Primeira Impressão 32

Page 1

nยบ 32 | dezembro de 2009 |

pi primeira impressรฃo

Cristiana amou Samuel. Paulo nasceu. Samuel foi embora, e Paulo sequer o conheceu

Encontros e despedidas pรกg 001 - ca pa .indd 1

1/12/2009 20:47:34


pág 002 - a núnc io 2.i ndd 1

3/ 12/2009 16:14:10


encontros despedidas& editorial

P

REPÓRTER PURO-SANGUE

roduzir uma revista como a Primeira Impressão é uma tarefa que exige persistência de todos os envolvidos. Desde as primeiras reuniões de pauta até os últimos retoques nos textos e nas páginas, tudo nesse percurso é uma via de duas mãos. Um semestre inteiro de idas e vindas. De muitas dificuldades e raras facilidades. Para chegar até aqui, foram consumidas longas horas de busca pelas fontes, de telefonemas, entrevistas, conversas, combinações, acertos e desacertos. Para chegar às mãos dos leitores, a revista consome grande dose de energia, envolve professores, funcionários, estagiários e os principais protagonistas destas páginas, os alunos. Por coincidência, o tema desta edição, Encontros e despedidas, se assemelha muito à atividade jornalística. Faz parte do jornalismo o acaso, o surpreendente, a euforia ao encontrar a fonte ideal, a decepção ao constatar que a pauta que tínhamos em mãos não rendeu. Faz parte do jornalismo produzir dezenas de textos iniciais para, enfim, depois de uma série infindável de ajustes, chegar à melhor forma de contar uma história. Antes de mais nada, a Primeira Impressão é um grande exercício. Um exercício coletivo que, ao ser concluído, anuncia a seus protagonistas que o percurso da graduação está próximo do fim. Anuncia que as portas da trajetória profissional se abrem para sempre. A revista representa a despedida dos alunos da universidade. E o seu encontro com o mundo do trabalho fora dela. Todos sabem que daqui para frente haverá encontros e despedidas, acertos e desacertos sem fim. Mas isso não nos desanima. Ao contrário. Bons jornalistas são formados assim. É assim que se forja um repórter puro-sangue. Juan Domingues Thaís Furtado Professores-editores

FOTO DE CAPA JOÃO DE QUEIROZ

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Célio Pedro Wolfarth DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

pi primeira impressão

REDAÇÃO TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: primeiraimpressao@icaro.unisinos.br BLOG: http://www.portal3.com.br/hotsites/impressoesliterarias/ PROFESSORES-EDITORES Juan Domingues (jmdomingues@unisinos.br) - Redação Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia REPORTAGEM Alunos Anaiara Ventura, Andrei Andrade, Andressa Xavier (monitora), Ary Júnior, Bárbara Keller, Bruna Quadros, Camila Schafer, Camila Vargas, Cathierine Helen Freitas Hoffmann, Elisandra Borba, Fabiana Reinholz, Fernanda Poletto, Flavia Tres, Francine Scherer, Ismael Dias, Jaques Machado, Jerônimo Silvello, Kaiser Konrad, Kássia Souza, Márcio Rousselet Sardá, Mariana Aguirre, Mariana Oliveira, Micheli Aguiar, Michelle Raphaelli, Natacha Kötz, Natália Cagnani, Patrícia Spier, Pedro Baltazar, Pedro Foss, Priscila Zigunovas, Rafael Martins, Raquel Piegas, Renata Allgayer, Rodney Silva, Rodrigo Fatturi, Sabrina Schonardie, Simone Bertuzzi, Thaís Salvagni, Valéria Guilardi e Vanessa Coimbra. FOTOGRAFIA Alunos Alessandro Oliveri, Anaiara Ventura, Andressa Barros, Andressa Oliveira, Ângelo Daudt, Bernardo Alencastro, Bruna Quadros, Carlos Hammes, Delmar Costa, Emanuele Spies, Jaques Machado, João de Queiroz, Larissa Amaral, Manoela Bandinelli, Manuela Quadros, Marcela Schuck, Pedro Foss, Priscila Milán, Sandra Vargas e Tarlis Schneider. COLABORAÇÃO Fotos do casamento (pág. 28) feitas pela equipe Everton Rosa/ Staff com direção de Everton Rosa (staffphotors.com.br) PRODUÇÃO GRÁFICA Agência Experimental de Comunicação (AgexCOM) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado PROJETO GRÁFICO: jornalista Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: estagiários André Seewald e Maria Maurente. Colaboração dos alunos Katterina Zandonai e Rodrigo Prux IMPRESSÃO: Gráfica Maredi PUBLICIDADE Os anúncios publicados nesta edição foram vencedores do 8º Propaganderia, mostra competitiva de trabalhos desenvolvidos por alunos do Curso de Publicidade e Propaganda. CRIAÇÃO: alunos Cássio da Rosa, Cláudio Oliveira, Fernanda Mattos, Mayra Pereira, Pedro Piantá e Rafael Duarte, da disciplina de Redação Publicitária II da professora Daniela Horta. ARTE-FINALIZAÇÃO: estagiária Heleusa Bonato, sob supervisão do professor Ângelo Cruz e do publicitário Robert Thieme, da AgexCOM.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 003 - edit or ia l e expe dient e.indd 3

3

3/ 12/2009 16:21:41


4

pág 004 e 005 - índice.indd 6

sonhos

62

distância

18

24

paixão

ausência

58

família

14

esquecimento

50

liberdade

54

06

transexualidade

aeroporto

10

fama

encontros despedidas& índice

66

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

1/12/2009 21:17:41


infância

novo mundo

82

44

recomeço

78

40

trabalho

transplante

maternidade

74

36

tecnologia

70

32

visão

casamento recuperação

28

86

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 004 e 005 - índice.indd 7

5

1/12/2009 21:18:24


encontros despedidas& aeroporto

TERMINAL DAS EMOÇÕES

A

eroportos. Praticamente um mundo resumido em alguns quilômetros quadrados onde a saudade termina ou acaba com milhares de pessoas que embarcam e desembarcam todos os dias. Viktor Navroski - personagem de Tom Hanks no filme O Terminal, baseado na história real de um iraniano - , num curioso imprevisto, foi obrigado a permanecer no aeroporto J.F. Kennedy em Nova Iorque por nove meses. Com o passar do tempo, acabou fazendo daquele espaço a sua casa, seu mundo. Quantas histórias de vida ele acompanhou neste tempo? Quantas pessoas passaram em sua vida? No Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, pode-se identificar algumas pessoas que têm em comum com Viktor as histórias de chegadas e partidas num dos aeroportos de maior circulação do país. Alguns funcionários do Salgado Filho, de diferentes atividades, sabem muito bem como é presenciar um momento tão íntimo de pessoas que eles não conhecem. São em média 174 voos que circulam diariamente, chegando e partindo. O embarque e o desembarque, todos os dias, servem de cenários para as histórias. É muita a ansiedade que toma conta da atmosfera do desembarque, quase todos à espera da chegada. Enquanto uns não demonstram muita expectativa – normalmente são os que aguardam alguém em função de compromissos profissionais - outros parecem estar roxos de saudade. O embarque é um ambiente com atmosfera mais carregada de tristeza que o desembarque. Ali, as despedidas dão o tom de adeus daqueles que partem e dos que ficam.

Corações apertados Quem trabalha no Aeroporto Salgado Filho convive com um misto de sentimentos de ansiedade, expectativa e tristeza em relação àqueles que passam por ali. “Quer ouvir histórias? Vai ali com o pessoal do desembarque que eles têm muitas tristes”, comenta o proprietário de uma loja de produtos típicos gaúchos. Meilin Casagrande tem os olhos marejados assim que começa a falar. São muitas histórias que a funcionária do check-in on line, da Gol Linhas Aéreas, recorda: “Momentos emocionantes aqui na frente tem vários. Quase todos os dias tem um casal apaixonado se despedindo. A namorada chorando, o namorado tentando conter as lágrimas, mas sempre eles acabam chorando. E não apenas os casais héteros, mas os homossexuais também se despedem, mais discretos”, ressalta a garota de 27 anos. Quando o assunto é família, a emoção também é grande. Principalmente quando quem viaja são os filhos. Meilin conta que, certa vez, três garotas foram viajar para estudar no exterior e

6

pág 006 a 009 - dupl a 05 - a er opor

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

t o - a na ia r a e va l é r ia .indd 6

1/12/2009 21:30: 06


Quem trabalha no Salgado Filho convive diariamente com uma diversidade de sentimentos TEXTO| ANAIARA VENTURA e VALÉRIA GUILARDI FOTOS| ANAIARA VENTURA

A expectativa do encontro toma conta do terraço do aeroporto

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 006 a 009 - dupl a 05 - a er opor

t o - a na ia r a e va l é r ia .indd 7

7

1/12/2009 21:30: 11


encontros despedidas& aeroporto

e as famílias vieram em peso. “Eles choraram e se abraçaram bastante. É bem emocionante, mas evitamos olhar muito, porque eles ficam um pouco constrangidos de ficarem chorando na frente dos outros.” Mas, às vezes, as pessoas chegam até o balcão e desabafam. Os funcionários se tornam uma espécie de conselheiros e acalmam as pessoas que ficaram. Outro grupo de pessoas que costuma se despedir aos olhos de Meilin são as torcidas da dupla Gre-Nal. Quando eles têm um jogo importante, ou vão viajar para o exterior, o terminal de embarque fica lotado. “Eles fazem muita festa e bagunça, geralmente começa lá fora, com o pessoal aguardando o ônibus, e acaba por aqui.”

Quando as despedidas são para sempre Um caso que emocionou Meilin, sem dúvida, foi o de uma senhora de 80 anos que veio para o primeiro aniversário de sua bisneta. “Quando ela foi embora, a senhora confessou que não sabia se ela voltaria. Dá um aperto no coração, porque

acabamos participando da história. A gente tem que cuidar pra não chorar”. Os funcionários da engraxataria acompanham as idas e vindas dos passageiros do aeroporto desde muito tempo, pois é um dos serviços locais que mais possui clientes fixos. Segundo o engraxate Cleber Lima dos Santos, tem cliente que, mesmo quando não engraxa os sapatos, passa ali para conversar um pouco. Paulo Rogério Amoretty Souza, ex-presidente do Sport Club Internacional, era um desses. Foi um dos oito clientes fixos da engraxataria que morreu no acidente do voo 3054 da TAM em julho de 2007. No entanto, de quem Cleber pôde, de certa forma, se despedir, foi do cliente Nelson, que também foi vítima desse acidente. Ele engraxou os sapatos e pediu para que Cleber guardasse um brinde que havia ganhado e que pegaria na volta da viagem. Para Neide, também engraxate, com 37 anos de casa – “Foi aeromoça do 14Bis”, brinca Cleber - , a despedida do antigo aeroporto, há oito anos, antes da reforma e da mudança de ende-

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A pauta, que inicialmente parecia banal, de repente tornou-se um “manancial” de histórias contadas por pessoas interessantes e generosas. Além daquela movimentação intensa, existe a contradição de quem vai e de quem chega. De quem se despede e de quem recepciona. Para alguns funcionários do aeroporto, é comum não prestar atenção às pessoas que aguardam, embarcam e desembarcam. Possivelmente, a rotina e o trabalho tiraram destes a mágica que buscávamos. Entretanto, impressionou-nos principalmente a delicadeza, competência e humildade dos que engraxam sapatos. Tamanho o respeito pelas pessoas e dignidade nos deixaram extasiadas. Aqueles que desviaram suas atenções por alguns momentos e vivenciaram mesmo como espectadores alguma situação de emoção no aeroporto não escondiam o brilho no olhar: eles se emocionaram também, embargaram a voz, seja por alguma despedida ou por uma chegada. Porque, de alguma forma, eles também recepcionam e também se despedem...

8

pág 006 a 009 - dupl a 05 - a er opor

Além do aeroporto

Assim que desembarcam, muitos passageiros utilizam o serviço de táxi. E os taxistas sempre têm boas histórias para contar. Umas das que Sandro Scheid lembra é a de um pai. “Ele morava na Bahia e veio para o aniversário da filha. Pediume pra levá-lo até o shopping Praia de Belas, onde ela trabalhava, pois queria fazer uma surpresa, já que não se viam há mais de seis meses.” O taxista não viu a cara da menina, mas imagina que ela tenha ficado muito feliz, já que o pai não a avisou. “Ele nunca havia visitado o Rio Grande do Sul, e pelo fato de estar visitando sua filha pela primeira vez aqui no Estado, se mostrava muito emocionado.” Apesar de trabalhar há pouco tempo como taxista, Sandro está gostando desse contato com os passageiros, porque acaba participando um pouco desses encontros. “É bem interessante, tem passageiros que ficam quietos, mas tem outros que contam a vida. Tempos atrás uma menina estava viajando para São Paulo para ver o namorado que morava lá, onde ela tinha recebido uma proposta de emprego e me pediu uma opinião a respeito.” Vida de taxista é sempre repleta de histórias, e num aeroporto elas são carregadas de alegrias ou tristezas das chegadas e partidas, dos encontros e despedidas.

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

t o - a na ia r a e va l é r ia .indd 8

3/ 12/2009 16:24:53


reço, marcou: “Foi triste sair de lá para cá, o movimento baixou muito. Até os clientes sentem falta da nossa salinha, mesmo com sauna, já que às vezes o ar condicionado estragava.” No antigo aeroporto, onde embarque e desembarque e todos os serviços estavam mais aproximados, já que era em tamanho menor, eles podiam frequentemente presenciar mais cenas de encontros e despedidas. As brigas são as que mais lembram, como a vez que um marido apanhou da esposa ao ser flagrado embarcando com a amante, e outra de um homem que apanhou de relho de outro. “A gente ouve muita coisa também. Antes do Rogério Mendelski, que era da Rádio Gaúcha, ser demitido, nós já sabíamos a partir de uma conversa que teve aqui”, ressalta Cleber.

Um reencontro inusitado O segurança Paulo Ricardo Rodrigues Ferreira, de 41 anos, há três trabalhando no Salgado Filho, participou de um momento hilário na vida de um casal de Bento Gonçalves. Eles

estavam aguardando o filho que não viam há dez anos, mas quando ele chegou, não o reconheceram. “Ele passou por eles, viu-os, veio a mim e deu uma risada. Depois pediu meu número de celular, disse que estava indo para casa e que ia ligar de lá”, lembrou o segurança, que na ocasião ficou por perto do casal até que o rapaz ligou, perguntando se eles ainda estavam ali: “Então ele pediu para avisá-los que já estava em casa, quase arrombando a porta”, diverte-se. Paulo foi avisar os pais do rapaz e descobriu que eles não haviam reconhecido o filho porque ele voltou muito diferente de como partira, estava com cabelo e barba compridos. O Terminal e Viktor Navroski não apenas retrataram a vida de um morador de um aeroporto. Milhares de funcionários, não só do Salgado Filho, mas de todos os aeroportos do mundo, têm seus olhos voltados para emocionantes encontros e despedidas. E, muitas vezes, eles fazem parte disso, como Viktor muitas vezes participou: da união de um casal ou vivendo uma história de amor.

Clientes fiéis não embarcam sem antes passar na engraxataria

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 006 a 009 - dupl a 05 - a er opor

t o - a na ia r a e va l é r ia .indd 9

9

3/ 12/2009 16:25:09


encontros despedidas& liberdade

n o fil e o let seis te e ei on e i e o

pĂĄg 010 a 013 - dupl a 06 - ca deia - is m a el e pedr o.i ndd 10

el eses ei ĂŁe

1/12/2009 21:34: 18


ATÉ O ÚLTIMO DIA A expectativa de recomeçar a vida longe dos muros da prisão TEXTO| ISMAEL DIAS e FOTOS|

O

s muros altos e o grande portão deixam claro: aquela não é uma casa qualquer. Após tocar a campainha, o portão se abre lentamente. Da portaria, durante os 20 minutos de espera, é possível ver algumas mulheres. Umas estão grávidas e circulam livremente pelos corredores. Seus olhos não escondem a curiosidade e parecem questionar: “Quem são esses que vem lá de fora?” Sentados em um pequeno sofá, um homem e uma mulher checam uma lista de supermercado. “Na dúvida tem que conferir de novo. O troco tem que estar certinho. Isso aqui é cadeia!”, afirma a detenta responsável pelas compras. De repente, outra aproxima-se do balcão da recepção e pergunta: “Tem carta pra mim?” “Sim. Hoje os carteiros lembraram de vocês”, diz a agente penitenciária. A detenta pega as cinco cartas e, dando gritos de alegria, sobe as escadas que levam ao segundo andar da Casa de Albergue Feminino, o CAF, em Porto Alegre. É nesse local que cerca de 80 mulheres cumprem o restante de suas penas em regime semi-aberto. A maioria condenada no artigo 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui crime a posse e tráfico de drogas. De acordo com Rosane Virote, diretora da CAF, muitas dessas mulheres que hoje estão no regime semi-aberto foram presas acusadas pela crime que elas chamam de “mula”, que é o ato de transportar drogas, geralmente para dentro do presídio. É o caso de Raquel*, 27 anos, mãe de três meninas. A filha mais nova, de apenas dois meses, é carregada por ela durante toda a entrevista, as outras duas são criadas pelo pai. Raquel diz que caiu nesse crime por pura curiosidade. Queria muito conhecer o presídio masculino, saber como os presos vivem. Pelo breve período em que esteve separada do marido, conheceu um presidiário e já na quarta visita que fazia à cadeia foi pega com 100 gramas de crack. “Eu mesmo me entreguei na portaria, comecei a tremer, fiquei nervosa. A policial me olhou e na hora disse: Tu tem droga!!! Comecei a chorar e entreguei”, relembra Raquel. Ela diz ter pensado que, por ser ré primária, não iria para a cadeia. Entretanto, um mês após o flagrante foi condenada a quatro anos de reclusão.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 010 a 013 - dupl a 06 - ca deia - is m a el e pedr o.i ndd 11

11

1/12/2009 21:34: 21


encontros despedidas& liberdade

i

n

ei

O sonho da liberdade de muitas mulheres se inicia com o pedido de condicional. Dois anos após começar a cumprir a pena na Penitenciária Estadual de Jacuí, na cidade de Charquedas, no Rio Grande do Sul, Raquel recebeu a notícia de que seu pedido de condicional tinha sido aceito. “Algumas pessoas precisam sentir na pele para aprender. Aprendi. Em um lugar como esse nunca mais!” No regime semi-aberto as detentas podem exercer um trabalho externo durante o dia, assim como realizar saídas programadas para visitar os parentes e amigos. No albergue, Raquel conta que precisa limpar banheiros para desconhecidos. “Eu tinha de tudo, uma vida de princesa. Apesar disso achava que nada estava bom, sempre faltava alguma coisa. Odiava fazer faxina em casa. Ser dona de casa era algo terrível.” A esperança de buscar uma nova vida livre e reencontrar a verdadeira felicidade longe das grades e dos muros também faz parte do cotidiano de Deise Figueiredo Vaz, de 32 anos, presidiária que trabalha na cozinha da Casa. Enquanto esperávamos, foi ela quem nos preparou um café com direito a pães e condimentos. Em nossa conversa, ela explicou que para cada três dias trabalhados, a pena é regredida em um dia. Mas Deise não trabalha apenas pela redução da sua sentença. Ela nos conta, com sorriso nas orelhas, que gosta mesmo de cozinhar. “Já tenho até um emprego em um restaurante garantido para quando sair daqui e, se tudo der certo, pretendo ter meu próprio negócio, uma lancheria”, ressalta, com brilho no olhar. Antes de contar o motivo que a levou até ali, ela interrompe. Pede para alguém olhar o pudim que está preparando. Deise é comunicativa, conhece bem os artigos e os direitos que tem dentro e fora da cadeia, apesar de afirmar que se tivesse um advogado teria conquistado a condicional. Mas o que mais inquieta Deise é sua filha de dois anos. Ela descreve, preocupada com o futuro da menina que atualmente mora com o pai, que a pequenina não quer mais comer em prato comum, quer comer em um igual ao que Deise usa na Casa, uma bandeja com divisórias. “Quero orientar minha filha, falar da realidade da vida, contar o que passei para que ela não tome o mesmo rumo”, argumenta. Deise, ao contrário de Raquel, garante que tinha experiência com o tráfico. Ela contratava outras mulheres para introduzir a droga no presídio masculino. Para cada grama de droga que conseguiam levar para dentro da cadeia, ela pagava R$ 1,00. “Depois que meu marido foi preso, eu tive que aprender as táticas do tráfico, estava desempregada e precisava alimentar minha filha”, justifica. Entre as maiores loucuras que diz ter cometido, Deise relata o momento em que ela e o marido conseguiram enganar uma barreira policial. “Imagina! Estávamos eu e meu marido em uma moto. Eu estava grávida e nas costas carregava em uma mochila com as coisas da minha filha e em outra dois tabletes de maconha. Fiz cara de dor. O policial perguntou se eu queria uma sirene para ir abrindo o caminho e eu disse: ‘Não vem com sirene pra cima de mim, eu quero é um hospital’. E passamos, livremente.” Mas a sensação de liberdade estava com os dias contados. Deise relembra o período de reclusão que ela mesma considerou um dos piores da sua vida. “No presídio de Jacuí eu ficava em uma

12

cela com 15 mulheres, a porta fechada. Perto dos muros, não existia nada, não dava para ver uma casa ou um carro”. Deise continua, dizendo que quando chegou ao presídio feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, o reencontro com a cidade grande, e consequentemente com a poluição, foi motivo de graça com as outras detentas. Deise brincava que conseguiria reconhecer o tipo de combustível utilizado em cada carro que passava na rua próxima ao presídio: “Esse é a álcool, esse é a gasolina.” E quando as companheiras de cela questionavam como que ela sabia, respondia: “Fica um ano fechada dentro do mato pra ver se tu não vai reconhecer”. Em suas lembranças, durante esse tempo de reclusão, está o momento em que recebeu a notícia de que deixaria a apertada cela e iria para o semi-aberto. “Quando me disseram que era para arrumar minhas coisas que eu iria sai dali, caí sentada e comecei a chorar de felicidade”, conta Deise, ressaltando que, diferente do presídio, no albergue ela pode ir até o pátio. “Aqui me sinto como um passarinho fora da gaiola.” Por enquanto essa é a maior sensação de liberdade que ela pode experimentar, já que ainda não recebeu liberação para sua primeira saída. Deise sabe que na primeira vez que sair com a cabeça erguida pelo portão será difícil resistir à tentação de ficar do lado de fora. “Eu pretendo retornar, agora falta pouco, sei que a minha filha espera por mim e não quero estragar tudo”, garante ela, afirmando que diversas vezes se pega olhando para o muro com o pensamento de ir embora, mas que está resistindo à tentação. De acordo com a diretora Rosane Virote, o ambiente de trabalho dentro da Casa é difícil. Ela afirma que muitos de seus colegas precisam de acompanhamento psicológico para lidar com a pressão de ficar em reclusão junto com as detentas. “Ficamos com as mãos atadas diante dos casos complexos de cada detenta. Não temos como resolver os problemas e isso nos aflige.” Jaqueline Chagas, que atua há oito anos como agente penitenciária, afirma que trabalhar dentro da Casa é uma tarefa árdua. “Eu trabalho durante 24 horas consecutivas em regime de escola e, quando atravesso aquele portão, sinto um alívio.” Com isso, Jaqueline diz imaginar o tamanho da ansiedade das presas que chegam ao semi-aberto depois de anos em regime fechado. Rosane afirma que em onze anos como agente penitenciária já viu presas cumprirem a pena e não quererem ir embora. “Na prisão, elas têm comida, médico e outros recursos que lá fora, para a grande maioria, serão de difícil acesso”, frisa.

e it

no

t oé

e iso

Tanto Deise quanto Raquel acreditam que não será fácil recomeçar a vida fora das grades e dos muros altos. Na primeira semana do mês de outubro, Raquel se preparava para fazer a sua primeira visita externa e reencontrar a liberdade, mesmo que momentaneamente. Ela queria abraçar, dormir agarradinha com suas filhas, protegida em sua casa, junto com o marido que logo depois da prisão de Raquel reatou o relacionamento com ela. Mas antes disso, terá que se despedir da filha que carrega nos braços, já que o bebê de dois meses deverá sair do CAF quando completar seis meses de vida. “Eu sei que é a lei, terei que deixar minha filha com o pai, assim como já deixei as outras duas, até nos reencontrarmos

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 010 a 013 - dupl a 06 - ca deia - is m a el e pedr o.i ndd 12

1/12/2009 21:34: 25


l n o o o eise esiste i ei ei e o

do lado de fora”, acredita Raquel, sonhando com o momento do reencontro, quando estará livre para seguir a sua vida e trilhar o seu próprio caminho. Nas palavras de Deise, para a sociedade, quem vai preso uma vez não vale nada. “É bandido, traficante, ladrão para o resto da vida. Eu sei que lá fora existe gente muito preconceituosa, já sentia isso por ser negra e, quando sair daqui como ex-presidiária, o preconceito deve aumentar.” Apesar disso, ambas acreditam que há uma nova vida, com novas oportunidades esperando por elas lá fora. Nosso tempo acaba. Nos despedimos de Deise que volta à cozinha, é hora do café. Raquel volta ao berçário de seis metros

quadrados que divide com outras seis mulheres, algumas com recém-nascidos, outras ainda grávidas. Na verdade, o espaço nada mais é do que uma cela especial para as detentas que estão grávidas ou que recém tiveram seus filhos. Quando prometemos enviar pelo correio a reportagem pronta, Deise brinca: “Pode enviar, eu vou estar por aqui mesmo”. O portão se abre, vamos embora e deixamos para trás duas mulheres, cujas histórias retratam a de tantas outras que, por curiosidade ou necessidade, acabam encontrando no tráfico o caminho certo para a despedida da liberdade. (*) O nome foi alterado

