nÂş 34 | dezembro de 2010 |
pi primeira impressĂŁo
MĂşsica
para ler
[Cartola]
2 | novembro/2008 | primeira impressĂŁo|
AO LEITOR
O
menino ainda nem veio à luz e, da barriga da mãe, já escuta o acalanto. Dorme, meu pequeninho, dorme que a noite já vem. Mal nasce e já emenda canção de ninar, cantiga de roda e música para
acordar bem-humorado. Logo já entoam música para abrir o apetite, para comer mais depressa, para comer mais devagar e para comer o que nem dá vontade de comer. Que que tem na sopa do neném? Será que tem rabanete? Na escola, aprende o Hino Nacional, o Hino da Independência e o hino da própria escola. Salve, lindo pendão da esperança, salve, símbolo augusto da paz (que Augusto era esse?). Depois tem canção de namoro, barulho para incomodar os pais, minha banda favorita, a sonzeira nossa de cada dia.
Música para ouvir Arnaldo Antunes
Música para ouvir no trabalho Música para jogar baralho Música para arrastar corrente Música para subir serpente Música para girar bambolê Música para querer morrer Música para escutar no campo Música para baixar o santo
Como é bom poder tocar um instrumento. Antes que a gente perceba, a música percorre, preenche e pontua toda a nossa vida. Há réquiens para a despedida. De tão presente, a música chega, por vezes, a passar despercebida. Essa 34ª edição da Primeira Impressão, pautada, produzida e editada por alunos das disciplinas de Redação Experimental em Revista e Projeto Experimental em Fotografia, modula o volume para tentar apurar o que é mesmo que andamos ouvindo na nossa vida cotidiana. Há música para quem não ouve, música para perturbar vizinho, música para baixar o santo e até música para encantar búfalos. Ajuste os fones
Música para ouvir Música para ouvir Música para ouvir Música para compor o ambiente Música para escovar o dente Música para fazer chover Música para ninar nenê Música para tocar novela Música de passarela Música para vestir veludo Música pra surdo-mudo
e tenha uma boa leitura. Música para estar distante Música para estourar falante Música para tocar no estádio Música para escutar rádio Música para ouvir no dentista Música para dançar na pista Música para cantar no chuveiro Música para ganhar dinheiro
EDUARDO VERAS, FLÁVIO DUTRA E THAÍS FURTADO Professores-editores (com versos de Vinicius de Moraes, Paulo Tatit, Sandra Peres, Olavo Bilac, Caetano Veloso e Arnaldo Antunes)
Música para ouvir Música para ouvir Música para ouvir Música pra fazer sexo Música para fazer sucesso Música pra funeral Música para pular carnaval Música para esquecer de si Música pra boi dormir Música para tocar na parada Música pra dar risada
ANDRÉ ÁVILA
Música para ouvir Música para ouvir Música para ouvir
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ÍNDICE Música para afinar
Música para fazer sozinho
32
06 Música para guardar
10
Música para rezar
36 Música para sentir
Música para vender
40
14
Música para incluir Música para sambar
18
44
Música para incomodar
Música para encenar
24 Música para aprender
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48 Música para viajar
54
Música para tatuar
Música para gravar
58
86
Música para transformar Música para aquecer
62
90
Música para grudar Música para tomar mate
66 Música para cantar
70
94 Música para torcer
98
Música para celebrar
74
Música para casar
102
Música para dançar
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MÚSICA PARA AFINAR
ESCULTORES DE INSTRUMENTOS DOIS ARTESÃOS DE CAXIAS DO SUL SÃO UNIDOS ATRAVÉS DA PAIXÃO PELOS INSTRUMENTOS DE CORDA. NAS MÃOS DESSES LUTHIERS, A MADEIRA VIRA ARTE E SOM TEXTO DE ALINE BOF E LETÍCIA BRESOLIN CARDOSO FOTOS DE ANDRÉ ÁVILA
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O
som agudo e brilhante do violino já faz parte da vida do italiano Eugênio Coletti, assim como o afinar das cordas do violão soa natural para Jules Andrés Raupp da Rocha. Eles são luthiers, artistas, construtores e músicos. Embora sendo de gerações diferentes, os dois possuem a mesma paixão pela arte. Jules é marcado pela ambição própria da juventude, e Eugênio demonstra que o tempo não diminuiu a sua sensibilidade musical. Ele surpreendeu a repórter quando, durante a entrevista, ela pediu desculpas por ter dado um espirro. A resposta do luthier foi de que o seu ouvido de músico lhe indicava que o tom do espirro era um dó sustenido. A profissão de fabricar e consertar instrumentos de cordas é antiga. O nome tem origem no alaúde. Em italiano, liuto. Um instrumento de oito cordas com caixa de ressonância arredondada, como uma pêra. Já era utilizado pelas antigas civilizações, entre elas, gregas, romanas e egípcias. Liutio era aquele que o fabricava. Antes de ser assumida pela língua portuguesa, a palavra recebeu influência dos franceses, para quem alaúde significava luth. Acrescido do sufixo ier, temos o nome da profissão de Eugenio e Jules. Na sala da casa de Eugênio Coletti, na cidade de Caxias do Sul, região serrana do Rio Grande do Sul, os objetos se espremem nas prateleiras. São fragmentos de 84 anos de uma vida que teve origem em Treviso, na Itália. Lembranças materializadas em fotos, recordações de viagens e muitas miniaturas de instrumentos musicais. Tudo ressoa como um acorde maior. A música está em todas as partes. Aparece estampada nas fotos da família. Sua mãe, Zayda Roncca, foi a primeira violinista de Caxias do Sul. A esposa, Gabriela, também era italiana e violinista. Faleceu há oito anos. Ainda menino, Eugênio aprendeu a amar os instrumentos. Aos cinco anos, ganhou um pequeno violino e iniciou as aulas. Mais tarde, a guerra assolou seu país e o levou a abandonar os estudos de Direito para tentar a vida na Argentina. Mas não o fez
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sem antes prometer à Gabriela que voltaria para buscá-la. Depois de muito trabalho, cumpriu a promessa. Casaramse e começaram a construir a família em Buenos Aires. O violino estava sempre por perto, mas ainda não era profissão. Foi então que uma proposta de trabalho em uma vinícola fez a família se mudar para Caxias. Eugênio tinha 28 anos. “Vi que a cidade tinha suor, criatividade, fantasia, manejo do aço e do vinho. Mas faltava uma coisa que podíamos preencher: a música.” Os dois começaram a dar aulas de música em casa e faziam apresentações com um quarteto clássico de cordas. “Aquilo nos destacou por muitos anos”, reconhece. O ENCONTRO COM A PROFISSÃO O tempo em Buenos Aires e a umidade do local haviam destruído os dois instrumentos do casal. Assim a luthieria entrou na vida de Eugênio. Ele conheceu Reinaldo Hahn. Formado por músicos importantes, Reinaldo havia se especializado na construção de violinos. Enquanto Pelé fazia o milésimo gol, Reinaldo fazia o milésimo violino. O instrumento foi consertado, e Eugênio aprendeu a profissão. “Fiz quatro anos de escola com esse mestre. No começo eu paguei, até que ele viu o meu amor e me ensinou gratuitamente. Cheguei a fazer instrumentos com toda a sabedoria e arte”, conta. Construiu sete violinos, uma viola e um contrabaixo. Achou mais interessante deter-se nos consertos do que construir instrumentos muito caros e inacessíveis. No fundo da casa de Eugênio, está sua oficina. Aposentadoria é palavra que passa longe para o luthier, que ainda dá aulas de italiano e encontra tempo para tocar em festas na cidade. Até hoje, ele continua na oficina devolvendo à vida instrumentos que haviam desistido de existir. Eles estão pendurados por toda parte. Violões e violinos. Inteiros partidos ao meio. O chão está coberto por um tapete de serragem, excessos retirados da madeira que vai se tornar um novo instrumento. O último violino que ele construiu foi no ano de 1962. Um dos motivos pelos quais parou foi a entrada dos instrumentos chineses no mercado. “Não é possível fazer violinos na base de R$ 140. Os violinos chineses são feitos em regime de escravidão. Não posso trabalhar assim”, diz ele. Um violino leva cerca de três meses para ser construído e, segundo Eugênio Coletti, o segredo está na interpretação da madeira. Ele afirma que, para construir, precisaria de madeira estrangeira. Deveria importar madeira africana. Um instrumento assim custaria de R$ 3.000 a R$ 8.000, diz ele. Sobre o futuro da profissão de luthier, Eugênio é enfático: “Hoje em dia não recomendo, porque é morte certa, morte por fome. Ninguém pode trabalhar por 7 centavos por hora.” DIFÍCIL, MAS NÃO IMPOSSÍVEL O velho luthier recebe com frequência em sua oficina instrumentos chineses para conserto. Segundo ele, são como relógios parados que ele precisa fazer voltar a funcionar. Para Eugênio, o que é morte certa, para Jules é apenas o começo de um sonho profissional. Lutiher há nove
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anos, ele mora em Caxias há sete, onde criou a primeira escola de luthieria do Rio Grande do Sul. Uma casa de dois andares abriga a Andrellis, marca criada por ele, entalhada em cada novo instrumento que é lá produzido. No local, funcionam escola de música, de luthieria, venda de peças, de instrumentos e manutenção. Em 11 meses, Jules forma um luthier em sua escola. Já gerou 25 novos profissionais. “O diferencial do luthier é a customização, esse é o grande lance”, diz ele. Em sua oficina, o cliente pode dar um toque pessoal ao seu instrumento. A música é uma herança do pai músico que lhe deu as primeiras lições de violão, com 15 anos. Após dois meses de aula, as cordas uniram pai e filho em apresentações pelos bares de Torres. Faziam brotar de seus instrumentos música gauchesca, bolero e sertanejo, e ainda faziam serenatas. Jules começou a trabalhar com luthieria em 2001, quando fez o primeiro violão. “Foi terrivelmente mal feito”, reconhece. Descobriu em si o talento para construir e fazer manutenção em instrumentos. Procurou cursos, mas eram inviáveis, caros e longe demais. Parecia impossível, mas não foi. Decidiu aprender marcenaria através dos livros, pois o manejo da madeira seria essencial no trabalho. Sua vida também foi marcada por um grande mestre, Alberto Reginato, um marceneiro que tinha como hobby fabricar instrumentos. “Aprendi desde o tipo de cola até as madeiras a serem usadas para construir”, recorda Jules. Usou os restos de madeira da marcenaria de seu padrinho para dar vida ao que seria sua primeira obra de arte. Aprendeu a construir desconstruindo. Jules desmontou o violão de seu pai, parte a parte, para ver como era por dentro. Nas poucas revistas sobre luthieria, olhava bem as fotos e imaginava o que estavam fazendo. Foi evoluindo como autodidata. Na opinião de Jules, a profissão exige minuciosidade e três qualidades que, para ele, têm que andar juntas na construção de um instrumento: paciência, perseverança e precisão. Para construir um violão, é necessário um kit de madeira de boa qualidade, com certificado. Isso custa em torno de R$ 1.500. A fabricação leva aproximadamente 20 meses e o preço a ser cobrado pelo instrumento fica em torno de R$ 3.500. São realizadas três etapas para a fabricação: a escolha da madeira, o projeto para o cliente e, depois de impresso o projeto em tamanho real, a prática. Além disso, Jules climatiza as madeiras. “Deixo no tempo. Na rua, pega chuva, sereno, frio, calor, um clima diferente da minha oficina. Tem que estar resistente aos climas da nossa região explica ele. O luthier não abre mão de fazer tudo artesanalmente, embora ambicione uma produção em série. A meta de Jules é que até o final do ano que vem ele consiga construir 30 instrumentos por mês. E salienta: “Minha oficina é meu mundo”. Separados pelas gerações, os dois luthiers estão unidos pelos instrumentos de corda. Seguem insistindo em consertar e construir. Dão vida aos sons e aos sonhos de muitos na esperança de que sempre haverá quem vai pousar seus dedos sobre as cordas.
