa a humanidade que se mistura à maior parte, o vinho, que representa Jesus. Durante a missa a água também servirá para limpar as mãos do sacerdote e para a limpeza do cálice e âmbulas (recipiente com tampa contendo hóstias). O paninho que purifica o cálice é chamado de sanguinho.
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IGREJA
Há mais de 40 anos, Adelhardt é voluntário no Santuário Padre Reus, onde coordena a equipe de liturgia, da qual Maria Lúcia também faz parte
equipe troca os cartazes dispostos pela igreja uma vez por mês e é orientada pelo padre Salet. É um trabalho singelo, mas que Maria Lúcia faz com seriedade e muita fé. “Nós acreditamos que esta é uma pastoral silenciosa”, diz. Nilva Silveira Pacheco, 66 anos, é a coordenadora da equipe de ornamentação. Trabalha no Santuário voluntariamente e vai à missa todos os dias. “É mais fácil me encontrar aqui do que na minha casa”, afirma sorridente. Sempre trabalhou na igreja. Com 12 anos já atuava como catequista e por 36 anos lecionou Religião. Reza o terço junto ao túmulo do Padre Reus às 13h30min de domingo e às 14h de sábado. Também é ministra e faz comentários na missa. De gestos calmos e voz mansa, Jadilson Mesquita Bujes, 43 anos, é colaborador do Santuário desde 2003: “Se fosse para ser contratado, eu não aceitaria. Eu quis ser voluntário, sem nada em troca. Acho mais interessante servir a Deus desta forma.” A função dele é operar o som, fazer a montagem dos microfones, cuidar do que vai ser lido, carregar as baterias dos microfones sem fio, acender as velas, dar o sinal para o início da missa e, caso falte alguém para as leituras ou cantos, ele também “entra em campo”. É o reserva, como diz. A missa das 8h de domingo é transmitida pela rádio Progresso AM. Como às 9h em ponto a rádio para a trans-
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missão, ele precisa ficar atento para que a missa não acabe antes ou depois do horário.
Organização Atrás da igreja, numa sala envidraçada onde lê-se na entrada “Secretaria”, duas jovens, Lucinéia e Fabiane, se revezam para cobrir o expediente do Santuário Coração de Jesus. A paranaense de Foz do Iguaçu Lucinéia Maria Pelissari tem 27 anos e trabalha na igreja há pouco mais de cinco. Veio para o Rio Grande do Sul em 1996, convidada por sua tia, que mora em São Leopoldo. Em 98, depois de aprender a tocar violão, começou a animar as missas. O padre Hugo Berch, reitor do Santuário na época, foi quem a convidou a trabalhar na secretaria. Lucinéia lembra que ele permitiu que ela passasse uma semana com a família em Foz antes de começar a trabalhar. Formada em pedagogia empresarial há um ano, seu trabalho é anotar as intenções de missa, atender ao telefone e dar informações. Também registra os eventos que ocorrem, faz banners, cartazes e folders. Além disso, participa de uma equipe em que toca violão e canta nas missas. Lucinéia explica que o Santuário se mantém apenas com doações. As pessoas que pedem intenções de missa colaboram com o que podem, é espontâneo. Todo dinheiro que entra é anotado. No final do dia ela soma e entrega o valor para o atual
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reitor, padre Hugo Mentgs. Só a secretaria recebe cerca de R$ 100,00 por dia, fora as coletas das missas. Esse dinheiro é muito importante porque é com ele que são pagos os salários dos cinco funcionários, além das despesas como telefone, Internet, folhas de ofício.
Na cozinha Avental, touca, sorriso largo e um bom humor contagiante. Assim se apresenta Miriam Regina Perotto, 43 anos, cozinheira contratada do Santuário há quatro. Trabalha de segunda a sábado. Folga às quartas e domingos. Seu serviço, além de cuidar da lavanderia, é produzir os almoços, cafés e lanches dos padres e irmãos residentes. Miriam conta que precisa ter um certo cuidado com a comida que prepara por causa da idade avançada de alguns residentes. Por isso, não abusa do sal, procura não fazer alimentos muito gordurosos ou doces. Em compensação, prepara muitas saladas e verduras, que eles gostam muito. Porém, como todo mundo é filho de Deus, Miriam também faz arroz, feijão e macarronada. Palavras decoradas, gestos repetidos, orações roteirizadas. Várias são as impressões de uma missa, embora muita gente não conheça o seu real significado. A Igreja Católica, assim como as de outras religiões, é cercada não só de simbolismos, mas também de pessoas dispostas a colaborar.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Com a pauta escolhida, sabia que haveria muitas fontes para entrevistar. Contudo, me surpreendi com a grande quantidade de pessoas que ajuda na igreja, e ainda mais de forma voluntária. Nos dias de hoje, em que temos cada vez menos tempo para nós, há muita gente que acha tempo para os outros. Acompanhei a rotina de pessoas que passam despercebidas aos olhos menos atentos, mas que são fundamentais para a organização da igreja e a realização da missa. Num domingo, assisti a duas celebrações e fiquei impressionada com o número de fiéis. E não eram só senhoras idosas. Havia também homens, jovens e crianças. Conversando com o Padre Afonso Korbes, 88 anos, descobri que muita gente ainda vai se confessar. Há confissões todos os dias no Santuário, e em datas como a Sexta-feira da Paixão precisam vir padres de outros lugares. Além das confissões, os padres também fazem aconselhamentos. Eu não tinha ideia de que tanta gente ainda procurava a igreja. Acredito que essa busca pela espiritualidade, independente de religiões ou crenças, seja saudável, caso contrário não teria recebido tantos sorrisos fáceis.
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A ARTE DO PONTO DE VENDA
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Como ĂŠ o trabalho dos profissionais que fazem com que os produtos das prateleiras estejam sempre organizados
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TEXTO RAQUEL VERARDI
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á aproximadamente oito anos, quando uma reconhecida marca de produtos inovadores para as necessidades do dia a dia se instalou em Porto Alegre, Erni Luis Schneider foi selecionado por uma agência de promoção e marketing para integrar uma pequena equipe. O grupo foi contratado pela agência para prestar serviços de promoção nos principais supermercados de Porto Alegre e Região Metropolitana. De lá para cá, muita coisa mudou, a equipe cresceu e hoje conta com 52 promotores. “Quando entrei, eram quatro promotores. Nosso trabalho era simples, atendíamos só a região de São Leopoldo. A gente se dividia entre as lojas e dava conta de tudo, nada comparado com o que fazemos agora”, conta. E você, que ainda não conhece detalhes da história de Erni, certamente está se perguntando: afinal, o que ele realmente faz? Pois bem, a função dele é bastante providencial a todos nós, que, com o dia a dia cada vez mais atribulado, temos cada vez menos tempo para as tarefas domésticas. Erni é promotor de supermercado, e é graças a pessoas como ele que as prateleiras estão sempre em ordem e os produtos combinados nos corredores para que nada seja esquecido na hora das compras. Ah bom, agora você deve estar pensando, tarefa fácil essa. Mas é justamente aí que você se engana. Para proporcionar toda a comodidade para pessoas como nós, compradores, Erni encara uma rotina dura de trabalho. “Eu viajo bastante, atendo de oito a dez lojas por dia em Novo Hamburgo, Campo Bom, Sapiranga, Taquara, Montenegro, Bento Gonçalves e outras cidades do interior. Como sou o promotor mais antigo, só fico em Porto Alegre e na Grande Porto Alegre quando preciso auxiliar algum promotor.” Erni procura passar um pouco de sua experiência e ensina que bom promotor é aquele que cumpre horário, tem bom relacionamento com todos e utiliza sua experiência para driblar os imprevistos, ou seja, é o que consegue promover o seu produto. Além disso, ele sabe o quão importante é garantir a confiança dos funcionários da loja e, principalmente, do seu supervisor. Afinal, é o supervisor quem acompanha o trabalho dos promotores e os distribui nos pontos de revenda, nesse caso, os supermercados. E a rotina nos supermercados, caro leitor, não é nada fácil. Além de organizar os produtos nas prateleiras fixas, de acordo com a disposição estipulada por cada rede de supermercados, e expor as marcas de maneira conveniente para atingir o maior número de vendas possível, o promotor ainda precisa garimpar pontos extras. Pontos extras? Sim! O promotor que mantém a pontualidade e um bom relacionamento com os demais é bem visto pelos seus supervisores e pelos gerentes dos supermercados e tem preferência na hora de negociar um ponto vantajoso para a venda dos produtos da marca que promove. Ou seja, é graças ao esforço e disciplina dos promotores que vemos, frequentemente, aquelas “ilhas” entre os corredores ou ainda grandes gôndolas enfeitadas ou até mesmo com promoções especiais, como os carros e motos expostos para divulgar novas ceras automotivas, por exemplo. Para montar uma “ilha” o promotor precisa, acima de tudo, ser bastante criativo. Afinal,
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apenas um lugar de destaque não garante que o produto chame a atenção dos clientes. E aqui, novamente, o bom relacionamento pode ser um facilitador. Através dele o promotor pode conseguir alguns materiais extras para, juntamente com o material básico que recebe, compor as “ilhas”. E além de empilhar os produtos dando formatos que remetam à marca, como, por exemplo, pacotes de fraldas formando um berço, também é válida a utilização de televisores passando vídeos promocionais da marca, telas com pacotes de produtos que vão do teto ao chão e, até mesmo, vasos sanitários rodeados por produtos de limpeza. Mas é claro que para esses pontos extras serem conquistados e para que os promotores cresçam dentro da empresa, como no caso de Erni, por exemplo, há uma grande equipe nos bastidores. E é essa equipe que, com o auxílio dos supervisores, controla de perto os resultados trazidos pelo desempenho dos promotores.