IMPRESSÕES DE No dia em que entramos na Casa Albergue, não imaginávamos que teríamos um encontro com um mundo tão diferente e distante de nossa realidade. Um encontro que permitiu perceber que, por trás dos números e das estatísticas apresentadas quase que diariamente nos noticiários, existem pessoas. No ambiente isolador e sub-humano, há tristeza, dor, pranto. Mas há espaço para arrependimento e para sonhar com um futuro melhor. Há também espaço para o humano. Essa percepção foi

possível no momento em que decidimos focar nas expectativas, nas sensações de estar livre e preso. E, como consequência, encontramos mais do que detentas, encontramos pessoas que fizeram escolhas erradas, mas que também são vítimas de uma sociedade que cada vez mais ignora o fato de que apenas um sistema de políticas públicas pode restaurar essas vidas. É melhor trabalhar na prevenção através da educação, da saúde, do emprego, dando dignidade a todos.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 010 a 013 - dupl a 06 - ca deia - is m a el e pedr o.i ndd 13

13

1/12/2009 21:34: 31


encontros despedidas& família

14

pág 014 a 017 - dupl a 11 - f ut ebol

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

- a ndr ei e r ena t a .indd 14

1/12/2009 21:41:14


UM DRIBLE NO DESTINO Deixar para trás o abrigo do lar rumo ao desconhecido é o caminho para quem sonha viver do futebol TEXTO| ANDREI ANDRADE e RENATA ALLGAYER FOTOS| JOÃO DE QUEIROZ

O vestiário é um dos lugares onde Cleber se encontra diariamente com sua nova família: a da bola

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 014 a 017 - dupl a 11 - f ut ebol

- a ndr ei e r ena t a .indd 15

15

1/12/2009 21:41:21


encontros despedidas& família

O

s 400 quilômetros que separam Ajuricaba, noroeste do Rio Grande do Sul, de Gravataí, na Região Metropolitana, são os mesmos que afastam Cleber da Silva, 16 anos, do seu berço. Foi onde deixou a mãe e os cinco irmãos, em 2007, para viver seu grande sonho. Jogando no Cerâmica, clube da segunda divisão do futebol gaúcho, quer seguir os passos do pai, que perdeu aos seis anos: ser jogador profissional. Mas o menino não é afeito a grandes distâncias. Seu trajeto preferido tem apenas 16,5 metros: é a extensão entre a trave e o bico da grande área, habitat natural do centroavante. Neste caso, a saudade da família é uma pedra a ser chutada do caminho. Como quem afasta da grande área uma bola perigosa. Como fazia o pai, nos anos 80, defendendo o São Luis, de Ijuí. No último dia 5 de outubro, Cleber, que ainda não conhecia remuneração pelo seu trabalho, assinou seu primeiro contrato. Desde sua chegada, esteve sempre adiantado em relação aos colegas das categorias infantil, juvenil e junior, permanecendo menos de um ano em cada, quando o normal são duas temporadas. O gol marcado contra o Atlético, de Carazinho, na estreia pelo time principal, ajudou a acelerar a profissionalização. Mas também despertou algum ciúme no elenco. Enquanto era entrevistado para esta reportagem, seus colegas, que descansavam após um treino exaustivo, cochichavam entre si: “De novo, o Cleber?”. Talvez por não ter prestado atenção, o novo candidato à esperança de gols da torcida não tem do que se queixar dos companheiros: “No início me receberam com alguma desconfiança, por ser novo. Me senti de outra turma mesmo. Mas agora tá tranquilo, são todos meus amigos”, comemora. Deixar o seio familiar para viver no alojamento do clube, ou em casas cedidas por empresários, é a realidade de muitos atletas desde que o futebol é futebol. A travessia não conhece limites, seja de idade ou distância. Entre os 26 moradores da casa que abriga atletas das categorias de base do Cerâmica, e que também é escritório da direção, há catarinense, baiano, piauiense e até paraguaio. Tem ainda os que deixam os mais distantes rincões gaúchos rumo ao número 2.421 da Avenida José Loureiro da Silva. Chegar à dupla Gre-Nal é o auge com que sonham os meninos alojados. E a diretoria não nega essa condição: “Servimos de trampolim para esses jovens. Mas se

antes bastava vir alguém buscar para que os jogadores saíssem, hoje há toda uma negociação, que gera frutos também para o clube formador”, afirma o gerente de futebol amador, Adriano Martins. No caso de Cleber, não foi só um novo lar que ele encontrou no time verde e amarelo. Órfão de pai desde os dias em que ensaiava os primeiros chutes, tem em seu primeiro treinador, Adriano Erthal, a figura do pai que a vida o tirou. Foi ele quem o levou dos campos de pelada para fazer o primeiro teste em Gravataí. “O Erthal foi um pai pra mim. Sempre aconselhando, ajudando quando minha mãe não tinha dinheiro pra mandar. Foi quem me acolheu quando ainda não havia o alojamento. Nunca vou poder esquecer desse cara”, comenta, entre grato e nostálgico.

Talento e persistência O Cerâmica Atlético Clube foi fundado em 1950. Até 2007, viveu no amadorismo. A data de fundação, 19 de abril, foi proposta em homenagem ao aniversário de Getúlio Vargas. O maior resultado já obtido foi o vice-campeonato da Copa Lupi Martins, em 2008. Os cerca de 400 associados que compõem o quadro atual pagam mensalidade de R$ 20,00, renda que ajuda a manter a folha salarial em dia. Em 2009, com a classificação para jogar a Copa do Brasil em 2010, a esperança da diretoria é dobrar o quadro social, oferecer melhores salários aos atletas e assim chegar à elite do Campeonato Gaúcho. Martins vibra com as boas condições que o clube já consegue oferecer para os meninos recém-chegados. Psicólogo, assistente social, nutricionista, todos contratados pela agremiação, dedicam-se exclusivamente a dar suporte aos futuros talentos da casa. Apesar disso, muitos não aguentam e desistem: “Vários garotos promissores, promessas de craque mesmo, não se adaptam à vida longe da família. Anos atrás esteve aqui um zagueiro vindo de Montenegro que hoje, certamente, seria titular do profissional. Jogava muito. Mas ficou uma semana e foi embora”, lamenta Martins. Aos 20 anos, Rafael Cardoso já passou por adversidades dignas de gente grande, e quase foi embora duas vezes. Deixou a família em Araranguá, no interior catarinense, rumo ao Cerâmica, em 2003. Profissional desde 2007, tem vivido na pele as

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Ao optar por cumprir nossa pauta com a gurizada do Cerâmica, tínhamos um argumento que se mostrou definitivo: por que esses meninos, de todos os cantos do país, deixam a família para jogar em um clube de pouca projeção nacional, sem os holofotes comuns à dupla Grenal? Foi a maneira como nos receberam na sede do clube, desde a Kati, assessora de imprensa, até o presidente, que deixou claro: acertamos na escolha. Dificilmente encontraríamos essa receptividade nos grandes clubes da capital. As con-

16

pág 014 a 017 - dupl a 11 - f ut ebol

versas aconteceram após o treino, na volta ao estádio, no banco de reservas. Tivemos total acesso ao universo do clube. Não há estrelas no elenco profissional do Cerâmica. Há jovens que almejam estar entre o 1% dos profissionais bem remunerados do futebol no Brasil, há jogadores experientes que ainda buscam um algo mais na carreira e há dirigentes empenhados em dar boas condições de trabalho a esses atletas. São pessoas que, pudemos perceber, merecem ter suas histórias contadas.

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

- a ndr ei e r ena t a .indd 16

1/12/2009 21:41:21


No alojamento do Cerâmica, em Gravataí, 26 meninos vivem juntos as esperanças e incertezas do t o ofission l

incertezas da carreira. Duas lesões graves no joelho o deixaram fora dos gramados por mais de um ano. A data da primeira cirurgia, das duas que precisou fazer, coincidiu com o período depressivo que já vivia após a morte do irmão Andy Carvalho, assassinado em Santa Catarina na mesma época. Rafael era a segunda ficha apostada pelo pai para virar jogador. Andy, mais velho, foi a primeira. Hoje, o lateral-esquerdo ainda não consegue jogar duas partidas em uma mesma semana. Constantemente, é poupado dos treinamentos. Residente do alojamento, que fica em frente ao estádio, até abril de 2009, só não desistiu da carreira porque a família se mudou para Canoas, o que encurtou a distância em 230 quilômetros. Deixou a casa oficial da garotada e agora vive com a irmã e o irmão, ambos mais velhos. Vai e volta todo dia, mas se diz mais feliz agora.

Encontros sagrados Longe de casa, driblando um destino que a infância anunciava pouco promissor, a grande maioria destes jovens encontra na religião o conforto de um lar. A leitura da Bíblia, ritual que ocorre na concentração, sempre antes dos jogos, é como um sermão do pai que educa os filhos. Os encontros realizados sempre às quartas-feiras, com palestras espirituais, são

uma reunião de família, onde se estreitam os laços de união, amizade, confiança e fé no futuro profissional. Aparecido Donizetti, goleiro e jogador mais experiente da equipe, é o que poderia se chamar de “gerente espiritual” do Cerâmica. Aos 36 anos, já defendeu times do Brasil inteiro, sem nunca chegar a um clube de grande expressão. No Clube de Valor, como exalta o hino do time de Gravataí, é ele quem comanda a oração no vestiário. E a meninada, segundo Aparecido, fica sempre atenta: “Como muitos estão longe de casa, os mais velhos têm que procurar ajudar, ser amigo, confortálos. A palavra do Senhor é um refúgio para eles”. O goleiro faz questão de frisar que não se trata de “fazer propaganda de igreja”. “Não defendemos nenhuma religião. Apenas lemos o que está na Bíblia”. A direção apóia a prática religiosa por parte dos jogadores. Adriano Martins considera Donizetti um dos profissionais mais preparados que já passou pelo clube. “Foi a mola propulsora dessa afinidade das questões cristãs que o clube tem”, afirma. Mas se a diretoria prefere dar os créditos aos bons resultados recentes ao grupo de jogadores, o goleiro faz questão de salientar que também não vive só de fé. “Tem muito trabalho, muito suor. Não há reza que faça a bola entrar sozinha no gol.”

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 014 a 017 - dupl a 11 - f ut ebol

- a ndr ei e r ena t a .indd 17

17

1/12/2009 21:41:31


encontros despedidas& ausência

PAI, ONDE ESTÁ VOCÊ? Num país onde 800 mil crianças por ano são registradas sem o nome do pai, as histórias se confudem e bem que poderiam ser uma só TEXTO| JERÔNIMO SILVELLO e MICHELI AGUIAR FOTOS| JOÃO DE QUEIROZ

A

respiração é tranquila. O balanço parece ser confortante e seguro. Limpinho e de barriga cheia o pequeno Paulo Gustavo não tem noção do que será a sua vida. Nem em quais circunstâncias ela se encontra. Com apenas um mês de vida, o seu nascimento já é motivo de uma ação judicial. A razão: paternidade. A história do pequenino de olhos azuis e cabelos abundantes na verdade começa bem antes do sono tranquilo de um dia quente e ensolarado de primavera. Ela começa no dia 30 de dezembro do ano passado. Foi neste dia que Paulo Gustavo passou a existir. Cristiana Cardoso Ferreira, 15 anos, e o então amigo Samuel* estavam de bate papo na frente de casa, naquela noite quente de verão e véspera de fim de ano. Para não ficar mal falada na vizinhança, a irmã da menina, de apenas 14 anos na época, pediu para que eles entrassem para casa. “Aí tu já viu, né? O papo ficou mais quente e a gente fez o que não devia,” revela a garota de sorriso maroto. Uma noite. Apenas uma vez. E foi o suficiente para a garota cheia de sonhos e com planos de ser pediatra engravidasse. A menstruação antes regrada atrasou 15, 20, 30 dias. Os enjoos começaram, assim como os vômitos e o excesso de sono. “Eu comecei a dizer que estava com anemia. Mas minha mãe dizia que aquilo tinha outro nome. E tinha!”, relembra, sem constrangimento algum, a mais nova mãe da família Ferreira. Dos sete filhos de José e Sandra, três já foram pais, duas na mesma situação que Cristiana: engravidaram na adolescência. Mas as duas irmãs da menina tiveram um pouco mais de sorte. Os pais dos bebês assumiram a responsabilidade. “Eu tentei, sabe. Ele até veio aqui quando o Paulo Gusta-

18

pág 018 a 023 - dupl a 10 - s em

vo tinha três dias. Disse que ia assumir, que ia registrar. Mas a mãe dele disse que não era pra ele assumir filho dos outros.” Nem neste momento o sorriso da menina sai do rosto. Não parece nervosa nas palavras. Mas a cadeira mexendo descompassadamente revela a frustração e a decepção de Cristiana com o pai do seu filho. A jovem, que parou de estudar para virar mãe, conta com o auxílio fundamental dos pais, principalmente da mãe, para cuidar do bebê e de si própria. “Ela me ensina tudo. Me dá tudo. Quando ela está em casa eu fico olhando as coisas que ela faz com o Paulo Gustavo para depois eu fazer também.” Mas dar banho no bebê ou segurar para fazer vacina Cristiana não faz. “De jeito nenhum”. O motivo, ou a desculpa, é que ele chora demais. “Quando ele foi fazer as vacinas de um mês, foi a enfermeira que segurou. Tiveram que me tirar da sala de tanto que eu gritava.” Sandra Ferreira, mãe da Cristiana, conta mais das façanhas da filha. “As enfermeiras mandaram me chamar porque os gritos dela assustavam o nenê e deixavam-as nervosas.” Essa realidade Cristiana sabe que terá que mudar. Mais dia ou menos dia, terá que assumir por completo o trato com o pequeno Paulo Gustavo, que agora parece ter sentido um ventinho no pescoço. Choraminga um pouco, mas logo volta ao sono profundo. Porém, o problema maior vivido pela jovem mãe não foi a ausência do pai do bebê, nem as crises de asma, constantes durante a gravidez. A grande dificuldade enfrentada por ela foi dar ao seu pai a notícia de que estava grávida. “Eu sou a caçula, sabia que e a decepção ia ser grande”, relembra, cabisbaixa. A revelação foi feita só quando a menina estava

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pa i - j er oni m o e m iche l i.indd 18

1/12/2009 21:49:03


Apesar de todo o amor, Cristiana ainda não consegue dar banho no pequeno Paulo Gustavo

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 018 a 023 - dupl a 10 - s em

pa i - j er oni m o e m iche l i.indd 19

19

1/12/2009 21:49:10


20

pรกg 018 a 023 - dupl a 10 - s em

P RIM E IRA IM P RE S S ร O 2 0 0 9 / 2

pa i - j er oni m o e m iche l i.indd 20

1/12/2009 21:49:20


P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 018 a 023 - dupl a 10 - s em

pa i - j er oni m o e m iche l i.indd 21

21

Mãe solteira, Cristiana conta com o auxílio da família para i o fil o

1/12/2009 21:49:30


encontros despedidas& ausência

grávida de quatro meses e com a ajuda do pastor da igreja que frequenta com a família. “Eu sempre fui gordinha, minha barriga não cresceu muito. Eu só engordei três quilos a gravidez inteira”, relembra. Hoje a situação é outra. Passada a decepção, o avô agora é o mais coruja. “O Paulo Gustavo é o xodó dele. Minhas irmãs até têm ciúme do menino”, admite, com um sorriso largo no rosto. E a menina sabe que vai precisar por um bom tempo ainda deste apoio e encantamento dos avós pelo pequeno. “Mas é só ele ficar grandinho que eu vou trabalhar e sustentar meu filho e provar pro pai dele que o Gustavo não precisa dele.”

A história se repete

IMPRESSÕES DE REPÓRTER É difícil não se envolver e se emocionar com um tema que está presente na realidade brasileira e, principalmente, um tema que serve de alerta para os futuros pais e filhos. É mais difícil ainda quando conhecemos pessoas próximas que vivem a mesma realidade e que cresceram sem a presença do pai. Na rotina da profissão, não podemos escolher qual tema iremos falar. Precisamos estar preparados para encarar toda e qualquer situação que possa surgir no desenvolvimento das pautas. A reportagem que fizemos, serviu para, entre outras coisas, aprender a entender até que ponto um repórter pode se envolver com o assunto em que está tratando. Poder conhecer diferentes realidades sociais e conviver – mesmo que por pouco tempo – com mães batalhadoras, foi, sem dúvida nenhuma, uma experiência única. Os personagens relatados na reportagem são mães que “trocaram” as dúvidas e anseios de adolescente por uma única certeza: garantir a paz e uma boa criação para o filho, recém chegado.

22

pág 018 a 023 - dupl a 10 - s em

Cristiana mora na periferia de São Leopoldo, mas sua história pode ser semelhante ou igual a de milhares de jovens brasileiras. Segundo o Ministério da Saúde, só no ano passado 485.640 partos de mulheres com menos de 20 anos foram feitos no país. Mas este número já foi maior. Em 1998, foram registrados quase 700 mil partos em adolescentes. Em uma década, a redução foi de 30,6%. Entre os motivos para a queda, de acordo com o Ministério, está a maior procura dos adolescentes a métodos contraceptivos, como as pílulas e as camisinhas. Métodos que Cristiana e a Ana Paula de Oliveira não usaram. A história da gravidez da jovem carioca se inicia bem longe do Rio de Janeiro. Começa em Porto Alegre. Parecia mais um acampamento como os vários em que ela havia feito. Na bagagem, a lanterna, o colchonete, as roupas e a barraca, velha amiga e mal tratada pelo tempo. Com 19 anos, fez muitas aventuras vida a fora, mas esta, com certeza, foi diferente e a última. Ana Paula sempre foi uma menina de família. Estudou em escola estadual, trabalhou em bons empregos e pôde, graças à ajuda da família, desfrutar das aventuras e anseios que toda jovem tem. Milton era um hippie ambulante que vendia artesanato para sobreviver. Vida dura, mas cheio de histórias interessantes de um homem que nunca teve paradeiro, muito menos moradia fixa. Nunca conheceu o pai. O sotaque uruguaio o deixava ainda mais encantador. Ela recorda que ele sempre carregava um painel que servia de vitrine para os artefatos que fazia. O som alto lembrava o clima do Woodstock, conhecido festival da década de 1970 onde toda uma geração ouviu música e fez uso das drogas. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre era o lugar perfeito para ampliar conhecimento, conhecer pessoas e discutir os problemas do mundo, mas virou o cenário para Ana Paula viver sua primeira história de amor. E foi nesse ambiente de descontração em que jovens podiam expor

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pa i - j er oni m o e m iche l i.indd 22

3/ 12/2009 16:27:18


ideias e discutir os rumos da humanidade que começou a história dos dois. Ela ficou grávida quando perdeu a virgindade. A notícia da gravidez veio mais tarde, três meses depois, na casa onde morava com os avós Célia e Cyrillo, hoje falecidos. No momento em que todos os nove tios, 10 primos e o casal de avós estavam em volta da mesa servida para um churrasco, o anúncio veio como uma bomba: “Gente, eu estou grávida”, disse Ana. Os avós passaram mal. Cyrillo não pensou duas vezes e a expulsou de casa. Ela só pôde voltar a viver com eles passados dois meses da notícia. “Foi uma situação muito difícil para nós”, conta Ana. “Quase me avancei na cara dela”, relata a tia Mara Lúcia, que também reforça o impacto que a notícia teve para a família. Ela lembra que Ana largara o emprego com estabilidade, no Palácio do Governo, para ir até o Fórum Social “viver uma aventura de adolescente”. Com a notícia da gravidez, a responsabilidade aumentou. Ela precisou trocar os sonhos que tinha por fraldas e “hipoglós”. Foi uma época turbulenta,

pois ela também estava terminando o segundo ano do ensino médio e teria que largar tudo para cuidar de um bebê. Milton, o pai da criança, sempre teve uma vida muito difícil. O pai dele também era ambulante e o deixou para viver a vida sem rumo e, para piorar, a mãe ganhava a vida como prostituta numa boate na zona rural do Uruguai. Ao longo de toda a gravidez, ele se manteve ao lado de Ana e falava que gostaria de estar perto do filho para evitar que a criança tivesse a mesma vida que teve. Não passou muito tempo e ele caiu na estrada para nunca mais voltar. Hoje a criança tem cinco anos e por diversas vezes foi tida como a alegria da casa e da família. A falta do pai é visível. “Toda vez que se machuca, grita: papai, papai”, conta Ana. “É muito difícil para mim, porque eu tenho que ser a figura materna e paterna. Então eu dou um tapa e também tenho que fazer o carinho depois”, comenta. (*) O nome foi trocado

A vida trocada pelo crime Um estudo feito na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase), antiga Febem em Porto Alegre, revela que 58,6% dos jovens consumidores de drogas não têm ou não tiveram o pai presente e 67,8% abandonaram a escola. Na sede do Centro de Atendimento Sócio-educativo em Semiliberdade (Casemi), em São Leopoldo, jovens que tinham tudo para se dar bem na vida encontraram na criminalidade uma alternativa para suprir a ausência do pai. Ivanildo* buscou no crime o apoio que não recebeu em casa. Hoje, dois anos depois de matar duas pessoas, ele está reabilitado e luta para que o filho de dois anos não tenha o mesmo futuro que teve. “Eu espero dar tudo o que não consegui para mim. Ele merece toda atenção do mundo”, diz. No mesmo lugar, outros jovens também seguiram o mesmo destino. Latrocínio, assassinato e uso de drogas são as respostas mais frequentes entre eles. Na maioria dos casos, o motivo é o mesmo: a falta de uma base familiar sólida. Uma realidade presente em todo o Brasil e que precisa ser combatida. Todos os anos, 800 mil crianças são registradas no país tendo na certidão apenas o nome da mãe. E esta é uma das preocupações da Organização Não Governamental Brasil Sem Grades, que chegou a este número – inédito em pesquisas no Brasil. O presidente da ONG, Luiz Fernando Oderich, acredita

pág 018 a 023 - dupl a 10 - s em

pa i - j er oni m o e m iche l i.indd 23

que os reflexos de uma infância mal estruturada aparecem com maior frequência entre a adolescência e a fase adulta. “É quando a ausência da figura paterna mostra a verdadeira cara, e o filho, que foi criado sem essa base, pode entrar de vez para a criminalidade, ficar mais carente ou até não saber como agir em diversas situações”. A ONG foi criada por Oderich depois que ele perdeu o filho, vítima de um assalto. Assim, ele decidiu se dedicar a mudar essa realidade que todos os dias joga jovens brasileiros no crime. “O objetivo da ONG é tentar transformar o Brasil a fazer com que ele volte a ser um país seguro. A cela é a maneira com a qual a sociedade brasileira está tenta conviver com a criminalidade”, comenta. “Se o pai não ensinou as normas e as regras da casa, se ele não aprender na cadeia, quando for viver em sociedade, também não vai respeitar. Na verdade, tudo começa em casa e depois se reflete na sociedade”, afirma Oderich. Estar presente na formação das crianças pode ser a maneira mais eficaz de fazer com que os índices de violência diminuam e pessoas como Ivanildo possam garantir um futuro melhor para os filhos. (*) O nome foi trocado

3/ 12/2009 16:27:28


encontros despedidas& sonhos

24

pรกg 024 a 027 - dupl a 15 - s onho.i

ndd 24

P RIM E IRA IM P RE S S ร O 2 0 0 9 / 2

1/12/2009 21:52:52


MOMENTO MÁGICO Valério Galeazzi conquistou o diploma de Direito aos 86 anos TEXTO| RAFAEL MARTINS e RODRIGO FATTURI FOTOS| JOÃO DE QUEIROZ

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 024 a 027 - dupl a 15 - s onho.i

ndd 25

25

3/ 12/2009 16:29:56


P

ara uns, o maior sonho é a saúde, a qualidade de vida. Para outros, encontrar o amor, ter filhos, construir uma família. A formação acadêmica também é um grande sonho para muitos. Valério Galeazzi, de 87 anos, concluiu o curso de Direito no início de 2008, concretizando um sonho que os caminhos da vida acabaram adiando por alguns anos. Natural de São Paulo, o técnico contábil chegou em 1949 ao Rio Grande do Sul e, ao lado da esposa, criou os filhos e viu a família prosperar. A morte da companheira deu fim a mais de cinco décadas de união. “Lamentavelmente, em dezembro de 2000 perdi minha esposa. O meu neto mais próximo, Eliel, sempre me questionava sobre a possibilidade de fazer um curso superior. Decididamente, foi a melhor coisa que pude fazer nesse período. Caso não tivesse feito, teria ficado com angústia, deprimido pela falta da companheira”, comenta. Os sonhos são abordados sob diversos aspectos pelo autor do livro Projeto de Vida: Sou do tamanho dos meus sonhos, César Souza. “A realização profissional é uma das dimensões mais importantes no mapa de sonhos das pessoas. O sonho de um profissional é o reconhecimento, é saber que sua formação está contribuindo para o todo”, salienta. Uma colocação no mercado de trabalho não é apenas a sustentabilidade financeira, mas a autoafirmação do indivíduo perante a sociedade. Para que os resultados aconteçam é preciso estudar, ser curioso, inventar, estar preparado quando a oportunidade surgir e fazer o seu dever de casa. Aliado a isso, alguns atributos são necessários nessa caminhada, como nunca desistir nas primeiras dificuldades, nem medir forças na hora de colocar as ideias em prática. Ser uma pessoa que busca sempre questionar o contexto, ter foco e ser persistente também são atributos que ajudam. Nenhuma pessoa alcança seus sonhos apenas sonhando, esperando que alguém os faça, não é possível ficar à mercê dos acontecimentos. Dessa forma, Valério aproveitou sua experiência e foi conquistando amigos no meio acadêmico com a sua receptividade e simpatia. Fez muitas amizades, mas a colega inesquecível para ele foi Vanessa, que o apoiou durante sua graduação. “Foi uma filha que eu adquiri no banco da universidade. Até hoje eu tenho amizade com toda a família dela”, salienta. Com a dificuldade de locomoção em decorrência de uma artrite na perna direita, Valério caminhava com a ajuda de uma bengala, e a colega dava carona nos dias de aula. Durante os seis anos na universidade, Valério sempre comentou com os mais jovens que o Direito é o bom-senso de julgar as coisas, mas ele também se faz por linhas tortas. Assim se tornou bacharel na área. “Foi um objetivo de vida e eu

26

pág 024 a 027 - dupl a 15 - s onho.i

ndd 26

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

1/12/2009 21:52:57


tive resultado. Posso dizer que estou realizado, porque sempre almejei fazer Direito. Para mim, foi uma grande realização, até porque me dediquei tanto ao trabalho e a educar meus filhos que acabei deixando os estudos em segundo plano“, conclui.