EUGÊNIO COLLETI, 84 ANOS, COMEÇOU A TOCAR VIOLINO COM CINCO ANOS E HOJE NÃO RECOMENDA A LUTHIERIA COMO PROFISSÃO
APAIXONADO PELO QUE FAZ, JULES RAUPP É LUTHIER DESDE 2001 E APRENDEU A CONSTRUIR INSTRUMENTOS A PARTIR DOS LIVROS
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“S
ábado chuvoso em Caxias do Sul. Procurávamos por dois entrevistados que iriam nos falar sobre um assunto que nem sabíamos claramente o que era. Luthieria. Chegamos à casa de Seu Eugênio, casa antiga e cheia de detalhes, os quais só ele mesmo poderia descrever de onde vieram e por que todos aqueles objetos estavam expostos na sala. Nosso objetivo naquelas entrevistas era saber mais sobre a construção, os consertos que Eugênio e Jules fazem nos instrumentos de corda. Com tanta experiência de vida que os dois têm, impossível falar apenas sobre a profissão. Ali ficamos sabendo sobre trechos marcantes de suas vidas, o que nos fez refletir sobre várias questões de nós mesmas. A tarefa de aula tornou-se prazerosa. Cada um com uma visão diferente da vida e da profissão. Para nós, repórteres, foi uma alegria ver duas pessoas do mesmo ramo que tomaram rumos diferentes e que amam o que fazem.”
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MÚSICA PARA GUARDAR
ARTIGO DE LUXO DO SÉCULO XXI TEXTO DE DIERLI SANTOS E ROBERTA REIS FOTOS DE JÚLIA WARKEN
PARA OS COLECIONADORES DE DISCOS, O MP3 TEM GRANDE UTILIDADE: AVALIAR QUAIS ÁLBUNS SERÃO COMPRADOS EM CD
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N
em mesmo invenções como o iPod conseguiram desfazer a paixão de colecionadores de CDs. A diferença é que o disco compacto deixou de ser um item necessário e virou um artigo de luxo para quem deseja guardar uma lembrança de uma banda que gosta ou de uma música que marcou sua vida. Colecionar é o nome da prática de reunir objetos que tenham algum significado especial para seu dono. Dessa forma, podemos classificar Leandro de Souza, 26 anos, como colecionador de CDs. Ao entrar no quarto de Leandro, ele já avisa: “Aqui estão meus CDs. Parece pouco olhando daqui, mas são quase 600”. Realmente, quando ele começa a tirá-los da prateleira, é possível notar o grande número de discos que ele possui. Mas o que o torna um colecionador não é exatamente a quantidade, mas a relação que ele tem com os CDs. O CD foi um dos meios mais populares de comercialização de música e é objeto de coleção de Leandro há 14 anos. Embora o disco tenha começado a ser comercializado em 1982, foi somente na década de 1990 que ele se popularizou no Brasil. Prometendo maior capacidade, durabilidade e clareza sonora, não demorou muito para deixar o LP para trás. Porém, com a explosão da internet e a chegada do MP3, acabou perdendo espaço. Ficou difícil competir quando passou a ser preciso somente um clique para ouvir o último lançamento de uma banda – e de graça. Mas há quem não tenha abandonado totalmente essa mídia (ou hábito?). Leandro é um exemplo de quem, apesar do pouco tempo, conseguiu juntar um acervo particular e continua amando os CDs. Leandro começou sua coleção aos 12 anos, quando ganhou seu primeiro aparelho portátil. Logo comprou o primeiro CD, de um show ao vivo dos Paralamas do Sucesso – que tem guardado até hoje. Nessa época, quem alimentava sua coleção ainda eram os pais, que sempre apoiaram os gostos do filho. “A parte intelectual dele sempre foi mais desenvolvida. Esporte nunca foi com ele”, conta Maria Elaine de Souza, professora de Educação Física. “Ele não podia ver CD. O pai dele dizia para comprar pirata, e ele dizia que não, tinha que ser tudo original.” Quando começou a trabalhar, em 1999, seu vício alcançou o auge, época em que chegou a comprar entre 15 e 20 CDs em um único mês, grande parte deles importada. “Ultimamente eu compro só um, dois por mês”, conta, considerando a quantidade baixa. Nem com a facilidade da internet a coleção parou. Ele baixa as músicas para conhecer bandas novas (inclusive no iPod só baixa álbuns completos e sempre com foto da capa), mas, se gosta, compra o CD. Sobre o que ainda o motiva a comprar um disco, ele pensa e logo responde: “Colocar ali na prateleira”. O processo mudou, já que antigamente comprava muita coisa que nunca havia ouvido, pois as fontes de informação na época eram as revistas, brasileiras ou importadas. Sempre procurando bandas novas e boas, já comprou CDs por indicação, pelo encarte bonito, por gostar de duas faixas que ouviu na loja e, principalmente, motivado por resenhas em revistas especializadas. Um caso curioso foi com a banda Pixies, sua preferida
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até hoje. Ouviu pela primeira vez quando tocou na rádio, enquanto voltava da escola. Ao chegar em casa não desceu, queria esperar o locutor anunciar o nome daquela faixa. Quando ouviu que se tratava do Pixies, lembrou que já tinha lido sobre a banda em uma revista e não pensou duas vezes para comprar o CD. Com as proporções que a banda tomou em sua vida, logo quis juntar toda discografia. Porém, o que ficou por último era, por ironia, o primeiro disco, que teve que importar. Após a encomenda na loja, demorou cerca de um mês para chegar: “Foi uma tortura, mas eu já estava acostumado. Quando o produto chegava na loja o cara me ligava e eu saía do trabalho na hora, não queria nem saber”. Alguns discos não eram apenas uma sequência de faixas, mas tentavam também criar rituais. Um exemplo é o álbum Zaireeka, dos Flaming Lips, um dos mais caros que Leandro já comprou. Custou cerca de R$ 200, é quádruplo, mas todos os discos têm as mesmas músicas em sons diferentes. A ideia é que todos os quatro toquem ao mesmo tempo para então ouvir a música completa, o que chamam de som octafônico. Leandro, como todo colecionador zeloso, não gosta de emprestar seus objetos. No caso desse CD, evita até mesmo ouvi-lo. “Este nem eu encosto muito. Tenho há cinco anos e está novinho”.
A REVOLUÇÃO DA INTERNET
A internet trouxe uma maior aproximação com a música. Não apenas pelo poder de baixar música de graça, mas também por facilitar a compra. Como morador de Campo Bom, Leandro não podia contar com lojas especializadas por perto. Com os sites que vendem CDs, inclusive internacionais, ficou muito mais fácil para comprar e ainda recebê-los em casa. Antes dessas facilidades, Leandro era um dos clientes de uma loja de Novo Hamburgo que encomendava CDs importados. Esperava cerca de três semanas até que o produto chegasse à loja. “Eu comprava CD importado na época em que o dólar estava lá em cima. Na época do 1 por 1 era maravilha total, comprava um CD
importado por R$ 25”, ele conta, lembrando que era uma das poucas pessoas com menos de 15 anos que se preocupava com a cotação do dólar. Ele compara as mudanças no processo de compra de CDs: “Hoje em dia no MP3 tu ouves um disco e, se não gosta, deixa de canto. Naquela época tu compravas o CD e, por ter gasto uma grana, investido teu dinheiro, tu tentavas vencer o CD”. Até nos finais de semana, os CDs faziam parte da programação do garoto. “Eu, guri sem muitos amigos, ficava em casa ouvindo CD. Só na faculdade que eu comecei a ter vida social.” Essa vida social surgiu através de amigos com gostos parecidos para música, com os quais trocava discos ou emprestava para gravar. Desse grupo de meninos, todos estudantes de Jornalismo e interessados em música, cinema e cultura em geral, nasceu um site, o Gordurama, que durou de 2003 a 2008. Para os colecionadores da região, uma das principais lojas sempre foi a Jam Sons Raros, que existe há 18 anos, no centro de Novo Hamburgo. Apesar de especializada em raridades, também sofreu com a chegada do MP3. O que a salva ainda é o diferencial, comercializar sons clássicos, músicas que não envelhecem. “Ninguém vem nos perguntar do novo do REM, mas o primeiro ou o segundo procuram sim”, relata Jean Rangel, 32 anos, um dos sócios da loja que vende CDs, DVDs e LPs nacionais e importados, novos ou usados. Muita raridade já passou por lá, discos que não são mais fabricados e não seriam encontrados em lojas convencionais. “Tem muitos que dizem ‘Puxa, eu procurava esse disco há anos’”, diz Rangel sobre os clientes que passam por lá. “Nossa principal satisfação é ver a pessoa saindo feliz da loja.” Ele conta que os clientes procuram mais por CDs, mas no momento há uma moda de discos de vinil que dá volume à procura de LPs. O CD não vai deixar de existir. Pelo menos não enquanto estiver viva essa geração de colecionadores, que não se contenta apenas com música passageira e pouca informação.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“F
icamos surpresas em como passar o sábado fazendo um trabalho de faculdade pode ser divertido. Apesar dos deslocamentos de cidades, das horas de entrevistas, foi um tempo bem investido. Não só porque rendeu uma boa entrevista, mas também porque foi uma boa conversa. Enquanto tirávamos nossas dúvidas com o Leandro, case central da nossa reportagem, acabamos descobrindo tantas coisas legais que as perguntas diziam mais respeito à nossa curiosidade. Apesar de no início termos votado em outro assunto, a escolha do tema música com certeza tornou o trabalho prazeroso para todos. No meio daquele monte de CDs, acabamos encontrando bandas que gostávamos, músicas antigas e gostos em comum. Tudo passou pela conversa: séries, videogame, revistas, coleção de figurinhas, e, é claro, música. Ouvindo nossa gravação da entrevista, concluímos que o trabalho pareceu uma tarde de sábado com conversas interessantes entre amigos. Que bom se toda entrevista fosse assim, não?”
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LEANDRO SOUZA TEM MAIS DE 600 CDs, INCLUINDO RARIDADES COMO O ÁLBUM QUADRUPLO ZAIREEKA, DOS FLAMING LIPS
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MÚSICA PARA SENTIR
O RITMO TAMBÉM EMBALA AS FESTAS DE QUEM NÃO CONSEGUE OUVIR
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TEXTO DE ÉDER KURZ E GIOVANI NEVES JUNIOR | FOTOS DE LUCIANA BORBA
O
colorido dos balões alçados no teto, bem no centro do salão, reflete a alegria de uma tribo. Estão cheios de um ar expelido dos pulmões de quem sempre fez força pela dignidade. Foi numa noite fria e chuvosa que conhecemos o 1º Bailoco, uma festa a fantasia promovida pela Sociedade de Surdos do Rio Grande do Sul. O cartão de visitas é o sorriso. As pernas cruzadas e uma saia que mal cobre os joelhos, um atestado de coragem, de ousadia. Verônica Chiden, 56 anos, está toda de preto. Veste uma blusa de seda fina, que deixa braços e pescoço bem à mostra. Passa um atestado de que a deficiência auditiva não é o fim do mundo. Diante de dois curiosos estudantes de Jornalismo, Verônica é bem mais desinibida que muito marmanjo dito “normal”. Poucas vezes olha nos olhos. Não que isso seja de seu perfil, mas porque tem de ver os gestos da tradutora e professora de Libras — a língua de sinais dos deficientes auditivos — Nara Vidal. É através dela, uma senhora simpática, que foi logo avisando que tem uma filha surda, que Verônica abre o coração. Ou quase isso. Em pouco mais de uma hora de conversa, recordou das dificuldades na adolescência e na juventude, na família e na vida social. Só não quis dar detalhes de como se sustenta atualmente. Simplificou em gestos à tradutora: “Verônica disse que não quer falar muito sobre isso. Ela vive como pensionista. Conseguiu por causa de uma avó, que é juíza e se preocupava com ela”, relata Nara, que aprendeu com Verônica as palavras pelos gestos. Verônica é vítima de complicações no parto da mãe. O cordão umbilical estava enrolado ao pescoço da pequena Verônica, que sofreu perda de 90% da audição. Nem mesmo os questionamentos sobre
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a infância fazem Verônica perder a simpatia e o sorriso de cartão de visita. “Era muito difícil a comunicação. Era feita através da visualização, do oralismo”, relembra. “Quando era criança, demorei muito a me oralizar, e isso me abalou emocionalmente. Com seis anos, fui colocada numa escola particular, com turmas integradas.” Verônica descobriu um mundo preconceituoso e individualista. Na adolescência, pensou que a morte era o melhor caminho. “Passei um período que não queria viver”, gesticula, balançando a cabeça da esquerda à direita. As amizades foram poucas na juventude. Vivia em um mundo surdo. Crescia sozinha. Até entrar na Escola Frei Pacífico, em Porto Alegre. Tinha 16 anos e começou a aprender a se comunicar através das Libras. Os dias passaram a ter novos sons. Como a música, algo que não dava a menor importância até a juventude. “Sentia apenas a vibração. Passei a entender e a pegar muito pelo agudo. Pela batida, consigo perceber o som”, descreve Verônica, sobre a maneira como descobriu o ritmo das músicas.