Atuação assistida Trabalhando como auxiliar de Back Office (BKO) – equipe de apoio – há três anos em uma grande agência de promoção, Amanda Barros é uma das responsáveis por controlar de perto esses resultados. “A relação do nosso trabalho com o dos promotores é total. Nós somos o suporte e sustentação para que o trabalho no ponto de venda aconteça”, diz Amanda. Ela é responsável pelo desenvolvimento de toda a parte administrativa e financeira, envolvendo desde a admissão dos promotores, seu andamento dentro da empresa até seu desligamento ou promoção. Processos como a solicitação de novas contratações, admissões, demissões, pagamentos, acertos com o cliente e controle de relatórios são feitos por ela também. E além de gerenciar as necessidades de toda a equipe de promotores, Amanda e a equipe de BKO precisam estar atentas aos resultados exigidos pelo cliente e às demandas solicitadas pela agência de promoção para a qual trabalham. Ou seja, são eles os responsáveis por repassar todas as informações referentes aos clientes para a agência e vice-versa. Como não possui contato direto com as equipes nos pontos de venda, é fundamental para a equipe de BKO o auxílio dos supervisores, que são os responsáveis por apresentar mensalmente os resultados obtidos pelos promotores. Resultados esses que são transformados em planilhas e repassados, mensalmente, para a marca atendida pela equipe. “Os supervisores são os nossos olhos no campo, eles que fazem o intermédio na comunicação entre a equipe de Back Office e os promotores”, afirma Amanda. É, sou capaz de apostar que você não imaginava que uma prateleira de supermercado organizada dava tanto trabalho e exigia uma equipe tão extensa e competente, não é mesmo? Pois bem, e essa é somente uma parte do trabalho exigido, afinal, ainda nos falta conhecer o responsável pela união e sucesso do trabalho dos promotores e BKO: o supervisor.
Supervisão acirrada Há cinco anos atuando como supervisor de merchandising, Leandro Schallenberger tem uma rotina intensa. É ele quem con-
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trola de perto toda a produtividade de uma equipe de dez promotores e intermedeia a relação entre esses profissionais e a equipe de BKO. “Sou uma espécie de bombeiro e relações públicas. Tenho que dar suporte e facilitar o trabalho dos promotores de venda, muitas vezes solucionando problemas que não passam de uma falha de comunicação entre cliente e fornecedor”, diz Leandro. Parece simples, não? Mas além de supervisionar, Leandro precisa constantemente criar novos processos e ter ideias capazes de facilitar o trabalho da sua equipe e a promoção da marca para a qual trabalham, cujo sucesso se reflete no aumento do número de vendas. Os supervisores precisam estar sempre atentos à movimentação nos pontos de venda e ao tipo de consumidor que frequenta cada local. Pois, além de facilitar o trabalho do promotor, boas estratégias contribuem para que a marca trabalhada permaneça viva na mente dos consumidores. Resultados que podem ser conferidos naquelas
típicas pesquisas de campo anuais onde são eleitas as marcas mais lembradas, por exemplo. “Busco encontrar o que realmente falta para atingirmos os objetivos. Para isso, é preciso ter pessoas comprometidas e felizes nas suas tarefas, mesmo que suas remunerações possam estar aquém do ideal”, finaliza Leandro. Para que essa união entre promotor, BKO e supervisor dê certo, é preciso prestar atenção nas suas características pessoais. Afinal, cada profissional tem convicções e potenciais próprios, o que faz com que cada um seja único naquilo que faz. E, justamente por serem únicos, acabam ganhando destaque, como no caso de Erni. É, nada fácil a rotina dessa equipe! Enquanto a maioria de nós passa apressada nos corredores dos supermercados sem ao menos notar a posição estratégica dos produtos, há uma equipe unida nos bastidores para agradar, cada vez mais, nós, clientes. Essa é, sem dúvida, uma receita de sucesso!
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Trabalhar com o que se gosta faz com que o trabalho se torne muito mais prazeroso. Foi pensando dessa forma que escolhi escrever sobre a arte do ponto de venda. Visitar um ambiente tão comum ao nosso dia a dia e, ao mesmo tempo, com características tão peculiares deu um tom especial às palavras. Confesso que nunca tinha prestado atenção nos detalhes que cercam uma simples visita ao supermercado. Sempre fui do tipo que imaginou que os produtos organizavam-se sozinhos nas prateleiras. Ver a dedicação daquele promotor
fez com que eu desse muito mais valor e prestasse mais atenção nos produtos que compro. É incrível como um simples retoque final pode modificar algo tão comum. Além disso, me surpreendi com o esforço e agilidade necessários para se compor uma equipe de Back Office. Aquelas meninas fazem mágica! Foi uma experiência muito bacana para mim, que estava acostumada apenas a acompanhar os bastidores dessas funções através dos comentários que ouvia nos corredores da empresa para a qual trabalho.