O motor da vida Mais importante do que sonhar, é lutar pela realização dos anseios. Sempre que isso acontece, a pessoa acaba se sobressaindo, ganhando visibilidade. O sonho é o motor da vida. Quando se para de planejar, começa-se a envelhecer. A pessoa que não sonha tem uma alma pobre, rotineira, sem sal. Mas a realização dos sonhos só é concretizada com o coletivo. Mesmo que o anseio seja de cunho pessoal, é fato que ninguém consegue nada sozinho. Para Cesar, autor do livro sobre os sonhos, ter aliados é fundamental. Pode ser na família, na empresa, entre amigos. “As pessoas bem sucedidas são fruto de uma confluência de sonhos; dos pais; das famílias e parceiros. Esse é o sonho coletivo que mobiliza, compromete e gera resultados surpreendentes”, frisa o autor. Os sonhos têm valores diferentes para as pessoas. Enquanto muitos almejam uma formação superior, um trabalho digno ou mesmo uma vida bem-sucedida, outros esperam apenas um prato de comida, ou ganhar algum brinquedo. O objetivo dos voluntários da Make-A-Wish Brasil é exatamente este, realizar o maior número possível de sonhos. A união de colaboradores engajados proporciona alegria e satisfação para crianças de três a 17 anos com alguma doença que coloque em risco suas vidas. A organização sem fins lucrativos atua em

33 países e chegou ao Brasil em novembro de 2008. A porta-voz da organização, Leda Tannus, salienta que a realização dos desejos só acontece com a ajuda de muitas pessoas. “Sem os voluntários, os pedidos nunca poderiam ser realizados. São eles que fazem os sonhos das crianças serem possíveis”, conta. Mas também tem parceiros que contribuem exclusivamente para atender determinada necessidade doando algum item ou mesmo dinheiro. A importância de realizar um desejo é dar às crianças e aos adolescentes um momento mágico, de permitir que sonhem e tenham esse sonho realizado. A família da criança acaba vivendo junto esse momento mágico, de alegria e de quebra da rotina que, muitas vezes, gira em torno da doença da criança. “O desejo chega a Make-A-Wish Brasil por meio da equipe médica, de familiares ou da própria criança. A partir disso, é formada uma equipe de voluntários que faz diversas entrevistas para conhecer e saber realmente o que a criança quer e do que ela gosta”, explica Leda. Atualmente, estão inscritos 300 voluntários, dos quais 120 já passaram por treinamentos e entrevistas e estão aptos a realizar desejos por todo o Brasil. Para Leda, participar do processo de realização de um sonho não tem preço. “Qualquer atividade voluntária faz com que a pessoa receba muito mais do que doa. O sorriso de uma criança faz com que qualquer trabalho valha a pena”, conclui. A melhor forma de se aproximar da concretização dos sonhos é manter a cabeça nas nuvens e pés no chão! Quem não luta pelos seus sonhos, acaba como coadjuvante dos sonhos dos outros.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Definitivamente não é muito fácil planejar uma entrevista de perfis quando o assunto é profundamente íntimo. Assim que nos foi proposta a atividade, ideias mirabolantes foram surgindo e a entrevista com Valério Galeazzi, um idoso de 87 anos que concluiu o curso de Direito, concretizando um devaneio que os caminhos da vida acabaram adiando por alguns anos, foi a “cereja do bolo” e mereceu uma consideração especial. Todos os receios e incertezas quanto ao tema caíram logo no primeiro contato com o nosso personagem. No telefone, seu

Valério nos tratou com pronomes adjetivos carinhosos que manifestaram a amável pessoa que depois iríamos entrevistar. Com muito entusiasmo fomos à casa de seu Valério, que muito inspirado, nos esperava com fotografias e recortes de jornais e revistas, que estampavam a sua conquista. Conversamos por mais de duas horas. Seu Valério muito receptivo e simpático, só mostrou fraqueza quando falou da morte da esposa. No mais, ele nos apresentou uma vida de muitos sonhos e, principalmente, muitas conquistas.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 024 a 027 - dupl a 15 - s onho.i

ndd 27

27

1/12/2009 21:52:58


encontros despedidas& casamento

POUCA, 28

pág 028 a 031 - dupl a 03 - s ol t eir o - na t a cha

MÉDIA OU

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

a ndr es s a e el is a ndr a .indd 28

1/12/2009 21:56:13


U

MUITA EMOÇÃO? P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 028 a 031 - dupl a 03 - s ol t eir o - na t a cha

a ndr es s a e el is a ndr a .indd 29

29

1/12/2009 21:56:18


encontros despedidas& casamento

Noite de tequila e final de semana na praia antecedem o grande dia

TEXTO| ANDRESSA XAVIER, ELISANDRA BORBA e NATACHA KÖTZ FOTOS| EQUIPE EVERTON ROSA / STAFF

O

dia das despedidas é o mesmo do encontro. Despedirse da vida de solteiro é mais do que abdicar do que foi vivido até o momento. É o resultado da entrega recíproca de um casal que encontrou uma nova forma de viver. A história de Joanna e Daniel começou muito antes daquela sexta-feira, quando se uniram à frente dos amigos, da lei dos homens e da bênção de Deus. O dia do casamento marcou o início de um novo ciclo. Novos encontros, novas despedidas e várias outras perspectivas. Tudo isso passava pela cabeça do casal, que trocava olhares ansiosos, felizes e repletos de expectativas enquanto as portas da igreja se abriam. Trinta e sete minutos de atraso. Antes de chegar, em um PT Cruiser preto, a noiva já havia dado algumas voltas na quadra da Igreja. Lá dentro, enquanto esperavam, os convidados viraram quando a porta foi empurrada pela força do vento. Uma das madrinhas do noivo brincou: “É pegadinha”. Daniel riu, escondendo o nervosismo. Instantes antes de a cerimônia começar, a fala dos noivos era parecida. “É uma sensação estranha e ao mesmo tempo uma emoção ver esse sonho se realizando”, contava Daniel. Joanna dizia estar menos nervosa do que esperava, mas com medo de chorar e borrar a maquiagem. “Como está a igreja? As aias entraram direitinho?”, perguntava.

O começo Joanna estudava Publicidade e Propaganda e, em uma das festas que antecediam a formatura, acabou chamando a atenção de um amigo do seu colega Luciano Costa. Dias depois, o amigo cupido enviou uma foto de Daniel à colega. O interesse foi mútuo, mas não evoluiu em uma aproximação. Na solenidade de formatura, que ocorreu em meados de 2003, Daniel, convidado do amigo em comum, tinha a atenção voltada somente para Joanna. Meses se passaram até que os olhares se cruzassem definitivamente, na fila de uma festa. “Ele foi o último a sair do carro, e na hora coloquei o olho nele”, relembra. Desistiram da festa e seguiram para um bar com mais alguns amigos. Daquele dia em diante começaram a traçar um caminho juntos. “Ela apareceu na hora certa e me agarrou”, ri Daniel. Joanna Pivotto, a menina divertida e pagodeira e que tivera um namorado por muitos anos, estava em um momento de curtir a vida com as amigas. Daniel Boazan, o apreciador de bons filmes e gremista fanático, já estava cansado das festas e da vida de solteiro. Os dois juntos precisaram aprender a lidar com as diferenças que causaram muitas brigas desde o início do relacionamento. A ideia de se despedirem da vida de solteiros foi surgindo aos poucos, apesar de já sentirem que foram feitos um para o outro. “Nos

30

pág 028 a 031 - dupl a 03 - s ol t eir o - na t a cha

primeiros dias disse pra minha mãe: é ele”. “Ela me fez conhecer o que é o amor, o que é a vontade de ficar junto, que eu só via nos filmes.” Joanna diz que a cerimônia era um sonho e que, além disso, tornaria a união mais forte. Daniel sempre achou que morar e curtir a vida a dois já bastaria. A última briga dos dois ajudou a tomarem a decisão: junto com a reconciliação, veio o noivado. Era chegada a hora de começar os preparativos para o grande encontro. Antes de qualquer coisa, o ditado impera. Quem casa quer casa. No caso, um apartamento adquirido em 2006 no prédio onde a noiva sempre morou. Mas essa não era a primeira aquisição do casal. Bebel, a cachorrinha linguiça tratada como filha, já tem cinco anos. Nas brigas, servia como pretexto para conversarem. “Ele ligava pra saber como a Bebel estava”, conta Joanna. Com o apartamento comprado, podiam marcar a data. Daniel revela que começou a se sentir casado no momento em que encaminharam os papéis para o casamento civil. Joanna, em meio ao turbilhão de decisões a serem tomadas, ainda não tinha parado para pensar. “A expectativa deve aumentar na semana. Mas acho que ele é que estará mais nervoso no dia”, previa. Nos meses que antecederam o casamento, dormiam de vez em quando no apartamento para se habituarem à vida de casal. “Assim a Bebel sente o nosso cheiro e acostuma logo.” A admiração é mútua também quando o assunto é temperamento. “Ele é muito divertido e adora cantar músicas com letras erradas”, diverte-se Joanna. Daniel fala da criatividade da noiva. “Lembro direitinho de quando ela se embrulhou para presente no meu aniversário.”

As despedidas A uma semana do tão aguardado dia, outro ritual precisava ser realizado. Aquele que marca a passagem da vida singular para a plural. A despedida de solteiro é o momento de extravasar. Aproveitar a festa com os amigos, rir, se divertir e, principalmente, se preparar para uma vida conjugal em que não há apenas o ‘eu’, mas o ‘nós’. Até pouco tempo, apenas os homens realizavam o ritual. A professora de sensualidade Ledi Meireles Martins, mais conhecida como Leda, explica que as mulheres tinham apenas o chamado chá-de-panela, onde os presentes entregues à noiva eram para o cuidado com o lar: baldes, panos-de-prato... Hoje elas estão trocando pelo chá-de-lingerie, quando aproveitam para aprender técnicas para ‘apimentar’ a relação. “As mulheres preservavam a virgindade para o dia do casamento. Com os relacionamentos modernos, elas procuram algo para não deixar a rotina abater o casal”, explica Leda. As opções são muitas: massagens, jantares especiais, stripeteases, surpresas, mistérios... “Ele sempre vai se surpreender com uma mulher que traga novidades para

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

a ndr es s a e el is a ndr a .indd 30

1/12/2009 21:56:18


Depois de seis anos de namoro, Joanna e Daniel ofi i li sua união

a relação.” Leda teve também um papel fundamental na despedida de solteiro de Joanna. “Pouca, média ou muita emoção?” Com essa pergunta, a madrinha Carolina Zílio começou a planejar a despedida de solteira de Joanna. A noiva acolheu, prontamente, a última opção. Faltando uma semana para o casamento, 14 amigas aguardavam a chegada da noiva em um salão de festas na Capital. De olhos fechados, Joanna chegou sem saber o que enfrentaria. Para começar, o tradicional comes e bebes. Cada amiga ficou responsável por um prato. Para beber, refrigerantes, Martini, champanhe e... tequila! Para esquentar a festa, Carolina propõe uma brincadeira. Um véu é preso à cabeça da noiva. A partir daquele momento, ela não podia mais ser chamada pelo nome e sim por ‘noivinha’. E a ‘noivinha’, por sua vez, não devia mais pronunciar o nome das convidadas. Tinha que chamá-las de ‘madrinha’ quando fosse o caso ou de ‘amiga’. A pena para quem errasse era beber um martelinho de tequila, com o auxílio de sal e limão. Em menos de dois minutos a regra já estava quebrada e começava ali a noite da despedida de solteira de Joanna, embalada por risadas, surpresas e doses da bebida que provocavam caretas em quem pagava a prenda. Leda, com sensualidade à flor da pele, chegou à festa por volta das 22h para ensinar truques à Joanna. Dicas que devem ser usadas para não caírem na rotina. Daniel foi um pouco mais longe. Ele e mais cinco amigos se encontraram em Imbé, no litoral. Na organização, estava o amigo cupido, Luciano Costa. E a ordem do dia era beber. No cardápio, cerveja, chope, vodka, vinho... Para acompanhar, churrasco. O fogo começou a ser feito à tardinha, bem “à moda gaudéria”, como explicou Luciano, e ficou pronto somente às 22h. Entre as conversas que esticaram a noite até as cinco da manhã, lembranças de infância, de adolescência e, claro, as brincadeiras: “Agora acabou a vida de festas”, riam os amigos. Ver o nascer do sol na beira da praia encerrou a preparação de Daniel para a semana mais nervosa de sua vida, que incluiu calmantes na véspera do grande dia, conforme confidenciou o amigo.

Além do amor, Joanna e Daniel têm outras coisas em comum. Os dois contaram com o companheirismo dos amigos na organização da despedida de uma vida que não ficou para trás, ganha apenas um novo formato. Para selar a amizade, os mesmos amigos estavam no altar, abençoando o encontro que esperam que seja para sempre. O padre deu dicas para que isso aconteça: “Daniel, te entrega pra Joanna todos os dias. Joanna, seduza o teu marido diariamente”. Apenas três letras separavam a despedida do encontro: SIM.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando o tema Encontros e Despedidas foi escolhido para esta edição da revista, tínhamos certeza que o nosso foco seria a despedida de solteiro e o encontro de um casal no altar. Depois, precisávamos de fontes. E para uma tradição milenar, usamos a tecnologia contemporânea. Encontramos, através do Twitter, um casal como imaginávamos: divertido e bem humorado. Foram simpáticos e receptivos. Nossa cobertura teve um olhar tridimensional. O trio de repórteres é composto por uma casada e duas solteiras, sendo que uma namora. Com diferentes visões sobre relacionamentos, tentamos transferir para o texto a vida de um casal aparentemente comum, mas com uma história única. Joanna e Daniel proporcionaram que conhecêssemos pessoas que nos acrescentassem algo. O encontro emocionante, no grande dia, tinha ingredientes para uma narrativa: os pais de Daniel completavam 38 anos de união na mesma data. O brilho no olhar dos noivos e a ansiedade somada à participação dos amigos completavam o cenário.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 028 a 031 - dupl a 03 - s ol t eir o - na t a cha

a ndr es s a e el is a ndr a .indd 31

31

1/12/2009 21:56:19


encontros despedidas& maternidade

A LUZ POR UM MOMENTO Perder um filho, como aconteceu com Paula e Tiago, é enfrentar uma mudança na ordem natural da vida TEXTO| KAISER KONRAD e PEDRO FOSS FOTOS| PEDRO FOSS

M

uitas mulheres imaginam o momento em que pegarão nas mãos o resultado com um “positivo”. Quando isso se realiza, passam a construir um castelo de sonhos, com a chegada do tão esperado bebê. Ouvimos dizer que ser mãe é amar alguém intensamente, mesmo sem ter visto o rosto ou ter tocado no ser que carrega no ventre e que ainda não lhe foi apresentado. É esperar nove meses por uma nova vida, com a certeza de que ela veio para dar muita felicidade. É vibrar a cada sorriso, a cada gesto novo, ficar admirando o sono do bebê e imaginar como será o seu futuro. Porém, em alguns casos, inevitavelmente o castelo de sonhos desmorona-se, dando lugar a uma realidade que nem sempre segue a ordem natural das coisas.

A história de Paula e Tiago Paula Foss, 18 anos, e Tiago de Carvalho, 22 anos, estavam há quatro anos juntos quando decidiram que queriam começar a sua família. Alguns meses depois, o jovem casal estava radiante ao saber que dentro de pouco tempo iria compartilhar seus corações e lar com seu primeiro filho. No quarto mês de gravidez, quando souberam que Paula estava esperando uma menina, comemoraram na seção de bebês de uma loja infantil. Renata Foss de Carvalho estava por vir. A primeira vez que Paula sentiu seu bebê mexer, ela mal pôde conter sua alegria e correu a ligar para sua mãe, compartilhando a maravilhosa experiência. Aos seis meses de gestação, tudo apontava para uma menina saudável e linda. Era hora do chá de fralda. Paula e Tiago aproveitaram o

32

mês de julho para fazer uma festa julina inesquecível. E foi assim que aconteceu. Muitos presentes, incluindo enxoval, berço, além de pipoca e passoquinha. No oitavo mês, faltando apenas duas semanas para o dia da cesariana, Paula passou a não sentir o seu bebê mexer. Levada ao médico, ouviu as seguintes palavras: “Sinto muito, Paula, mas eu não posso ouvir os batimentos cardíacos do bebê e não posso detectar movimento”. Dali, foi enviada imediatamente ao hospital para uma ultra-sonografia. O exame mostrou que algo estava tragicamente errado e que Renata havia morrido no útero. Nessas condições, o feto é chamado de “natimorto”, porque a morte ocorreu após a 20ª semana de gravidez. Paula então foi admitida no hospital e colocada em um quarto no final da seção de maternidade. O hospital enviou uma assistente social para falar com o jovem casal privadamente. A assistente encorajou-os a falar sobre sua perda e incentivou-os a chorar abertamente. A dor emocional que acompanhou aquele momento era difícil de aguentar. A mágoa, porém, se agravaria, já que Paula seria forçada a uma indução do trabalho de parto para dar à luz sua filha, uma criança à qual nunca poderia dar carinho ou levar para casa. “Eu ouvia os bebês chorando enquanto nasciam nas salas ao lado e sabia que o meu não iria chorar”, lembra ela. Após o nascimento, olhou para a forma tão pequena do corpo de sua filha e chegou a vê-la perfeitamente formada. Nesse momento, sentiu uma dor muito imensa por saber que essa criança nunca poderia sentir a vida. “Não é a minha melhor recordação,

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 032 a 035 - dupl a 18 - m a t er nida de - pedr o e ka is er .indd 32

3/ 12/2009 16:31: 19


Aos 18 anos, Paula sofreu a maior perda de sua vida. Agora, conta com o apoio da família para superar a dor

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 032 a 035 - dupl a 18 - m a t er nida de - pedr o e ka is er .indd 3

33

1/12/2009 22:02:15


encontros despedidas& maternidade

34

P RIM E IRA IM P RE S S Ăƒ O 2 0 0 9 / 2

pĂĄg 032 a 035 - dupl a 18 - m a t er nida de - pedr o e ka is er .indd 34

1/12/2009 22:02:16


mas vê-la morta foi a única forma de acreditar que ela estava realmente morta”, conclui. O jovem casal, já esgotado física e emocionalmente, teve que voltar para casa. Pegar o carro foi algo muito difícil, já que estariam voltando para a realidade. Juntamente com a família, cuidaram da certidão de óbito de uma filha que nunca viveu e decidiram sobre como cuidar do seu corpo. Outras formalidades, como velório e enterro, também foram providenciadas. “Tomar essas providências foi importante para eu não me iludir. Não quis correr o risco de não acreditar no que estava vivendo. Não quis ser poupado de nada, mesmo vendo ali a interrupção de muitos sonhos. Renata tinha a vida pela frente”, recorda Tiago. Acordar à noite e ver o berço vazio era muito doloroso. “Desmontamos tudo dias depois, e o que me segura é a fé de que minha filhinha está em um lugar melhor. Outro dia, descobri que o antônimo de morrer é nascer. Não existe significado oposto para viver, justamente por causa da continuidade. Não tem nada pior para uma mãe do que achar que acabou ali”, disse Paula.

O luto Renata não teve a chance de viver. Para os que ficam, é duro se confrontar com a realidade de que nem sempre o curso da história segue a ordem natural das coisas. Conforme Jussara Klein, psicóloga e psicanalista, perder o bebê através de um aborto espontâneo ou retido, ou mesmo já na gravidez avançada, é a maior dor que uma mãe pode sentir, porque houve a interrupção do caminho natural da vida, que é gerar, gestar, parir e criar. “Passar pela perda do filho em qualquer uma dessas fases é passar pela perda de um pedaço de si. A dor é tão imensa que não pode ser descrita. É uma grande mistura de sentimentos, que vão da dor física à psicológica, da raiva, do rancor, à dúvida e à culpa”, explica. Essa dor física acontece quando há a expulsão do bebê. São contrações iguais às do parto, porém sabe-se que o

bebê não irá nascer vivo. De acordo com a psicanalista, a dor psicológica é a que anestesia, que confunde, que dopa. A raiva é o sentimento que se tem em relação a tudo e a todos ao redor, mas principalmente em relação a si mesma. A esse sentimento está associada a culpa e a dúvida que é causada pela indefinição dos motivos que levaram à perda. Normalmente esses sentimentos ocorrem todos juntos, causando uma mistura de sensações. O enlutado, afirma Jussara, tem de usufruir de todo o apoio que puder. “Deve contar com a família, com os amigos, com a religião, com qualquer tipo de apoio que ajude a pessoa a construir o significado da morte”. Ela ressalta que voltar à rotina também contribui na elaboração da perda. “É fundamental entender que a vida continua”, afirma. A forma de lidar com a dor da perda, contudo, depende de cada mulher. Somente vivendo o luto, a mulher consegue atravessar a dor para continuar a viver. As pessoas próximas, nesses casos, só precisam se colocar ao lado, se fazer presentes, sem fazer colocações simplistas do assunto, porque somente a mulher que perdeu sabe o valor que tinha aquele filho, e somente ela sabe o tamanho da sua dor. Paula e Tiago, nos meses que se passaram, foram digerindo a morte, tentando entender a razão da tragédia, a interrupção da vida dessa maneira. A presença dos amigos e dos familiares os ajudou a seguir em frente. “O fato de não nos culparmos um ao outro também contribuiu para a elaboração do luto. Era um momento novo para todos nós. A companhia das pessoas, as palavras, o carinho... Conviver com crianças, com os filhos de amigos e meus familiares, também nos ajudou. Foi uma maneira de introduzir vida nas nossas vidas”, desabafa Paula. Com essa tragédia pessoal, o jovem casal compreendeu a importância de sofrer abertamente por uma perda tão grande. Devido a isso, eles agora podem oferecer empatia e orientação para outros casais, com a esperança de um dia poder sair do hospital e levar seu bebê para casa.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Tememos a morte, não simplesmente por ela ser desconhecida, mas porque ninguém jamais retornou para nos dizer como é morrer. Entrevistar Paula e Tiago para a Primeira Impressão foi uma experiência muito importante, tanto para nós como repórteres, por contar uma história dramática da família de um dos realizadores da matéria, quanto para os pais, por reviverem aquele momento de sofrimento tão recente. Tivemos a oportunidade de narrar uma história que mudou vidas e fez pessoas se adaptarem. Afinal, cada um de nós, diante de uma situação de

perda, reage de uma forma diferente. Uns amadurecem precocemente, enquanto outros enfrentam mais dificuldades. Notamos que, para o jovem casal, é muito difícil conviver com a saudade, mas ter bons momentos para recordar os enche de orgulho. E foi por isso que aceitaram contar a sua história. Está certo que tiveram um momento melancólico, revelando o que dominava seus corações: tristeza. Mas o tempo tem se encarregado de curar as dores mais profundas e, para eles, sentir saudade pode ser bom. Somos gratos por terem confiado em nós.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 032 a 035 - dupl a 18 - m a t er nida de - pedr o e ka is er .indd 35

35

1/12/2009 22:02:16


Donizete saiu do Amapá para encontrar a felicidade na Capital gaúcha. Agora já pode voltar e reencontrar a mãe e os irmãos

36

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 036 a 039 - dupl a 09 - t r a ns pl a nt es - m a r ia na e va nes s a .indd 36

2/12/2009 09:28:39


VIDA NOVA Pessoas de vários locais do país chegam em Porto Alegre com a esperança de receber um órgão TEXTO| MARIANA OLIVEIRA e VANESSA COIMBRA FOTOS| SANDRA VARGAS

V

iver nada mais é do que dar e receber. A doação de órgãos é um ato de coragem que transforma a vida de quem doa ou recebe. Significa doar amor, generosidade, atenção, ternura e respeito. E não é difícil, basta querer. Não há nada mais compensatório do que ver outro ser humano feliz. O Brasil possui hoje um dos melhores programas públicos de transplantes de órgãos e tecidos do mundo. Com 548 estabelecimentos de saúde e 1.376 equipes médicas autorizados a realizar transplantes, o Sistema Nacional de Transplantes está presente em 25 estados do país por meio das Centrais Estaduais de Transplantes. Só no Rio Grande do Sul são 89 centros especializados. Em 2001, foi inaugurado em Porto Alegre o Hospital Dom Vicente Scherer, que tem o primeiro Centro de Transplantes de todos os tipos de órgãos e tecidos da América Latina, uma resposta da Santa Casa ao constante crescimento do número de transplantes realizado na instituição. Em busca de uma vida mais saudável, pessoas de todo país procuram o hospital atrás da cura. Foi pensando nessas pessoas que surgiu o Via Vida Pró-Doações e Transplantes. A entidade completou dez anos recentemente e tem como objetivo incentivar a doação de órgãos e tecidos através da orientação e conscientização dos cidadãos, de modo a beneficiar pacientes em lista de espera. Em janeiro de 2004, foi criada a pousada do Via Vida, que recebe pessoas de todos os lugares do país que procuram a cidade de Porto Alegre para viver até a realização do transplante. Nos últimos cinco anos atendeu mais de 291 pessoas, entre pacientes e familiares. A pousada sobrevive apenas com recursos doados pela comunidade, com a ajuda de apoiadores e de eventos que a organização faz, como chás beneficentes, almoços, brechós e palestras. Também há vendas de produtos, como camisetas e livros. Para quem está hospedado na pousada, ela é um lar longe de casa. Há pessoas de vários locais do país,

que chegam em busca de um transplante, de uma nova oportunidade para a sua vida. São pessoas sem condições financeiras, que agradecem por ter um espaço para os apoiarem nesse caminho tão dificultoso e cheio de insegurança. Milton Renato Menezes, de 36 anos, é uma dessas pessoas. Ele saiu da cidade de Alegrete em busca de um transplante de fígado. Já o pequeno Donizete Pena Alves, de apenas 13 anos, saiu da cidade de Macapá, do estado do Amapá, com o pai Valdenor Ferreira Alves, para realizar um transplante de rim. A história dos dois se resume a muito sofrimento, mas também a muita vontade de estarem curados.