Ao aprender a língua dos surdos e ao perceber que outros caminhavam pela mesma estrada, Verônica encarou a deficiência. Teve namorado que era ouvinte. Viveram juntos. Mas ele acabou indo embora. “Não deu certo”, conta. A união deu fruto. Yasmim tem hoje 21 anos, é ouvinte e o orgulho da mãe. Verônica passou a frequentar a Sociedade de Surdos do Rio Grande do Sul aos 41 anos. Ocupou vários cargos. Hoje é a presidente. Viaja como representante da entidade para encontros fora do Estado. Em uma das idas a São Paulo, reencontrou um antigo namorado. Um amor de 30 anos atrás. Ele, Sérgio Capobianco, 60 anos, é surdo. Está perto de se aposentar e pretende vir morar em Porto Alegre. Verônica sonha em se casar na igreja. “De véu e grinalda, que terá dez metros”, diverte-se. Diversão, alegria e descontração marcaram o restante da noite de Verônica no Bailoco promovido pela Sociedade dos Surdos. “Hoje me sinto muito bem, especialmente numa noite de festa para os jovens, que foi organizada por
contribuições, com todos fantasiados para incentivar o grupo a participar da festa”, destaca Verônica. A música, a letra, o cantor é o que menos importa para os deficientes auditivos. A batida é que interessa. Faz subir a adrenalina. “A festa é uma maneira de aproximar os jovens não ouvintes”, resume Verônica. DANÇA NO RITMO DAS BATIDAS Olhos castanhos, longos cabelos cacheados, vaidosa e apaixonada por música. Aos 35 anos, Isabel Casagrande Batista é dona de um sorriso contagiante e único. E de uma surdez profunda desde que nasceu. O que seria um impedimento para muitos é motivo de força de vontade e de superação para Isabel. Nem a falta do som, das vozes das músicas, a atrapalham na hora de fazer o que mais gosta: dançar. Como? Pelo ritmo das batidas e dos amigos. Tanto que é frequentadora assídua das festas em casas noturnas de Porto Alegre e Região Metropolitana. Como toda mulher bonita, Isabel chama a atenção dos homens. No entanto, a surdez atrapalha no momento da paquera. Para nos demonstrar a situação, ela representa o papel de um homem se aproximando dela numa balada. Imita de forma cômica a cena que não deve ter sido engraçada no momento. Segunda ela, um homem lindo ficou observando ela dançar durante um bom tempo. Ao se aproximar para tentar conversar, logo que percebeu que ela era surda simplesmente fez sinal de desculpa, e foi embora. Isabel conta que muitos homens “fogem” dela ao notar que é surda, mas sempre existem os mais espertos que não deixam que isso atrapalhe e utilizam o celular para escrever mensagens e trocar algumas frases. De 15 em 15 dias Isabel pode ser encontrada nas baladas noturnas da grande Porto Alegre. Ritmo predileto? Todos, mas ela destaca que gosta muito de dançar vanerão e música eletrônica. Por sofrer de surdez profunda, Isabel apenas sente as vibrações sonoras. E quem dis-
se que surdo não pode ter um rádio em casa? Pois essa mulher tem tamanha paixão por música que possui um rádio portátil em casa. Natural de Camaquã, Isabel foi educada através da oralidade. Aos 15 anos, durante uma viagem a Pelotas, percebeu que existiam muitas pessoas com a mesma dificuldade que ela. A partir de então decidiu procurar a Sociedade de Surdos. Casada três vezes — o primeiro e o terceiro casamento com homens surdos e o segundo com um ouvinte —, atualmente namora com um surdo e está muito feliz. Após as entrevistas, fomos embora, mas a festa continuou. Uma festa como outra qualquer, em que a única diferença era a maneira como as pessoas sentiam a música. Sem dúvida, a música é feita para ser ouvida, mas, antes disso, ela foi criada para ser sentida. Afinal de contas, muitas vezes escutamos músicas em inglês ou francês sem ao menos sabermos o que a letra quer dizer, apenas porque a sonoridade agrada aos nossos ouvidos. O mesmo vale para os surdos, embora não consigam diferenciar claramente os sons. Eles sentem as frequências sonoras, principalmente as graves. E não importa como ela chega até nós, o importante é ter a música em nossas vidas.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“C
omo contar uma história partindo do princípio de que as fontes não escutam nem falam? Eis o desafio. Um desafio e tanto para dois estudantes de Jornalismo. Depois que a turma optou pelo tema música, pensamos: “Qual pauta vamos sugerir?”. Queríamos fazer algo diferente. Começamos a nos questionar como os surdos conseguem sentir os sons. E fomos atrás da Sociedade de Surdos do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Foi lá que encontramos a nossa pauta. Nossa história. Surdos que frequentemente promovem festas, como o Bailoco, que teve sua primeira edição em setembro. Uma festa embalada por música eletrônica e axé. Recebemos a ajuda da tradutora Nara Vidal, que nos auxiliou nas entrevistas. Ficamos por mais de duas horas no Bailoco, mesmo nos sentindo meio deslocados. Éramos os únicos ouvintes em meio a dezenas de surdos. Pessoas sem preconceitos e que dividiam sorrisos pelos passos repetidos um do outro. E mesmo não sabendo Libras, por vezes conseguíamos trocar algumas frases com os surdos através dos sinais. Aprendemos que, seja qual for a forma, o essencial é ter algum meio de se comunicar.”
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MÚSICA PARA INCLUIR
QUANDO OS SONHOS VIRAM REALIDADE A VIDA DE 32 CRIANÇAS DE FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA DA CAPITAL GAÚCHA MUDOU COM A ORQUESTRA DE CÂMARA JOVEM DO RIO GRANDE DO SUL
TEXTO DE ÂNGELA VIRTUOSO E ROSANNA RAMOS FOTOS DE ÂNGELA VIRTUOSO
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ALAN ESTUDA PELA MANHÃ E, À TARDE, ENSAIA COM OS COLEGAS DA ORQUESTRA
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D
esde pequeninha, Angelis Teixeira Lima, 12 anos, gostava de música clássica. Ela assistia sozinha a concertos de grandes orquestras na televisão. Com oito anos, a menina disse para a mãe que queria aprender violino. Mas a possibilidade de tocar o instrumento estava muito distante da realidade de sua família. “Não teríamos recursos para bancar aulas e instrumento”, conta a mãe, Ângela. O sonho da menina chegou mais perto quando a Orquestra de Câmara Jovem do Rio Grande do Sul abriu as seletivas para sua primeira turma. Na ocasião, mais de 1,3 mil crianças e adolescentes se inscreveram. Os jovens participaram da avaliação aplicada pelo corpo docente do projeto, e, dos que passaram pelo teste básico de ritmo, 360 foram selecionados para uma oficina de uma semana. Para a etapa seguinte, apenas 32 — entre eles, Angelis — ficaram e formaram a Orquestra. Quando, enfim, passou a tocar violino, ela teve certeza da carreira que queria seguir: a da música.“A orquestra é tudo para mim. Aqui, aprendi a tocar e tive a certeza de que é isso que quero ser.” No último ano, muita coisa mudou na vida da menina. Dedicada, tornou-se uma das mais promissoras da turma e agora não tem dúvida: quer fazer faculdade de Música, mesmo objetivo da maioria dos colegas. Ela aponta para a Europa no mapa-múndi e diz que é ali que vai morar. “Meu sonho é tocar na Orquestra de Berlim”, conta, emocionada. Todos os integrantes da orquestra foram selecionados em escolas públicas de Porto Alegre. Escolhidos em famílias com renda mensal inferior a três salários mínimos, cada um recebe uma bolsa-auxílio de R$
ANGELIS LIMA FOI UMA DAS 32 CRIANÇAS SELECIONADAS PARA FORMAR A ORQUESTRA
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190 mensais — paga pelo governo do estado — para garantir o transporte até os ensaios e a alimentação, mas são comuns os casos em que esse dinheiro ajuda no sustento da família. No caso de Angelis, é com esse dinheiro que ela faz suas compras.“Depois de entrar para a orquestra, ela ficou mais organizada. Por isso, deixo com ela o valor da bolsa e ela o administra sozinha. Quando precisa de alguma roupa, materiais, já tem esse dinheirinho. Agora, ela quer botar aparelho dentário, então está economizando”, diz Ângela. Não se exigia experiência nem intimidade com qualquer instrumento, mas a sensação que se tem ao ouvir as crianças tocarem é de que já fazem isso há anos. Nas férias escolares, em janeiro e fevereiro, elas poderiam ter parado, mas pediram para continuar praticando. Os ensaios em casa também fazem parte da rotina.“Agora eles estão em uma etapa em que realmente têm de se dedicar. Abrem mão de sair, de brincar, de jogar bola, ou dormir até mais tarde no final de semana. Estamos aumentando o nível de exigência, pois o objetivo é criar uma orquestra profissional”, explica o maestro Telmo Jaconi, 60 anos. A agenda de apresentações começa a ser preenchida. Na primeira vez em que os jovens músicos vestiram a roupa de gala preta para a estreia oficial no Theatro São Pedro, em abril deste ano, foi difícil segurar a ansiedade. “Tinha um banco que batizamos de banquinho do choro. Todo mundo sentou um pouquinho lá para chorar, mas não era de nervoso, era de emoção”, conta a menina. Angelis agora já toca em casamentos e cerimônias da igreja. E, aos poucos, o nervosismo vai dando lugar à segurança.
MÚSICA QUE TRANSFORMA
Quem observa Alan Marcos Serpa a deslizar, sereno, as cerdas do arco sobre as quatro cordas do violino não imagina como a música clássica transformou o mundo do garoto. O carioca, de apenas 11 anos, só “nas-
ceu” para a vida em fevereiro de 2009, quando ingressou na Orquestra de Câmara Jovem. “O projeto salvou o meu filho. Cheguei a pensar que ele tivesse autismo ou algum outro problema neurológico”, revela Chirleide Dantas Bezerra, mãe de Alan. Há cerca de dois anos, ela saiu do Rio de Janeiro e encontrou em Porto Alegre uma chance de recomeçar. Veio do Sudeste do país com o caçula e a primogênita, Amanda, hoje com 14 anos, a convite do padrasto das crianças, Silvio Xavier. “Nos mudamos para a terra natal do meu companheiro porque lá estava difícil de conseguir um emprego e também porque precisávamos fugir da violência. E foi por já ter visto de tudo que Alan, mesmo tão novinho, se tornou um menino recluso e pouco interessado em qualquer atividade”, completa. Ele, inclusive, desprezava a música. E tinha motivos para tal: o garoto sabia que a mãe havia deixado de lado o seu sonho de tocar teclado para criar os filhos e viu, ainda, há alguns anos, o pai biológico vender esse instrumento, tocado com habilidade pela irmã, para comprar drogas. Mas a mudança de contexto pode transformar uma pessoa, e de uma hora para a outra. Um dia, depois de tantas tentativas de plantar nele o amor pela música — até mesmo por sugestão de uma psicoterapeuta do Rio —, Chirleide ficou surpresa quando Alan chegou em casa da escola com um panfletinho em mãos. “Para a minha plena felicidade, ele me pediu para inscrevê-lo na seletiva da orquestra”, relembra a mãe. Durante as eliminatórias, eles rezaram muito, afinal, só por meio do projeto o garoto poderia estudar música. Aulas particulares, por exemplo, nunca caberiam no orçamento da família. A bolsa-auxílio de R$ 190 passou a ser uma das rendas fixas da família. Mas a mãe não fica com o dinheiro para ela, apenas administra o valor cedido pelo menino porque é necessário colocar comida na mesa. Até a metade de 2010, Alan também ajudava Chirleide vendendo os salgadinhos feitos por ela aos colegas de orquestra. Nos intervalo dos ensaios, de terça a sexta-feira, ele deixava o violino de lado e tirava da mochila um potinho cheio de delícias. Hoje, o garoto ocupa esse pequeno tempo experimentando outros instrumentos, para desenvolver ainda mais o seu talento. Alan desloca-se, de graça, de casa até o centro – e viceversa – com o consentimento dos cobradores e dos motoristas da linha Glória, bairro onde mora. Ele dribla a roleta e escorrega por baixo dela o seu corpo de um metro e meio de comprimento. No turno da tarde, o pequeno ainda precisa encontrar um jeitinho de passar o violino pelo equipamento de controle de passageiros. “Escolhi esse instrumento por ser o de som mais agudo, além de ser mais leve e fácil de carregar, afinal, sou pequeno, né?”, justifica. Alan, pela manhã, vai à escola. De tarde, se reúne com os integrantes da orquestra para desenvolver a obra musical em conjunto. À noite, é hora de estudar mais um pouco. “Depois de ver a novela — eu sou muito noveleiro —, faço os temas e volto para o violi-
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no. Toco de 30 a 40 minutos antes de ir dormir”, relata. A família tem um gosto musical apurado. Na pequena casa de madeira, ninguém escuta pagode ou funk, por exemplo. Nos momentos de lazer, se não está jogando bola ou videogame, Alan fica na companhia dos pais, conversando ou escutando a coletânea de Chico Buarque e DVDs de músicos consagrados como Tom Jobim, João Bosco e Manuel Rosa.