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A FESTA DE QUEM FAZ A FESTA Os backstages dos festivais do país mostram que os grandes investimentos destruíram a máxima sexo, drogas e rock’n’roll TEXTO GUILHERME BRASIL FOTOS MARCELO GOMES
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o oeste de São Paulo, no centro de Goiânia ou nos mangues de Recife, acontecem os maiores festivais do país. Tanto o Abril Pro Rock quanto o Bananada, o Goiânia Noise e o Porão do Rock, desde o início dos anos 1990, revelam centenas de novos nomes do underground ao mainstream. O melhor de toda a herança de Stones a Nirvana, os festivais agregam as diferentes cenas de todo país em um único palco. Isso todo mundo já sabe, mas a grande verdade de todo esse movimento está nos bastidores dessas festas. Imagine a grande festa de quem faz a festa. Dezenas de camarins divididos por um compensado mal instalado. Áreas de convivência que misturam operários e roadies, técnicos de som, empresários, músicos e fãs: “Essa é parte mais legal do nosso trabalho, a gente para de trabalhar um pouco e reencontra amigos de estrada”, conta o roadie Felipe Grandi. É emocionante ver o mestre Júpiter Maçã passeando pelos corredores do Goiânia Noise e perguntando: “O meu camarim já foi construído? Preciso dormir um pouco!”. Surrealista, diriam alguns, mas não se olhássemos para o lado contrário e víssemos que Rogério Skylab se encontra no mesmo dilema. O mais divertido de acompanhar esse tipo de movimentação é que o rock brasileiro ainda está em um processo longo de criação e de tentativa de fuga do que já foi criado. Na década de 1990, Planet Hemp, Nação Zumbi e Sepultura despontavam como os grandes nomes do rock nacional, e tudo dentro de uma cena underground quase moribunda em todo o centro do país. Mérito total das bandas. Bandas
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da atualidade, com o triplo das ferramentas que existiam na época, Youtube, Myspace, Fotlogs e Orkut, não conseguem fazer a metade. Tais ferramentas de divulgação revolucionaram o meio da música, não só por digilitalizar e democratizar acessos e pela capacidade de reconstrução do underground, mas também por dar fama para aqueles que têm o domínio dos meios e por afundar gravadoras inflexíveis, incapazes de perceber que o mundo estava mudando. “Toda essa transição no mundo da música fez com que diminuíssem significativamente as vendas de discos, e foi exatamente nesse momento que os festivais ganharam grande força como divulgadores de bandas novas”, diz Carlos Carneiro, vocalista da banda Bidê ou Balde. Os tour managers são os únicos caras que não se divertem nesse movimento todo. Ou melhor, tomam pílulas de diversão. Passam, dão rápidas risadas e saem correndo para outro ponto do backstage. Os tour managers são aqueles caras que ficam gritando com a banda, leia-se vocalistas e guitarristas desprovidos de senso de auto-preservação, que se consumirem mais uma linha, ou secarem mais uma garrafa, colocarão o show em risco. Os coordenadores da brincadeira. A mãe e o pai da banda. No meio de tanta bagunça, os backstages são as principais plataformas para o fechamento de grandes negócios. Lee Martinez, agente da banda Bidê ou Balde, chega a dizer que sem os festivais dificilmente a cena brasileira de rock sobreviveria. “Com a internet banalizando os con-
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tatos virtuais, os encontros acabam tomando proporções que antes não tinham. É importante conversar com outros agentes e trocar experiências, já que o mundo da música está mudando e as oportunidades diminuindo”, afirma Lee. A reciclagem do mundo musical, com o advento da internet, passa não só pelo underground, mas atinge diretamente o mainstream, uma vez que as grandes gravadoras não têm mais suporte para segurar a gravação de discos. O grande número de downloads na rede fez a forma física do disco tonar-se obsoleta. Dessa maneira, a venda de discos deixou de representar um número importante no faturamento das gravadoras. Todos os traços de uma feira de negócios, os backstage têm hoje. Festas privadas, “estandes”, pessoas se conhecendo e se reencontrando, negócios sendo fechados. Mas nem sempre foi assim. A porta de trás dos palcos muda com o decorrer da evolução digital. Ninguém sabe ao certo o que rola em cada canto de lugares como os backstages de festivais nacionais. Mas o que sabemos de verdade é que esse espaço se tornou importante para misturas e trocas de experincias e para entender por que os anos 1960 foram deixados
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para trás. Ácidos, groupies enlouquecidas e bebidas exóticas hoje são obsoletos. A preocupação é muito maior com a sonoridade, com o show como um todo. Esse é o pano de fundo. Dentro de tudo isso, não se pode esquecer que as bandas são o centro da questão. A troca de experiências entre diferentes estilos não só faz com que novos negócios sejam criados mas também que exista a exploração conjunta de sonoridades antes isoladas. Imagine o encontro de uma banda como a Nação Zumbi, que embandeirou todo o movimento Manguebeat nos anos 1990, junto com Marcelo D2. Explorar a malandragem do Rio de Janeiro com a criatividade fervilhante de Recife. Seria quase como colocar os Stones e a Daniela Mercury juntos no mesmo palco (obviamente, em uma situação hipotética em que os dois se dariam bem). Absurdo ou não, a questão dos shows e dos grandes festivais serem bem sucedidos muitas vezes se resume ao ambiente de backstage. Seria a preparação do músico para subir no palco. Normalmente vemos em DVDs as bandas se reunindo e rezando, gritando coisas para chamar espíritos do bem, muito bem: bobagem. Quando
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essa galera se encontra livre de compromissos é como largar um cão se mijando em um campo verde. Por isso que a afirmação acima faz tanto sentido. Os grandes festivais dependem muito dos backstages, já que lá que o artista vai sentir tudo que vai levar para o palco. E se, por algum motivo, as coisas estiverem realmente bagunçadas e a banda se sentir agredida com isso, espere e veja sua entrada no palco. Algumas bandas se profissionalizaram nisso. Vejam o caso da Reação em Cadeia. Dentro do rack de camarim dos caras, na lista de itens de necessidades da banda, é regra que eles peçam uma caixa e um amplificador de potência absurda, para transformar o backstage em uma verdadeira festa. “A gente gosta de trazer muitos discos e colocar bem alto no camarim. Quando a gente menos espera as pessoas entram aqui e comem as nossas coisas, mexem no som e transformam isso numa baderna”, se diverte Jonathan Corrêa, vocalista da Reação em Cadeia. Normalmente, em grandes festivais, há muitas bandas juntas, o camarim passa a ser um ponto de referência no meio de tantos outros, o que muitas vezes acaba sendo
um refúgio para a maioria. Longe de fãs, técnicos de som, namoradas e agentes chatos. Todos esses personagens em algum momento são ignorados, menos os tour managers. Esses caras efetivamente colocam as coisas nos seus devidos lugares. E de alguma maneira têm todos da banda nas mãos. Sabem onde cada um está, seja no meio da festa ou isolado no camarim. Muitas vezes vamos para shows e festivais e nem imaginamos o que acontece nos bastidores. Todas essas movimentações giram em torno de uma grande festa. Mas, dentro de todos esses festivais, a verdade é que existem diversas festas dentro de uma só, o que normalmente leva o público a ter noção do todo e esquecer que tudo tem uma razão. Essa razão é o rock. Cansamos de ver bandas levantando bandeiras do tipo: “Ame o Rock”. Na maioria das vezes pensamos que é apenas balela ou filosofia barata. A realidade é que nos dias de hoje quem quiser viver do rock precisa amá-lo realmente e os bastidores desses grandes festivais mostram apenas que tudo isso não passa de um estilo de vida e que os verdadeiros roqueiros não precisam levantar bandeiras, precisam apenas acordar e viver.
Pressão sonora e atitude moldam os palcos dos festivais pelo território nacional
IMPRESSÃO DE REPÓRTER O mais legal de fazer esse tipo de matéria é unir o trabalho às coisas legais. Transitar pelo backstage de festivais é como se você acordasse pela manhã e resolvesse passear no salão de um freak show. Unir pessoas que nunca se encontram em um mesmo ambiente cria uma atmosfera incrivelmente criativa e quase impossível de ser descrita. O mais maluco é que normalmente não existem jornalistas nesse tipo de ambiente, o que acaba fazendo com que as pessoas façam coisas que elas normalmente não fazem. Com o tempo as máscaras caem e todo mundo mostra a que veio. Interessante é observar o pessoal que realmente trabalha nesses lugares. Afinal de contas, toda essa movimentação é uma grande festa. Seguranças, produtores e tour managers, pessoas que tomam pílulas de diversão, literalmente isso.
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CASAMENTO
Depois de sete anos de namoro, Fernanda e Tiago decidiram casar
SIM TEXTO MARCELA SCHUCK FOTOS GRAZIELA TRAJANO
As preparações para o casamento misturam sentimentos de alegria e nervosismo
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companhando o dia da noiva Fernanda Soares, desde sua chegada à estética, onde passou a tarde, seguida da sua entrada na igreja, repleta de emoção, até a festa, onde recebeu o carinho dos convidados, pude sentir e registrar o que se passa com uma noiva no seu tão esperado e planejado dia. Fernanda tem 26 anos e está há sete anos e meio com Tiago. Noivaram com cinco anos de namoro, no dia 22 de dezembro de 2006, e de lá pra cá eles vêm se preparando para o casamento. No início, eles optaram por não casar, apenas morar junto. Mas, para Fernanda, casar na igreja era um sonho. “Não só pra mim, mas para a minha família também.” Foi em abril de 2008 que o casal começou a pensar nas possíveis datas. Em agosto, marcaram o casamento para 18 de abril de 2009. O próximo passo foi procurar a igreja e o local para a festa. “Primeiro fui atrás de salão de festas, porque em Canoas é complicado conseguir, depois fui procurar igreja”, lembra a noiva. Depois o casal fez a lista de convidados e decidiu como iria ser a festa. Já a escolha da igreja estava praticamente decidida: a Paróquia Nossa Senhora das Graças, em Canoas, na Região
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Metropolitana de Porto Alegre, onde frequentam as missas e conhecem o padre Flávio, muito querido por todos.