Lista de espera Milton ficou sabendo que precisava ser transplantado no dia 20 de outubro do ano passado após fazer vários exames para hepatites A, B e C e todos darem negativos. Foi quando um médico descobriu que ele estava com uma hepatite aguda fulminante e que somente um transplante poderia salvar sua vida. Milton saiu então de Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, e chegou em Porto Alegre no dia 10 novembro do mesmo ano, após conseguir juntar dinheiro através da ajuda de parentes. Ele começou a fazer o tratamento com medicamento e entrou para lista de espera, mas seu estado de saúde piorava dia após dia. No dia 12 de novembro, Milton foi internado às pressas na Santa Casa com o quadro de encefalopatia grave (tremor nas mãos) e, no dia 13 de novembro, entrou em coma. Como seu quadro clínico era muito grave, ele passou a ser o primeiro da lista de espera e, no dia 14 de novembro, recebeu a doação do órgão. Milton teve uma ótima recuperação, recebendo alta dias depois. A pousada do Via Vida foi muito importante para o apoio dele e sua família, afinal, ficou hospedado com sua esposa Simana Glaúcia Pereira Mota, de 34 anos, a espera pelo transplante e depois na fase de recuperação. No dia 23 de dezembro,

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 036 a 039 - dupl a 09 - t r a ns pl a nt es - m a r ia na e va nes s a .indd 37

37

2/12/2009 09:28:39


encontros despedidas& transplante

ele retornou para Alegrete, mas infelizmente nove meses depois estava na pousada do Via Vida novamente. Seu transplante, apesar de ter sido um sucesso, começou a apresentar sintomas de rejeição. Então Milton e Simara tiveram que largar tudo novamente, inclusive deixar a filha de sete anos aos cuidados de parentes e retornar a Porto Alegre. Ele agora faz tratamentos com medicamentos e espera em breve voltar para sua cidade natal. ”Não vejo a hora de estar totalmente recuperado e rever minha filha, pois estou com muita saudade”, diz Milton, com muita emoção.

Presente de Dia das Crianças Já Donizete começou a apresentar problemas de saúde quando tinha apenas dois anos de idade. Seus pais procuraram um médico e descobriram que o menino tinha uma anemia muito grave pro apresentar problemas em um dos rins. Ele começou a fazer hemodiálise com três anos de idade. Após muito sofrimento, seu pai resolveu deixar o Nordeste e vir para o Sul. “No Amapá, não tinha as condições necessárias para fazer o transplante, foi quando o médico nos indicou viajar para Por-

to Alegre”, diz Valdenor. “Consegui as passagens para mim e para meu filho com o governo do estado. Chegamos na cidade em junho deste ano. Foi a primeira vez que a gente viajou de avião”, complementa. Chegaram no Dom Vicente Scherer, onde a assistente social do hospital lhes informou sobre a pousada do Via Vida. E é lá que o menino ficou aguardando o seu tão sonhado transplante. No entanto, o pai, que seria o doador do rim para o filho, descobriu durante exames que estava com câncer de próstata e precisava ser operado urgentemente. Operou-se e ficou em recuperação. Como uma catástrofe, essa notícia afetou toda a família, mas não abalou a esperança do menino, que continuou confiante em ter uma vida normal, sem tanto isolamento. “Meu maior sonho é poder voltar para minha cidade, abraçar a minha mãe, brincar com meus irmãos”, dizia o garoto. No dia 22 de setembro, por volta das 23h, o telefone da pousada tocou: era do Hospital Dom Vicente Scherer avisando a Valdenor que levasse seu filho urgentemente para o hospital porque havia surgido um doador compatível. No mesmo dia, Donizete recebeu o transplante. Teve uma ótima recuperação e recebeu alta

Milton não vê a hora de estar recuperado e poder encontrar a fil e s i e

38

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 036 a 039 - dupl a 09 - t r a ns pl a nt es - m a r ia na e va nes s a .indd 38

2/12/2009 09:28:45


no dia 12 de outubro, bem no dia das crianças. “Nunca estive tão feliz em toda minha vida. Meu filho está saudável, finalmente vai poder ter uma vida como qualquer criança. Agora a gente está contando os dias para refazer os exames e retornar para nossa cidade”, diz Valdenor. “Eu gostaria muito de agradecer a família que doou o órgão para meu filho, mas infelizmente não sabemos quem são”, complementa. O médico nefrologista e coordenador de transplantes da Santa Casa, Valter Garcia Duro, explica que já faz alguns anos que não são divulgados dados a respeito do doador. “Há alguns anos, quando se doava, se a família quisesse saber, poderia, mas estava dando muitos problemas. Quem perdia um parente via a extensão dele no transplantado, então acabava criando vínculos desnecessários, havia uma certa cobrança, uma certa pressão.” A lista de espera para cada órgão é feita por Estado, e os órgãos são divididos pelo tipo sanguíneo, menos as córneas, que entram numa lista geral por não precisar de tipagem sanguínea. Para um transplante de rim, o melhor doador é aquele que, além da compatibilidade do tipo de sangue, tem os antígenos de histocom-

patibilidade (membranas de quase todas as células do corpo) mais semelhantes ao receptor. Esses antígenos são determinados através de um exame de sangue que se chama tipagem HLA. Já o transplante de fígado é feito conforme a gravidade do paciente. Quem estiver em estado mais grave será o primeiro da lista. O mesmo acontece em relação ao coração. A única diferença está em relação ao peso do doador. Por exemplo, se o doador tiver 90 kg, poderá receber o órgão quem tiver 20% a mais ou a menos deste peso, no caso uma pessoa entre 70 e 100 quilos. O transplante de pulmão é feito também de acordo com a gravidade. Precisar somente de um pulmão ou de dois, por exemplo, é um dos critérios de escolha, além do tamanho da caixa toráxica. No Rio Grande do Sul, 1.921 pessoas aguardam na fila de espera para um transplante. Esse ano foram realizados, até o mês de agosto, 824 transplantes no Estado. O número é pequeno e muita gente ainda espera por essa chance. Para ser doador, é muito simples, basta informar a família. Assim, caso o pior aconteça, eles farão sua vontade. Doar é um transplante de vida, uma generosidade para com o próximo.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Doar e receber um órgão são atos que acabam mexendo com os sentimentos humanos de uma maneira explosiva, gerando consequências intensas. Envolve ética e nos faz pensar no papel social de cada um no mundo. Quando fomos entrevistar as fontes, ficamos ressabiadas quanto à recepção deles conosco. Se iríamos nos contar tudo, se ficariam tímidas ou começariam a chorar. Enfim, tivemos um retorno muito bom, além de modificar nossa maneira de pensar. Aprendemos que somos tão frágeis diante dos acontecimentos corriqueiros da vida que, quando nos deparamos com algo extremamente sério, como esperar por um órgão, a vida deve ser encarada com tranquilidade e firmeza. Entrevistar essas pessoas foi gratificante porque são simples, amorosas, cheias de esperança e muita força de vontade para encarar os acontecimentos graves da vida. Tivemos facilidade para encontrar as fontes e ter acesso a cada uma delas, o que nos ajudou bastante para finalizar a reportagem. Na hora de começarmos a escrever a reportagem, ficamos preocupadas em não tornar o texto direito demais e nem muito emotivo, procuramos o meio termo.

Donizete, agora com um novo rim, espera ter uma vida normal

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 036 a 039 - dupl a 09 - t r a ns pl a nt es - m a r ia na e va nes s a .indd 39

39

2/12/2009 09:28:49


encontros despedidas& novo mundo

PARA ALÉM DO AMOR Anne Marie e Suely deixaram seus países para ir em busca de uma nova vida TEXTO| CAMILA SCHAFER e FABIANA REINHOLZ FOTOS| EMANUELE SPIES

40

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 040 a 043 - dupl a 01 - pa ís - ca m il a e f a bi a na .indd 40

3/ 12/2009 16:32: 21


No Brasil, a francesa Anne Marie criou um centro para abrigar crianças carentes

A

tentativa de construir uma vida diferente ou de dar a ela um novo sentido leva muitas pessoas a se despedirem daquilo que conhecem como seu mundo. No decorrer desse caminho, muitos encontros e desencontros, alguns marcados por sorrisos, outros por lágrimas. “O intuito de um novo desafio, uma nova perspectiva, muitas vezes é necessário e isso está presente também nessa possibilidade de mover-se, de ir ao encontro, de enfrentar uma situação desconhecida”, analisa Denise Macedo Ziliotto, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. Enfrentar o desconhecido é o ponto para onde convergem duas histórias distintas, mas permeadas e unidas pelo mesmo sentimento: o amor. O rosto marcado e os cabelos grisalhos são o reflexo da vida de Anne Marie Crosville. Uma simpática francesa de 59 anos, dos quais 21 no Brasil, que dedica seus dias a ajudar crianças e jovens a redescobrirem sua identidade. Na casa onde vive, livros e lembranças são testemunhos da caminhada de Anne.

Sua história começou na cidade de Bricquebec, na Normandia. Filha de agricultores, de formação católica, aos cinco anos já afirmava aos missionários que voltavam da África: “Quando crescer, serei missionária como vocês”. Com esse ideal, formou-se em pedagogia e passou a trabalhar em um instituto para crianças com problemas familiares e de aprendizado. Mas ainda não era o suficiente, o desejo era bem maior - ajudar as pessoas pelo mundo. A oportunidade veio aos 23 anos, quando foi para o México lutar pela demarcação das terras dos índios Otomis. “Quando tu és jovem, sonhas muito. Eu sou muito idealista. Aprendi a ser realista quando me dei conta que não sabia falar a língua, não conhecia nada”, lembra Anne. Mesmo com as dificuldades, ela foi viver com os índios, conhecer o seu dia-a-dia. “Foi muito difícil, comecei a me desprender da minha cultura, da minha vida, do conforto. Uma loucura”, diz a francesa. Depois de passar um ano com os índios e criar uma escola numa favela de Guadalajara, no México, onde perma-

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 040 a 043 - dupl a 01 - pa ís - ca m il a e f a bi a na .indd 41

41

2/12/2009 09:33:

29


encontros despedidas& novo mundo

O Instituto Infanto-Juvenil Luiz Itamar oferece i e s s ofi in s cerca de 100 crianças

neceu sete anos, Anne entrou na guerrilha em El Salvador. Lá, seguiu nas frentes de guerra como educadora popular, a fim de ajudar o povo a se libertar pela educação. Expulsa do país, passou a ser considerada terrorista e procurada pela CIA. Com medo de ser presa, sua única saída foi voltar com outra identidade para a França. Foi lá que, em 1985, conheceu Luiz Itamar, morador de Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul. Com o brasileiro, que já havia sido menino de rua e era tetraplégico, iniciou uma grande história de amor. O sonho em comum de fundar um centro para abrigar crianças carentes foi realizado três anos mais tarde, quando vieram para o Brasil e montaram o espaço em uma pequena casa. Itamar não pôde acompanhar a continuidade do projeto que tinham planejado. Em 1990, faleceu por causa de complicações da esclerose múltipla. Nesse momento, Anne se sentiu desamparada, mas o amor que tinha plantado havia dado frutos. Vendo a situação da francesa, as crianças a abraçaram e pediram que ficasse. Com a ajuda de amigos de seu país e das crianças, ela fez da pequena casa o Instituto Infanto-Juvenil Luiz Itamar, que hoje atende 100 alunos através de oficinas de música, artesanato, pintura, entre outras. A trajetória de Anne é permeada pelo intuito de resgatar a identidade cultural das crianças de todas as raças e etnias. “Todos temos que aprender uns com os outros. Não há ricos nem pobres, somos um mesmo povo, que tem que crescer junto”, afirma a idealista de sorriso doce. Mesmo com o passar dos anos e a saudade da família, ela segue cultivando e plantando amor em forma de sonhos concretos.

À procura do futuro Foi também por amor que Suely Tigre deixou sua terra natal. A promessa de uma vida melhor para a família, nutrida pela proposta de um emprego em Portugal, fez com que seu marido a deixasse – junto com as duas filhas, na Bahia. Era 2004, e Danilo Gomes Silva fez parte dos milhares de

42

brasileiros que deixam o país à procura de emprego em terras europeias. Infelizmente, a esperança foi dando lugar à incerteza, conta tristemente Suely, hoje com 28 anos. “Chegando a Portugal, ele falou que nos buscaria, mas foi tudo mentira. Ele arrumou outra mulher lá”, lembra. Passando dificuldades por causa do pouco dinheiro que o marido enviava, enfrentando assaltos e até um episódio de assédio sexual, Suely e suas filhas foram morar com sua mãe. No final de 2007, decidiu ir junto com sua cunhada para a Espanha, pois achava que lá teria mais possibilidades de emprego. Deixou as filhas, de três e quatro anos, com a avó. Seu objetivo era conseguir dinheiro para a casa própria. Chegando a Madrid, sem estrutura e sem falar o idioma, as dificuldades começaram a aparecer. “Não conhecíamos nada, ficamos perdidas, vivendo a pão e leite. Nem caminhávamos na rua, porque tínhamos medo de nos perder”, conta Suely. Vivendo entre um “bico” e outro, ela conseguia apenas o dinheiro suficiente para o aluguel. “Eu ia à igreja pedir alimentos toda a sexta-feira. Eles doavam e eu comia durante a semana. Às vezes, não dava pra semana toda e eu ficava com fome”, explica. Entre lágrimas, a baiana conta que, além da fome, enfrentou humilhações nos trabalhos que conseguiu e chegou a passar frio na rua quando não tinha onde morar. Então Suely recebeu um telefonema da irmã, dizendo que sua mãe estava muito doente e que ela precisava voltar. Nesse momento, teve de recorrer ao ex-marido, que ainda estava em Portugal, para pedir o dinheiro da passagem. “Chegando lá, descobri que ele era alcoólatra e não tinha lugar fixo pra morar. A situação dele era pior do que a minha. Entrei em desespero”, conta. Depois de conseguir um trabalho e ficar em Portugal por três meses e meio, ela conseguiu voltar para a Bahia, em março de 2009, juntamente com o marido. A recepção das filhas foi

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 040 a 043 - dupl a 01 - pa ís - ca m il a e f a bi a na .indd 42

2/12/2009 09:33:

36


calorosa. Entre beijos e abraços, pediram que o pai ficasse e, assim, os quatro estão vivendo, sem a tão sonhada casa, mas juntos.

Adeus às origens Afinal, por que algumas pessoas têm mais facilidade para se desprenderem de suas raízes? De acordo com a psicóloga Denise Ziliotto, as ações humanas são complexas e variam de acordo com uma gama de condições. “A facilidade em desapegar-se ou não está mais relacionada às características das relações que a pessoa estabelece com os outros”, afirma. Segundo ela, de um lado, pode existir a segurança e a confiança com as pessoas próximas, fazendo com que a despedida e o desapego se tornem mais difíceis. De outro, a superficialidade de algumas relações pode fazer com que o indivíduo se arrisque mais, em função de uma percepção reduzida da perda. Trabalho e formação profissional são os principais motivos para as pessoas deixarem o local onde vivem, principalmente para trocarem de país. Os desafios são constantes, como se percebe nas histórias de Anne e Suely. “Refazer uma série de referências é o maior desafio - sejam elas afetivas, profissionais, culturais, de mobilidade e mesmo pessoais”, aponta a psicóloga. Ela explica que cada momento da vida é diferente e muitas vezes sem previsibilidade. “Às vezes acontece das pessoas passarem a relativizar seus valores e mesmo reavaliar os conceitos anteriores, pois vivem a sensação de serem ‘estrangeiros’ diante da vida, passando a estranhar, se surpreender e a lidar diferente com uma série de acontecimentos e experiências”, analisa Denise. Muitas perguntas e incertezas ainda povoam a cabeça de pessoas que se despedem de suas origens e encontram o “novo”. Se valeu ou valerá a pena, ninguém sabe. Talvez seja como Renato Russo disse certa vez: “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando fomos ao encontro de Anne Marie, a simpática senhora nos esperava no portão de seu sítio. Até seu cachorro nos recebeu com alegria! A casa da francesa, colorida, guarda cada pedacinho dos lugares que visitou, em forma de artesanato. Durante a conversa, um pensamento vinha em nossa cabeça: “Como essa mulher, depois de tudo que passou, consegue ter a mesma vontade, a mesma garra da juventude?”. Tomamos um chá com biscoitos e conhecemos o recanto da grande idealista. Saindo de lá, a sensação era a mesma entre nós: uma grande vontade de ajudar os outros, de querer mudar o mundo! Já a história de Suely Tigre foi diferente. Tínhamos certeza de que seria uma grande história de superação, mas também de sofrimento e tristeza. Falamos com ela por telefone, mas é quase como se estivéssemos frente a frente. A baiana chorava ao lembrar os momentos tristes, mas ao mesmo tempo foi muito forte para nos contar o que aconteceu e para superar as dificuldades. No final, fica o exemplo dessas duas lindas histórias.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 040 a 043 - dupl a 01 - pa ís - ca m il a e f a bi a na .indd 43

43

2/12/2009 09:33:

49


encontros despedidas& infância

A VIDA NO PICADEIRO Amor e trabalho movem família que encontrou no circo a realização de um sonho TEXTO| FERNANDA POLETTO e SABRINA SCHÖNARDIE FOTOS| JOÃO DE QUEIROZ

I

magine um jantar em família. Na cozinha, a mãe chama os filhos para que sentem à mesa, enquanto o pai, que chegou cansado do trabalho, beija a esposa e espera que todos se acomodem para poder comer. Agora imagine que um dos filhos, vestindo roupa de mágico, está testando nós em uma corda e que a filha mais nova, usando uma roupa de bailarina, anda de um lado para outro com um bambolê. Certamente em uma família comum, os pais pediriam para que as crianças deixassem as brincadeiras de lado e fossem jantar. Mas em uma família circense esta cena é bastante habitual, principalmente quando antecede a um espetáculo, até porque o pai e a mãe desta família também estão fantasiados. Há dez anos, esta é a vida da assistente de picadeiro Franciele Ramos Ortiz, que aos 16 anos, recém saindo da adolescência, foi ao encontro do seu sonho e optou por viver dentro de um trailer, trabalhando em um circo. Ela teve uma infância tranquila na cidade de Cristal, localizada na Zona Centro-Sul do Estado, a 154 quilômetros de Porto Alegre. Todos os circos que passavam por Cristal acabavam se instalando em um terreno localizado em frente à sua casa. Franciele cresceu vendo as lonas sendo erguidas, e seu sonho de trabalhar no mundo circense foi aumentando. Até o dia em que o circo Olimpicus, que estava se apresentado na cidade, levantou acampamento. Franciele não teve dúvidas. Resolveu ir embora junto, sem se despedir de ninguém. Ela não poderia deixar de realizar um sonho de in-

44

fância. E também, por surpresa do destino, se apaixonou por Alan, mais conhecido como Palhaço Pirulito, filho mais velho de Seu Getúlio, o palhaço Dedé, dono do circo. No começo, a família, principalmente seu pai, não aceitava o fato de ter uma filha se relacionando com um circense, pois, para ele, pessoas que trabalhavam no circo não eram vistas com bons olhos. Franciele até acha graça quando conta que o conselho tutelar de Cristal foi acionado. Ela teve que voltar para casa, mas rapidamente encontrou um modo de reencontrar seu amado. Com a ajuda da mãe, inventou para o pai que viajaria a outra cidade para visitar uma amiga e não voltou. “Adotei uma filha, para não perder o filho”, conta Dona Sirlei, a sogra de Franciele. Apesar das mágoas, em momento algum ela menciona estar arrependida de sua escolha. Com uma rotina bastante corrida, divide seu tempo entre os ensaios das apresentações, a criação de novos números, o cuidado e a manutenção das roupas de trabalho, além da atenção ao marido e aos os filhos, Gabriel e Giovana, principalmente em relação aos estudos. Seu trailer, com um toque feminino, tornou-se uma casa bastante aconchegante apesar do espaço restrito.

Quando o trabalho vira brincadeira Em uma ida ao circo, qualquer adulto volta a ser criança, nem que seja por alguns momentos. Brincar, comer pipoca, dar boas gargalhadas e até sonhar. Os adultos que trabalham no circo vivem essa transformação todos os dias. Podem soltar a

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 044 a 049 - dupl a 14 - inf a ncia - f er na nda e s a br ina .indd 44

2/12/2009 09:39: 32


Giovana mostra suas habilidades sob o olhar atento do irmão, Gabriel

Três gerações de palhaços - Dedé, Pirulito e o pequeno Alisson divertem a plateia P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 044 a 049 - dupl a 14 - inf a ncia - f er na nda e s a br ina .indd 45

45

3/ 12/2009 16:33:

49


encontros despedidas& infância

Franciele e Alan i e o os fil os Gabriel e Giovana, num trailer

46

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 044 a 049 - dupl a 14 - inf a ncia - f er na nda e s a br ina .indd 46

2/12/2009 09:39: 57


P R I M EI RA I M P R ES S ร O 2 0 0 9 /2

pรกg 044 a 049 - dupl a 14 - inf a ncia - f er na nda e s a br ina .indd 47

47

2/12/2009 09:40:07


encontros despedidas& cartola

48

P RIM E IRA IM P RE S S ร O 2 0 0 9 / 2

pรกg 044 a 049 - dupl a 14 - inf a ncia - f er na nda e s a br ina .indd 48

2/12/2009 09:40:22


imaginação sem medo de serem ridicularizados. Para eles, fazer com que o público volte a ser criança e brinque na sua companhia é o objetivo a ser alcançado quando sobem no picadeiro. Este sentimento não é diferente entre os pequenos itinerantes que trabalham no circo. Sem deixar de serem crianças, já vivem uma rotina de gente grande. Eles têm as mesmas responsabilidades dos pais e avós. Além das apresentações que às vezes chegam a três por dia, ainda ensaiam uma hora e meia por dia, ajudam na criação de suas personagens e aprimoram seus números. Também vendem comidas e bebidas para o público, alternativa que ajuda a manter o circo. Mais que se divertirem, eles são conscientes da sua importância para que o circo continue de pé. Mas não é só isso que torna essas crianças diferentes das outras. Elas vivem na corda bamba entre o sonho e a realidade. São mágicos, homens-pássaro, trapezistas, palhaços. Elas são a materialização dos desejos de todas as crianças. É comum, após as apresentações, ver outros pequenos em torno dos artistas mirins para prestigiá-los e até mesmo interrogá-los sobre algumas curiosidades. “Já chegaram até a nos perguntar se a gente come”, conta Alex, 15 anos, malabarista. Dona Sirlei, dona do circo, diz que conversa bastante com todos para que não se tornem afetados com o fato de serem artistas. Ela também faz questão que eles sejam bons exemplos, que não sejam reconhecidos com maus elementos do circo, pois infelizmente, ainda hoje, como ela mesmo diz, ainda existe preconceito em relação aos profissionais circenses. Dona de uma elasticidade incrível, Giovana, seis anos, filha de Franciele, se apresenta como contorcionista e boneca de pano. Quando tinha quatro anos, a família percebeu que a pequena tinha talento e começou a treiná-la. Ela conta que adora o que faz e que a ideia de criar o número partiu dela. Gosta de ensaiar e vê os treinos como mais uma brincadeira. E não perde a oportunidade de se exibir nas novas escolas quando os colegas ficam sabendo que ela é circense. Seu irmão, Gabriel, 8 anos, preferiu seguir a carreira de mágico.

Vida nas alturas E foi de brincadeira que Alexandre dos Santos, o homem pássaro de 12 anos, aprendeu a voar. Com dois anos começou sua carreira no circo como palhaço, aos cinco fazia chicote, mas foi aos dez que descobriu que sua vocação estava nos tecidos. O filho mais novo de seu Getulio diz que sonha em seguir os passos do pai e que só optaria por outra profissão se fosse para ser médico, para poder cuidar da sua família. Já tem várias fãs e uma comunidade no Orkut. Quem observa de fora, talvez se questione se artista de circo leva uma vida normal. Uma preocupação constante para a família são os estudos das crianças. Mesmo ficando pouco tempo em cada lugar, os pais fazem questão que os pequenos frequentem a escola. Para isso, eles têm o respaldo de uma lei que garante que os filhos dos profissionais itinerantes tenham vaga assegurada em qualquer escola mediante a apresentação de um certificado da escola de origem.