Como é contrário aos ritmos incentivados pela indústria cultural de hoje, o garoto também é alvo de chacota, principalmente na escola. “A música erudita não é popular. Fora que muitos da minha escola tentaram entrar na orquestra e só eu consegui. Então eles pegam no meu pé, não importa o que eu diga ou faça”, conta Alan. “Os colegas acham que ele quer aparecer, até já apanhou na escola. Mas ele não reclama de nada.
Só não quer que machuquem a mão dele, porque aí não poderia tocar”, completa a mãe. Alan tem ainda mais um desejo: um dia tocar no naipe Violino 1, responsável pela melodia das obras. Atualmente, ele faz parte do grupo de acompanhamento, o Violino 2. “Não peço para trocar porque essa parte da orquestra poderia ficar desfalcada”, conclui, mostrando ser um pequeno menino de grande coração.
ALAN ESCOLHEU O VIOLINO POR TER UM SOM AGUDO E POR SER FÁCIL DE TRANSPORTAR
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CONHEÇA O PROJETO Criada em março de 2009, a Orquestra é um projeto que visa à inserção social e musical de crianças e adolescentes de baixa renda e a criação de oportunidades no mercado de trabalho. Iniciativa da Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social (SJDS), conta com a parceria da Famurs, com o patrocínio do Banrisul e apoio da Secretaria Estadual da Educação, Ministério Público Estadual (MPE) e Prefeitura de Porto Alegre.
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mpressionante foi como as nossas percepções acerca da pauta foram mudando ao longo do percurso – da escolha do tema à finalização do texto. A princípio, falar sobre um projeto de música clássica dedicado exclusivamente a crianças de baixa renda nos parecia prático, simples, fácil. E não se deu diferente a execução das etapas do processo. No entanto, mesmo concluindo o curso de Jornalismo, aprendemos uma lição importante, básica por assim dizer: de nunca menosprezar um assunto; se entregando à pauta, as surpresas podem ser muitas. Quando fomos à sede do projeto para acompanhar um ensaio da Orquestra, nos deparamos com um prédio de porta trabalhada, um hall de entrada luxuoso – de tapete vermelho, lustre de cristal e tudo – salas grandes e crianças sorridentes. Ao sermos apresentadas, não sabíamos se as mais encabuladas ali éramos nós ou elas. Depois, durante uma conversa ao fim da tarde com os cases indicados pelo maestro, nos deixamos contagiar pela pureza e o entusiasmo de Angelis e Alan. Ouvimos com atenção suas histórias, e ainda o depoimento da mãe da menina. Já a partir do encontro com a família de Alan, trabalhoso mesmo foi compilar numa lauda uma vida cheia de peculiaridades. Agora, nada mexeu mais com a gente do que a visita ao lar do pequeno violinista. Numa sexta-feira, logo na sequência de uma audição na Catedral Metropolitana de Porto Alegre, fomos com o garoto, Chirleide e o esposo ao bairro Glória. Descemos do ônibus, entramos num corredorzinho estreito e andamos cerca de 50 metros até pararmos em frente a uma retalhada casinha de madeira, sem portas nos cômodos e não muito organizada. Em compensação, as palavras proferidas na entrevista e as músicas da apresentação improvisada exclusivamente para nós foram escolhidas com cuidado por pessoas cultas e realizadas. Uma experiência surpreendentemente do avesso.”
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A SOCIEDADE DO BARULHO
A COMPLICADA CONVIVÊNCIA COM A MÚSICA ALTA QUE ECOA NOS CORREDORES DOS PRÉDIOS E NO TRANSPORTE COLETIVO
MÚSICA PARA INCOMODAR
TEXTO DE DANIELA MACHADO E JULIANA JEZIORNY FOTOS DE TATIELE PRUDÊNCIO
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anha pão de uns, hobbie e até terapia para outros. Presente em todos os momentos da vida, não importa qual seja o estado de espírito da pessoa, lá está a música. Responsável por causar sensações inexplicáveis no humor, consegue extrair sorrisos de rostos esperançosos e lágrimas de corações partidos. De samba a rock, os estilos variam em cada casa noturna e também nos lares mundo afora. Alguns guardam preconceito pelo gosto musical alheio, outros se dizem ecléticos e não se importam em trocar alguns minutos de pagode por sertanejo. O que importa em todos os casos é respeitar os decibéis permitidos, o horário estipulado e as pessoas presentes no ambiente. A inclusão digital facilitou a aquisição de aparelhos celulares e rádios hipermodernos a baixo custo. E é aí que começam os problemas. Nem todo mundo respeita o espaço público e acaba deixando o bom senso de lado na hora de escutar música — a todo volume — nos lugares que frequenta ou em sua própria casa. Não importa a hora do dia ou a cidade pela qual se ande, basta entrar em um trem ou ônibus que, na maioria das vezes, é possível se deparar com alguém compartilhando a sua playlist com o resto das pessoas. O analista de suporte Tiago Motta, 20 anos, conhece bem esse problema. Há dois anos, faz diariamente o trajeto Novo Hamburgo - Porto Alegre. Para chegar até o local de trabalho, pega dois ônibus e um trem. Como atende diversos clientes na capital gaúcha, por vezes precisa se deslocar em vários transportes coletivos ao longo do dia. Estudante do terceiro semestre de Sistemas da Informação na Unisinos, duas vezes por semana ainda muda sua rota no final da tarde para estudar em São Leopoldo. Em meio a essa rotina de idas e vindas, já se deparou diversas vezes com passageiros escutando música sem fone de ouvido. “Já ouvi de tudo: eletrônica, funk e até brega. Essas pessoas escutam música para elas e para os que estão ao seu redor”, desabafa. Motta nunca teve coragem de abordar quem incomoda o sossego alheio, mas já presenciou alguns incomodados pedirem para o volume ser baixado. “Os perturbadores do silêncio até dão uma diminuída no som, mas é só a pessoa que pediu para fazer menos barulho sair de perto que eles voltam a aumentar”, reclama.
A EMPRESA DE TRANSPORTE CARRIS CRIOU UMA CAMPANHA PARA O USO DE FONES DE OUVIDO NOS ÔNIBUS
CONSCIENTIZAÇÃO CRIATIVA A campanha pelo uso de fones de ouvido nos ônibus feita pela empresa de transporte porto-alegrense Carris está sendo bem aceita entre os usuários. Segundo o coordenador de Comunicação e Marketing da empresa, Márcio Lara, as constantes reclamações dos usuários fizeram com que o setor de comunicação criasse uma campanha de conscientização. “Muitos passageiros reclamavam que algumas pessoas escutavam música alta sem fones de ouvido, transformando
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O PRODUTOR MUSICAL LEANDRO BREHM RECEBIA CARTAS QUILOMÉTRICAS DE UMA VIZINHA QUE NÃO SUPORTAVA O VOLUME DAS MÚSICAS QUE ELE OUVIA
o ônibus em um trio elétrico. Para acabar com esse desconforto, criamos uma campanha e primeiro a disseminamos no Twitter, um canal em que entramos em contato direto com os jovens, que hoje representam mais de 40% dos usuários dos nossos serviços”, explica. Por meio do perfil @Carris_POA, a empresa colocou três layouts de cartazes da campanha para votação e ficou entre os dez perfis mais retuitados da semana no site de rede sociais Twitter durante o período de escolha dos internautas. O layout vencedor já está circulando nas televisões existentes no interior dos ônibus da Carris e não tem prazo para sair do ar. Quando fala sobre a aceitação da campanha pelos passageiros, Márcio é categórico. “Foi a melhor possível! Também ganhamos muita visibilidade nos veículos de comunicação. Até em Salvador teve uma pessoa que se interessou pela campanha e disse que vai levar a ideia para os órgãos responsáveis pelo transporte público de lá. Os usuários seguiram mandando mensagens de apoio, su-
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gestões para novas campanhas e muitos elogios”, ressalta. Tiago viu a campanha da Carris sobre o uso dos fones de ouvido e aprovou a iniciativa. “Já vi nas televisões dos ônibus. Como as pessoas estão ali distraídas com a programação, além das notícias, já veem a mensagem da empresa sobre o uso dos fones e aderem à ela”, diz. O BARULHO MORA AO LADO É sabido que, quando moramos em apartamentos ou condomínios, são impostas algumas regras, principalmente quando o assunto diz respeito ao barulho. Porém, quando não se respeita o limite do outro, as coisas podem ficar bem complicadas. É o caso do arquiteto Leandro Brehm de Lima, 33 anos. Após residir em cidades como São Paulo, Buenos Aires e Florianópolis, Leandro voltou para Porto Alegre e acabou indo morar em um prédio localizado no Centro da cidade. A primeira manhã na casa nova foi o marco inicial de uma guerra sem fim com uma vizinha, devido aos altos deci-
béis advindos do computador dele. “Era umas 10h quando acordei e coloquei uma música para arrumar a mudança e trazer boas energias ao meu ambiente particular. Em menos de 15 minutos, ouvi batidas desesperadas na minha porta. Era uma vizinha, que logo se apresentou como moradora e advogada e falou durante muito tempo sobre ondas sonoras, fragilidade do prédio, convivência em sociedade e sobre aquele som que estava incomodando os seus ouvidos”, explica. Prontamente o volume foi diminuído por Leandro, contudo, as complicações só estavam começando. Passados alguns meses, ele deixou de ter a música apenas como hobbie e começou a trabalhar efetivamente com ela, como produtor musical e DJ. Com aparelhagem própria, iniciou pesquisas e mixagens de músicas no seu apartamento. A vizinha, por sua vez, complementava as reclamações verbais com bilhetes passados por baixo da porta. “Eram cartas quilométricas que falavam de convivência e som”, explica ele. Leandro sempre acabava baixando o volume, ainda que estivesse seguindo as regras de horários permitidos para escutar música mais alta estabelecidas pela lei do silêncio, que proíbe altos decibéis entre 22h e 7h.
Mas engana-se quem pensa que a vizinha só reclamava de Leandro. Em uma tarde de sábado, a moradora atravessou a rua e foi ao prédio em frente ao seu para protestar contra o volume alto que ultrapassava as paredes. A partir dessa data, todos os condôminos começaram a isolá-la e não dar mais atenção para suas reclamações. Depois de dois anos e meio de discussões e queixas, a moradora resolveu se mudar. Leandro, que nunca havia enviado nenhuma carta para sua vizinha, resolveu fazê-lo. “Escrevi que era para ela, nesta nova casa, não abrir mão de nenhum pré-requisito de felicidade, como vedação acústica e isolamento total de vizinhos”, ironiza. No dia da mudança, ocorreu um fato curioso, os condôminos comemoraram a saída daquela que consideravam a antissocial do prédio. “Absolutamente todos os moradores do prédio colocaram balões nas suas portas como forma de celebração. Ninguém falou nada, mas com certeza ela entendeu”, lembra Leandro. Leandro garante que só se estressou com essa vizinha. “Nunca tive problemas com outros moradores, porque sei o quanto a música alta incomoda. Quando passa do horário estabelecido, escuto música com fones de ouvido”, finaliza.
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“E
m meio a tantas pautas que abordavam a temática da música sob seus aspectos positivos, decidimos inverter o quadro para mostrar aos leitores o quanto ela pode ser incômoda na vida de algumas pessoas. O assunto polêmico parecia não ter muitas testemunhas, mas quando saímos a campo para observar de que forma abordaríamos a pauta, nos surpreendemos com a quantidade de cases que poderiam ser usados. Uma das repórteres anda diariamente de transporte coletivo e já havia mostrado aversão aos usuários que não respeitam o espaço público ao escutarem música alta. Já a outra, mora em um condomínio e convive com o barulho dos seus vizinhos e as reclamações da síndica. Mais do que expor o problema, também buscamos um exemplo que mostrasse a sua solução, como foi o caso da Carris. Através das entrevistas, percebemos o quanto é difícil para as pessoas, principalmente aquelas que moram sozinhas ou que percorrem um longo trajeto em meios coletivos de transporte, conviverem com o silêncio. Para elas, a música acaba sendo a única companhia.”