As preocupações A preocupação inicial em casar na igreja se deu por Fernanda ter pais separados. Ela tinha dúvida de como iria fazer no momento da cerimônia em relação aos seus pais: “Conversei com minha mãe antes e optei por entrar na igreja sozinha. Para mim, o sentido de casar na igreja e uma pessoa te levar até o altar é: ‘eu cumpri com minha missão, criei minha filha até este momento, daqui em diante é contigo’. E como quem me criou foi a minha mãe, não teria por que entrar com meu pai.” Fernanda preferiu que seu pai não estivesse no altar com sua mãe na hora da cerimônia, mas apenas presente como convidado. “Hoje meu pai é casado de novo e tem outra família”, explica. Fernanda e Tiago desde o início cuidaram de todos os preparativos. Escolheram até a música juntos, mas para Fernanda, apesar de Tiago ter participado de todas as decisões, o homem é um pouco mais desligado. “Não é tão detalhista. A gente acaba querendo fazer tudo perfeito.”
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Minutos antes de a noiva entrar na igreja, ela estava preocupada se tudo que havia preparado nos últimos meses para o casamento iria dar certo, e se as pessoas iriam gostar da festa. “Mas a maior preocupação era entrar sozinha na igreja. Sou muito emotiva.”
O momento “Foi no momento que coloquei o vestido que desabei e comecei a chorar. Achei que não iria conseguir entrar na igreja”, relata Fernanda. No caminho, o motorista que levou a noiva até a igreja conversou com ela e a deixou mais tranquila. “Quando desci do carro, o cinegrafista pediu para deixar uma mensagem para o Tiago. Naquele momento eu disse: ‘não me pede pra falar nada, porque eu não consigo’. Tremia demais, foi muito forte a emoção.” Momentos antes da entrada na igreja, a mestre de cerimônias orientava Fernanda. “Não consegui enxergar ninguém na minha frente. Passaram várias coisas na minha cabeça, mas a única coisa que sabia é que tinha que chegar até o altar.” Fernanda lembra que estava tremendo. Com uma mão, ela segurava o buquê; com a outra, que suava muito, não sabia
o que fazer. A noiva conta que se sentiu mais segura quando Tiago foi ao seu encontro. E os dois seguiram juntos para o altar. “É o máximo da felicidade. Foi muito bom, aconselho para todo mundo.”
O corrido dia do noivo O noivo Tiago Machado Cardoso tem 29 anos e conta que dormiu bem na noite anterior ao casamento. Acordou cedo para ajudar a organizar o salão de festas e ficou lá até as 14h, quando saiu pra almoçar. “Cheguei em casa já eram 15h. Logo a Fernanda me ligou, porque tinha esquecido o vestido da aia em casa. Tive ainda que levar o vestido na estética, onde ela estava se arrumando.” Tiago ainda foi ao barbeiro e passou novamente no salão de festas, para checar como tinha ficado a decoração. “Fiquei no salão de festas até as 18h. Sendo que tinha que estar às 19h na igreja. Mas eu estava bem tranquilo”, conta. Tiago se sentiu nervoso no momento em que os pais e padrinhos se posicionaram para entrar na igreja e a música começou a tocar. “Quando a porta da igreja abriu e a Fernanda entrou, eu estava emocionado. Achei ela linda, fiquei muito feliz. Saiu tudo como planejamos. E ela conseguiu entrar sozinha
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CASAMENTO
na igreja”, recorda o noivo. Na hora da festa, o noivo lembra que foram muitas fotos e convidados para dar atenção. E nem conseguiu jantar direito. “Mas beber eu consegui. E bastante, até passei um pouquinho do limite”, comenta com risos.
Planejando as fotos O sonho de casar na igreja não sai de moda, e o registro fotográfico é responsável por marcar o fato na vida de um casal. A fotografia tem que encantar e transmitir alegria. Gerçon Ramires, 54 anos, fotógrafo profissional desde 1982, relata: “Eu li uma revista que dizia: ‘o cara só é bom fotógrafo até o próximo evento’”. Para Ramires, o fotógrafo sempre tem que estar preparado, e essa preparação acontece bem antes do casamento, quando os noivos procuram o profissional para contratar seus serviços. É nessa hora que se deve passar segurança para o casal, segundo ele. Ramires esteve presente na cerimônia e durante a festa de casamento de Fernanda e Tiago. Ainda registrou o making of da noiva, enquanto ela estava na estética se arrumando.
Estética No dia do casamento, Fernanda passou a tarde toda na estética. Mas a dona do salão, Ieda Xavier, 52 anos, cabeleireira há 30, conta que a preparação da noiva começa muito antes. O horário tem que ser marcado com dois meses de antecedência. A 15 dias do casamento, é feito um teste de penteado e maquiagem. Ieda conversa com a noiva no dia do teste e pergunta que estilo de cabelo ela não gosta. Isso facilita o trabalho, segundo ela. Ainda usa recursos como revistas especializadas em noivas. Conta também que algumas
noivas vão acompanhadas da mãe ou de uma amiga para fazer o teste. Na tarde do casamento, a noiva faz massagem relaxante, banho de banheira, unhas, lava e seca o cabelo, é maquiada e, por fim, vestida para a cerimônia. “E quando elas ficam muito nervosas oferecemos um champanhe para brindarem. Aí vira festa”, revela Ieda.
A decoração da igreja Bernadete Poeta, 48 anos, secretária da Paróquia Nossa
IMPRESSÃO DE REPÓRTER O tema casamento me remete a alegria, emoção. E foi isso que fui em busca quando escolhi o casal Fernanda e Tiago. Acompanhei a noiva na tarde de seu casamento na estética onde estava se arrumando. Já no caminho para a igreja, peguei uma carona com os fotógrafos da noiva. E vivenciei a correria. Como os fotógrafos têm que estar atentos a tudo que acontece ao redor deles! Fiz a observação do casamento e da festa, para sentir o clima. Após o casal ter voltado da lua-de-mel, estive na casa deles para perguntar se
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tinha ocorrido tudo conforme suas expectativas. Feita a cobertura com os noivos, a próxima etapa foi entrevistar outras partes envolvidas, que também fazem o casamento acontecer. Fotógrafo, estética, igreja e a loja do vestido. Todos me explicaram da parte operacional, cada um no seu ramo, é claro! Além do operacional, sempre tinham alguma história curiosa pra me contar. Cada profissional que conversei renderia uma matéria. Mas como trabalhamos com espaço limitado, agradeço a todos que me receberam.
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ação, e em menos de 30 minutos a igreja já está decorada, com arranjos de flores, laços e voal branco entre os bancos. A decoração é feita com 13 arranjos, que custam em média R$ 700,00, valor que é dividido entre os três casamentos que ocorrem nos sábados. As flores são compradas na Ceasa, na sexta-feira de manhã, e as voluntárias confeccionam os arranjos no mesmo dia. Somente elas podem fazer a decoração do local. Segundo Bernadete, essa é uma forma de conservar a igreja e diminuir os custos para os noivos.
Escolhendo o vestido
Senhora das Graças, onde Fernanda e Tiago se casaram, conta que a data do casamento deve ser marcada com um ano de antecedência. Após é agendada uma entrevista com o padre, que deve ser realizada até seis meses antes da cerimônia. Segundo a secretária, na entrevista o padre explica aos noivos a importância do casamento católico. O ensaio na igreja acontece na semana da cerimônia, e serve para marcar a entrada dos padrinhos, pais e noivos. Seis voluntárias trabalham há cinco anos na decoração da igreja. Aos sábados, após a missa das 19h, elas entram em
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Recomenda-se alugar o vestido oito meses antes do casamento. Na loja Filhas da Mãe, onde Fernanda alugou o seu, o atendimento também é com hora marcada. A noiva fica à vontade para experimentar diversos modelos, com direito a véu, grinalda, acessórios, sapato e música de fundo, para que se sinta especial. Assim que a escolha é feita, é reservada uma nova data para os ajustes finais, geralmente 15 dias antes do casamento. A loja não costuma oferecer peças que exigirão muitos ajustes para se adequar ao corpo da noiva. A retirada do vestido é marcada para um ou dois dias antes do casamento. Na retirada é feita a prova final, para ver se ficou tudo perfeito. Caso tenha ficado, por exemplo, uma alça grande, as costureiras fazem na hora o último ajuste. Os vestidos são devolvidos nas segundas-feiras, e podem ser entregues por outra pessoa. O vestido de Fernanda teve que ser devolvido após o casamento, mas as lembranças irão ficar registradas para sempre nas fotos, na filmagem e, principalmente, na memória da noiva.