Apesar disso, as crianças encontram algumas dificuldades para estudar. Em cada escola que chegam, é uma matéria diferente que está sendo ensinada. No entanto, para o malabarista Alex, que atualmente está cursando a 8ª série do Ensino Fundamental, isso não é um empecilho para aprender. Ele conta que não acha difícil acompanhar diferentes conteúdos. “Tendo vontade é a conta”, diz o malabarista. Quando se apresentam, é possível ver nos olhos daqueles artistas mirins o prazer de estarem no palco e a satisfação de ouvirem os aplausos do público, um brilho que só tem quem sabe que está realizando um sonho. Um sonho mágico que a cada espetáculo faz com que os adultos da plateia tenham um novo encontro com a sua infância, e se despeçam por algum tempo de uma vida regrada e até mesmo sem graça. Talvez o público se questione: “Será que essas crianças não estão perdendo sua infância trabalhando tão cedo?” Agora pergunte a elas se deixariam de trabalhar por algum momento, ou se estão arrependidas de seguir o ramo da família. A resposta certamente será não. Franciele que o diga, pois ela preferiu ficar longe dos pais, mas perto da magia do picadeiro.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Foram tantas as ideias, que poderíamos titular nossa trajetória como “a procura da fonte perfeita”. Não é simples optar por uma pauta sem ter noção de onde encontrar a fonte. Inicialmente, nossa matéria se tratava da perda da infância devido ao trabalho e ao encontro com a maturidade. Pensamos em entrevistar a mini miss mundo, depois optamos pelas crianças catadoras de lixo, mais tarde por um senhor que compra materiais recicláveis e acabamos passando horas em meio ao mal cheiro à beira de um arroio. A segunda parte de nossa matéria seria entrevistar uma universitária que mora sozinha, com o intuito de saber como foi seu processo de amadurecimento. Mas algo nos dizia que ainda não era esse o foco. Foi quando vimos que havia um picadeiro em nosso caminho. E como diria nosso professor Juan, “fonte perfeita é aquela que rende matéria”. Entramos não somente no picadeiro, mas também na vida da família Santos. Pessoas que nos receberam com simpatia e disposição para falar. Melhor ainda: tinham uma bela história de vida para contar.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 044 a 049 - dupl a 14 - inf a ncia - f er na nda e s a br ina .indd 49

49

2/12/2009 09:40:31


encontros despedidas& fama

DEU PRA TI, VEM PRA CÁ

Os anos passam, o sucesso chega e o anonimato, com o qual era possível se proteger, vai embora TEXTO| MICHELLE RAPHAELLI e PRISCILA ZIGUNOVAS FOTOS| EMANUELE SPIES

Com 30 anos de estrada, a dupla Kleiton e Kledir administra bem a trajetória de sucesso e a rotina de viagens

50

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 050 a 053 - dupl a 13 - s uc es s o - pr is cil a e m iche l l i.indd 50

3/ 12/2009 16:35: 01


P R I M EI RA I M P R ES S ร O 2 0 0 9 /2

pรกg 050 a 053 - dupl a 13 - s uc es s o - pr is cil a e m iche l l i.indd 51

51

2/12/2009 09:45:54


DIVULGAÇÃO

encontros despedidas& cartola

A banda Papas da Língua faz sucesso nas trilhas das novelas depois de cair no gosto de Jayme Monjardim

E

m 21 de agosto de 2005, a banda Papas da Língua fez um show em Três Forquilhas, município do Litoral Norte do estado com pouco mais de três mil habitantes. Chovia muito. Um grupo de cinco fãs da banda, vindo da Grande Porto Alegre, desceu no início da estrada de chão que dá acesso à cidade, depois de uma viagem no ônibus errado e uma carona em um outro, e pôs-se a caminho do local da apresentação. Eles caminharam quatro quilômetros sob a chuva, cuidando para não molhar o cartão e os presentes que levavam para o baixista Zé Natálio, que fazia aniversário naquele dia. Ao final da apresentação, o baixista recebeu dos fãs uma touca e um chaveiro do Internacional. “Não acredito que vocês vieram até aqui!”, disse. Essa frase foi muitas vezes ouvida pelo grupo, que fazia questão de ir a todos os shows - às vezes dois num mesmo final de semana, em cidades tão distantes quanto Pelotas e Camaquã. As cinco pessoas que estavam na cidadezinha são integrantes do fã clube Vem pra cá, fundado pela porto-alegrense Sandra Castro, hoje com 42 anos, nove deles acompanhando de perto a carreira da banda. Sandra conheceu os Papas da Língua em 2000 e ficou impressionada com a atenção que davam aos fãs. “Eles são maravilhosos. Dão muita atenção, diferente de outras bandas”, elogia. Em 2005, decidiu fundar o fã clube. A Papas da Língua começou em 1993, depois que o vocalista Sérgio Moacir Garcia Pereira, o Serginho Moah, saiu de Uruguaiana para morar em Porto Alegre. Numa noite, o guitar-

52

rista Léo Henkin ouviu-o cantar num bar da Capital. “Gostei muito do que ouvi e o convidei para ser o vocalista do Papas, pois eu já havia falado com o Pezão e o Zé Natálio sobre fazermos uma banda pop”, conta Léo. “Depois de um tempo, criamos o nome da banda, que foi uma escolha baseada na sonoridade. Era bem pop, tudo a ver com o tipo de som que a gente queria fazer”, explica. O primeiro CD, Papas da Língua, foi lançado em 1995. Com o segundo, Xa-la-lá, de 1998, a banda conheceu o sucesso na região Sul. O reconhecimento nacional, porém, só veio em 2006, com a inclusão da música Eu Sei, do CD Babybum, na trilha sonora da novela Páginas da Vida, da Rede Globo. Naquele ano, chegou às mãos do diretor Jayme Monjardim o DVD Acústico Ao Vivo Papas da Língua. “Por essas coisas imprevisíveis da vida - e também por ser o Jayme um cara antenado e que está sempre de olho em novos artistas - ele acabou assistindo ao DVD e gostou muito”, conta Léo Henkin. Eu Sei estourou no Brasil inteiro e até em outros países, um marco na carreira da Papas, que em 2009 emplacou outra canção, Vem Pra Cá, na novela das oito, Viver a Vida. Com o sucesso, porém, vêm de carona um aumento da exposição, da cobrança e das críticas, além do risco da fama subir à cabeça do artista. “O pior de ser famoso é ficar deslumbrado com a fama, não saber lidar com isso”, avalia Léo. Para a psicanalista Christiane Ganzo, co-autora do livro A vida como ela é para cada um de nós: em busca do eu-caleidoscópio, a fama repentina e a despedida do anonimato são questões complicadas de se lidar. “Toda despedida tem perda”, expli-

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 050 a 053 - dupl a 13 - s uc es s o - pr is cil a e m iche l l i.indd 52

2/12/2009 09:45:57


ca. “Embora as pessoas queiram ter sucesso e trabalhem para isso, o anonimato é uma proteção. O erro está preservado, a pouca habilidade está preservada, a pessoa não está tão pressionada com o resultado.” Com 16 anos de carreira, a banda impressiona pela longevidade. “Para dar certo e permanecer juntos tanto tempo, a relação entre eles precisa de muito respeito”, afirma o empresário da Papas, Ilton Carangacci, que também trabalha com as bandas Chimarruts e Reação em Cadeia.

O povo do Sul na bagagem Trinta anos desde a formação da dupla Kleiton e Kledir, e a história é celebrada com o lançamento de Autorretrato, em julho de 2009. O novo álbum traz para os fãs a revitalização dos sucessos antigos e canções inéditas, o que não acontecia desde 1987. O início da carreira dos irmãos foi na cidade de Pelotas, onde eles moravam e estudavam. Sérgio Siqueira, jornalista e ex-vizinho da dupla, conta que tudo começou no final dos anos 60, com um festival promovido pela rádio da Universidade Católica de Pelotas em que foram finalistas. Nos anos 80, aconteceu o que os moradores de Pelotas já previam: Kleiton e Kledir lançaram o primeiro trabalho como dupla, com as músicas Maria Fumaça e Deu Pra Ti. O talento dos irmãos se consagrou e os dois guris levaram a cara e o sotaque do povo do Sul na bagagem. O primeiro trabalho rendeu viagens internacionais e parcerias com cantores de sucesso. Em 1987, a dupla “deu um tempo”. Ficaram separados por sete anos, mas os sucessos continuaram tocando nas rádios. “Quando nos reencontramos, havia todo um novo cenário na música brasileira, com releituras e coletâneas. Isto foi muito motivado pela entrada dos CDs. As nossas coletâneas venderam mais de meio milhão de cópias. Nosso retorno foi em 1996“, conta Kledir. A dupla recebeu algumas críticas pelas regravações. Para a psicanalista Christiane Ganzo, o encontro do sucesso é muito particular e bastante delicado. “A gente nunca sabe o que é que os outros vão gostar, o que é que os outros vão aplaudir”,

explica. “A percepção do fracasso e da frustração é intensa para o psicológico de qualquer pessoa. Artistas que foram muitíssimo bem sucedidos em alguns momentos e criaram letras fantásticas no momento seguinte se sentem vazios, sem ideias”. Segundo a psicanalista, a exposição a que o artista é submetido repentinamente pode fazê-lo se atrapalhar com as expectativas. “As esperanças podem ser alvo de desconforto, de tristeza, de decepção”. Com Autorretrato, Kleiton e Kledir demonstram que o reencontro com o criar, com o idealizar o sucesso, está muito vivo na dupla. “O passado já foi suficientemente revisitado. É o momento de retomar o fôlego para a ousadia e lançar o inédito. A hora é essa“, confessa Kledir. O sucesso dos irmãos abriu caminho para outras bandas conterrâneas. Para Ilton Carangacci, o rótulo do Sul não é um peso. “Em outubro, estava com a Chimarruts na entrega do Video Music Brasil em São Paulo e, na hora do aquecimento, olhei pro lado e lá estava o pessoal da Fresno, da Pública, da Cachorro Grande e da Pata de Elefante, todos recebendo seus prêmios. Acho que o chimarrão não está atrapalhando”, brinca o empresário. Os festivais que dependem de votação do público pela internet são bons exemplos e demonstram a qualidade e boa aceitação da música do estado. É o caso da banda de rock Frida, da cidade de Gravataí. O baixista da Frida, Jerônimo Silvello, conta, com emoção, que desde 2005 a banda vem ganhando espaços, mas a participação em um festival como o U>Rock, de bandas universitárias, foi decisiva na valorização do grupo. “Não imaginávamos que ganharíamos o primeiro lugar, ainda mais concorrendo contra o Brasil inteiro.” A importância da divulgação, das novas ferramentas que surgem e de novas formas de se relacionar com público também chamam a atenção nos dias de hoje. Fábio Codevilla, comunicador da Rádio Itapema FM, enfatiza que a internet é uma ferramenta que beneficia o meio musical, os lançamentos e as divulgações dos artistas. “Mas não basta divulgar para ultrapassar as barreiras e conseguir encontrar o caminho do sucesso. É preciso ter talento, é preciso entender de música.”

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A rotina de um artista é bastante tumultuada. É preciso dedicarse à música, aos fãs, à imprensa. Para que esses relacionamentos sejam tranquilos e não atrapalhem a rotina, é necessário confiar nos empresários, nos assessores, em uma boa organização de agenda. Nossa primeira impressão foi boa, os primeiros contatos telefônicos foram positivos, nossos objetivos seriam fáceis de cumprir, até que recebemos o primeiro telefonema desmarcando os encontros agendados. Entendemos que a pauta seria complexa e exigiria paciência e pesquisa, afinal, ser famoso, administrar o sucesso e lidar com o fato de não ser mais uma pessoa comum são temas sensíveis

para quem vive a situação. Papas da Língua, a banda que, aos 15 anos de carreira, chega ao topo das paradas de sucesso, trata bem os fãs, mas, com a agenda complexa, não foi tão acessível a nós. Kleiton e Kledir são acessíveis à imprensa, mas distantes - morar no Rio de Janeiro dificulta o contato com fãs gaúchos, que já parecem minoria perto dos admiradores de outros estados. A Frida, salvesalve Frida, já no primeiro contato, deu respostas imediatas. Mas quem é a Frida? A banda regional, da cidade de Gravataí. Eles, que buscam ainda o sucesso, viram na entrevista uma oportunidade, um espaço para contar histórias e serem notados.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 050 a 053 - dupl a 13 - s uc es s o - pr is cil a e m iche l l i.indd 53

53

2/12/2009 09:45:58


encontros despedidas& transexualidade

Desde os 7 anos, Crystiane sente-se mulher. Quando criança, já usava maquiagem e vestia-se com roupas de sua mãe

54

pág 054 a 057 - dupl a 02 - t r oc a de s exo -

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

ca m il a e m a r cio.i ndd 54

3/ 12/2009 16:37: 25


SENTIR É MAIOR DO QUE SER Transexuais falam sobre sofrimentos e alegrias antes e depois da mudança de gênero TEXTO| CAMILA VARGAS e MÁRCIO SARDÁ FOTOS| EMANUELE SPIES

N

arciso não deveria ter refletido sua imagem nas águas. Ver-se foi seu pecado. Aprisionou-o eternamente em sua própria beleza. O espelho pode ser o vilão, o grande mal de qualquer história. O reflexo não condiz com os sentimentos, ele apenas mostra uma realidade física. Nascer em um corpo, mas ter a nítida sensação de que ele não lhe pertence, é o drama vivido pelos transexuais. Para Narciso, o encanto foi com a sua perfeição estética, já para quem sofre com o transtorno de gênero, a frustração inicia quando se veem diante de uma imagem que não corresponde aos seus desejos e vontades. Este transtorno de sexualidade se revela muito cedo, fazendo com que os pais não saibam lidar com o problema na infância e na

adolescência. Imaginam que é normal, até certo ponto, o filho ser diferente de outros indivíduos do mesmo sexo. As crianças sofrem quando começam a perceber os primeiros traços da sexualidade inversa, se afastando de seus colegas nas atividades comuns, tendo vergonha de se expor e de sair em público com demais jovens de sua idade. Crystiane de Oliveira, 36 anos, militante do Núcleo de Transexuais e Travestis do Rio Grande do Sul, aos sete anos costumava se vestir com as roupas de sua mãe. “Ela não gostava e me batia. Um dia ficou tão braba que disse que, se eu fizesse isso novamente, me levaria no médico para ele cortar meu pinto com a tesoura. No outro dia me vesti e fiz a mesma coisa para que ela me levasse ao médico”, lembra Crystiane, que não mudou apenas o nome de batismo, mas também

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 054 a 057 - dupl a 02 - t r oc a de s exo -

ca m il a e m a r cio.i ndd 55

55

2/12/2009 09:51:47


encontros despedidas& transexualidade

o sexo. A morena alta, de cabelos longos e um olhar marcante, já foi chamada por algum nome masculino, o qual ela não revela, dizendo que essa pessoa morreu, é passado. No Brasil, a cirurgia é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina desde 1997. Algumas normas foram estabelecidas, de acordo com a Resolução CFM 1482/97. Como, por exemplo, a de que a cirurgia só pode ser realizada em hospitais universitários. Este é um dos motivos de o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) ser um dos pioneiros neste tipo de operação. Antes de o paciente efetuar o procedimento cirúrgico, deve passar por um acompanhamento assistencial multidisciplinar durante dois anos. Para isso, no início de 1998, o HCPA criou o Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig). O trabalho dos profissionais (psicólogo, assistente social, urologistas, psiquiatra e fonoaudiólogo) é preparar o transexual para essa nova vida e verificar quais as condições psíquicas e clínicas que os candidatos apresentam. Desta forma, tem-se uma certeza maior de que as mudanças trazidas com a cirurgia serão benéficas para o paciente. O órgão sexual biológico é desconstituído para a construção de outro, sendo uma ação irreversível. O urologista e coordenador do Protig, Walter Koff, explica que o processo cirúrgico é realizado a partir da genitália existente. “Para construir o clitóris, por exemplo, é utilizado parte da glande do pênis. Já a transformação de mulher para homem é bem mais complicada, porque não tem material suficiente. Então é

retirado material do antebraço para fazer o órgão”. O neofalo, como é chamado o novo membro, na maioria das vezes precisa passar por reparações cirúrgicas, devido à complexidade do procedimento. Há dois anos a cirurgia é custeada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), facilitando o acesso e a divulgação dessa doença (definição conforme a Classificação Internacional de Doenças - CID). Com isso, evita-se casos de auto-mutilação. Koff diz que a maioria dos pacientes tem ojeriza ao seu órgão sexual genético. Porém, esta não era a situação de Crystiane, que sempre sentiu prazer com a sua antiga genitália. Ela, no entanto, tinha a necessidade de mudar a última coisa que ainda lembrava a sua antiga identidade. “Os depoimentos mostram como a cirurgia inclui essa pessoa na vida social, porque ela tem uma história de discriminação, de estigma e até de violência”, ressalta a assistente social do Protig e doutora em transtornos de gênero, Esalba Silveira. Quando se troca de sexo, algumas mudanças são esperadas pelos pacientes. Alguns visionam um futuro cheio de ilusões, como o esquecimento da transexualidade. Segundo a psicóloga do Protig, Jaqueline Salvador, essa ideia de transformação total é que deve ser trabalhada para que não haja frustrações. “Existe uma fantasia de que a cirurgia é a solução para tudo. Há outros problemas que não se resolvem após a operação. Outros questionamentos continuam, no trabalho, no relacionamento, na vida familiar. Como, por exemplo, revelar ou não a transexualidade para os outros. A cirurgia apenas ameniza a situação

Júlia Maria, aos 22 anos, usará biquíni pela primeira vez sem se constranger com o seu corpo

56

pág 054 a 057 - dupl a 02 - t r oc a de s exo -

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

ca m il a e m a r cio.i ndd 56

2/12/2009 09:52:03


do transtorno de gênero”, explica Jaqueline. Mesmo sendo consciente dessas palavras, Crystiane se mostra eufórica quando fala de sua vida após a cirurgia, ocorrida em 2002. Não tem mais constrangimento em ficar nua na frente das pessoas, eliminou as roupas íntimas de seu guarda-roupa, tanto as antigas cuecas quanto as calcinhas e sutiãs. Gosta de se vestir com peças justas que mostram o seu corpo. Para ela, a sensação é de liberdade. “Parece que a gente nasce de novo. Mudou a minha autoconfiança, minha segurança, minha autoestima. Não é como acordar em um conto de fadas, mas tu te sentes completa”, relata Crystiane. Para a psicóloga Jaqueline, esse momento é um encontro de adequação com sentimentos que vêm desde a infância. A militante diz que foi uma despedida feliz e um encontro com o recomeço. “É mais importante sentir-se mulher do que ser mulher”, diz ela. Crystiane se reconhece atualmente como transexual e um ser humano mais completo. A felicidade encontrada por ela estimula outros casos a aguardarem ansiosos pela mudança.

À espera da transformação A ânsia de encontrar o novo sexo é vivida por Júlia Maria Marques Duarte, 22 anos. Foram muitos anos sem saber que banheiro público frequentar. “Sou mulher, não posso ir ao masculino, mas também sabia que não poderia ir ao feminino”, conta a pedagoga. A infância vivida com brincadeiras de meninas, junto com suas primas, foram os

primeiros indícios para os pais de que algo diferente acontecia com seu filho. A recusa das roupas e acessórios masculinos trazia inquietação para o transexual. “É um transtorno que causa muito sofrimento. Eles por muito tempo não têm identidade. Se sentem de uma forma e a realidade é outra”, explica a psicóloga Jaqueline Salvador. “Eu sabia que menino eu não era, mas menina também não, porque eu não tinha vagina. Então o que eu era?”. Ainda na pré-escola, aos cinco anos, Júlia se apaixonou por um garoto da turma. Ela não entendia porquê não podia ficar com ele. O tempo foi seu aliado na compreensão de sua identidade. O processo lento fez com que, aos 14 anos, Júlia se assumisse como homossexual. Porém, não se enquadrava exatamente nessa condição. Até hoje, não sente prazer com seu órgão sexual, não se toca, é apenas um incômodo constante. (Ver quadro) A cirurgia para Júlia é uma necessidade e não simplesmente um sonho que se conquista. “Eu vou ficar mais segura, na praia, na piscina. Vou poder me vestir sem medo, parar de me cuidar a toda hora. Meu corpo não condiz com o que eu sinto.” A partir deste momento tão esperado, Júlia vai escrever sua história para que comece a ter boas recordações no futuro. “Será uma despedida alegre, porque não tenho boas lembranças do passado”, declara. Ela segue em busca da sua metamorfose e de seu prazer, somando-se ao número de mais de 120 transexuais gaúchos que agora não cansam de admirar seu reflexo. Sem narcisismo, apenas com admiração e orgulho de seu caminho.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Jornalismo marginal. Essa foi a nossa definição quando andamos por sete quadras na tenebrosa BR-116. O interfone não funcionava e o número do celular de Cristyane não estava na agenda. Confusão, debaixo de um sol forte acompanhado de algum vento. A receptividade foi acima da esperada, por se tratar de assuntos íntimos e delicados. Momentos tristes e vivências que, ao serem revelados, mudaram a nossa visão sobre a transexualidade. Júlia Maria mostrava em seus olhos a felicidade que a espera daqui alguns dias. A sua feminilidade estava estampada em todos os detalhes estéticos. Essa reportagem mostrou o lado alegre de uma despedida, assim como a intensidade do encontro com a mudança de sexo. O “sentir” ficou evidente, é mais importante do que o “ser”. Incrivelmente, o jornalismo nos possibilita viver em diversos mundos e assim permite nos transformarmos em pessoas melhores, aproveitando aquela máxima de que “conhecemos de tudo um pouco” com base nas experiências vividas e caminhos que já passamos.

Sexualidade diversificada TRANSEXUALISMO: desejo de viver e ser aceito como uma pessoa do sexo oposto, comumente acompanhado por uma sensação de desconforto ou não pertencimento do seu próprio sexo anatômico. Submete-se a tratamentos hormonais e cirurgia para deixar seu corpo congruente com seu sexo preferido.

TRAVESTISMO: caracteriza-se pelo uso de roupas e acessórios do sexo oposto para desfrutar temporariamente a feminilidade ou masculinidade oposta ao seu gênero, mas sem qualquer desejo de uma mudança de sexo permanente, não submetendo-se a cirurgia de troca de sexo.

HOMOSSEXUALISMO: o termo homossexual significa “do mesmo sexo”. Pessoas que se interessam sexualmente por indivíduos do mesmo gênero são chamadas de homoeróticas, sem o desejo de mudar de forma física com hormônios e cirurgia. O termo “homossexual” não é mais usado, assim como o termo “opção sexual’ também não. Um homoerótico não escolhe ser gay, ele apenas é orientado (pela sua própria existência) a ser o que é. O termo correto é, portanto, “orientação sexual”. Fonte: psicóloga Daniela Dornelles Johnson

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 054 a 057 - dupl a 02 - t r oc a de s exo -

ca m il a e m a r cio.i ndd 57

57

2/12/2009 09:52:03


encontros despedidas& esquecimento

DE CORPO PRESENTE A cada dia, Edna tem o encontro e o desencontro com a própria memória TEXTO| BÁRBARA KELLER e MARIANA AGUIRRE FOTOS| ANDRESSA BARROS

P

orto Alegre, bairro Passo D’Areia, Rua Itapeva, n° 51. Neste local fica uma casa amarela, de dois pisos, com o jardim bem cuidado e uma pequena grade dividindo o terreno da calçada. Esta não é uma residência comum, e a placa no jardim anuncia: Novo Lar, Centro Geriátrico de Assistência e Repouso. É neste endereço que Edna Selma Mc Mannis Torres, 79 anos, mora desde setembro de 2008. Ela divide o espaço com outros 20 pacientes, muitos deles acometidos da mesma doença de Edna, o Alzheimer. Enquanto alguns idosos assistem à TV e outra senhora repete, insistentemente, a mesma frase - “Vem paizinho, vem” - , Edna caminha no andar de cima acompanhada de seu filho mais velho, Eduardo Torres, de 57 anos. Ela não o reconheceu. Com seus cabelos grisalhos, vestindo uma calça azul marinho e uma blusa de tom mais claro, Edna caminha pelo corredor apoiada no braço do filho. Seu corpo demonstra fragilidade, a magreza é resultado do avanço da doença. Seus passos são lentos, vacilantes. Antes do Alzheimer, caminhar era uma das atividades favoritas de Dona Edna. A esposa de Eduardo, Iael, conta que a sogra tinha uma rotina bastante ativa. Ela gostava de manter a casa em ordem e de fazer ajustes em roupas com seus apetrechos de costura. Mas a vida de Edna aos poucos foi sendo modificada. A diferença sutil entre esquecimentos e lapsos da idade, fez com que a família não percebesse que as falhas da memória tinham nome científico. Aos poucos esses esquecimentos se tornaram mais aparentes e as caminhadas, mais difíceis.

58

O filho Fernando, com quem Edna morava na época, fez um crachá com a identificação e endereço de sua residência para ela usar quando saía para caminhar. Sua esposa, Brigitte, diz que certa vez a sogra caminhou de sua casa, no bairro Três Figueiras até o Strip Center, próximo ao Terminal Triângulo na Avenida Assis Brasil, em Porto Alegre, um percurso de quase cinco quilômetros. Graças a identificação, a família foi avisada. Entretanto, antes da ideia do crachá, outro percalço aconteceu em uma das caminhadas de Edna, quando esta pegou um táxi para voltar à sua casa e não soube dar o endereço ao motorista. Por sorte, o condutor do veículo era do ponto que Eduardo costumava utilizar. Ele se lembrou de Edna e de seu endereço e a levou em segurança para casa. Eduardo conta ainda que sua mãe podia ficar lendo um jornal durante uma hora e, logo após, não lembrar o que tinha acabado de ler. Em outra situação, Edna foi 15 vezes à mesma loja para escolher o presente de aniversário de Iael, uma compoteira. Ela não lembrava que já tinha estado lá antes. Na própria clínica, minutos depois de fazer seu lanche, Eduardo pergunta se ela já comeu. Edna responde com firmeza: “Não, não comi”. O Alzheimer dificulta o armazenamento de novas informações, segundo a neurologista Liana Lisboa Fernandez. Quando tudo isso começou nem os familiares sabem. A cronologia dos fatos é incerta. Eduardo lembra, porém, que sua mãe sofreu um acidente em meados de 2002, onde, após uma queda, bateu a cabeça. Nessa ocasião ela ficou internada no Hospital Moinhos de Vento, quando os sinais do Alzheimer

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 058 a 061 - dupl a 16 - a l z he im er - ba r ba r a e m a r ia na .indd 58

2/12/2009 09:56:55


Com Alzheimer, Edna vive no seu prรณprio mundo

P R I M EI RA I M P R ES S ร O 2 0 0 9 /2

pรกg 058 a 061 - dupl a 16 - a l z he im er - ba r ba r a e m a r ia na .indd 59

59

3/ 12/2009 16:39: 20


encontros despedidas& esquecimento

A tĂŠcnica em enfermagem ajuda Edna a caminhar e conversa para ativar sua memĂłria

pĂĄg 058 a 061 - dupl a 16 - a l z he im er - ba r ba r a e m a r ia na .indd 60

3/ 12/2009 16:44:35


ficaram mais evidentes. “Ela olhava para a janela e enxergava paisagens dos Estados Unidos, ou então achava que estávamos em Passo Fundo, onde morou na juventude”, relata Eduardo. Edna já não sabia mais onde estava. Daquele instante em diante, a doença foi tomando conta, gradativamente. Ela foi se despedindo de seus afazeres, de sua personalidade, de sua família e de sua vida. Os familiares se viram obrigados a restringir determinadas atividades. Após esquecer o gás do fogão ligado algumas vezes, cozinhar ficou proibido. As caminhadas sozinhas também. Edna não aceitou muito bem os fatos. Nos momentos de crise, gritava na janela que estava presa e que sua família não a deixava sair. “A polícia chegou a bater na nossa porta para saber o que estava acontecendo”, relata Brigitte. A nora, que conviveu muitos anos com a sogra, diz que sempre teve uma ótima relação com Edna, mas que, após a doença, passou por momentos difíceis. A casa em que viviam era de dois andares, e Edna insistia em permanecer no segundo piso, o que, além de dificultar os cuidados da família, era perigoso para ela. Durante a noite, Edna levantava, mudava os móveis de lugar e acendia todas as luzes. Quando Iael e Brigitte tentavam lhe dar o remédio, Edna xingava e, muitas vezes, tentava agredi-las. Chegara o limite da família. Eles já haviam pesquisado algumas clínicas e resolveram que, naquele momento, era o melhor a fazer.