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MÚSICA PARA APRENDER
MÚSICA NAS
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MARCO ANTÔNIO FILHO
BANCAS
DO SUCESSO AO QUASE ESQUECIMENTO, AS REVISTAS DE CIFRAS FIZERAM HISTÓRIA LEVANDO AOS MÚSICOS “CASEIROS” CANÇÕES QUE MARCARAM ÉPOCA TEXTO DE VINÍCIUS GHISE E TIAGO VARGAS FOTOS DE MARCO ANTÔNIO FILHO E RICARDO MACHADO
É
muito difícil que um músico, seja profissional, amador ou aspirante, não tenha, pelo menos uma vez em sua trajetória, se deparado com uma das populares revistas de cifras vendidas em bancas. As tradicionais revistinhas impressas em papel jornal, comercializadas em todo o país, fazem parte da história recente do aprendizado musical no Brasil. O que pouca gente sabe é de onde vêm essas páginas amareladas, que, com certa habilidade e algum talento, se tornam música. Parte dessa história é contada por Vitor Biancardi, que há quase 30 anos é sócio da Imprima Comunicação Editorial. Nascido em uma família de músicos, Biancardi não contrariou a regra. Filho de maestro, também dedicou-se ao ensino da música. A história começou a ser escrita, ou impressa, para superar as dificuldades de repassar as canções aos alunos que não tinham conhecimento para ler partituras. “A ideia era criar uma revista com canções cifradas, para que o aluno pudesse tê-la em mãos a qualquer hora, em qualquer lugar”, relembra Biancardi. Assim surgiu a primeira Violão & Guitarra, que, aos poucos, foi aper-
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RICARDO MACHADO
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feiçoada. Passado algum tempo, novos métodos de ensino de música por meio das cifras foram publicados pela Editora Com a Corda Toda, pertencente ao Grupo Imprima. A ampliação significativa dessas publicações ficou evidente com a multiplicação dos métodos que envolvem cifras: Violão Curso Prático, Batidas e Dedilhados, Guitarra Curso Prático, Método Prático Violão & Guitarra, Violão 7 Acordes, Músicos da Noite, Grupos de Rock, Toque Já Violão & Guitarra, etc. Segundo Biancardi, o processo de escolha das músicas era parte importante do processo. “Após pesquisas de mercado, com rádios e gravadoras, fazíamos a transcrição e publicávamos”. Hoje as revistas do tipo Violão & Guitarra têm uma tiragem média de 6,5 mil exemplares, muito diferente do período áureo do negócio, final dos anos 1980, quando esse número era bem maior. Além da procura ter migrado para a internet, onde existem sites especializados em cifras, como o www.cifraclub.com.br, Biancardi conta que os editores passaram a enfrentar outros problemas. “Hoje as bancas ocupam seu espaço com produtos alternativos como cigarros, pilhas, sorvetes, Xerox, diminuindo o espaço para uma boa exposição das revistas.” Em Porto Alegre e Região Metropolitana, a empresa responsável pela distribuição das revistas de cifras, produzidas pela Imprima, é a Comercial de Publicações CPL. Segundo Thiago Borges, funcionário da empresa, há alguns anos as revistas representavam boa parte da vendagem mensal. “As publicações do gênero eram bem populares e eram vendidas muito por indicação, pois nunca houve publicidade para divulgar esse produto”, lembra. A concorrência, contudo, é um tanto desleal. Com a massificação da internet, não apenas ficou mais fácil encontrar cifras, como também trocar informações com outros músicos ou aspirantes. Além disso, há conteúdo ainda mais variado do que o das revistas. A velocidade com que os prin-
cipais sites do gênero incluem material atualizado se deve, logicamente, pela grande quantidade de pessoas que acessam o conteúdo. Forma-se aí uma rede de colaboração, e entre usuários estão também músicos profissionais que se valem de seu conhecimento para tentam ganhar dinheiro complementando os conteúdos disponibilizados nos sites. Fato é que existem cifras para todos os gostos musicais na web. Os mais saudosistas podem até não se agradar, acham que não é a mesma coisa. Para eles, acessar o conteúdo na internet é mais ágil, mas não substitui, ainda, as publicações que permanecem sendo editadas. Elas podem ser levadas para todo o canto e com certeza ainda figuram em churrascos e reuniões de família. Parece ser esse saudosismo que mantém vivas as publicações do gênero. Levar a revista para um parque, à beira de um lago, ou até mesmo para o canto preferido da casa, ainda atrai. No entanto, com a mobilidade digital, esse “recurso” também deixa, aos poucos, de ser exclusivo. De qualquer forma, muita gente ainda espera que as revistas de cifras permaneçam sendo editadas. As páginas amareladas têm seu charme.
QUANDO O PAPEL VIRA MÚSICA
“Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si, Dó”. Sete notas, muitas variáveis. Quem nunca quis, tentou ou até conseguiu aprender a tocar um instrumento musical? A música atrai a todos, inclusive crianças. Fazer som por meio de gestos parece mágico para os pequenos, e os adultos também se encantam. O instrumentista, produtor musical e radialista Daniel
Alamón, que por cinco anos trabalhou como professor de música na escola da Família Lima, em Porto Alegre, fala sobre sua experiência com as cifras. “Elas ajudam o músico a se guiar, quando vai acompanhar um cantor, por exemplo”, explica. Embora, segundo Alamón, as cifras não sejam tão completas como as partituras, funcionam muito bem como recurso de aprendizado a distância. O instrumentista acredita que elas colaboram para a evolução dos alunos, mas não resolvem todo o “problema”. “Elas complementam. Tu não podes sair apenas dali, fica muito sem chão. Às vezes tu não consegues entender o que estão tentando passar, então falta aquela base lá atrás, de um bom aprendizado de pauta, pentagrama, de música em si”, explica Alamón. O músico ressalta, também, uma peculiaridade das cifras. “As notas musicais não começam pelo Dó, o Lá é a primeira nota”, afirma. Esse sistema é popular nos países de língua inglesa, onde são utilizadas letras para dar nome às alturas das notas musicais. As letras A, B, C, D, E, F e G correspondem a Lá, Si, Dó, Ré, Mi, Fá e Sol, respectivamente. Se hoje questionamos por quando tempo as revistas de cifras ainda estarão disponíveis no mercado, cabe aqui uma reflexão. Temos a percepção de que todos estão conectados à web, mas a realidade é um pouco diferente. Além disso, a relação que temos com o “toque” do papel é algo que não muda. Se você não encontrar mais as revistas de cifras nas bancas, procure-as em um bom sebo. Talvez seja esse o caminho.
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elatar parte da história das revistas de cifras e o que elas representam para os músicos era nossa intenção. Nosso objetivo era, principalmente, falar sobre a história dessas publicações e seu passado recente. Pretendíamos, contudo, dar um tom mais nostálgico do que o obtido. Faltou um relato mais impactante. Buscamos diversas vezes encontrar a pessoa que desse um “recheio” a mais na reportagem. Ao final da busca, concluímos que a ideia inicial não foi completamente alcançada. Pensamos numa segunda opção, que seria falar com algum professor que utilizasse essas publicações como auxílio na hora de passar músicas novas aos seus alunos. Também não conseguimos exatamente o tipo de profissional que
tínhamos em mente. Resumindo, nosso intuito era iniciar do singular, contando como as revistas fizeram ou fazem parte da vida de alguém. Depois partiríamos para o histórico e dados mais técnicos. Sobrou-nos o texto mais “seco”, pois, de fato, essas revistas não fazem mais o sucesso que faziam antigamente. De qualquer maneira, conseguimos alguns relatos interessantes. Falar com Vitor Biancardi, sócio da editora que iniciou o negócio das revistas de cifras, e também com Daniel Alámon, ex-professor de música, foi bem interessante.Acreditamos que fica aqui não o relato completo, mas parte dele. Quem sabe no futuro, possamos ler os capítulos que seguem e conhecer mais sobre esta história pouco abordada, mas curiosa.”
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MÚSICA PARA FAZER SOZINHO
EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ TEXTO DE MANOELA BANDINELLI E ROBERTA ROTH | FOTOS DE GABRIELA DA SILVA
CRIAÇÃO, GRAVAÇÃO E EXECUÇÃO DE MÚSICAS NÃO PRECISAM SER FEITAS POR UM GRUPO. É POSSÍVEL SER O FRONTMAN E TODOS OS OUTROS
L
embre daquela velha banda de garagem produzindo sons tão altos capazes de ensurdecer os vizinhos. Eles estavam fazendo música. Agora troque essa imagem por um jovem compenetrado em frente ao computador. Ele não está estudando. Ele não está jogando. Ele também está fazendo música. A ponte entre arte e tecnologia vem se estreitando, criando o elo que une as duas áreas e dando origem à formação de um espaço com novas dimensões e limites inalcançáveis por meios tradicionais. A música está incluída nesse caminho, com o uso de computadores em composições sendo praxe em estúdios profissionais. A evolução chegou tal ponto que atualmente é possível fazer novas canções sem tocar ou possuir nenhum instrumento e, ainda, sem ajuda de ninguém. O termo one-man band (banda de um homem só), passou a ser empregado no início dos anos 80 para descrever artistas que tocavam todos os instrumentos de uma música, gravando um por vez e realizando a união dessas partições em uma canção única. A técnica, utilizada por amantes da música eletrônica, passou a fazer parte também do rock e outros estilos. Alguns músicos famosos como Prince, Lenny Kravitz e Paul McCartney fizeram gravações em que todos os instrumentos
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eram tocados somente por eles. Essa gravação solitária não é privilégio desses artistas famosos. A partir de softwares disponibilizados na internet e alguma noção musical, é possível criar um hit com direito a guitarra, baixo e bateria. Sem estúdio ou palheta. Para o estudante de Jornalismo Marcelo Collar, a ideia foi impulsionada por um problema na banda em que fazia parte: “O baterista teve um problema no pulso, e ficamos um tempo parados. Senti falta de fazer música”. Assim surgia o projeto solo intitulado Plaza de Toros Monumental, de criação e execução exclusivas do estudante. A experiência anterior com instrumentos facilitou o processo para Collar, que já gravava no computador sugestões de melodias, porém sem nunca ter executado o processo inteiro. Os caminhos foram descobertos com alguns percalços: “Tive que achar soluções para os problemas que existem quando se grava em casa. Para a bateria eletrônica, consegui um programa que deixa um som bem natural e, para o vocal, achei um jeito bom de gravar a voz em casa”. O que parece diversão já é tratado com profissionalismo: “Apesar de também ser uma brincadeira, continuei gravando e querendo lançar e mandar para selos de gravadoras, porque fiquei satisfeito com a qualidade e com o resultado”.
O músico Diego Voges tratou de não ser somente one-man band e investiu no ramo musical. Diego também registrava em seu computador ideias para sua antiga banda e hoje é dono de um estúdio de gravação. Com a divulgação web de suas composições no grupo Hermit Age, do qual fez parte por mais de dez anos, o músico aprendeu a criar diferentes linhas de instrumentos. Inspirado no conceito do one-man band sueco Thomas “Quorthon” Forsberg, que gravou sozinho álbuns da banda de Black Metal Bathory, Diego fez o mesmo em um disco inteiro da Hermit Age: “Foi onde vi que era possível uma pessoa só gravar um bom álbum. Me mudei de cidade, e, com isso, a formação da banda, antes composta por até quatro pessoas, nunca mais se fixou. Eu tinha muitas ideias e não queria desperdiçá-las”, conta. Para Diego, a conclusão do projeto se transformou em um verdadeiro desafio imposto por outros: “No início eu comentava que faria tudo sozinho e fui desacreditado, mas isso até serviu como incentivo!”