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SEGUINDO A TRADIÇÃO ALEMÃ TEXTO ALESSANDRA STIELER LARISSA AMARAL
Vitório Gert oferece em seu bar, além de outros produtos, o sabor s fistica a cer e a artesana
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Água, malte, lúpulo e fermento são os ingredientes da verdadeira cerveja artesanal
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onsiderada uma das paixões do brasileiro, a cerveja ganha novo aroma e sabor quando produzida artesanalmente. As microcervejarias, no momento da produção da bebida, zelam pela qualidade do produto utilizando, na maioria das vezes, a Lei de Pureza Alemã, instituída em 1516, que estabelece o uso de apenas quatro ingredientes: água, malte, lúpulo e fermento. Não são permitidos adição de aditivos químicos ou conservantes. O gosto pela cerveja artesanal fez surgir um nicho de negócio: os bares especializados. Exemplo disso é o espaço criado por Vitório Gert, que trabalha apenas com esse tipo especial da bebida. “Percebi uma carência no mercado e acredito que ainda exista”, diz ele. Gert conta que se sentia muito insatisfeito com a maneira que era atendido e como o serviam nos bares. Resolveu montar um local atraente para reunir seus amigos. Seguindo o padrão germânico, a microcervejaria Barley, de Capela de Santana, no Rio Grande do Sul, está no mercado desde 2000. Sua primeira fabricação, como hobby, foi em 1992, produzida esporadicamente para consumo próprio. Com o aprimoramento dos processos, o lazer acabou se transformando em negócio em 2002. Hoje a produção é de 25 mil litros da bebida por mês, bem diferente do que era produzido no princípio, quando apenas 50 litros eram feitos a cada vez. A cervejaria foi fundada por Vitor Hugo Schwarz e Francisco Sturmer, que veem seu produto sendo comercializado em Porto Alegre, Novo Hamburgo, Ivoti, São Leopoldo e também em São Paulo. A paixão pelo líquido afetou também a família. Gustavo Schwarz, filho de um dos fundadores, foi para o Rio de Janeiro para adquirir mais conhecimento no assunto. “Fiz curso de Técnico Cervejeiro, no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Senai. A certificação, ao final do curso, é dada por representantes da Alemanha, que vêm especialmente para fazer a avaliação.“ Entender o feitio da cerveja não é difícil, ainda mais para quem gosta de química. Pura alquimia entre os ingredientes naturais. O líquido precioso faz uma dança entre panela, filtro e tanque e, no final, entre frio e quente. No Brasil, este país tropical, a cerveja é consumida muito gelada. Pena! Se fosse degustada entre 4 e 8 graus celsius, a bebida não teria seu aroma e sabor
modificados, pois consta que as papilas gustativas congelam em temperatura mais baixa e não é possível apreciar o gosto real. A quantidade de cervejarias artesanais que estão surgindo no Rio Grande do Sul mostra uma mudança no paladar dos bebedores e na demanda por esse tipo de produto. De acordo com Vitório Gert, existem 28 cervejarias artesanais, de qualidade, em atividade regular no Rio Grande do Sul. Na cidade de Feliz, por exemplo, está instalada a Eisenbrück; em Pareci Novo, a Abadessa; em Gramado, a Rasen Bier; em São Leopoldo, a Factory Beer; e em Três Coroas, a Glük. Para Paulo Berti, proprietário da Pizzaria Sol, em Garopaba, Santa Catarina, a preferência pela cerveja especial é simplesmente por causa do sabor. Segundo ele, que oferece no cardápio da pizzaria a artesanal Eisenbahn, produzida no Estado Catarinense, as variedades industrializadas no mercado têm todas o mesmo gosto e acabam sendo consumidas sem um propósito maior. “As pessoas que tomam cerveja, na sua maioria, bebem por beber e não aceitam pagar muito pelo produto. Eu não me importo de pagar R$ 8,00 por uma long neck, por exemplo, porque sei que estou consumindo algo de qualidade, que foge do padrão das cervejas.” Paulo não sabe ao certo como é produzida e nem por que a bebida tem a coloração mais escura que as convencionais. Espantou-se ao saber que o processo de produção da Barley, que ele consome quando visita o Café de Bordo, em São Leopoldo, leva em média 21 dias. Luiz Carlos Pereira Filho, atendente da cafeteria, conta que o foco do local é o café, mas sempre têm alguns clientes que pedem cerveja quando chegam para um happy hour. “Para atendermos bem, preferimos colocar um tipo especial no cardápio.” A long neck é vendida por R$ 6,00 e a garrafa de 1 litro sai por R$ 12,00. Mas isso não é um custo alto, já que o público que geralmente consome é formado por pessoas das classes A e B, que entendem do assunto e viajam muito. A tendência é que o setor cervejeiro artesanal cresça ainda mais, na visão do pizzaiolo Pedro. “Há 11 anos no mercado com a minha pizzaria, percebi que de dois anos para cá a procura pela bebida diferenciada cresceu bastante. Ofereço ao meu público uma pizza mais requintada, então, para acompanhar, o cliente pede também uma cerveja que se equipare em qualidade”, enfatiza.
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CERVEJA
AS ETAPAS DO PROCESSO Enquanto se descobre como esse requisitado líquido é produzido artesanalmente, surge provavelmente uma baita sede. Conheça a seguir o passo a passo do feitio da cerveja. Na etapa de moagem o malte é moído para expor o amido contido em seu interior, que será transformado durante o processo. Logo após, na maceração, o malte é misturado com água quente para que a ação de enzimas quebre as cadeias de amido em cadeias menores de açúcares como glicose e maltose, criando, assim, o mosto
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da cerveja. Levado para filtragem, o amido transformado (macerado) chamado de “pasta”, que teve as cascas e bagaço separados do líquido açucarado (mosto), agora já tem cor de cerveja. O mosto é fervido durante algum tempo para eliminar substâncias não desejáveis e para ser esterilizado. Depois é adicionado o lúpulo, que confere amargor e aroma característicos à bebida. A próxima etapa é a que o mosto passa por um processo de decantação, em que as proteínas coaguladas no processo anterior são depositadas no fundo do tanque, enquanto o mosto límpido é retirado. Seguindo o processo, o mosto é resfriado a baixas temperaturas, dependendo do tipo de fermentação e de levedura a ser utilizada. Depois do resfriamento, a levedura (fermento) é inoculada e a mistura passa para o tanque de fermentação. É na sétima etapa do processo, a fermentação, que os açúcares do mosto são consumidos pela levedura e transformados em álcool e gás carbônico. Depois disso a levedura é retirada do tanque e a cerveja é maturada por um determinado período. Na fase em que fica no filtro, adiciona-se mais gás carbônico. A cerveja maturada é filtrada para que se torne límpida e brilhante. Com o líquido pronto para o envase, a pasteurização é o próximo passo, e também o que irá diferenciar a cerveja do chopp. Colocadas num tanque, as garrafas passam por uma elevação de temperatura, que garante a higienização do produto. Pronto! A cerveja artesanal está feita!
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Para quem não é consumidor de cerveja, o assunto pode não ser tão interessante. Mas para mim, que aprecio com moderação, acompanhar o processo de feitio da bebida artesanal foi bem interessante. O caminho até a microcervejaria Barley, em Capela de Santana, no Rio Grande do Sul, teve alguns imprevistos. Como a cidade é bem pequena, cerca de 10 mil habitantes, e tem poucas placas de indicação, eu me perdi. Mesmo tendo utilizado o fabuloso Google Maps, passei duas vezes a entrada da empresa, que fica na beira da estrada. Na
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companhia das colegas fotógrafas, fiquei duas horas na Barley tendo uma aula de química. Para alguém da área de comunicação, como eu, entender tudo foi difícil, mas não tive medo de fazer perguntas ridículas. Assim, fui adiante e deu tudo certo. A degustação do produto no fim da entrevista revelou uma bebida muito boa. A próxima etapa foi conversar com consumidores. Visitei o Café de Bordo, em São Leopoldo. Mesmo sendo uma cafeteria, é um lugar bem agradável para saborear uma cerveja artesanal também.