Universo particular Para ela, agora, só resta o que Eduardo chama de “seu mundinho”: um universo particular onde as pessoas que a amam acompanham de fora, sem entender ou serem convidadas para participar. Apesar da fragilidade aparente, quando sentada, Edna mantém uma postura altiva, com a cabeça erguida, uma das mãos pousada no braço da poltrona e a outra deslizando no queixo, como quem reflete sobre a vida. Talvez até esteja refletindo. Só não é possível descobrir com certeza. Sua fala não é compreensível. Mistura os três idiomas que falava com fluência antes da doença: inglês, alemão

e português. Brigitte instiga a sogra falando em alemão: “Frida, was will´st du?” (O que tu queres?). Edna não responde, permanece em silêncio, com o olhar perdido. Eduardo repete a pergunta, num tom mais alto. Edna parece compreender, repete a pergunta e depois responde: “Ja, ja” (sim, sim). Logo ela emenda mais algumas expressões desconexas em alemão “Alles gut hier” (tudo bem aqui) e “Alles rot” (tudo vermelho). Em seguida volta a falar em português: “Deixa, deixa...tem que limpar, passar um paninho nela por fora.” Palavras que para os outros provavelmente não fazem sentido algum, mas que, para ela, representam algum fragmento do passado. O presente não existe, o que quer que ela faça, ou diga, não lembrará no instante seguinte. Tudo que ela tem é o seu passado e alguns raros momentos de lucidez. A Edna que a família conhecia já não existe mais. Eduardo acredita já ter se despedido de sua mãe. Iael diz que sentiu muito ao ver a sogra com Alzheimer, pois ela estava há pouco tempo na família e acabou nem tendo a chance de conhecer Edna na sua essência. Foi com tristeza que a nora acompanhou o avanço da doença e a despedida de Edna de sua personalidade. Na medida do possível, eles procuram fazer visitas na clínica, ou então, em alguns domingos comemorativos, levam Edna para almoçar com a família. Dos três filhos e noras, oito netos e uma bisneta, nem todos conseguem se fazer presentes. As coisas já não são como antes. Edna espera pelo desfecho inevitável. Enquanto isso, os familiares convivem com o pouco que resta da pessoa que amam. Seja nos gestos, ao aceitar um carinho e retribuí-lo, seja nas lembranças do passado, ela ainda está lá. Os familiares se despedem de Edna, que é levada pela técnica em enfermagem para a sala de TV, junto com os outros pacientes. Antes de Eduardo descer as escadas, a técnica questiona Edna: “Quem é ele?”. Depois de alguns momentos pensativa, ela responde: “Eduardo”. Naquele instante ela o reconheceu. Mas para quem tem Alzheimer, cada dia é um novo dia, cada momento como este, é uma conquista. Um reencontro com a lucidez.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A morte é um fato. Inevitável. Todos nos depararemos com ela, cedo ou tarde. Porém, quando o assunto “encontros e despedidas” foi definido para a Primeira Impressão, optamos por trabalhar a despedida da vida de uma forma mais sutil. Queríamos mostrar como alguém, ainda em vida, se despede de seus familiares e de si mesmo. Chegamos num consenso da nossa pauta: o Alzheimer. Com a sugestão de uma colega, chegamos em Edna, que sofre da doença. Seus familiares foram muito

receptivos e, não fosse por eles, com quem conversamos por algumas horas na clínica onde Edna está internada, a matéria não teria sido tão rica em detalhes. Percebemos que, apesar do drama da família, ainda há espaço para risadas e boas histórias. Foi muito interessante poder contar a vida de alguém através dos depoimentos de seus parentes. No final das contas, é do passado que vivem Edna e sua família. Pois são nessas histórias que eles relembram a Edna como um dia ela já foi.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 058 a 061 - dupl a 16 - a l z he im er - ba r ba r a e m a r ia na .indd 61

61

3/ 12/2009 16:44:45


encontros despedidas& distância

NA CONTRAMÃO DAS PRESENÇAS TEXTO| BRUNA QUADROS e FRANCINE SCHERER FOTOS| ÂNGELO DAUDT

Algumas pessoas se falam, mas não se veem. Outras se veem, mas não se falam

62

pág 062 a 065 - dupl a 04 - invi s íve is - br una

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

e f r a ncine.indd 62

2/12/2009 14:13: 3


Há três anos, Ana e Jones conversam todos os dias no trabalho, mas só se conheceram no dia desta foto

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 062 a 065 - dupl a 04 - invi s íve is - br una

e f r a ncine.indd 63

63

2/12/2009 14:13: 35


encontros despedidas& distância

A

voz, aos poucos, perde lugar para as teclas do computador. O som das palavras aparece em toques, que também dão o ritmo e o tom às emoções das conversas. O contato se torna distante, mas não irreal. Apenas se materializa na tela do monitor. Nasce uma forma de encontro a distância. Algo que aproxima e dessocializa. Aqui, a percepção dos sentidos se molda muito mais pelo imaginário. Pelos corredores, já é diferente. O contato é visual, mas não menos distante. As palavras são tímidas; mesmo assim não há nada parecido com o diálogo, aproximação de verdade. Às vezes, são apenas gestos que se perdem entre uma e outra olhada para o lado. Falta conhecer um pouco mais, saber o que há por trás de alguém que passa e continua anônimo. Essas situações são comuns. Conhece-se pessoas, se trabalha com elas, mas não se sabe quem elas são. Ana Doile sabe bem o que é isso. Trabalhando há três anos na TV Unisinos, ela conversa diariamente com Jones Quadros da Silva. Ambos estão todos os dias no campus, mas não se veem; o que os aproxima é a internet. Para Jones, é normal trabalhar virtualmente, visto que ele atua na área de informática da Unisinos e todas as solicitações vêm através de um software que informa somente o e-mail e o telefone da pessoa. Já Ana acha complicado trabalhar dessa forma. Segundo ela, apesar dos recursos de telefone, Messenger e e-mail ajudarem muito, às vezes, não é possível encontrar a pessoa na hora necessária, e a demanda fica trancada. Jones acredita que a falta de contato pessoal não interfere no trabalho, pois ele não precisa se deslocar até a sala de Ana e de outras pessoas para solucionar problemas. Além disso, ele destaca que a falta de contato pessoal tende a deixar os seres humanos cada vez mais distantes. “Acredito que as pessoas estão cada vez com menos tempo para estar com outras, por isso buscam aulas de Ensino a Distância. Isso minimiza os sentimentos delas. O mundo hoje está carente de atenção, carinho e amor, e com estes contatos não pessoais tende a crescer esta carência”, pontua. Ana concorda e salienta que é importante manter as relações pessoais para melhorar as percepções, pois por telefone ou Messenger não podemos ver a sua expressão facial, nem perceber o que ela sente.

64

pág 062 a 065 - dupl a 04 - invi s íve is - br una

Segundo Ana, o imaginário depende da forma como a pessoa que está do outro lado da linha se comunica. “Algumas têm a voz forte e são um tanto grosseiras. Acabamos imaginando uma pessoa feia, velha e mal-humorada.” Ana destaca que, no caso de Jones, como ele é sempre simpático, brincalhão e pronto a ajudar, ela imagina um rapaz jovem e bem-humorado. Para Jones, a questão do imaginário é incrível. Assim como Ana, ele diz que a imaginação depende muito do estado de espírito e da simpatia de quem está do outro lado. “Prefiro imaginar que todas as pessoas vão me tratar bem, assim como eu gosto de tratar bem quem atendo.” Jones diz que sempre tem muita curiosidade em conhecer quem está do outro lado. “Muitas vezes, eu passo pelas pessoas pelo campus e não sei quem são. Na verdade, fazia 15 minutos que eu tinha falado com ela por telefone ou Messenger.” Ana também não tinha pensado sobre isso. “Esses dias fiquei sabendo que ele veio aqui na TV resolver um problema e fiquei curiosa”, comentou.

ofissão in is el O carinho que existe entre Ana e Jones é o que Naira Lúcia Lima de Freitas almeja. Há 15 anos, responsável pela limpeza do edifício Ipicuê, em Canoas, ela reclama que no vaivém de pessoas são poucas as que param para dizer pelo menos “bom dia” ou “como vai”? Afinal, ela é quem mantêm limpas as 113 unidades residenciais e comerciais do conjunto de apartamentos. Segundo Naira, a sua atividade é valorizada por poucos. “Tem muita gente que passa e não cumprimenta, nem olha para mim. Só dão oi depois que já estão quase na porta, saindo do prédio”, desabafa. Para ela, o que a grande maioria chama de correria é falta de respeito. “Muitos não olham para a gente por causa do nosso serviço”, frisa. As pessoas estão, sim, cada vez mais distantes, na opinião de Naira. Ela conta que entre cem pessoas, apenas duas ou três fazem o simples gesto de olhar para o lado. “Entendo que tem muita gente com pressa para chegar ao trabalho, mas também depende muito da educação, que deveria vir de berço”, acrescenta ela. Se a falta de contato já não agrada quando há possibilidade de ver as pessoas, quando esta inexiste é ainda pior.

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

e f r a ncine.indd 64

2/12/2009 14:13: 36


Para Naira, quem se relaciona, seja de forma pessoal ou profissional, através da internet, corre perigo. “Como saber se a pessoa é mesmo quem ela está dizendo que é?”, destaca, dizendo que o contato deve ser sempre pessoalmente. A tecnologia, para ela, torna as coisas mais fáceis, mas também afasta as pessoas. Por isso, para ela, as formas de comunicação a distância não convêm.

Em busca de sentido É a soberania do “eu” que impera nos dias de hoje, na percepção da professora das séries iniciais e educação especial Rosângela Perroco. Cada um está voltado para a própria individualidade, inibindo os vínculos de socialização. “As pessoas passam umas pelas outras, se olham e não se enxergam”, diz Rosângela. Na tentativa de compreender esta situação, ela busca respostas na História. “Se imaginava a máquina como uma lata, uma engrenagem. Mas é o próprio homem que está se transformando em máquina.” Este é o motivo que tem feito as pessoas se ocuparem com a atribulada rotina e esquecerem do lado humano. Para Rosângela, este homem-máquina tende a passar pelas pessoas sem viver. Essa certeza se vincula ao distanciamento entre as pessoas, em cenas como a da servente que está em trabalho e é tratada, em alguns casos, como

um ser sem vida. Esta professora se insere na baixa estatística apontada por Naira, a das pessoas que cumprimentam umas as outras, e até trocam algumas palavras, mesmo sem saber quem são. “Conhecer alguém sem parar para conversar pode ser uma forma de relacionamento, mas não de conhecimento. Nunca vou saber se a pessoa está feliz ou com algum problema.” A visão de Rosângela com relação aos vínculos através da internet é a mesma, uma vez que não se sabe até que ponto determinado relato tem tom de verdade. É por isto que o imaginário começa a moldar os relacionamentos, considerados por ela como superficiais. “Se não vemos a pessoa, vamos fazer a nossa imagem dela.” A interpretação é outra quando se vê a pessoa, mesmo que não se pare para conversar. “Posso dizer que o porteiro está de mau-humor, porque não me cumprimentou sorrindo.” Assim, surge uma forma abstrata de se relacionar. Frases feitas e palavras bonitas não faltam, segundo Rosângela. Mas isto não basta. “Não há comunicação”, frisa. E esta ausência se reconfigura no conceito de homem-máquina, porque as pessoas acham que precisam se alienar para produzir. Diante disso, Rosângela afirma: “Todos correm atrás de algo que não se sabe o que é. Assim, se perde um tempo que não volta mais”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A ideia de abordar formas de encontros a distância surgiu quando a nossa primeira pauta – sobre um professor de física que trocou a carreira pelos ensinamentos do budismo – não deu certo. Em um primeiro momento, o assunto não agradou. Falar de pessoas que conversam utilizando recursos como e-mail ou telefone e não têm contato pessoal já era comum. Para que nossa matéria tivesse fôlego, surgiu a ideia de tratarmos a questão de pessoas que se veem, mas sequer param para conversar. Depois de reformulada a pauta, o desafio foi conseguir

as fontes. Uma conversa aqui outra ali, tudo resolvido; fontes encontradas. Mas também encontramos outro empecilho: conciliar os horários das repórteres e dos entrevistados. Este desafio também foi superado. Em seguida, veio outro; o de entrelaçar as duas histórias. Falar foi fácil, difícil mesmo foi começar a escrever. Depois de escrever, reescrever e fazer ajustes, finalmente a matéria ficou pronta. E nos mostrou que a rotina do jornalista é cercada de desafios. Basta ter vontade para superar cada um deles.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 062 a 065 - dupl a 04 - invi s íve is - br una

e f r a ncine.indd 65

65

2/12/2009 14:13: 36


encontros despedidas& paixão

UM AMOR EM SEGREDO

TEXTO| JAQUES MACHADO e KÁSSIA SOUZA. FOTOS| ALESSANDRO OLIVERI e JAQUES MACHADO

N

ove da manhã. O silêncio tradicional do domingo é interrompido por duas generosas buzinadas, que só perdem para o som da chuva torrencial que cai. De dois em dois finais de semana, a rotina da buzina se repete. É a forma que o patriarca da família escolheu para anunciar a chegada aos filhos Jonas, Simão e Volmir. No caso de Volmir, a ligação consanguínea é substituída pelo intenso laço de amor de quem criou três filhos sem fazer diferença. Todos os domingos, os filhos recebem João* com a mesa do café posta. Um abraço e um beijo são os primeiros gestos. Um por um, João aconselha. Ajuda a resolver os problemas. E comemora em meio a suaves gargalhadas. “Pronto, agora que já resolvi os pepinos de todo mundo, posso tomar um café.” A matriarca é Iraci, uma senhora vaidosa, com sorriso fácil e olhos que guardam um brilho permanente de quem se emociona por qualquer motivo. O relacionamento de Iraci e de João foge dos padrões que estão em nosso imaginário. Ela e os filhos fazem parte da segunda família de João. A primeira sequer imagina a existência da outra. E há mais de 20 anos é assim.

Tudo começou... Sentados em um colchão disposto no chão, no quarto de Jonas, o filho do meio, Iraci concorda em contar sua história. A vergonha foi a primeira particularidade daquela senhora de 52 anos. As lágrimas escorrem pelo rosto emocionado de quem está prestes a acionar lembranças guardadas a sete chaves. Iraci nasceu na cidade de Iraí, em 1957, no Alto Uruguai. Ela é

66

pág 066 a 069 - dupl a 17 - encont r os

s ecr et os

- j a que

a sexta de dez filhos. Criada na roça, ao invés de brinquedos, Iraci carregava uma enxada para capinar a terra onde germinava o sustento da família. A dureza da vida se refletia nos olhos e nas atitudes dos pais. Iraci não conheceu o abraço paterno, tão pouco o beijo materno. Em meio à falta de escolhas, apegou-se à primeira que surgiu. Fugiu com o primeiro namorado para o Paraná. Aos 16 anos, sentiu no corpo o poder de gerar uma vida. Esperava o primeiro filho. Aos sete meses de gravidez, resolveu voltar à família no Alto Uruguai para contar sobre a gravidez. Ao retornar para o Paraná, Iraci descobriu que o destino forjara a sua felicidade. A casa, as roupas dela, as roupas do bebê, tudo havia sido vendido pelo ex-companheiro. O desejo de construir uma família se transformara em pesadelo. O que restara daquele sonho de fuga era o filho que carregava no ventre. Com o peso da gravidez e da desilusão de um amor mentiroso, a menina em corpo de mulher voltou para a casa dos pais. As tristezas da vida encontraram refúgio no coração dos pais de Iraci, mas ela, a filha, não. O peso social de uma filha grávida e solteira era demais para eles. Foi em uma pensão, na cidade natal, que Iraci encontrou um lar. Lá, os sonhos de menina se misturaram com as responsabilidades de uma mulher prestes a parir. Em meio às roupas que esfregava, ao chão que limpava, Iraci sonhava. Queria ser alguém. Queria um amor. Queria uma família unida. Mas o destino parecia não ser generoso com os desejos de Iraci. Aos 16 anos deu à luz. Sentiu nos braços a leveza da própria carne. Com a roupa do

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

s e ka s s ia .indd 66

3/ 12/2009 16:40:47


ALE S S AN DR O OLIVE R I

Iraci e João construíram uma família unida pelos laços de uma relação secreta

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 066 a 069 - dupl a 17 - encont r os

s ecr et os

- j a que

s e ka s s ia .indd 67

67

2/12/2009 10:12:30


J AQ UE S M AC H ADO

encontros despedidas& paixão

Jonas (à direita) tem respeito por tudo o que a mãe viveu

corpo e uma trouxa com duas roupinhas de bebê, que ganhou no hospital, Iraci caminhou. Durante três quilômetros, a jovem transitou sem rumo. O destino roubara os sonhos de Iraci. O destino dera a Iraci um filho. Em meio à dor de um corpo que havia recém parido, uma vaga lembrança guiara a menina à casa de um cunhado. Lá, conseguiu um abrigo com prazo de validade. Poderia ficar por dois anos. Ao término do prazo, Iraci teria duas escolhas – carregar o filho pelo mesmo caminho sem destino, ou voltar a trabalhar na pensão, só que sem o filho. Nesse momento, os pais de Iraci deram uma trégua às mágoas da vida. Aceitaram criar Volmir enquanto Iraci trabalhava na pensão. O retorno ao antigo trabalho reservava uma mudança profunda na vida da menina. Porto Alegre seria o rumo da jovem, na casa de uma família que um morador da pensão conhecia. Novamente, Iraci teria de escolher – ficar na pensão, vendo o filho com regularidade, ou ir para a capital, tentar a sorte de construir uma vida melhor para ambos. O trabalho de doméstica não permitiria que levasse o primogênito. O destino partira o coração de Iraci, que deixou metade dele em Iraí, com Volmir. Foi para Porto Alegre, em busca do sonho que o destino tirara – dar à criança a dignidade que ela não teve.

Um recomeço Depois de um ano e meio na capital, Iraci começou a trabalhar na casa de duas senhoras. Uma mudança que transformaria o destino da jovem. Iraci descobriria

68

pág 066 a 069 - dupl a 17 - encont r os

s ecr et os

- j a que

um sentimento novo. Descobriria a paixão, que se chamava João. Militar aposentado, João era 20 anos mais velho que Iraci. Tinha uma vida estabilizada e era marido de uma amiga das senhoras para as quais Iraci trabalhava. Em uma das visitas do casal às senhoras, João foi apresentado à jovem. Dela, não tirou os olhos durante todo o tempo em que ali esteve. A graciosidade da menina também prendera os olhos do filho do aposentado. Percebendo o interesse do filho, João tratou de se aproximar daquela menina. Logo, as visitas passaram a ser frequentes e, inclusive, sem a presença da esposa. “Ele era alto, forte, bonito. Ai, ele era muito lindo”, lembra Iraci, com o brilho envergonhado daquela adolescente apaixonada que vislumbra na memória. A paixão por João era recíproca. Os encontros passaram a ser fora do ambiente onde ela trabalhava. O sentimento alimentado pelos dois começou a despertar a desconfiança das donas da casa. Foi então que João decidiu: Montou um apartamento para Iraci. Um local onde ele passaria os dias ao lado dela e, às noites, reservaria à família da qual ele jamais se desvincularia. João era mais do que uma paixão para Iraci. Foi quem devolveu os sonhos que o destino havia boicotado dela. Agora, Iraci tinha uma casa, onde poderia criar o filho que deixara em Iraí. Aprendera a costurar em um curso pago por João. A vida nova dera mais dois filhos a ela, Jonas e Simão. Uma história secreta aos olhos da socie-

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

s e ka s s ia .indd 68

2/12/2009 10:12:32


dade. Um marido com quem não podia dormir à noite, mas com quem, durante o dia, matava as saudades da madrugada solitária. O avesso da vida de Iraci não a incomodava, afinal, ela dera uma rasteira nas trapaças da vida. Aos poucos, costurava os remendos de vida que o destino rasgara. Todas as manhãs, o pai acordava os filhos. Levava e buscava os meninos da escola. No final da tarde, retornava para a família “oficial”. Uma vida que para Jonas, Simão e Volmir era absolutamente normal. “A gente cresceu sabendo que o pai tinha outra família. O fato de ele não dormir lá em casa com a gente era comum, porque foi sempre assim, desde que a gente se conhece por gente”, conta Jonas. Foram 15 anos vividos assim. De costureira, Iraci passou a ser empresária. Começou a administrar uma lancheria, que João a ajudara a montar. O que Iraci não imaginava é que o destino continuaria trabalhando na contramão de sua vida. Dessa vez, para dar-lhe algo que ela não conhecia – uma vida comum. A assiduidade de um dos clientes era acompanhada de galanteísmos que, aos poucos, conquistaram a mãe de Jonas, Simão e Volmir. Aos 35 anos, Iraci começa, mais uma vez, a construir uma nova vida. Agora, com alguém que dormia e acordava ao lado dela. O relacionamento durou sete anos, período desafiador principalmente para Jonas. “No início eu não aceitava ver a minha mãe com outro marido. Eu tinha medo que o meu pai nos deixasse pela outra família dele. Mas foi bem o contrário. O pai passou a nos ver só aos finais de semana, mas a presença dele sempre foi constante.”