PRAZER E NEGÓCIOS
Diego não é membro da família Von Trapp, mas é mais do que acostumado com a atmosfera musical. A experiência com estúdios vem dos tempos da gravação analógica. Os pais do músico sempre trabalharam em rádios e locuções comerciais: “Desde os meus três anos, já estava dentro de estúdios vendo o pessoal editar comercial com tesoura e fita adesiva”. A convivência com as pessoas e a paixão pela música levaram Diego ao caminho temido por muitas pessoas: misturar prazer com negócios. “Nada
COM EXCEÇÃO DAS GUITARRAS, DIEGO VOGES (ACIMA) E MARCELO COLLAR CRIAM OS SONS DOS INSTRUMENTOS DIRETAMENTE NO COMPUTADOR
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melhor que trabalhar e ganhar dinheiro fazendo o que se ama, não é? Já no primeiro ano, gravei duas ou três bandas, mas ainda como cinegrafista e fotógrafo. Porém, aos poucos, o estúdio foi crescendo e o trabalho como câmera foi diminuindo, até sumir”, conta. Estava fundado assim o Ufo Rock Studio, em Capão da Canoa, litoral norte do Rio Grande do Sul. De prontidão, já aprendemos com Diego uma dica que repassamos: “O processo de gravação faz uma banda crescer muito musicalmente.” Diego contabiliza mais de 1.200 músicas gravadas em sete anos do estúdio. De one-man band a every men: “Hoje é possível fazer praticamente tudo com o recurso que tenho. Comparo minhas gravações com as feitas por bandas grandes, que gravaram em estúdios milionários, e não perco em nada”. Transformar um hobby em negócio é a atividade única e exclusiva de Diego: “Creio que já passaram por aqui umas 200 bandas, possivelmente. Também gravamos locução comercial, edição de áudio, vinhetas, entre outros.” Agora, fazer música segue incluído nos prazeres (e nos negócios). Diego atualmente participa de duas bandas, e nem precisamos dizer quem faz as gravações das músicas.
COMO FAZ?
Em ambos os casos, tanto Diego quanto Collar tinham experiências prévias com instrumentos musicais. Porém, com a tecnologia atual, é possível criar sem ter habilidade da maneira tradicional. Existem softwares que auxiliam no entendimento de partituras (ver quadro ao lado), mas é desejável noção de melodia ou de notas musicais, para agradar ao ouvido. Diego conta que o processo de familiarização com o computador foi demorado, ainda mais que a estrutura não era nada profissional. Além disso, apesar de ter noção musical, não tinha nenhuma noção tecnológica: “Comprei o computador e mal sabia ‘copiar e colar’ textos, mas preferi aprender a programar baterias no Cakewalk Pro Audio 9 (software de composição) antes mesmo de aprender a digitar.” Marcelo contava com experiência no computador, mas não sabia tocar bem bateria, o que não foi problema para a execução de suas músicas: “Para fazer de maneira eletrônica basta ter uma noção que o baterista tem duas mãos e duas pernas e tu consegues fazer uma bateria que soa como uma de verdade”. Sabem aqueles tópicos de ajuda dos softwares que geralmente ignoramos, que têm um ponto de interrogação? Eles são úteis! Diego revela que utilizou por muito tempo os tópicos de ajuda que os próprios programas oferecem. Deixar as dicas (tips) ativadas na inicialização de softwa-
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res também auxilia. Quanto às dúvidas que possam surgir, Diego tem a ajuda de um fórum online: “Sempre pesquiso no www.audiolist.org, um site com fórum direcionado a profissionais do áudio, com gente que sabe tudo nessa área.” Solitário e acessível como todo o processo, a um clique de distância.
PROCESSO DE CRIAÇÃO
Esqueça papel e caneta. Para os one-man band, o processo de criação é outro: “Me vem aquela ideia na cabeça e fico repetindo mentalmente. Quando chego em casa, crio uma bateria eletrônica, pego a guitarra e, aos poucos, começo a compor a música”, conta Marcelo Collar. “Como instrumento real, utilizo só a guitarra. A bateria é eletrônica. Uso mixagens, gravo em média duas ou três guitarras por vez, uma mais grave para dar preenchimento maior, uma mais aguda para ficarem mais definidos os riffs”, diz Collar, que já pensa em incluir mais um toque pessoal nas criações: “Tenho pensado em colocar piano, ver se consigo colocar acordeon, alguma coisa mais gauchesca no meio”. Tudo de dentro do quarto. Para facilitar ainda mais, é possível compor já gravando. É assim que Diego Voges faz suas músicas: “Um looping de bateria eletrônica me dá o tempo, para poder tocar em cima, e gravo uma linha de guitarra guia”. O processo é curioso e peculiar a cada artista inclusive na hora de colocar letras na música. Diego conta que vai gravando em cima das bases um vocal guia cantado em “embromation”, para depois começar a trabalhar nos arranjos. Assim, sem letra nem nada, somente composta por gemidos e sussurros inventados, a música começa a tomar forma. Segundo Diego, a letra é criada em cima do tal “embromation” pela sonoridade da letra, e com esse método, certas vogais surgem e funcionam bem em determinada melodia: “É como fazer uma paródia da letra inexistente, e nessa paródia passar a mensagem. É um desafio no mínimo interessante. E funciona!”, diz Diego.
PALCO E PLATEIA, É POSSÍVEL?
É verdade que, com todos os recursos disponíveis no computador,
é possível criar e muito, porém, é difícil executar a apresentação de qualquer one-man band sem ajuda. A bateria pode ser eletrônica, com um laptop ligado no amplificador, mas a guitarra precisa de alguém no comando, e ainda tem a voz! Ainda assim, Collar acredita ser mais fácil que da maneira tradicional. “A formação toda cabe no banco de trás de um carro. Não tenho mais idade para carregar bateria e ‘trocentos’ quilos de equipamento para tocar em lugar podre”, confessa. Por conta de suas “bandas”, Collar teve resposta positiva de críticos musicais na internet. Tudo isso com custo inicial quase zero. “Gastei com o Plaza de Toros R$ 60, quando comprei duas fitas de vídeo para a gravação do videoclipe e depois paguei um xis pros caras que foram filmar comigo”. Diego começou a investir conforme o dinheiro foi entrando, e hoje tem todos os equipamentos de um estúdio profissional. Quanto ao sucesso, sabemos que ele se manifesta de diferentes formas. Se antes existiam fã-clubes e cartas escritas com metros de extensão, hoje perfis em mídias sociais criados por admiradores já sinalizam o sucesso. E são esses elogios, virtuais ou não, que fazem qualquer exército de um homem só estar pronto para a guerra do mercado musical.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“F
icamos felizes quando o assunto música foi definido como tema da revista, é algo com o qual nos identificamos. Música sempre esteve presente, marcando vários momentos das nossas vidas. E admitimos: qualquer coisa que se faça sem a companhia de uma ou várias melodias é bem menos emocionante. As buscas pelas bandas de um homem só foram facilitadas quando, dentro da sala de aula, encontramos uma fonte, o Marcelo Collar. Além de colega e amigo, ele se disponibilizou totalmente a nos contar as experiências pessoais e
mostrar que qualquer pessoa que queira pode fazer isso. As entrevistas renderam, e foi fácil encontrar informações adicionais, já que nosso networking no mundo das bandas é bastante grande. A nossa ideia, desde o início, era fazer algo como um incentivo. Muitas mentes criativas acabam deixando de produzir por falta de companheiros de produção musical e buscamos todas as informações essenciais para que qualquer um possa fazer isso sozinho. Esperamos sinceramente que novas promessas apareçam, inspiradas por esta matéria.”
SEJA A SUA PRÓPRIA BANDA Equipamento: é preciso ter um computador bom e uma placa de som que, de preferência, grave em 24-bits e que tenha phantom power, um dispositivo da placa de som para garantir que ela vá trabalhar com microfone condensador, mais aconselhável para gravar voz. Além disso, um mixer ou uma mesa de som pequena ajudam bastante. Também é possível criar e gravar sons com celular, gravador portátil, e também com o iPad. Softwares: existem diversos programas e aplicativos usados para gravação, escolha o que melhor se adapta às suas composições ou aquele que você domina melhor. Alguns exemplos: Sonar, Pro Tools, Cubase, Adobe Audition, MorphWiz.
Gravando: pode se usar uma mesa de som, ou plugins de efeitos, ou caixa de som, microfone, guitarra, bateria, baixo e outros instrumentos, mas nenhum deles é extremamente necessário, dependendo da proposta. Depois de tudo criado e gravado, se confere o volume, os timbres e, por último, é aconselhável masterizar o som, processo que dá mais consistência e volume. Para isso, se usa outro tipo de software, como Soundforge ou Cubase. Divulgação: também é preciso criatividade para mostrar o trabalho. Além das técnicas clássicas de mandar CD’s para as gravadoras, utilize as redes sociais e as plataformas de internet para atingir diferentes públicos em proporções bem maiores.
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MÚSICA PARA REZAR
JÉSSICA BERGER
O ENCONTRO
PELA FÉ
DESDE CRIANÇA, LUCINÉIA PELISSARI CANTA DURANTE AS MISSAS ANDERSON LOPES
DANILO PLACK ENCONTROU NA RELIGIÃO E NA MÚSICA UMA SAÍDA DO MUNDO DAS DROGAS
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ESTA É A HISTÓRIA DE DANILO E LUCINÉIA, QUE POR CAMINHOS DIFERENTES ENCONTRARAM NA RELIGIÃO A PAIXÃO PELA MÚSICA TEXTO DE GIANINI OLIVEIRA DA SILVA E JOEL OLIVEIRA | FOTOS DE ANDERSON LOPES E JÉSSICA BERGER
“De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus.”
A
(Romanos 10:17)
s músicas com letras que propagam o evangelho deixaram de ser restritas às celebrações cristãs e conquistaram o gosto de diversas pessoas. O tema musical ganhou tamanha proporção que cantores como Aline Barros, Padre Marcelo Rossi, Padre Fábio de Mello, Grupo Rosa de Saron, Antônio Maria, Padre Zezinho – precursor dos padres cantores desde a década de 1960 – entre outros nomes, tornaram-se grandes sucessos, reunindo milhares de fieis em suas apresentações. No Brasil, a indústria de CDs e DVDs cristãos movimenta por ano mais de R$1,5 bilhão, segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD). A expectativa é de que esse número possa dobrar nos próximos dez anos, já que o país possui cerca de 30 milhões de evangélicos, e as projeções são de que essa população ultrapasse os 50 milhões até 2020. Conforme relata Júlio César Junqueira Cezimbra, teólogo e pastor há 20 anos, a música não só aproxima os fiéis da igreja como também cumpre o seu papel perante a Bíblia. “O louvor e a adoração fazem parte da vida, tocando as pessoas. A Bíblia instiga a louvar. Quando você conhece Deus, você começa a andar por convicção, você sente Deus, você fala com ele”, afirma o pastor, que trabalha há sete anos na Igreja Missionária de Evangelização de Células (IMEEC) de Lajeado.
A ESCOLHA QUE MUDOU O DESTINO
Cabelos brancos, voz serena, mãos de quem toca bateria há muitos anos e feições de quem carrega uma grande bagagem de vida. Seus olhos não se contêm ao relembrar momentos tão marcantes entre a música e sua vida. Essa é a história de Danilo Plack, 60 anos, atual baterista na banda da igreja IMEEC de Lajeado. Jovem, sonhador, cheio de garra e apaixonado pela música, esse era Danilo, que com 20 anos iniciava a carreira musical. Baterista da Banda Guarujá, era um dos cinco integrantes que tocavam nas noites animando os bailes e festas da região. Porém, as drogas e bebidas, antes distantes da sua realidade, começaram a fazer parte
de sua vida, transformando o que era prazer em depressão. “Eu alegrava os outros durante a noite e pela manhã estava na tristeza”, relembra. Junto com o sucesso profissional, vinha o que mais tarde seria o motivo de sua recuperação, sua filha e sua esposa. Logo o jovem percebeu que conciliar a rotina noturna com a família que havia constituído não seria fácil, porém, apesar das drogas e bebidas que estavam arruinando sua vida, a paixão pela música falava mais alto, não o deixando largar aquele ambiente. “Acreditava que, se parasse de tocar na noite, nunca mais teria outra oportunidade na carreira musical”, recorda. O jovem, antes alegre e cheio de garra, continuava a tocar nos bailes e a usar drogas que o levavam da euforia e prazer à dependência, enquanto sua família estava se destruindo aos poucos. “Chegava aos bailes e muitas vezes ia até o banheiro injetar droga, era mais forte do que eu”, desabafa. Foi em um desses momentos de destruição que tudo mudou. Ao ver a filha queimar de febre, pediu para que Deus a salvasse. Em seu quarto sozinho, rezando, ele fez uma promessa que mudaria sua vida. Com riqueza de detalhes, Danilo lembra bem a data e hora em que revelou sua promessa e a escolha mais difícil por qual já passou. “Eram 23h do dia 31 de dezembro. Quando todos estavam sentados à mesa, durante a janta que antecedia o Show de Réveillon, eu disse que, depois do Carnaval, não tocaria mais”, conta em meio às lágrimas. A partir daquele momento, sua vida mudou. As idas à igreja tornaram-se frequentes, até que foi convidado a tocar na banda da igreja. “Não entendia como Deus havia me curado da droga, das bebidas, mas não havia me tirado o gosto por tocar.” Hoje, Danilo, o músico mais antigo da banda da Igreja, relembra como foi difícil, na década de 1970, os fieis aceitarem a presença da bateria na igreja. “Antigamente só tocavam teclado e piano. Nas igrejas pentecostais, a bateria era o demônio. Aos poucos ela começou a crescer. A música gospel está ganhando mais espaço, aperfeiçoando-se com uma grande variedade de instrumentos.” Hoje com seis filhos, ele conta com orgulho que sua família seguiu seus passos na igreja. Uma das filhas é cantora e dois dos filhos são
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bateristas. Ele se emociona ao ver sua pequena neta com apenas três anos dançando nas apresentações da igreja. “Tudo mudou porque eu tive fé. Uma fé sem obras é uma fé morta”, comenta Danilo, um apaixonado pela música que nunca deixou de tocar, apenas mudou a forma de conduzir o som.