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FOTOS FABIANA REINHOLZ
usta es ecia i u-se n i e aneir ara trabalhar com o pai Vitor na cer e aria a fa ia
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MOTÉIS
O cotidiano de quem trabalha entre suítes e corredores
ALÉM DO PRAZER
TEXTO E FOTOS FERNANDA CALEGARO
“A
ntes de colocar a língua em movimento, verifique se a mente está engrenada.” A frase está no cartaz fixado num mural do saguão administrativo de um dos maiores motéis de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre. Representantes simbólicos das fantasias, das orgias e da sofisticação, os motéis reúnem hoje determinados serviços que vão além de um mero encontro de casais. Num dos mais antigos da região metropolitana de Porto Alegre, há suítes para festas que comportam, em média, 30 pessoas. Gerente há dois anos no turno da noite de um motel com 60 quartos, Jéferson Lutz conta que as festas são rotineiras. Ge-
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ralmente, junto com duas camareiras, ele entra no quarto para fazer uma revisão: “Para trabalhar em motel não pode ter pudor. Quem paga a conta é quem promove o encontro, e curiosamente sempre é o primeiro a ir embora. Somos obrigados a revisar a rouparia e o frigobar antes de o cliente sair”. Ele ressalta: “As pessoas lidam com a situação normalmente, como se não estivéssemos no quarto”. Na Roma Antiga, existia o stabulum, um alojamento de beira de estrada usado como recurso às pessoas que viajavam a cavalo. Na Europa, as casas de hospedagem, tempos depois, foram chamadas de stage-inns. Seu auge foi no início do século
XIX, antes da construção das ferrovias. Já nos Estados Unidos, com o surgimento das highways na década de 1950, começaram a surgir os motor-inns ou motor-hotel. Dessa contração foi designada a palavra motel, resultando numa alternativa de alojamento para pernoitar nas rodovias. Gerente administrativo de um motel com 32 quartos, da zona sul de Porto Alegre, Jairo observa uma mudança de comportamento: “Os costumes foram se banalizando e o respeito desapareceu. Há 15 anos não havia canais eróticos. Hoje há clientes que não entram se não tem filme pornográfico”. Já Giane Gall, que gerencia há seis anos um dos motéis pioneiros da
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zona norte de Porto Alegre, observa que os homens estão mais românticos: “Eles estão atentos às delicadezas. Muitos fazem questão de surpreender suas mulheres. Além das velas e do champagne, alguns já pediram mais de 20 dúzias de rosas para despetalar da porta de entrada até a cama”. No Brasil, por volta da década de 1960, foi se firmando o conceito que evidencia os motéis como lugares para encontros sexuais. Era comum a gíria “rotel”, devido à grande rotatividade de pessoas nos quartos, uma característica típica dos “motéis de viração”, que são aqueles que possuem preços mais acessíveis e o revezamento de pessoas funcionando de meia em meia hora. Jairo observa as diferenças comparando com o serviço hoteleiro: “No motel, as despesas são maiores devido à rápida permanência das pessoas. O gás, a água e a eletricidade têm valor superior decorrente da alta rotatividade nos motéis. Normalmente, no hotel, a rouparia é trocada uma vez, enquanto nos motéis é trocada no mínimo três vezes ao dia”. Um motel que possui 60 quartos despacha para a lavanderia em média 500 peças por dia, e 15 mil ao mês, totalizando aproximadamente 100 toneladas de roupas mensalmente. O estabelecimento onde a maioria das pessoas busca prazer sexual revela outras peculiaridades. “Há pessoas que vão sozinhas ou que procuram o motel para jantar ou assistir televisão. Isso quando a suíte ao lado não interrompe a concentração. Já aconteceu de um cliente sair depressivo e de ambulância”, conta Jéferson. Também é mais comum do que se imagina as pessoas entrarem no porta-malas dos veículos. “Uma noite é diferente da outra. Tudo é inesperado quando se trabalha com uma grande diversidade de pessoas num lugar que funciona o ano todo.” Em datas especiais, como no Dia dos Namorados, muitos não conseguem entrar no motel porque ele fica permanentemente lotado.
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Giane explica que esse movimento empata em valores monetários com as temporadas de março a dezembro, que também são muito movimentadas. “No sábado e domingo é mais fraco, mas durante a semana aumenta pelo fato das pessoas estarem mais liberadas devido à época de férias, e as famílias estarem na praia.”
Por dentro Uma regra básica na maioria dos motéis é o processo de higienização da rouparia, que tem diversas etapas. Os roupões, lençóis e toalhas passam por uma longa bateria de limpeza que começa na máquina de lavar, onde é usado sabão, desinfetante para esterilização, clareador e amaciante. As próximas etapas são a centrifugação e secagem, até chegar na calandra, espécie de prensa giratória e automática que devolve as roupas prontas e passadas. Os corredores internos possuem divisórias chamadas de ilhas, onde são estocados a rouparia e o material higiênico, que ficam prontos para a reposição nos quartos. Em dias de chuva e frio, o movimento aumenta e as camareiras e recepcionistas driblam o corre-corre para organizar os quartos. “Na pressa durante a revisão, tem que estar atenta, pois é muito comum os clientes trocarem as tampas das garrafas de água, abrirem as latas e deixarem no frigobar para enganar, como se não estivessem usadas”, comenta a camareira Márcia Barta, que com mais uma colega cuida de 34 quartos durante meio turno. Giane conta que todas as mercadorias são revisadas e contadas rigorosamente. “A governanta de quarto é a pessoa que supervisiona todos os setores, desde o depósito de bebidas e comidas até o estoque de higiene e rouparia. Da fatia de frios à roupa de cama.” O funcionamento interno é controlado através de rádio. A correria começa no momento em que um quarto fica livre. A recepcionista avisa: quarto liberado. A governanta e as camareiras
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fazem a revisão e comunicam-se novamente com a recepcionista, para liberar o cliente. Automaticamente os quartos já estão sendo trocados e limpos. “As pessoas costumam levar para casa os chinelos e os roupões. Também é comum esquecerem roupas. Há mulheres que deixam o vestido de noiva e os presentes. Tudo é guardado caso o cliente volte para buscar.” A gerente lembra que certa vez um cliente se hospedou na véspera de uma Sexta-feira Santa e esqueceu a vara de pescar na garagem e os peixes embalados dentro do frigobar. A crise econômica não teve grande influência na rentabilidade do setor moteleiro. Jairo percebe que o número de frequentadores é o mesmo, no entanto, não apareceram novos clientes. “Há três anos não havia concorrência, e o motel era um dos melhores negócios. Hoje, no mesmo bairro, há três motéis a duas quadras do nosso”, comenta. O gerente lembra também da nova Lei Seca, estabelecida em junho de 2008: “A lei fez com que o movimento caísse muito. Mas por outro lado tem uma vantagem, é comum clientes barraqueiros ameaçarem as recepcionistas por estarem embriagados”. A recepcionista do motel na zona sul relata uma característica dos clientes: “O cliente que chega com um bom carro quer o quarto comum, enquanto aquele com carro simples pede a melhor suíte. Esse cliente traz a mulher e fica mais tempo”. Ela conclui: “O cliente financeiramente melhor sucedido é chamado cliente de caderno, o frequentador assíduo”. Atualmente, a maioria dos motéis possui um quadro integral de mulheres atuando nos bastidores. Como fruto de uma sociedade experiente no ramo moteleiro, absolutamente todos seguem como plantonistas da discrição. * O nome foi trocado a pedido do entrevistado
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Aventuras, curiosidades e o corre-corre entre as suítes e corredores... Qual a principal diferença entre o motel e o hotel, como estabelecimentos de hospedagem? A camareira é acionada no rádio e para imediatamente de varrer um quarto porque precisa revisar o outro, que acabou de ficar vago. É uma parte rotineira de um lugar que não cessa de funcionar 24 horas por dia, o ano inteiro. Estar infiltrada nas dependências de um motel é uma oportunidade de ver o outro lado de um local totalmente privativo. Ao entrar para fotografar o quarto recém deixado por um casal, senti no ar o prazer associado a encantamentos e fantasias. É curioso e muito especial ver esse cenário ser armado e desarmado.