O que é família? “Eu nunca tive amor dos meus pais. Eu não sabia o que era um abraço. Eu não sabia o que era um beijo. Eu aprendi isso com o pai dos meus filhos”, desabafa Iraci, entre lágrimas e pequenos soluços. Aos 24 anos, Jonas explica com simplicidade: “Família é responsabilidade. É cuidar um do outro. E foi sempre assim na nossa família.” O conceito é semelhante ao citado pelo professor do curso de pós-graduação em Sociologia da Unisinos José Luis Bicca de Mello. “Trata-se de um espaço plural de vínculos afetivos”, afirma Bicca, acrescentando que esse espaço pode ser formado por apenas uma mãe, um pai, ou duas pessoas de um mesmo sexo. O sociólogo lembra que desde os anos 60, com os movimentos de contra-cultura, feministas e de liberdade do corpo, não se admite apenas um padrão de família. Aquela imagem de pai, mãe e filhos está hoje somente em nosso imaginário. “Os arranjos familiares deixaram de ser formados por vínculos religiosos ou pelo simples motivo da reprodução humana e evoluíram para a dimensão afetiva”, conclui. Leila Suslick, assistente social e terapeuta de família, analisa que o fato de João constituir uma segunda família possa estar ligado à necessidade do prazer e da satis-

fação de ter esse ambiente afetivo, ou seja, suprir uma necessidade que talvez não aconteça na primeira família, que mantém por tradição, por um status na sociedade. Quando Iraci pensa qual foi o encontro mais emocionante que a vida lhe proporcionou, ela não hesita: “O reencontro com o filho mais velho, quando João me deu o apartamento”. E quanto à despedida mais intensa da qual tem lembranças, ela fala do dia em que terminou a relação de 15 anos com João. O destino, por um lado, foi cruel com o coração de Iraci. Por outro, acabou sendo generoso com sua vida. No rosto da mulher de 52 anos, a sinceridade de uma saudade que não pode ser saciada. Uma saudade que ficou no passado. “Eu aprendi muito com a pessoa com quem vivi durante sete anos. Mas, se eu pudesse voltar no tempo, eu não teria feito essa escolha”. Nesse momento, as palavras fogem e as lágrimas escorrem pelo rosto. “João me deu a minha família. Se eu puder ver meus filhos felizes, meus netos crescidos, eu posso morrer feliz.” (*) O nome foi trocado

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Foi debaixo de uma forte chuva, em um sábado à noite, que começamos a nossa jornada ao encontro dos personagens dessa história. Saímos de Porto Alegre no final da tarde, após termos nos dado conta de que havíamos esquecido o gravador para arquivarmos as entrevistas. Chegamos a Alvorada, na casa de Iraci, encharcados dos pés a cabeça. Com gentileza, a dona da casa nos convidou para jantar e também ofereceu pouso para aquela noite. Sucumbidos ao cansaço, aceitamos o convite e combinamos de conversarmos no domingo pela manhã. O que parecia uma invasão de intimidade se transformou em uma oportunidade de nos inserirmos na rotina da família e melhor entender a relação de carinho e respeito que cultivam entre si. Depois de todas as conversas e percepções, nos demos conta de que a pauta inicial “encontros secretos” teria que ser “derrubada”, segundo o jargão jornalístico. O inusitado daquela história não é um segredo mantido por eles, mas sim o fato de que ser a família “não oficial” revela um modelo familiar diferente, compreendido com dificuldade pela sociedade atual, mas que em nada interfere na relação de afeto entre pais e filhos. Fica a lição de abrirmos a nossa mente e libertarmos nosso imaginário de estereótipos e preconceitos.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 066 a 069 - dupl a 17 - encont r os

s ecr et os

- j a que

s e ka s s ia .indd 69

69

2/12/2009 10:12:33


encontros despedidas& recuperação

“NÃO ESTOU AQUI PARA JULGAR” Rosane prefere não saber quais foram os crimes cometidos pelos jovens que trabalham com ela TEXTO| FLAVIA TRES e PATRÍCIA SPIER FOTOS| BERNARDO ALENCASTRO e CARLOS HAMMES

O

primeiro encontro com a delinquência, com a marginalidade, com crimes hediondos cometidos por jovens se deu há 11 anos. De lá pra cá, todos os dias, Rosane Fatturi vem aprendendo a conviver com a dura realidade de um lugar que abriga menores que, de alguma maneira, cometeram crimes e, por isso, precisam viver apartados do convívio social. Rosane é monitora da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase). Em bom português, é carcereira de jovens criminosos. Abrir e fechar portas e grades, distribuir refeições e vigiar a rotina dos adolescentes foram as atividades a ela atribuídas na época em que passou no concurso para a instituição. Não era isso que Rosane imaginava para sua vida. No começo, pensou em desistir. Não se contentava em ser apenas olhos que vigiavam. Sentia-se inútil e precisava fazer algo para mudar o futuro desses jovens. Nas suas tentativas de reabilitá-los, escrevia peças de teatro para que participassem. Contudo, era apenas uma simples atividade pedagógica. Ainda não encontrara o caminho certo. Afinal, o que Rosane tinha em mente era algo que pudesse ajudá-los a traçar um objetivo de vida, resgatar sua auto-estima e principalmente ensiná-los o valor do trabalho. Há 10 anos, o sonho deu lugar a uma ideia. E a ideia, a um projeto que se tornou modelo: a Oficina de Confecção de Produtos de Limpeza do Case PC, unidade da Fase localizada em frente ao Estádio Beira-Rio, que abriga jovens de cidades do interior. O projeto começou por acaso, quando a monitora se deparou com uma Kombi, em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre. Nela havia produtos de limpeza e o homem que a ajudaria a amadurecer a ideia. Assim, Rosane e o dono

70

pág 070 a 073 - dupl a 07 - f a s e.indd 70

dessa empresa conversaram e uniram os objetivos. O dele, exdependente químico, era prestar ajuda à sociedade. O dela: proporcionar uma atividade rentável aos internos, entre outros aspectos. Essa parceria prometia sucesso, mas não foi tão fácil assim. O empresário doou 400 litros de produtos-base para o início do trabalho. Empenhado, foi pessoalmente à Fase entregar o material e ensinar a ela e a alguns meninos o ofício. Ainda não era oficial. Para colocar a atividade em prática efetivamente, era necessária a aprovação do diretor da instituição. Não aconteceu. Por cinco anos Rosane tentou convencer os diretores que passavam pela instituição a aceitar o projeto. Só em 2004 ela conseguiu o aval com o então administrador da casa. A monitora voltou a procurar a empresa que havia lhe ajudado anteriormente e, mais uma vez, foi apoiada pelo empresário, com mais 400 litros de produtos-base. Os jovens de 14 a 17 anos têm no cronograma cinco refeições por dia, uma hora de pátio para lazer, atendimento psicológico, psiquiátrico, pedagógico, odontológico, e três visitas por semana. Dos 50 meninos que vivenciam essa rotina, seis escolhidos a cada semestre participam de mais uma função. Essa turma se encontra três vezes por semana para produzir 100 litros de variados produtos de limpeza. Os meninos são escolhidos por meio de uma triagem, que leva em conta bom comportamento e tempo de internação. Os produtos são comercializados pela própria Rosane, com ajuda dos adolescentes em regime semi-aberto, que têm permissão para sair com ela. A Fase fornece uma Kombi, e eles percorrem todas as unidades da instituição para vender os produtos aos colegas que são os seus consumidores.

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

2/12/2009 10:16:58


C AR LOS H AM M E S

P R I M EI RA I M P R ES S ร O 2 0 0 9 /2

pรกg 070 a 073 - dupl a 07 - f a s e.indd 71

71

2/12/2009 10:17:04


B E R N AR DO ALE N C AS T R O

encontros despedidas& cartola

A Fase abriga jovens que cometeram crimes e e is fi t os do convívio social

O dinheiro arrecadado é dividido entre os jovens da oficina, de acordo com o volume das vendas. Ela garante que eles utilizam o dinheiro para adquirir utensílios de higiene pessoal e roupas, comprados por um funcionário da Fase. Além disso, alguns enviam o dinheiro para os pais, que muitas vezes não têm condições de pagar passagem para visitá-los. O uso do dinheiro obedece algumas regras. Não é permitida a compra de qualquer droga, armas ou o que possa causar desconforto aos demais. Por um tempo, a oficina se tornou autossustentável, pois, com a primeira doação de materiais que recebeu, conseguiu adquirir capital de giro. Hoje, a Fase ajuda com parte do material, investindo R$ 500,00 por mês. O lucro de cerca de R$ 700 é rateado entre os meninos.

O outro lado da Fase Rosane conta que a unidade onde trabalha na Fase não tem somente realizações. A monitora já foi vítima de um motim, no qual os jovens quebraram tudo, inclusive as camas em que dormiam. Rosane ficou no meio da confusão durante todo o tempo em que durou o tumulto, até que um dos colegas veio resgatá-la. Ela diz que ficou lá porque os meninos que recém haviam chegado à casa estavam apavorados. Afinal, quando acontecem motins, muitos correm risco e ficam expostos a todos os tipos de violência por internos mais antigos. A situação só foi controlada depois que a Tropa de Choque da Brigada Militar invadiu o local.

72

pág 070 a 073 - dupl a 07 - f a s e.indd 72

Em outra ocasião, durante uma tentativa de fuga, sofreu ameaça com um caco de vidro apontado para o pescoço. Era um menino que participava da oficina. Rosane conta que o jovem pediu para ir ao banheiro e, ao retornar, a atacou exigindo que ela o deixasse sair. Segundo a monitora, o garoto a ameaçava e, no mesmo instante, se desculpava por estar fazendo aquilo. Contudo, o adolescente não conseguiu fugir. O motim mudou toda a rotina da casa. Antes, os jovens dormiam em camas, tinham objetos dentro das celas e até churrascos eram feitos, quando podiam comer com garfo e faca de aço inox. Agora, dormem apenas em colchões no chão e se alimentam diariamente com talheres de plástico. “Era emocionante, nos churrascos, vê-los comendo civilizadamente. Uma coisa simples para nós, que é usar garfo e faca, nas mãos deles podem se tornar armas”, lembra. Se há tristeza na rotina de centenas de meninos, também há casos de superação. Rosane conta que um menino recémchegado à unidade não tinha qualquer noção de higiene, era analfabeto, faltavam-lhe dentes. A partir da conquista de uma vaga na oficina, pediu ao monitor que comprasse, com a sua parte do lucro, desodorante, xampu e sabonete. Mais tarde, fez um pedido surpreendente à Fase: queria uma prótese dentária. “Foi um ganho enorme, ele voltou a ter autoestima e me agradeceu pela mudança”, revela a monitora. Ela diz ter consciência de que é difícil recuperar a maioria dos jovens infratores. “O meu trabalho é só uma pequena parte do processo”, minimiza Rosane, que mantém uma relação de respeito com os internos pelo trabalho que comanda na oficina.

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

3/ 12/2009 16:48:21


F OT OS C AR LOS H AM M E S

B E R N AR DO ALE N C AS T R O

Os internos participantes do projeto, idealizado por Rosane, produzem 100 litros de produtos de limpeza por semana

“Eu procuro não saber os crimes que cometeram. Isso pode prejudicar nossa relação. Inclusive, na minha oficina, não falamos em delito, em morte. Falamos de objetivos, de planos para o futuro. Mostro-me amiga e justa. Não estou aqui para julgar ninguém”, desabafa, contando que busca desenvolver um trabalho sem discriminação e igualitário. “Mesmo depois de 11 anos ainda me choca ver os guris presos, atrás de grades. Pois são pessoas, são seres humanos,

mas, mais ainda, são jovens”, observa. A experiência nos corredores da Fase fez com que Rosane passasse a ver a vida de uma maneira bem diferente. Ela tem noção de que não deve julgar os jovens. Ela sabe que está no limiar entre a sociedade - que vive com os conceitos de moral - e um universo em que existem perdas, crimes, drogas, violência. Neste limiar, encontros e desencontros com esses meninos acontecem todos os dias. Rosane está fazendo o que pode.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Por vezes é difícil harmonizar horários de faculdade com as tarefas extraclasse, como produzir a grande reportagem para esta disciplina, por exemplo. Mas quando conseguimos nos organizar, chegamos na melhor parte: entrevistar nossa fonte. Seja no lugar que for. No nosso caso, foi no meio do Mercado Público, em Porto Alegre. Nossa pauta, que foi sobre a história de uma monitora da Fundação de atendimento Sócio-Educativo de Porto Alegre, foi interessante, pois não podíamos identificá-la, seja no texto, seja nas fotos. Para tanto, precisávamos de certo cuidado

em relação à sua privacidade, o que até agora conseguimos. Tratar com casos delicados foi uma novidade para nós. A pauta em si tratou de uma realidade que não conhecíamos e isso foi de grande importância enquanto repórteres iniciantes. Porém, nossa visita prevista a Fase não foi autorizada, o que nos frustrou de um lado, mas também nos fez rever o texto, o foco dele. Outro ponto a nos desafiar foi a distância entre a dupla, pois toda a construção do texto foi praticamente feita por email, isso nos fez rever a metodologia de produção.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 070 a 073 - dupl a 07 - f a s e.indd 73

73

3/ 12/2009 16:46:45


encontros despedidas& visão

O VALOR DOS SENTIDOS Aprender a ver uma nova vida é importante tanto para quem perdeu a visão como para quem voltou a enxergar TEXTO| CATHIERINE HOFFMANN e RODNEY SILVA FOTOS| PRISCILA MILÁN e CATHIERINE HOFFMANN

74

pág 074 a 077 - dupl a 08 - vi s ã o.i ndd 74

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

2/12/2009 14:19:19


P R IS C ILA M ILÁ N

F

eche os olhos. Agora sinta. Não procure um lugar especial para fazer isso, pode ser exatamente onde você está. No trabalho, no ônibus, em casa. Apenas viva um momento às escuras. Fique assim por alguns minutos. São muitas as sensações: curiosidade, angústia, bem-estar... Cada um sente de uma maneira. Agora abra os olhos. Aposto que você piscou algumas vezes e olhou para todos os lados para rever tudo que está a sua volta. O verdadeiro valor dos sentidos aparece quando se perde um. E é nesse momento que os demais ficam mais apurados. Para Maicon Pierre da Silva, 21 anos, o tato é o seu diferencial. Ele nasceu com catarata congênita nos dois olhos e aos seis meses passou por uma cirurgia somente no olho esquerdo e voltou a enxergar com esse olho. Mas há certas coisas que são impossíveis de prever, pois, quando Maicon estava com 7 anos, enquanto brincava

na frente de casa com seus amigos, foi atingido com uma pedra justamente no olho esquerdo. O menino passou a não ver mais, mas não era o fim. Inicialmente Maicon ficou muito abalado, tentando entender o que tinha ocorrido. Só que a vida continuou, e ele aceitou a situação. Hoje acredita que a maioria das oportunidades que teve ocorreram devido a sua deficiência. Sua determinação foi fundamental. “Não posso ser orgulhoso. Preciso, sim, de ajuda para atravessar a rua, por exemplo. Não vou me arriscar a ser atropelado, seria estupidez”, afirma. A ajuda que recebe de amigos, familiares, professores e até de pessoas desconhecidas na rua é de suma importância. Logo após o acidente, Maicon ficou em casa com sua mãe e irmãs. Recebeu ajuda para realizar afazeres do dia a dia, como comer e tomar banho. “Após perder a visão, minha vida deu uma volta

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 074 a 077 - dupl a 08 - vi s ã o.i ndd 75

75

2/12/2009 14:19:30


encontros despedidas& visão

Maicon deixou de enxergar. Lucy perdeu e depois recuperou a visão. Aline passou a ver. Os três comemoram grandes conquistas

de 180 graus. Seguir um novo estilo de vida é complicado”, explica. Quando ele tinha 12 anos, sua mãe, Sônia, encontrou uma escola em Cachoeira do Sul especializada em educação para deficientes visuais, onde foi alfabetizado em braile. Concluído o ensino fundamental, Maicon resolveu ir morar em Porto Alegre com sua irmã mais velha, Ana Paula. Em 2008, descobriu a existência do Instituto Santa Luzia e se matriculou no Ensino Médio. No Instituto, a inclusão é o foco principal. Alunos com ou sem deficiência são colegas e dividem os mesmos limites. “O local deve ter cara de escola e não de instituição”, comenta Rosaura Santos Bastorini, diretora. Ela explica que a boa relação dos alunos se deve a algumas regras. “Aqui o corredor é o caminhador. Todos que entram na escola devem andar pela direita e, para voltar, à esquerda. Assim evitamos quedas e constrangimentos”, afirma. No Instituto, várias atividades são realizadas, como esportes, artes e aula de vida diária. A professora Noemi Soares Martins ensina aos deficientes visuais como lidar com as tarefas domésticas. “Eles aprendem a arrumar a cama e até a fazer comida”, explica. As tarefas domésticas são realizadas em uma sala que tem todos os objetos de uma casa, como cama, mesa, pia, armários, fogão. Para comer, a professora ensina os deficientes a avaliar tamanho e peso. Os talheres são utilizados como instrumentos para dimensionar o tamanho da comida, para então cortar o alimento no lugar certo. O suco é servido após calcular o peso para então servir no copo. Antes, tais afazeres eram feitos com as mãos. Os deficientes visuais

F OT OS P R IS C ILA M ILÁ N

C AT H IE R IN E H OF F M AN N

76

pág 074 a 077 - dupl a 08 - vi s ã o.i ndd 76

tocavam nos alimentos para saber o tamanho e colocavam o dedo dentro de líquidos para descobrir a quantidade de bebida do seu copo. No esporte, uma bola com guizos é o primeiro diferencial. O silêncio, por exemplo, é essencial, pois o barulho da bola é que faz com que o jogo tenha curso. O professor de educação física Adolfo Teixeira de Oliveira, o Dodô, ensina aos alunos, como Maicon, as regras do futebol para cegos. “Devo ter sido deficiente visual na outra encarnação, porque adoro trabalhar com eles”, revela. Maicon garante que não é o melhor atleta, mas tem muitos talentos. Em 2005, ganhou um concurso do MEC de frases sobre os Direitos da Criança e do Adolescente que lhe garantiu uma viagem a Brasília com direito a conhecer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Para mim foi uma conquista muito grande”, lembra. Novas aptidões foram surgindo e o gosto pela escrita faz com que Maicon deseje ser futuramente um advogado ou jornalista. “Adoro ler, principalmente literatura brasileira, como Machado de Assis”, ele comenta, com um livro em braile nas mãos. Na matemática, ele é um dos melhores alunos. O professor Daniel Dutra Moretinhu desenvolveu técnicas de aprendizagem em alto relevo que são úteis até para alunos que enxergam. O Instituto é a segunda casa de Maicon, onde fica o dia inteiro. Está no 2º ano do Ensino Médio e, quando se formar, quer arrumar um emprego. “A instituição me ensinou que não posso ficar parado”, afirma. Sua vida mudou muito após o acidente que lhe tirou a visão, mas o bom humor e a persistência

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

2/12/2009 14:19:49


de acreditar nos seus sonhos faz com que Maicon seja um exemplo a ser seguido por todos, com deficiência ou não. Dos anos em que ainda enxergava, ele tem poucas lembranças, e garante que passou pela adaptação da nova vida com tranquilidade. “Sei que tenho uma vida maravilhosa pela frente”.

O encontro com a luz Nascer na escuridão e não responder a estímulos visuais de cores e nem de objetos. Assim aconteceu com Aline Rodrigues Monteiro. Na gestação, sua mãe, Anita, já desconfiava que a filha poderia nascer cega, pois o pai da menina, Leopoldino, tinha catarata congênita, assim como seus antepassados. “Desde que minha mãe ficou grávida, suspeitou-se do problema. Naquela época não tinha exames, hoje dá pra identificar já na gestação”, conta. Ao ver Aline pela primeira vez, Anita constatou a deficiência, já que os olhos estavam totalmente brancos. Era a catarata hereditária, mas que poderia ser solucionada. Com duas semanas de vida, Aline passou pela primeira das quatro cirurgias que se seguiram até os três anos de idade. Os procedimentos foram realizados no Banco de Olhos de Porto Alegre, mesmo hospital em que seu pai, aos 20 anos de idade, fez a cirurgia que lhe apresentou 10% do que é o mundo. “Ele tem noção das coisas, enxerga pouco e desfocado. Ele lê em braile e precisa do auxílio de bengalas”, afirma Aline. Quando criança, a visão da menina não chegava aos 30% do que é hoje. Não conseguia assistir a desenhos na televisão e nem ler livros”, diz. Mas aos poucos o que era difícil ficou mais fácil. “É uma experiência fantástica fazer as coisas que antes não conseguia”, conta. A visão de Aline é perfeita numa distância de até um metro, em que ela consegue ver toda a fisionomia, os traços do rosto e a cor dos olhos. “Depois disso começa a desfocar”, diz. Sorridente, bem humorada e de riso fácil, Aline é funcionária do Ministério Público do Rio Grande do Sul desde 2002. Com 25 anos, a estudante do curso de Direito da UFRGS sonha em ser advogada. Os preconceitos na vida social, segundo ela, aparecem de forma indireta. “Numa balada, por exemplo, as pessoas vão pela aparência. Ficar com alguém é complicado, pois quem me cuida na festa enquanto eu danço, deixa de olhar logo em seguida, só porque meus olhos se mexem mais que o comum”, desabafa. “Na faculdade tenho uma dificuldade bem maior que outras

pessoas para ler os Códigos Civil e Penal, que possui letras minúsculas. Também fico com um pouco de dor na coluna, pois tenho que aproximar mais os livros dos olhos”, afirma a estudante, que gosta de ler ainda Dostoievski, Gabriel Garcia Marques e José Saramago. Não dirigir é sua única frustração. Aline adora cinema e prefere filmes com legenda pelo som original. “Tenho que sentar mais perto na sala para poder acompanhar o filme e estou criando agilidade para ler as legendas”, se orgulha. Aline se diz plenamente realizada com sua vida, mesmo com as dificuldades ainda existentes. “Meu pai me ensinou a ter uma boa estrutura psicológica para enfrentar preconceitos”, cita. Perder a visão já na fase adulta provoca mais medo ainda. A rotina passa a ser perturbada por uma nova condição. Aos poucos o que era legível fica difícil de entender. Os caminhos que eram costumeiros ficam difíceis de transitar. Foi assim com Lucy Petry Sartor, professora de educação artística, de 77 anos. Para ela, a condição de não enxergar mais não era aceitável. Um de seus netos, de apenas 7 anos, começou a ler as notícias para a avó que não conseguia decifrar nem as manchetes. Ao consultar o seu oftalmologista, veio o diagnóstico, ela teria que fazer uma cirurgia de catarata. A notícia veio como um peso para a professora. “Mudei de médico porque não aceitava fazer uma cirurgia”, lembra. Porém, em março deste ano, com apoio de sua família, Lucy resolveu consultar com um novo oftalmologista e realizar a operação. “Primeiro fiz no olho esquerdo e, após repouso e uso de colírios, em duas semanas já estava lendo os jornais novamente”, comemora. Lucy sempre teve uma vida intensa. É formada pela UFRGS, fez pós-graduação em administração escolar pela Unisinos, morou nos Estados Unidos e no Rio de Janeiro, lecionou e administrou várias escolas. Também ajudou a criar a Escola São João Batista, de Montenegro, onde nasceu e reside atualmente. Nos dias em que quase não enxergava, a professora, que é muito detalhista, não descartava seus costumes, como anotar os afazeres do dia. Na época, substituiu a caneta pelo pincel atômico. Hoje, ela ri ao ver o tamanho das palavras anotadas em suas agendas. “Passei a usar lentes estrangeiras, e hoje nem uso mais óculos, enxergo bem até demais”, avalia. Para Lucy, a visão é muito importante, e a possibilidade de acompanhar as notícias, jogar futebol com os seus netos, e ir à igreja é algo que nunca mais quer deixar de fazer.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Tudo na vida são encontros e despedidas. Isso fica mais evidente ao falarmos de sentidos, pois quando perdemos um, precisamos aprender com esse novo mundo. Ficar sem a visão pode parecer uma tragédia, mas aos poucos, se percebe que ninguém é autosuficiente. Necessitamos de ajuda para realizar qualquer tarefa do dia a dia. Conhecendo o Instituto Santa Luzia compreendemos melhor o quanto as pessoas se dedicam para fazer com que a vida dos deficientes visuais seja mais prática. O Maicon nos serviu de exemplo

de vida. Já para aqueles que voltaram a ver, a percepção de que novas aptidões podem ser desenvolvidas com a adversidade é ainda mais forte. No caso da Aline, que ganhou a visão, mesmo que parcial, foi emocionante ver a alegria dela refletida em seus olhos. Todas as nossas fontes nos surpreenderam positivamente pela determinação e pelas suas conquistas. Ver está além do sentido literal da palavra, encontra-se na capacidade das pessoas em enxergar as possibilidades e alcançar o que está além dos nossos olhos.

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 074 a 077 - dupl a 08 - vi s ã o.i ndd 77

77

2/12/2009 14:19:53


encontros despedidas& tecnologia

GERAÇÕES EM CONVERGÊNCIA LAR IS S A AM AR AL

O avanço da tecnologia nas escolas potencializa o uso do computador pelas crianças

78

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 078 a 081 - dupl a 12 - t ecnol ogi a - t ha is e s im one .indd 78

2/12/2009 10:32: 47


Na busca por descobertas, crianças e idosos se unem em um clique TEXTO| SIMONE BERTUZZI e THAÍS SALVAGNI FOTOS| LARISSA AMARAL e MANOELA BANDINELLI

O

aluno chega da escola e, antes mesmo de largar a mochila para almoçar ou lanchar, já liga a TV ou o computador. Depois disso, fica horas nessa mesma atividade. Esta é a realidade de milhares de crianças e adolescentes do Brasil. Em Porto Alegre, uma pesquisa em uma escola particular mostrou que 70% das crianças e jovens têm computador e televisão, a maioria em seus próprios quartos. Para alguns, este dado pode indicar o poder aquisitivo dessas famílias, mas para a psicanalista Nina Furtado, o resultado foi um susto. “Nós queríamos pesquisar as questões de informática, mas o que acabamos encontrando foi um jovem muito solitário.” Durante a pesquisa, surgiu um dado revelador: cada criança ou adolescente gasta de cinco a seis horas por dia na frente de eletrônicos. Segundo ela, esses meios estão sendo companheiros muito mais do que os pais, avós ou babás. E isso preocupa. Principalmente porque eles podem influenciá-los mais do que a própria escola - onde os estudantes não ficam mais do que quatro horas. Essa é a batalha que família e escola travam diariamente. Os pais acham que o colégio deve estimular o aluno a fazer outras coisas em casa. A escola deixa a cargo dos pais o controle dos filhos fora do ambiente escolar; estimulando as crianças a atividades saudáveis, como correr na rua com os amigos. O problema é que ninguém vence esta batalha, afirma Nina. Brigar com a TV ou o computador não funciona. O que se deve fazer é estimular o encontro saudável com esses meios. A proibição nunca funcionou em nenhum aspecto da vida. Ela apenas cria um sentimento que faz com que o indivíduo queira burlar mais ainda aquela regra. Desta forma, a escola ficaria responsável por propor trabalhos, pesquisas e todo tipo de atividade que envolvesse o uso do computador

de maneira saudável. Aos pais caberia o controle dentro de casa, no quarto deste estudante que, conforme a pesquisa, normalmente utiliza a TV e a internet sozinho. Acompanhar não significa ser um filtro ou um supervisor, mas um parceiro que quer aprender. Além disso, é imprescindível que haja um limite desse uso, que deve ser estabelecido com uma decisão acertada por pais e filhos. Quando questionada sobre o futuro dessa geração de jovens, Nina se mostra muito positiva. “Eu sou muito otimista. Algumas características humanas se repetem a cada geração. Mas eu acho que os jovens de hoje são muito mais informados, de certa forma mais evoluídos de que as outras gerações. É uma geração muito mais inteligente, mais ligada, mas vem com muitos problemas junto, como as drogas e o álcool.” Escola e pais temem pelas mesmas coisas. A internet, se não usada corretamente, pode gerar mesmo muitos perigos. No entanto, o mundo sempre ofereceu ameaças aos filhos. O caso é que agora estas ameaças estão cada vez mais ’onipresentes’ e cercam a vida destes jovens. As dificuldades são as mesmas, a forma como elas atingem os jovens é que evoluiu. A internet é o maior exemplo disso. Da mesma forma que pode ser prejudicial, é um meio de crescimento intelectual. Hoje, quem não domina essa ferramenta é considerado ultrapassado. Situação essa que também pode despertar o sentimento oposto: o medo do novo. As habilidades e capacidades tecnológicas atuais assustam os mais velhos. Apesar disso, muitos procuram conhecimento para sobreviver nesse ‘universo’. Atentos e querendo fazer parte de um mundo novo, os alunos da terceira idade do Centro de Capacitação Digital da Prefeitura de Porto Alegre não querem se sentir analógicos. Eles sabem que aprender e

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 078 a 081 - dupl a 12 - t ecnol ogi a - t ha is e s im one .indd 79

79

2/12/2009 10:32: 47


encontros despedidas& tecnologia

entender as novas tecnologias é a melhor opção quando vem aquele sentimento de estar sempre atrasado. Dina Candal, de 83 anos, Eda do Nascimento, de 74 anos, Heloísa Poyastro, de 57 anos, Neiva Ferreira, de 74 anos, Loiva Aick, de 64 anos, e o artista plástico, de 86 anos, Francisco de Paula da Silva Freitas não resistiram às tecnologias e fazem questão de falar sobre o seu interesse no novo. Ao contrário de muitas pessoas mais velhas, que não conseguem deixar antigos hábitos de lado e agem com preconceito em relação ao computador, a internet, ao celular, eles mostram que estão com a mente aberta, querendo fazer parte de uma evolução digital. “Eu estou fazendo o curso de informática porque, na idade que eu estou, me sinto fora do mundo e eu quero ficar mais atualizada”, diz Eda. A colega Dina completa dizendo que o curso a faz sentir mais viva. Não só o computador, mas outras novidades tecnológicas também servem de aprendizagem para as pessoas mais velhas. Segundo Eda, o celular é um objeto complicado. Ela contou que há dois anos está tentando se dar bem com o aparelho, mas até hoje tem muita dificuldade. Até agora ela só aprendeu a atender, fazer ligações e ver se chegou algum torpedo. “Eu nem tenho mais celular, porque fico sempre muito atrapalhada”, rebate a colega Dina. Num bate-papo entre amigas, demonstram que o interesse pela informática também gera diversão durante as aulas. As alunas resumem que, além de buscarem conhecimento, na atualidade não há como viver sem entender a informática. As colegas contam que já tinham computador em casa, mas sempre passavam longe pela falta de proximidade com a máquina. Ao contrário do que as pessoas pensam, os idosos podem até não ser os melhores amigos das novas tecnologias, mas também não abrem mão delas na sua rotina. As alunas contam que não há mais nenhum “eletrônico” ultrapassado em suas casas, demonstrando que o apego pelas coisas do

passado já era. “É que agora a gente depende do celular, das coisas mais modernas”, diz Heloísa. Depois de prestar atenção na conversa, Dina argumenta que só não acompanha o novo quem não quer se desfazer do velho. “Com a internet, em segundos você pode ver o mundo todo”, afirma. Dina e Eda ainda não mexem no computador quando estão em casa, já Heloísa confessa que está viciada no jogo Paciência.