O PEQUENO TORNA-SE GRANDE
Lucinéia Pelissari, 28 anos, casada e moradora de São Leopoldo, foi criada conforme a doutrina da Igreja Católica. Natural de Foz do Iguaçu, Paraná, aos 14 anos aprendeu a tocar violão e começou a cantar nas missas da pequena capela que a família frequentava. Dois anos depois, com o intuito de estudar, a jovem foi morar com a tia na cidade em que vive hoje. Logo se tornou frequentadora do Santuário Padre Réus, onde foi convidada a fazer parte da equipe de canto. Desde então, Lucinéia não parou mais de tocar e cantar, de acordo com ela, para Deus. Determinada, se formou em Magistério e, mais tarde, em Pedagogia Empresarial. Atualmente, possui dois empregos. Pela manhã, ministra palestras e treinamento a funcionários de empresas, e, à tarde, é secretária no próprio Santuário Padre Réus. Em 2003, alguns amigos a convidaram para fazer parte de uma banda de reggae, na qual permaneceu por três anos. Ela compôs algumas músicas e chegou a gravar uma canção. Mas conciliar a banda com o trabalho religioso não foi nada fácil. A moça relata que sentia certo preconceito da igreja católica em relação ao reggae. “Alguns amigos íntimos me falavam que as músicas da banda eram profanas e não combinavam com a religião, que eu deveria ficar tocando só nas missas.” Naquela época, ela se casou e decidiu abandonar a banda. Os cantos das missas da primeira quartafeira e segundo domingo de cada mês são de responsabilidade da jovem e experiente cantora, que escolhe, toca e canta sozinha as melodias que emocionam os fieis. Lucinéia acredita que as notas musicais que saem do seu violão comovem as pessoas e ajudam a evangelizar. “Com certeza, a música emociona as pessoas. Por exemplo, se eu estou no momento da comunhão e toca uma música bem calma e profunda, as pessoas conseguem se interiorizar mais e vão aproveitar melhor aquele momento
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ANDERSON LOPES
de encontro com Jesus.” Trabalhando há mais de dez anos com a religião católica, a moça se apresenta em missas que reúnem um grande número de fiéis. Ela conta que já emocionou muita gente. “Inclusive meu pai se comoveu em uma missa que participei, porque lá em Foz do Iguaçu eu cantava em uma capela que iam no máximo 20 pessoas e aqui tinha mais de mil.” Lucinéia considera a música essencial em sua vida, assim como a devoção pela religião. E acredita que as duas juntas a completam. Lucinéia e Danilo encontraram na união da música com a fé uma forma de viver. Dois caminhos diferentes, mas que levaram ao mesmo final.
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“A
pós várias entrevistas e fontes sugeridas sem sucesso, nos deparamos com a história de Danilo, que reconstruiu sua vida na religião e passou a ver a música de outra forma. O oposto da história de Lucinéia, que desde pequena cresceu com a música e a religião ao seu lado. Vários foram os momentos durante a entrevista em que as fontes se emocionaram ao relatar os caminhos que trilharam. Não se envolver nessas histórias ao escrevê-las foi o mais difícil diante das entrevistas. Aprendemos muito entrevistando os músicos das igrejas, não imaginávamos que seria tão esclarecedor. As fontes falaram sobre a relação que a música tem com a religião e também contaram as suas histórias. Apesar de não os conhecermos, as entrevistas fluíram normalmente, como uma conversa descontraída. No início, achávamos que o gravador iria inibi-los, mas, felizmente, estávamos errados, e tudo ocorreu conforme o cronograma.”
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MÚSICA PARA VENDER
CARDÁPIO ELETRÔNICO 40 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
PRODUTORES COMO DIMA DAHABA, DA GUINÉ BISSAU, CRIAM E OFERECEM BASES MUSICAIS NA INTERNET
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TEXTO DE CAROLINA ANCHIETA E EDUARDO FELDENS FOTOS DE MAURICIO MONTANO
“D
amas e garrafas não param de aparecer... Esse life style todos eles querem ter.” Essa frase da música Party Monster, do grupo de hip hop Sevenlox, sintetiza a vontade de muitos de levar uma vida de rockstar. Alguns almejam viver da própria música, mostrar para o mundo as suas ideias através de melodias. Outros querem mesmo é a fama, o glamour com altos cachês, entrevistas e muitos fãs. Muitos não vão muito além de sonhar, mas alguns arriscam e tentam ser cantores, músicos e até mesmo compositores. Lá pelo meio do caminho percebem que não é tão fácil assim... Chegar às gravadoras com a sua demo, fechar bons contratos, ter espaço para tocar, isso tudo é bem complicado. Além de talento, é claro, são necessários bons contatos, e assim muitos desistem no caminho. Mas esse mercado vem mudando. Com a tecnologia, a “vida de músico” ficou bem mais facilitada, a internet contribuiu muito para isso. Música e internet têm uma relação importante. Isso fica claro num tempo em que a maioria dos grandes nomes da música pop, como o garoto Justin Bieber, começou cantando suas músicas favoritas no You Tube. Além da facilidade de acesso e divulgação, o “fazer música”, também em função da tecnologia, é bem mais simples. Diversos programas estão ao alcance de todo tipo de pessoa na internet. Basta baixar e instalar. Essa facilidade trouxe ainda mais destaque para uma profissão existente no mercado musical: o produtor. O produtor musical ou produtor discográfico é o responsável por completar uma gravação para que ela esteja pronta para o lançamento. Ele controla as sessões de gravação, guia os músicos e cantores e faz a supervisão do processo de mixagem.” O produtor é quem, literalmente, faz a base da música. Base musical, instrumental ou simplesmente beat são os termos mais comumente usados dentro do hip-hop e de outros estilos de música eletrônica. É praticamente uma música pronta, com arranjos, instrumentos, partes definidas (verso/refrão), faltando apenas voz e letra para que vire o produto final. Todo o trabalho de um produtor é possível de ser feito no computador, sem a necessidade de instrumentos. Essa função tornou-se cada vez mais importante e destaca-se tanto quanto ser “o vocalista” de uma banda. Para Nitro Di, produtor e apresentador do único programa de hip hop da rádio Atlântida FM, o papel do produtor é fundamental, embora ele ressalve: “Uma
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boa produção com uma letra fraca não vale de nada! Além disso, artistas novos podem se deslumbrar com o visual e a possibilidade de fazer um mega hit, esquecendo que não é só isso para estourar.” Esse mercado cresceu tanto que algumas universidades já oferecem cursos específicos para varias áreas de produção musical, como é o caso da Unisinos, com o curso de Produtores e Músicos de Rock, e a Anhembi Morumbi, de São Paulo, que, além de um curso de produção musical para todos os estilos, oferece um voltado exclusivamente para música eletrônica. Foi esse caminho de aperfeiçoamento a opção de Dima Dahaba, MC e produtor do grupo de hip hop Sevenlox, que veio de Guiné Bissau para o Brasil já com o sonho de viver de música, através de intercâmbio entre os dois países. Após uma pequena estada em Ijuí e Porto Alegre, foi em São Paulo que ele encontrou onde se aperfeiçoar e formou-se em Produção Musical na Anhembi Morumbi. Com colegas da universidade, surgiu a ideia de criar uma plataforma para vender o produto feito por eles, as chamadas bases musicais. Nasceu assim o The Hit: www. myspace.com/thehitmuzik. “O The Hit surgiu a partir de uma afinidade musical e de visão de mercado entre mim, Joe Black e PLG . Eu e Joe sempre debatemos sobre como estava tudo estagnado no mercado musical brasileiro para o estilo de música com o qual trabalhamos. Aí quando apareceu o PLG veio junto a certeza de que tínhamos que nos mexer para fazer alguma coisa a respeito”, explica Dima. O hábito de comprar bases pela internet já é comum nos EUA, mas o mercado nacional, na visão dos criadores do The Hit, ainda preci-
sa adaptar-se: “O mercado nem faz ideia do que isso seja. Para os cantores brasileiros em questão, acho que as únicas dificuldades que existem são as que eles mesmos criam para si. Para cantores iniciantes, especialmente existe essa dificuldade de entender que, para quem quer viver disso, a música tem que ser encarada mais do que como um simples hobby”. As vendas no The Hit já começaram. O músico Cabal (www.myspace.com/cabalakac4), renomado na cena do hip hop nacional, já era cliente dos produtores antes mesmo da criação do site. Ele reconhece o valor dessa plataforma: “Isso pode trazer uma grande mudança na qualidade da música feita no Brasil, pois, na maioria das vezes, é complicado ter acesso a produtores com essa qualidade. O The Hit está mudando isso e mostrando que todos podem ter produções profissionais de altíssimo nível, independente de onde estejam e por um valor bem acessível”. A questão do valor é o grande impasse dessa nova ideia, pois alguns produtores e artistas acham caros os preços oferecidos no site. Dima explica: “No Brasil, a maioria dos produtores de rap costuma cobrar entre R$ 100 e R$ 400, no máximo, por faixa musical. Nós operamos com valores entre R$ 400 e R$ 1.000. Nos Estados Unidos, a média fica entre 20.000 e 60.000 dólares para produtores de ‘pequeno porte’ e 60.000 a 300.000 para os world famous do porte de Timbaland, Kanye West, etc..” Com divulgação via e-mails, redes sociais e o tradicional boca a boca, como todo bom produto com baixos recursos estilo “lado B”, o site causa certo burburinho. O rapper Cabal lançou na sua página oficial no Orkut um fórum de discussão sobre o The Hit, o que acabou gerando uma polêmica entre representantes
do hip hop de diferentes partes do país. Surgiram várias opiniões sobre esse formato de se comercializar música, e todos os comentários negativos foram a respeito dos valores. Nitro Di, mesmo gostando da ideia, também a questiona: “Achei a ideia muito boa, porém é preciso saber o custo de cada produção. Existem artistas ruins com dinheiro e artistas bons sem grana pra pagar uma produção. Mas está valendo, conheço os produtores e sei do po-
tencial monstro deles, tomara que dê certo e que artistas com talento formem essa parceria!” Agora a questão é esperar para ver se o mercado brasileiro vai se adaptar a esse tipo de compra. Para quem pretende tornar-se produtor, uma dica fácil para se dar o primeiro passo: um programa bacana, usado por vários produtores, o Fruit Loops, que pode ser baixado facilmente na internet. Boa sorte! Quer dizer: “Bons beats!”