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DIVERSIDADE DESENFREADA Um olhar sobre uma balada gay na noite porto-alegrense TEXTO E FOTOS MANUELA QUADROS
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ara parte dos heterossexuais, gays podem não ser mais vistos como aberrações, mas ainda incomodam muita gente. E, nesse processo, parece ter se tornado fácil aceitar os dois extremos mais visíveis. Por um lado, o homossexual que não trai os códigos comportamentais de seu sexo, como o gay com pose de homem ou a lésbica de batom; por outro, a caricatura inofensiva de tão estridente, como a Drag Queen. Este último caso é um dos mais interessantes, porque desde que o Carnaval é Carnaval as pessoas vão aos montes para bailes gays e se travestem em desfiles. Porque os gays encapsulados em paetês são engraçados. Porque a partir do momento em que a coisa se assume como festa e paródia não há mais ameaça. As paradas gays são apenas um Carnaval fora de época. Ainda assim, baladas gays cada vez mais atraem e unem o público homossexual ao heterossexual, seja pela irreverência já citada ou pela diversidade. Afinal, o que a balada gay tem?
A produção A festa Love Madonna está entre as preferidas do público GLS gaúcho. Projeto que teve início em 1999, com a antiga boate Sunga’s Bar, a festa foi criada em conjunto com um produtor que tinha contatos com a gravadora de Madonna. “O planejamento agradou aos olhos da gravadora, que apoiou o evento, tornando-se a única festa oficial da Madonna no Bra-
sil”, orgulha-se Rafael Hahn, responsável pela maioria das festas do Cine Theatro, boate predominantemente GLS em Porto Alegre. A festa tem um público fiel que não perde as edições, realizadas a cada quatro meses. Hahn explica sua função como produtor, em especial para essa festa, que conta com a participação de Lemoine, cover oficial da Madonna no Brasil: “Eu crio o projeto, monto o formato e executo a festa. Sou responsável por tudo que venha a acontecer, desde as músicas até os DJs.” O produtor conta que o trabalho é planejado com meses de antecedência. “Quando se monta um projeto, se estuda tudo que vai acontecer. A festa que as pessoas vivem em algumas horas dentro da boate, eu vivo antes, meses antes, quando monto um tema, faço os contatos e, através disso, o contratado, no caso aqui a Lemoine, já sabe como proceder. Às vezes fazemos uma marcação de luz, de palco. Ensaio mesmo vai depender muito do que vai ser feito na hora da festa, se haverá surpresa ou não.” Embora a popularidade da festa seja inegável, Hahn acredita que sempre se deve variar o tema para que elas não caiam na rotina. “No Cine rola desde o tribal ao eletro e do pop ao funk carioca. Festas como Divas Teen são para um público mais jovem; Surround, festa eletrônica, para um público mais descolado, e o famoso Pancadão, que, na minha opinião, é uma das mais tradicionais e populares festas gays do Brasil, reúne um público diversificado.” Apesar da programação do final de semana ser destina-
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da aos GLS, Hahn argumenta que o público é diferenciado: “O Cine-Theatro é um local alternativo. Embora sextas e sábados atraiam mais o público GLS, não temos alvo preciso para nossas festas, apenas nos preocupamos muito com a qualidade de nossos eventos, acredito que o sucesso se deve a isso.”
Onde menino não entra Criado pelo próprio Rafael Hahn em 2004, o Clube da Luluzinha manteve-se fiel a sua proposta inicial – festa exclusivamente voltada ao público gay feminino. “Antes do Cine-Theatro receber esse nome, os antigos donos criaram a boate de Sunga’s Bar e sempre que eu divulgava as festas do Sungão – como era chamado na época – as meninas me cobravam: ‘Quando vai ter uma Tanguinhas Bar?’ E não é que isso me deu a ideia de fazer uma festa fechada, exclusiva para elas?”, explica o produtor. “Até hoje sinto falta de uma festa do gênero. Muitas vezes, em baladas GLS, homens heterossexuais frequentavam para tirar proveito da situação. Na ‘Lulu’ isso não
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acontecia, era muito mais tranquilo”, lembra Ursulla Short, 22 anos. Sempre uma vez ao mês, o Clube da Luluzinha trazia em sua programação festas temáticas com Drags, acústicos especiais, exposição de artes e fotografias, DJs convidadas e strippers. “Por dois anos e meio a festa teve sucesso, com direito a edições em Florianópolis e interior do Rio Grande do Sul. No Clube da Luluzinha ia muita mulherada variada, desde ‘meninas machinhos’ e donas de casa casadas com homens, a gurias mais lindas que tem por aí. Infelizmente, é uma festa que eu não faço mais. Aprendi muito com elas, principalmente sobre o preconceito que os próprios meninos gays têm com as meninas gays”, conclui o produtor. Hahn comenta que hoje muitas das meninas que frequentavam a Luluzinha migraram para o Pancadão e que, apesar do fim, não descarta o retorno da festa no futuro. “Sinto, às vezes, falta desta festa, mas como diz uma amiga minha, ‘tudo tem seu tempo’ e o tempo da Luluzinha já passou. Quem sabe um dia a gente não volta, não é mesmo?”
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Balada gay x balada hetero Como identificar uma balada predominantemente gay? Para Rafael Hahn muitas vezes, a casa acaba se moldando aos gostos do público: “No caso do Cine, 99% do povo que trabalha na casa é gay, ou seja, tudo que é feito de gays para gays, vai acabar gay!”, brinca. “O Ocidente, por exemplo, por já ser um tipo de ponto de encontro, tornou-se uma casa não assumidamente gay, mas rotulada como tal pelo público que há muito tempo frequenta o local”, completa. Muito se questiona sobre a preferência do público para determinado tipo de balada. Uns preferem raves, justamente por ser algo homogêneo, outros, festas tradicionalmente heterossexuais ou homossexuais, por questões de identidade ou identificação. Hahn acredita que baladas gays são culturalmente mais ricas e organizadas: “As festas gays são bem mais divertidas e bem mais organizadas que as festas heteros. Você pode ir lá que ninguém vai te agarrar a força, nem ouvir aquelas péssimas piadinhas que você vê por aí. Você dança a noite toda, pois as músicas são melhores mesmo e você só faz aquilo que realmente está a fim.” O estudante Kenny Gusmão, 21 anos, polemiza: “Muitos ditos heterossexuais frequentam baladas gays, pois se encontra mais liberdade para experimentar sem um pré-julgamento dos demais”. Thiago Jorge, 24 anos, também estudante, acredita que o que diferencia uma balada da outra é, essencialmente, o público, e discorda que heterossexuais atrapalhem a festa. “Heterossexuais só atrapalham quando vão para a balada com esse intuito. Por outro lado, acho legal quando eles acompanham amigos gays nas baladas. É curioso e divertido. Acho que alguns heterossexuais preferem a balada gay por ser mais alternativa, mais multicultural, mais divertida, até”, completa. Por fim, qual seria o diferencial de uma balada gay? “O que me agrada são as pessoas vinculadas ao ambiente, que é divertido e que você não encontra em nenhum outro lugar”, avalia Thiago Jorge. No final das contas, o que diferencia uma balada de outra não é a orientação sexual do público ou o público propriamente dito, e sim os interesses em comum que unem esses indivíduos. Em meio a essa imensa diversidade cultural, é inegável que a raiz do sucesso da balada gay está justamente nos bastidores da mesma.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Quando sugeri o tema da minha reportagem, tinha consciência de que embarcaria em uma experiência única. Apesar de ainda ser um tema encarado como tabu por parte da sociedade contemporânea, acredito que a melhor maneira de retratar a cultura homossexual seja com uma boa dose de realidade, sem levantar bandeiras ou apelar para clichês. Para isso, frequentar apenas uma balada gay não seria o suficiente, pois, como qualquer festa, o ânimo e o clima passam por
algumas variáveis. Acredito que para ter uma opinião imparcial é preciso se livrar de preconceitos e possíveis opiniões pré-concebidas. Fui a quatro festas. De cada uma eu pude extrair algo diferente, único e esclarecedor. Pesquisar o comportamento humano, seja qual for, é sempre um aprendizado pessoal. Quando deparamos com uma temática que nos interessa e temos a oportunidade profissional de contar determinada história, enriquecemos muito como seres humanos.