Rápida evolução Loiva e Neiva também buscaram o curso para aprender a usar o e-mail e a conversar online com os amigos. Neiva conta que também se interessou pela informática para não se sentir uma analfabeta digital. Apesar de ser uma pessoa ativa, seu primeiro contato com o computador foi muito difícil. Para ela, foi um pouco assustador, porque as coisas evoluíram muito rapidamente. Nos primeiros dias em que utilizou o computador, Loiva achava que não conseguiria aprender. Hoje já não tem tanta dificuldade. Ela diz que não está muito adaptada à novidade e que deixa a tecnologia de lado quando se trata de coisas como a dança no CTG, por exemplo. Artista plástico que foi responsável pelo projeto da bandeira do Rio Grande do Sul, Freitas demonstra ser uma pessoa muito informada. Com medo de se ‘viciar’ no computador, ele resistiu à máquina até comprá-la há poucos meses. “Até minha bisneta tem computador, e eu não queria porque achei que ia me viciar, já que leio muito e isso seria mais uma ocupação.” Sem deixar de dar prioridade às leituras, ao aeromodelismo que pratica desde os 14 anos e ao desenho livre, Freitas conta que costuma praticar o que aprende no curso de informática pelo menos uma hora por noite. “Eu acredito que a tecnologia está avançando muito rápido e eu sei que daqui a uns dois ou três anos, se eu ainda estiver vivo, muitas coisas vão mudar. Para mim, que leio muito o jornal, principalmente a área de tecnologia, de mês em mês as coisas já estão mudando”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Se acompanhar a tecnologia hoje em dia é complicado para nós, jovens, então imagine para um grupo de idosos. Como eles próprios dizem, o aprendizado parece muito mais lento se comparado à rapidez com que as novas gerações manipulam a tecnologia. Para eles, fazer parte desta realidade é algo fundamental para não se sentirem seres de outro planeta. Mesmo assim, sabendo do preconceito e da aversão que muitas pessoas têm com essas ferramentas, ver estes velhinhos com sede de aprender a “brincar”

80

no MSN, Orkut e outras redes sociais nos mostrou que o mundo caminha para isso: encontro com a tecnologia. Ao mesmo tempo, ver baixinhos “viciados” no computador e na televisão fez acender a luz vermelha do alerta: será que caminhamos para a extinção do contato cara a cara, das relações de afeto e das brincadeiras de rua? As crianças estão se tornando cada vez mais solitárias. Talvez esta seja a hora de se despedir e dar um até logo para o mouse e o controle remoto.

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 078 a 081 - dupl a 12 - t ecnol ogi a - t ha is e s im one .indd 80

3/ 12/2009 16:49:36


Eda e Freitas encontraram a tecnologia no Centro de Capacitação Digital F OT OS M AN OE LA B AN DIN E LLI

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 078 a 081 - dupl a 12 - t ecnol ogi a - t ha is e s im one .indd 81

81

2/12/2009 10:32: 53


encontros despedidas& trabalho

T AR LIS S C H N E IDE R

AS INCERTEZAS DA RUA Uma profissão marcada pelo imprevisto TEXTO| ARY JÚNIOR FOTOS| DELMAR COSTA e TARLIS SCHNEIDER

82

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 082 a 085 - dupl a 20 - t a xi s t a s - a r y e m a t he us .indd 82

3/ 12/2009 16:51:27


DE LM AR

C OS T A

T AR LIS S C H N E IDE R

Para os taxistas, a fé é a única proteção contra a insegurança

P

oucos lugares no Rio Grande do Sul possuem um ambiente com tantas histórias como a Rodoviária de Porto Alegre. Estrategicamente instalada na saída da cidade, ou entrada, dependendo da procedência, a estação Rodoviária recebe, diariamente, milhares de passageiros. Gente chegando, gente partindo, encontros e despedidas. Para atender essa demanda, uma frota de táxi com 386 carros é responsável pelo deslocamento dos passageiros. Desses motoristas, doze são mulheres. Segundo o fiscal de táxi da rodoviária, João Rodrigo, histórias inusitadas e trágicas não faltam, ainda mais para uma categoria que, em Porto Alegre, tem 4.500 trabalhadores registrados. Contudo, essa é uma profissão cheia de riscos, roteirizada principalmente pelo destino. Cinco profissionais foram mortos somente este ano. Sem mencionar os assaltos. Na Rodoviária, por ser um ponto de muito movimento, todos os taxistas já passaram por uma situação fora do comum.

Entre eles, João Pedro*, 53 anos, que trabalha no ponto há 20 anos. Durante esse tempo, João Pedro vivenciou cenas que não esquecerá tão cedo. Ele é casado, tem três filhos, e no seu semblante carrega a seriedade de um pai de família. O taxista relata um dos momentos mais tensos de sua vida, quando achou que não teria mais chances de viver. Um momento de extrema frieza e crueldade. Foi no ano passado, em uma sexta-feira como outra qualquer. Por volta das 16h30min, João Pedro esperava mais um passageiro no ponto, cumpria seu cronograma profissional. Então, avistou um casal, acompanhado de um amigo, bem vestidos, vindo em sua direção. Entraram rapidamente no seu Fiat uno e solicitaram uma corrida. Durante o trajeto, João Pedro disse que não suspeitava de nada, pois os três conversavam tranquilamente entre eles. Não imaginava que sua vida estava por um triz. A corrida solicitada tinha como destino final a Avenida Protásio Alves, em Porto Alegre. O percurso transcorreu normalmente, e o motorista não suspeitava de nada. Pelo

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 082 a 085 - dupl a 20 - t a xi s t a s - a r y e m a t he us .indd 83

83

3/ 12/2009 16:52:10


encontros despedidas& trabalho

contrário, estava atento ao trânsito. Afinal, preza pela prudência como o seu cartão de visita. Chegando ao local desejado, um dos passageiros, o carona que estava no banco de trás, no lado oposto do motorista, desceu e anunciou que iria “acertar a conta” com o taxista. Nesse momento, João Pedro esperava receber o dinheiro da corrida, que não era muito. Entretanto, foi surpreendido pelo seu cliente. O passageiro, após descer do carro, sacou o revólver e o descarregou sem piedade, disparando cinco tiros no motorista. Dos cinco tiros desferidos cruelmente, na maldade, um atingiu o braço, outro a perna, um o ombro e dois a barriga do motorista. João Pedro, duramente combalido, agonizando, ficou caído no banco, ensanguentado. Depois de atirar, o casal e seu comparsa ainda tiveram sangue frio para roubar todo dinheiro que o taxista guardava no bolso esquerdo de sua camisa. Em questão de minutos já haviam sumido nas vielas da Avenida Protásio Alves. Todavia, por obra de Deus, o milagre havia acontecido. O taxista estava vivo, porém, muito ferido. Tinha fechado os olhos, em um lampejo de sabedoria, se fingido de morto, para não morrer. Desse modo, com uma força sobrenatural, João Pedro ainda esperou alguns minutos, até certificar-se que os ladrões não estavam por perto. Ligou o carro e, mesmo ferido, se diri-

giu à Santa Casa de Porto Alegre. No caminho, apesar de tudo, agradecia à Deus por estar vivo. Até hoje ele carrega no corpo as marcas dos tiros, a prova dessa história. Não foi a primeira vez que o taxista foi assaltado. Devido à falta de segurança, com esse somam-se cinco assaltos. Embora, evidentemente, este episódio tenha sido o mais violento que ele já passou. Após o ocorrido, o taxista permaneceu vinte dias internado no hospital e quatro meses parado, em recuperação. Ele tem consciência que nasceu de novo, que está vivo por obra de um milagre. No entanto, quando questionado se sente medo da insegurança da profissão, dos riscos, afirma: “Não tenho medo, pois esse é o meu trabalho, é meu ganha pão. Com o táxi que sustento minha família”. João Pedro segue trabalhando, na Rodoviária, ancorado pela fé. Assim como a história de João Pedro, outros relatos de assalto não faltam. José Voltair, 58 anos, trabalha há oito anos no ponto da Rodoviária e também já foi assaltado cinco vezes. A situação mais inusitada ocorreu quando os ladrões o colocaram no porta-mala de seu táxi. Na profissão, Voltair diz que todos os taxistas, infelizmente, estão sujeitos a isso, pois, segundo ele, a insegurança está em todo lugar. “É normal estarmos conversando na Rodoviária, daí

T AR LIS S C H N E IDE R

Depois de quatro meses parado, João Pedro voltou à rotina das ruas

84

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

pág 082 a 085 - dupl a 20 - t a xi s t a s - a r y e m a t he us .indd 84

2/12/2009 10:39: 50


um de nós vai fazer uma corrida e, depois de um tempo, chamam no rádio dizendo que alguma coisa aconteceu.” Durante o tempo que está nas ruas, como taxista, Voltair diz que já perdeu muitos amigos. Ele conta que todo mundo que trabalha na rua tem medo, devido à insegurança. Ressalta, porém, que gosta muito do que faz.

DE LM AR

C OS T A

Um caso de amor Mesmo com muitas histórias impressionantes, arriscadas, na profissão de taxista também existem histórias bonitas, de encontros, de amor. Uma delas aconteceu com o próprio taxista José Voltair. Apesar de trabalhar em uma profissão vulnerável, cheia de armadilhas, o taxista se enche de alegria quando fala de outros assuntos, principalmente da família. O trabalhador conheceu sua esposa no trabalho. O ano era 1996, e Nara Beatriz trabalhava em um restaurante, na capital. Ela solicitava diariamente os serviços do taxista que a levava até sua casa, no final do expediente. Com o tempo, foram criando intimidade, conversando, ficando amigos. As corridas ficaram cada vez mais próximas até que um dia Voltair convidou Nara para um encontro. Nascia uma grande história de amor. Voltair e Nara estão juntos há 13 anos, e dessa união nasceu uma filha. O taxista, ao relembrar aquele tempo, saudoso, como se estivesse passando um filme em sua cabeça, diz que deve tudo ao táxi, principalmente o seu casamento.

Atualmente, a Rodoviária de Porto Alegre possui uma frota com cerca de 400 carros

O mesmo sonho Antes de terminar a conversa e pegar mais um passageiro, José Voltair faz questão de esclarecer que o táxi é sua vocação, ou seja, ele exerce sua profissão com paixão, mesmo com o cansaço, o estresse do trânsito e as incertezas da rua. Ele cumpre sua função pensando no melhor, e isso pode ser visto no interior de seu veículo, equipado com GPS, rádio PX, ar condicionado, além de impecavelmente limpo e perfumado. Tudo para oferecer um serviço qualificado, confortável, ao cliente. Diariamente, milhares de pessoas passam pela Rodoviária de Porto Alegre. Pessoas chegando à capital para tentar uma vida melhor e outras indo atrás de seus sonhos. Em frente ao terminal rodoviário, no Largo Vespasiano J. Veppo, nº 70, uma frota gigantesca de veículos cor laranja trabalha, com afinco, dedicação, a fim de oferecer o melhor para o passageiro, levando-o, com segurança, ao destino correto. Uma profissão de trabalhadores como João Pedro e José Voltair, cheios de vivência e com inúmeras histórias para contar. Labutadores dedicados, disciplinados, que têm um desejo em comum: voltar seguro para casa, após mais um dia de trabalho.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando cheguei na Rodoviária de Porto Alegre para entrevistar taxistas que por ali trabalhavam, esperava conhecer muitas histórias. Meu primeiro contato foi com o fiscal do ponto, um jovem chamado João Rodrigo. Na conversa, em meio ao seu trabalho, ele disse que o grande movimento no local dava a dimensão da quantidade de histórias que ele já havia escutado. Naquele dia, como o horário era de grande fluxo, resolvi voltar em outro momento, mais tranquilo. Portanto, em um domingo de sol, véspera de feriadão prolongado, fui até lá para conversar com os motoristas. No ponto, constantemente em movimento, diversos taxistas exerciam sua profissão. Aos poucos, fui conversando com os taxistas que aguardavam seus passageiros no final da fila. Quer dizer, haveria um tempo para conversarmos. Depois de uma sondagem rápida, encontrei o taxista João Pedro. Gentil, porém, sério, ele relatou a história acima. Com certeza, depois do que aconteceu com ele, oão Pedro não tinha tantos motivos para risos. Na sequência, tranquilo em seu carro, estava José Voltair. Um taxista com um perfil oposto, ou seja, bem-humorado, com outras histórias para relatar. Considerei a conversa com eles um belo aprendizado, um choque de realidade para aqueles que, como eu, algumas vezes, reclamam das coisas mais inúteis, sem dar valor para o mais importante: a vida simples, como ela é.

(*) O nome foi trocado

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 082 a 085 - dupl a 20 - t a xi s t a s - a r y e m a t he us .indd 85

85

3/ 12/2009 16:53: 15


encontros despedidas& recomeço

UMA NOVA ETAPA É na velhice que homens e mulheres encontram uma outra maneira de viver Seu Assis e Dona Luci fi e o silo e C i e l

TEXTO| NATALIA CAGNANI e RAQUEL PIEGAS FOTOS| ANDRESSA OLIVEIRA e LARISSA AMARAL

AN DR E S S A OLIVE IR A

86

pág 086 a 090 - dupl a 19 - 3ª

ida de - r a que

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

l e na t a l ia .indd 86

3/ 12/2009 16:55:46


AN DR E S S A OLIVE IR A

A

bandono, descaso, solidão. Essas palavras vêm na mente quando se pensa em asilo. Mas entre as quatro paredes de uma casa de repouso, muita história há para ser contada, e um universo diferente pode surgir a cada vez que se ouve um simpático velhinho falar sobre sua trajetória. Cerca de 150 histórias de vida deixam as paredes brancas do Asilo Padre Cacique mais coloridas. A casa de repouso, que fica às margens do Guaíba, na Capital gaúcha, é mantida pela Sociedade Humanitária Padre Cacique, uma organização nãogovernamental, sem fins lucrativos. Originalmente concebida pelo padre baiano Joaquim Cacique de Barros em 1892, hoje é lar de homens e mulheres que cantam, dançam, trabalham e até estudam. No Padre Cacique só entra quem quer. É pré-requisito que o idoso manifeste desejo de morar no Asilo. Para isso, não são aceitos aqueles que possuam renda mensal de mais de dois salários mínimos. A instituição fica com 70% do ganho mensal de cada um, para arcar com alimentação, roupas e eventuais despesas médicas. Os outros 30% são entregues aos idosos, para eles empregarem como acharem melhor.

Mãe de todos Caminhando pelo corredor largo, que dá acesso a um dos jardins do Padre Cacique, vem Dona Anahyr. Passos curtos, porém firmes, ela percorre as alas do asilo há um ano e

meio. Foi por opção que Dona Anahyr Dias de Sant’Anna, 87 anos, fez do Padre Cacique seu lar pela segunda vez. A primeira foi quando teve um derrame, aos 80 anos. Já curada, foi embora e tocou sua vida sozinha. Mas o sossego durou até 2008, quando uma nova complicação surgiu. Anahyr sentiu uma tontura e, após sair de uma consulta com seu médico, decidiu voltar a morar no Padre Cacique. Imediatamente, procurou uma vaga. Sob protestos dos parentes, mudou-se para viver uma nova etapa. Dona Anahyr é uma guerreira. Trabalhou como cabeleireira, aceitou emprego em uma loja de confecções pela metade do salário e foi efetivada em menos de uma semana. Tudo isso tendo cursado somente parte do primário, dando a cara a tapa como a mulher de fibra que é. Solteira por opção, Dona Anahyr não teve filhos. Ajudou a criar a sobrinha, que trata como filha e hoje tem um “tataraneto”. “Ele tem paixão por mim. Vem me visitar e pula na minha cama, traz chocolate, traz batata doce assada”, entusiasma-se a “mãe adotiva” de alguns moradores do Padre Cacique. Ativa, Dona Anahyr se orgulha ao dizer que é de ferro. Sofreu dois derrames cerebrais e tem três pontes de safena, episódios que conta mostrando as mãozinhas pequenas e tortas, em decorrência do AVC. Quando entrou no Asilo pela segunda vez, frequentava os bailes semanais que ocorrem na casa, diversão que deixou de lado por culpa do reumatismo. Mas não fica parada: cuida de suas roupas, que lava e passa quase

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 086 a 090 - dupl a 19 - 3ª

ida de - r a que

l e na t a l ia .indd 87

Inaugurado em 1892, o asilo abriga 150 idosos

87

3/ 12/2009 16:54:33


encontros despedidas& recomeço

AN DR E S S A OLIVE IR A

88

pág 086 a 090 - dupl a 19 - 3ª

ida de - r a que

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

l e na t a l ia .indd 88

2/12/2009 10:59:57


diariamente. É sinal da independência, que ela faz questão de ressaltar que é financeira também. “Vivo às minhas custas. Me dediquei, trabalhei e não dependo de ninguém. Eu sou feliz.”

Tempo de namorar Um dos “filhos adotivos” de Dona Anahyr é Assis Malmacedo Nordes, de 69 anos. Casado há 38 anos com Dona Luci Rosa Scolcon Nordes, 59 anos, mora há um ano e sete meses no Padre Cacique com a esposa. A decisão partiu dele, cansado de esperar as promessas do dono da casa onde ambos trabalhavam como caseiros em Ponta Grossa. Queriam um canto só para eles, para que pudessem viver “sem atrapalhar ninguém”, como diz Dona Luci, sentada em uma cadeira de balanço. A chegada no Padre Cacique foi em duas etapas. Primeiro ele, convicto da escolha que fizera. Depois veio Dona Luci, que morou por dez dias com o filho e a nora em Canoas e não suportou a distância do marido. Tal como as mocinhas apaixonadas, Dona Luci sentiu tanta falta do amado que beirou à depressão. Não tardou para que ela também fosse morar no Asilo. No Padre Cacique, homens e mulheres ficam em alas separadas. Mas isso não os impede de namorar. Depois de quase quatro décadas de casamento, Dona Luci diz que ainda é apaixonada e que adora passar momentos com o marido. Seu Assis confirma, contando que saem para tomar chimarrão, jogar uma conversa fora, visitar os filhos. “Mas é sempre ela que marca o encontro”, conta o marido. Mesmo com o amor da família, o casal não pretende sair do Padre Cacique. “Aqui a gente não depende de ninguém, tem nossa privacidade”, conta Seu Assis, que completa com emoção: “Quem não gosta daqui não sabe o que é estar bem”.

A grande família da vó Embora o envelhecimento seja um processo natural, a escolha mais comum para lidar com idosos culmina na internação em asilos. Há casos mais raros, de famílias que convidam

os mais velhos para a convivência do lar. Todos os dias, a movimentação começa cedo na casa da vó Lecy Leghi de Oliveira, 79 anos. Na hora do almoço então, a casa fica ainda mais cheia. Mama mia! “Ninguém dispensa a comida da avó, todos os dias”, revela a filha Edite, 55 anos. Depois do caprichado mangiare, os netos assumem a cozinha para cuidar da louça. Edite foi criada no ambiente da costura. As duas trabalham juntas, fazendo roupas, desde apresentações de balé a peças peculiares e grandiosas, regadas a samba, do Carnaval. Não é difícil ouvir o tec, tec, tec da máquina na calada da noite. A dupla avança madrugada adentro costurando. E a vó aguenta firme, às vezes até mais que a filha. A vó Lecy dizia que ia parar de trabalhar aos 70 anos, mas a disposição a mantém na ativa, costurando como nunca. No ateliê que têm em casa, a matriarca conta com a companhia de um fiel escudeiro: o gato Mitz. Para lá e para cá, o bichano a acompanha, chama por ela, procura carinho e aconchego na hora de dormir. “É mais um filho”, diz a vó. Filhos e netos não faltam nesta animada família de descendentes de italianos. Ao todo, são 12 integrantes: a vó Lecy, a filha Edite, os netos Tiago, 28; Talize, 24; e Túlio, 21; incluindo três gatos e quatro cachorros. Fora a neta, que se mudou após o casamento, e sua yorkshire Raica, todos moram num apartamento na zona norte de Porto Alegre. O marido de Edite, André, já foi adotado como neto pela vó. Ela conta que ao sinal de qualquer dor, o genro já sai correndo para levá-la ao médico. Edite ainda reitera: “Aqui nós somos mãe de todo mundo, os filhos são pai de todo mundo. Eles cuidam muito da avó. No Dia dos Pais, toda a família se reúne aqui, ninguém sai sozinho”. Lecy e Edite vivem juntas há mais de 50 anos, união fruto de uma convivência que deu certo. “Um casamento”, completa a filha, entre uma troca de olhar e outra com a mãe, em sinal da cumplicidade mútua que existe neste singelo elo que liga os dois corações. Com a chegada do primeiro filho de

P R I M EI RA I M P R ES S Ã O 2 0 0 9 /2

pág 086 a 090 - dupl a 19 - 3ª

ida de - r a que

l e na t a l ia .indd 89

89

3/ 12/2009 16:59:30


encontros despedidas& recomeço

Edite, as duas se separaram por um ano, cada uma na sua casa, mas uma sempre visitava a outra. “A gente não conseguia ficar longe, não ficava sem se ver. Meu filho também. Eu sentia falta dela, ela ficava sozinha, e eu ficava preocupada com ela”, explica Edite. “Os meus netos são agarrados comigo. Enquanto ela trabalhava, eu cuidava das crianças. O Tiago saía do colégio e já ia ficar comigo. A Talize costuma dizer que nós casamos e ficaremos juntas pelo resto da vida”, acrescenta Lecy. E o neto caçula confirma: “Eu fui criado pela minha mãe e pela minha avó. É uma visão diferente do mundo, porque o pai vai querer passar a mão na cabeça. Elas te ensinam, e a gente aprende muito mais”. A filha Edite acrescenta: “Eu não sei ficar longe dela, nem meus filhos. Ela vai ficar comigo até o dia em que uma das duas for embora”. Dona Luci, Seu Malmacedo, Dona Anahyr, vó Lecy. Algumas histórias de vida que provam que não há idade para um recomeço ou simplesmente para viver. É preciso muito mais que tempo para derrubar quem tem vontade de deixar seu legado e ensinar que, na vida, o importante é o que se deixa aqui.

e é t i e li o o t s e es

IMPRESSÕES DE REPÓRTER O sol brilhava forte naquele sábado. Da janela do ônibus, vimos o nosso destino, um enorme casarão, com paredes claras e um imenso jardim. Após subir a escadaria, partilharíamos experiências invisíveis aos olhos de visitantes passageiros. Logo na entrada, um deles esperava ansioso pela chegada do padrinho, como fazia todos os finais de semana. Com o jornal na mão, contava-nos as últimas notícias e os anseios que almejava no futuro. Nos corredores, o silêncio era quebrado pelo som dos pássaros e pelas histórias de vida que iluminavam o local e mudavam aquela primeira imagem que tínhamos ao pensar em asilos. Um ambiente recheado de surpresas e frustrações. A dúvida de viver longe da família e o encontro com novos laços de afeto. No dia seguinte, a calorosa recepção da casa da vó Lecy e o forte elo que a une a família, afastando qualquer possibilidade de separação. Felicidades distintas, cada uma a seu modo. Em comum, a vontade de compartilhar sua história.

LAR IS S A AM AR AL

90

pág 086 a 090 - dupl a 19 - 3ª

ida de - r a que

P RIM E IRA IM P RE S S Ã O 2 0 0 9 / 2

l e na t a l ia .indd 90

2/12/2009 11:00:06


pág 091 - a núnc io 3.i

ndd 1

2/12/2009 11:06:18


pág 092 - a núnc io 1.i ndd 1

2/12/2009 11:07:25


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.