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Para salvar vidas é preciso mais do que o conhecimento técnico. Colocar o coração no trabalho e regular o humor ajuda a manter a mente sã para os resgates P R I M EI RA I MPR ESSÃO 2 0 0 9 /1
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som e a luminosidade da sirene são para muitos as lembranças do início de uma salvação. Não interessa o motivo da enfermidade, sempre que uma ambulância chega a uma ocorrência, uma ponta de esperança separa a vida da morte. Para os profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU, ter essa consciência é o que inspira o dia a dia no trabalho. “Eu não tenho muito tempo para fazer um diagnóstico. Não tenho auxílio de exames de imagem, de um laboratório, ou muitas vezes da opinião de um outro colega. Tu tens que pensar rápido, agir rápido. E a motivação vem do pós-atendimento, da satisfação de saber que aquele doente poderia ter morrido se não fosse a tua intervenção, se não fosse a intervenção da equipe que trabalha no pré-hospitalar”, afirma o médico Paulo Tigre no fim de mais um plantão de 24 horas. Há 10 anos no atendimento pré-hospitalar, o profissional revela que esse trabalho é totalmente diferente das outras áreas da medicina. “O doente não escolhe o médico. Ele está num momento de sofrimento, num momento de agonia, e aquele profissional está preparado pra receber qualquer situação.” E é o preparo técnico e emocional desses profissionais que ga-
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rante o sucesso das operações. Periodicamente são realizados cursos de reciclagem e capacitação para os enfermeiros, condutores-socorristas e médicos. Dessa forma a parte psicológica é enfatizada para que o pessoal do SAMU, além de lutar contra a morte, também vença as dificuldades técnicas que cada salvamento impõe. A equipe costuma enfrentar a chuva, o frio, a falta de iluminação e uma série de perigos inerentes às situações que originaram o chamado. Até receberem o comunicado da ocorrência, os profissionais ficam aguardando na base. O SAMU de Novo Hamburgo, localizado nos fundos do Hospital Geral, tem instalações que lembram uma residência normal. Não fosse pelos equipamentos de comunicação via rádio, tubos de oxigênio, luvas e máscaras, seria difícil saber a diferença entre um lar e o centro de operações. O ambiente tem cozinha, banheiro com chuveiro quente, sala com sofás aconchegantes e televisão grande, e ainda um quarto com três camas de solteiro para os cochilos dos plantonistas à noite. A geladeira é comunitária e os mantimentos são divididos entre os trabalhadores de cada plantão. No entanto, dentro da equipe existem outras divisões, como quem vai preparar o café, a comida e o chimarrão. Anderson
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Vianna é técnico de enfermagem, e, segundo os colegas, é o melhor no manejo da cafeteira. Responsável por guiar a UTI móvel até as ocorrências, ele conta como é o ambiente nos intervalos de um atendimento e outro. “Aqui acontece muita brincadeira. O colega está dormindo e alguém vai lá e põe gel dentro dos coturnos. Põe soro também. Quando um colega cochila na poltrona, é legal de amarrar os pés dele. Aí a gente simula um chamado e o sujeito acorda todo tropeçando”, comenta entre uma risada e outra.
Conscientização O ambiente de tensão das ruas precisa ser esquecido enquanto a equipe está na base. O condutor-socorrista, o técnico de enfermagem e o médico que estão a postos para qualquer emergência, por mais descontraídos que sejam, não conseguem entender apenas um tipo de piada: os trotes. O SAMU de Novo Hamburgo atende uma média de setecentas ocorrências por mês. O número poderia ser maior, já que 70% das ligações recebidas são falsas. “E não são só trotes de crianças, são trotes de adultos também. Então muitas vezes esse trote convence o médico que atende a chamada e se desloca uma
O ambiente familiar ajuda a combater o estresse do dia a dia no SAMU
viatura. E às vezes essa viatura está num extremo da cidade e realmente ocorre um acidente ou uma fatalidade num outro extremo. Ou seja, tu perdeste tempo. Nesse nosso trabalho, tempo é sangue que o doente perde. E sangue é vida”, destaca o médico Paulo Tigre. Outro problema enfrentado pela equipe do SAMU é o trânsito. As ruas das cidades do Vale do Sinos estão superlotadas de veículos e as reformas na estrutura viária urbana não resolvem os congestionamentos. A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul determina que as UTIs móveis dos Serviços de Atendimento Móvel de Urgência de Porto Alegre e região metropolitana cheguem às ocorrências em no máximo dez minutos. Esta exigência está cada vez mais difícil de ser atingida. “Alguns motoristas ainda hesitam em dar espaço para as ambulâncias, porque acham que nós não queremos enfrentar o
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tráfego. Só que nós nunca saímos daqui da base para passear. Estamos sempre levando ou trazendo alguém que nos chamou em socorro”, fala em tom de indignação o condutor-socorrista Flávio Dutra. Além dos motoristas que esperam demais para dar passagem, existem os desastrados, que causam mais problemas ainda por não terem sido preparados para esse tipo de situação: “É uma coisa que devia ser ensinada nas aulas da autoescola”, lembra Dutra.
Os quase super-heróis Conviver com situações de risco, em que é preciso estar preparado para fazer desde resgates de vítimas de acidentes na mata fechada até atender pessoas em surto psicótico dentro da própria casa, é algo que está no sangue desses profissionais. O técnico de enfermagem Paulo Machado gosta tanto do trabalho de salvar vidas que inventou uma espécie de “cinto de utilidades”. Como um super-herói dos cinemas e dos quadrinhos, Machado é quase um Batman. Acoplados à cintura estão todos os apetrechos médicos para resgatar uma vítima. “Aos poucos fui colocando suporte para as luvas, tesouras, a lanterna, o rádio, o soro, as gazes...” – e por aí segue uma lista impressionante de utensílios necessários no cotidiano deste profissional. Embora a situação da saúde pública no Brasil não seja um exemplo de sistema eficiente de atendimento para toda a população, é visível a dedicação de quem trabalha nos atendimentos pré-hospitalares. Durante nossa visita à base, a equipe ficou diversas vezes em silêncio, atenta aos chamados do rádio. Quando o aparelho não tinha alguma voz passando instruções do outro lado, ouvia-se muitas piadas sobre um colega do outro plantão que costuma vestir um “macacão rosa” para arrancar gargalhadas no centro de operações. Nos momentos de seriedade, falava-se dos desafios da profissão. E os pensamentos profundos e unânimes foram reservados para o questionamento sobre a possibilidade de escolher outra área para trabalhar: “Esse trabalho depende essencialmente do ânimo. Eu tenho que saber que eu vou entrar no meu plantão e que eu não sei se eu vou sair com a mesma roupa, se eu vou ter que trocá-la três vezes ou se eu vou
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ter que tomar banho no meio do plantão, em função de intempéries, de se sujar com secreções ou com outras coisas. Eu preciso estar animado, eu preciso amar o que eu faço”, destaca o médico Paulo Tigre. “Este trabalho é um vício, é uma ‘cachaça’, como a gente diz. Tudo é recompensado quando tu alcanças o sucesso na ocorrência. Porque depois tu ficas sabendo que aquela pessoa que tu te esforçaste para salvar está bem”, diz o técnico de enfermagem Anderson Vianna. E é assim que descobrimos que não é apenas quem vive uma emergência e é salvo dela que aprende uma lição. Os profissionais do SAMU, todos os dias, encaram uma realidade diferente, que não cansa de ensiná-los o valor de salvar uma vida.
IMPRESSÃO DE REPÓRTER Quando chegamos à base do SAMU de Novo Hamburgo já eram quase sete da noite. Havia muitos carros no estacionamento ao qual tivemos acesso, localizado atrás do Hospital Geral do município. E foi lá que encontramos os primeiros profissionais do atendimento pré-hospitalar. Logo na chegada, percebemos que era o momento da troca de plantão. Cumprimentamos alguns enfermeiros que estavam saindo e fomos apresentados pelo condutor-socorrista Flávio Vianna ao médico Paulo Tigre. Este também estava de saída, porém nos prestou valiosos vinte minutos para uma entrevista que serviu de alicerce para a reportagem. Além disso, posou para fotos no interior do dormitório, um pouco antes de vestir um terno preto e um sapato lustroso para um compromisso que ainda tinha que cumprir. Apesar dos depoimentos que ouvimos, o que mais surpreende é a atenção que recebemos. Os trabalhadores da saúde entenderam logo de cara que estávamos dispostos a honrar uma das mais fortes características do jornalismo: a de revelar. Nosso interesse foi respondido com as poses para as fotografias; com frases firmes como “eu estou aqui porque amo o que faço”; e com muito bom-humor para lembrar que, acima de tudo, a razão do trabalho deles é celebrar a vida.
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