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“M
úsica. Com esse tema, a nossa dupla imaginou que seria bem simples fazer o texto para a revista. Ainda mais que um de nós (a Carol) já escreveu sobre isso há algum tempo, mas nos enganamos: nunca subestime a dificuldade de um trabalho! Tentamos fazer algo diferente, mas não deu certo. Deixamos então a inovação ser destacada a partir da ideia de um dos entrevistados. Conhecer o The Hit nos levou a pensar sobre o grau de especificidade a que chegou a música na internet. Também nos chamou a atenção esta mistura e o passeio sem preconceitos entre diferentes gêneros, também nos fez esquecer a muitas vezes apressada associação música – internet - pirataria. Aguçou nossa curiosidade sobre novas plataformas. E as possibilidades concretas de produção, criação e intercâmbio por ele abertas. Deverá se tornar visitação obrigatória, modelo para músicos profissionais e objeto de pesquisa não só para quem atua diretamente na profissão, mas para os praticantes de atividades afins. As entrevistas nos deram mais trabalho pela falta de tempo, então fizemos todas elas via e-mail. Facilitou, mas teria sido melhor pessoalmente, as pessoas ficam mais espontâneas. Mesmo assim, importantes lições foram aprendidas e acreditamos que isso já vale, porque temos certeza que o principal objetivo de todas as disciplinas não são as notas, mas sim o que levamos para a vida profissional.“
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MÚSICA PARA SAMBAR
NÃO TE ACANHA, VEM PRA SALDANHA! TEXTO DE FABIANA LOPES, RENATA LOPES E TATIANE LIMA | FOTOS DE LIZIANE ALVES
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“V
COM MUITO TRABALHO, UM GRUPO DE AMIGOS TRANSFORMOU MÚSICA EM ALEGRIA E SOLIDARIEDADE
ou festejar! Vou festejar!” O aniversário da Banda Saldanha foi comemorado em grande estilo. Ao som de uma bateria de Escola de Samba puxada pelos fundadores da Saldanha, cerca de 2 mil pessoas iniciaram os festejos dessa data em um canteiro da Avenida Erico Verissimo de Porto Alegre. O local é próximo ao bar onde há 32 anos um grupo de amigos resolveu celebrar suas festas misturando samba, churrasco e um alegre desfile pelas ruas do bairro Menino Deus. Com isso, a Saldanha conquistou um papel fundamental na preservação da cultura afro-gaúcha. A marchinha, que caracteriza a Banda, dá o tom que inicia a festa. É um hino. Tanto que foi adotada pelas torcidas de futebol e é frequentemente ouvido nos estádios gaúchos. A arrancada do “arrastão” começou meio tumultuada, pois todos querem participar, e o público já está ansioso para dançar atrás do trio elétrico. Pedro Lourival da Fonseca, um dos fundadores da Banda, dá as orientações necessárias para que o desfile corra em segurança: “Pessoal, se posicionem atrás do caminhão, pois utilizaremos apenas uma das pistas da avenida. Quem não estiver a fim de se divertir, volta pra casa, porque aqui é lugar de alegria!”. “Alô, Harmonia!”, grita Carlos Medina, fazendo com que os ritmistas respondam com toda empolgação, batucando em seus instrumentos e contagiando a pequena multidão. Medina é também um dos fundadores da Banda. Conhecido músico gaúcho, que por muitos anos foi puxador de escolas de samba de Porto Alegre, explica que a Banda se mantém viva até hoje devido à organização e ao empenho de cada um. “Somos em torno de 70 músicos na Banda, que está sempre em renovação. A partir de novembro ensaiamos toda a semana para fazer bonito no Carnaval”, conta o cantor. “Explode coração, na maior felicidade...”, é a senha para o samba realmente explodir. Pessoas de todas as idades cantam e dançam embaladas por essa tradicional música do Carnaval carioca. Medina continua animando o público com toda a empolgação, conduzindo a multidão avenida afora. Na sede da Banda, na Avenida Padre Cacique, já tem muitas pessoas aguardando para comemorar o aniversário com show do Neguinho da Beija-Flor. A Banda relembra marchas antigas, incentivando a massa que os segue a dançar o tempo todo. Nas janelas dos prédios, curiosos observam e até dançam, interagindo com o público que desfila na rua. A história da Banda se inicia com a comemoração do aniversário de 22 anos de Pedro Lourival, conhecido como Diogo e um de seus fundadores. Após uma partida de futebol, um bom churrasco e uma roda de samba, o grupo de amigos se empolgou e decidiu desfilar pelas ruas do bairro. Essa brincadeira se repetiu durante anos, e o número de participantes só aumentou. “Só tem um problema nesse amor, só um problema nesse amor: ela é Bamba, ela é Bamba, e eu sou Imperador!” Medina relembra essa canção do Carnaval gaúcho que aborda a rivalidade entre duas tradicionais escolas de samba de Porto Alegre: Bambas da Orgia e Imperadores do Samba. A festa na Avenida Erico Verissimo começou às 14h do dia 12 de outubro, Dia da Criança e Dia de Nossa Senhora Aparecida. O cheirinho de churrasco, o samba de roda e os convidados chegando em meio ao canteiro da avenida indicam o ambiente aconchegante que é uma das principais características das atividades que a Banda promove. O
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O auge do “arrastão” se deu com a presença inesperada do Neguinho da Beija-flor homenageando as mulheres gaúchas com seu novo hit: Mulher. O público acena e samba com a atração da festa da Banda. Neguinho canta mais algumas músicas e despede-se, convidando todos a irem para sede da Banda, onde seria o grande show. Enquanto o povo requebrava a caminho da sede da Saldanha, lá já estava acontecendo o tradicional encontro de famílias e amigos. É nesse ambiente de integração que se consagra uma das mais importantes alternativas de lazer da comunidade negra gaúcha. O ambiente da Banda Saldanha é formado nas laterais por quiosques cobertos, onde a maioria dos frequentadores celebra datas importantes assando churrasco. Tem um palco onde o samba não para e um local no centro onde fica a copa. No andar de cima, uma espécie de área vip. Tudo é motivo para estar na Saldanha. Pode ser a comemoração de um aniversário ou um chá de panela. Não importa. O que o público quer mesmo é estar junto, confraternizando e revendo os amigos e parentes. A Banda Saldanha funciona de segunda a sexta-feira e os quiosques devem ser reservados com antecedência. Além do local, a Saldanha ainda disponibiliza espetos, carvão, sal e uma gamela para facilitar a vida dos assadores. Sharlene Oliveira Dias, que está de casamento marcado, escolheu a Saldanha para receber os amigos e realizar o chá de panela. “É um lugar que todo mundo conhece e gosta”, explica a noiva de 24 anos. Os aniversários de Patrícia Souza Barros, de 39 anos, são tradicionalmente comemorados na Banda. A família de Patrícia organiza decorações temáticas. A aniversariante explica a preferência: “O ambiente é bom, familiar e as pessoas podem ficar a vontade. Tem segurança, dá para trazer crianças, e é como se estivéssemos em casa”.
PEDRO LOURIVAL É UM DOS FUNDADORES DA SALDANHA, CRIADA QUANDO ELE COMEMOROU 22 ANOS
local escolhido é próximo ao antigo bar em que o grupo de amigos se reunia há 32 anos. Já com uma sede própria na Avenida Padre Cacique, a Banda mantém o mesmo formato inicial: confraternização entre amigos, samba de qualidade e total segurança. A “Banda da Saldanha”, que levava o nome da rua onde ficava o bar que recebia o grupo de amigos, deixou de ser “da Saldanha” a partir do momento em que ganhou sede própria e o reconhecimento nacional. “Resolvemos mudar o nome para Banda Saldanha, pois não pertencemos a um único local. Há cinco anos desfilamos no Rio de Janeiro e já somos conhecidos inclusive internacionalmente”, conta Diogo Fonseca. Uma das inovações importadas do Carnaval carioca e instalada na Saldanha é o banheiro “colorido”, que fica à disposição para que os travestis sintam-se à vontade. Diogo, filho de Pedro Lourival, é o atual presidente da Saldanha, eleito pelos membros do conselho em 2010. Hoje, aos 28 anos, Diogo se diz cria da Banda, pois nasceu e cresceu entre os músicos participando das atividades com seus pais. Estudante de Marketing, é responsável pela criação da logomarca do grupo e pela atualização do site que está no ar há apenas seis meses e já totaliza mais de 3 mil acessos. O atual presidente informa que não estão previstas grandes mudanças ou inovações na sua gestão. “Em time que está ganhando não se mexe. E é importante valorizar o trabalho das pessoas que iniciaram tudo isso”, explica Diogo.
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SAMBA E SOLIDARIEDADE
A Banda Saldanha promove mais do que festas. Promove a consciência social por meio de ingressos que podem ser alimentos não-perecíveis, agasalhos, material escolar e brinquedos. Esses materiais são doados a instituições beneficentes, atendendo desde asilos até abrigos de crianças carentes. Além das doações, ainda são oferecidas aulas gratuitas de percussão e instrumentos de corda para crianças da comunidade. A amizade, música do grupo Fundo de Quintal, traduz o resultado do trabalho desenvolvido pela Banda Saldanha e define o ambiente acolhedor e a cumplicidade entre as pessoas que frequentam o local. “Quero chorar o teu choro, quero sorrir o teu sorriso... Valeu por você existir amigo!” Ainda é importante destacar o esforço de um grupo de amigos em transformar um sonho em realidade. “Foi bem cedo na vida que eu procurei encontrar novos rumos num mundo melhor. Com você fique certo que jamais falhei, pois ganhei muita força tornando maior... A amizade...” Não te acanha e vem para a Saldanha, para comemorar alguma data importante ou simplesmente para curtir, pois a diversão entre amigos está garantida.
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“D
omingo lindo de sol. O céu de um azul infinito servia de teto para uma grande massa colorada que seguia rumo ao estádio Beira-Rio. Esse contraste, sinceramente, nos incomodava, já que o azul nos é mais familiar. No ônibus, quatro estudantes rumo a sua pauta e mais alguns passageiros completavam a lotação. De repente, do fundo do ônibus, palavras de insatisfação com a demora ecoam: “Muito lento isso aqui!”. De início, pensamos que era apenas um desabafo, pois realmente o trânsito estava lento. Com o passar do tempo, percebemos que as palavras ganhavam um tom mais agressivo a cada manifestação. Ficamos apreensivas, imagine se o dono dessa voz grossa, um homem alto e de formas bem avantajadas, resolvesse surtar? Nesse momento, a nossa indignação com a multidão de torcedores que estava na avenida e nos impedia de seguir só aumentou. A nossa parada, na Banda Saldanha, estava próxima. Para nosso alívio, o engarrafamento foi
sendo desfeito, e o ônibus pôde seguir. O homem revoltado, rapidamente mudou o tom da sua voz. Agora, a meiguice e a sutileza que ela ressoava nada tinham a ver com aquele homenzarrão. Descemos do ônibus aliviadas e dando muitas risadas. Nossa pauta, realmente, prometia ser divertida. Após algumas horas e com o nosso dever cumprido, seguimos para a parada de ônibus. Para nossa surpresa, o mesmo passageiro bipolar da ida, aguardava o ônibus lá. Inexplicavelmente, ele se lembrou da gente e nos cumprimentou com toda sua educação e doçura: “Oi gurias!”. Nos olhamos por alguns segundos e apenas sorrimos, como se retribuíssemos o cumprimento. O ônibus chegou e todos embarcaram. Mais uma vez, aquela grande massa colorada interfere no trânsito. Agora, o homem parecia mais acanhado e resolveu partilhar seu descontentamento com o passageiro a seu lado, nos poupando de suas reclamações.”
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MÚSICA PARA ENCENAR
BRINCANDO DE PENSAR O TEATRO MÁGICO REÚNE EM UM ÚNICO ESPETÁCULO A MAGIA DO TEATRO, DO CIRCO E DA MÚSICA. NOS BASTIDORES, HISTÓRIAS E OLHARES VIBRANTES FORMAM A COLCHA DE RETALHOS DE UM UNIVERSO CHEIO DE POESIA TEXTO DE CAMILA NUNES E VANESSA REIS | FOTOS DE ÂNGELA VIRTUOSO
“E quando o nó cegars”, deixa desatar em nó 48 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
“Solta a prosa presa, a luz ac
esa”
S
ábado, 18 de setembro. O dia parecia frio na manhã com temperatura de 13ºC. Mas ao meio-dia, após uma correria entre ginásio e hotel, os casacos já estavam guardados no porta-malas do carro. Nos bancos da frente, nós, duas repórteres, seguíamos a van prata da produção. Estacionamos na Rua Alfredo Gerhardt, um pedacinho simples do bairro São Miguel, na periferia de São Leopoldo. Da van, sai uma dúzia de artistas. Não estão maquiados, usam jeans, camisetas e moletons. Ainda assim já há pelo menos 20 crianças agitadas ao redor deles. Falam alto, riem e observam curiosas. Chão de cimento, algumas paredes de lona e diversas mesas sob um telhado sem forro fazem parte do cenário. Estamos no Instituto Lenon Joel pela Paz, e o almoço é servido. Saladas e um carreteiro de primeira qualidade. É dia de espetáculo e convidados especiais. É dia de O Teatro Mágico. Chegamos ao Ginásio Municipal Celso Morbach por volta das 17h. O cenário ganhava seus últimos retoques. Engatamos uma conversa com Andrea Barbour, estudante de Gestão Ambiental de 23 anos e a caçula do TM. A bailarina, que empresta seu corpo para as artes circenses desde abril deste ano, fala ainda enamorada da nova experiência. Diz que em cada show descobre uma personagem diferente dentro de si.
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Com voz calma e pausada, Andrea vê no sucesso do grupo uma grande oportunidade de ouvir as pessoas. “O Teatro Mágico conversa muito com o público. Ele está aberto a perguntas e respostas. Está aberto ao diálogo.” A banda faz questão de ir ao encontro de seus fãs após cada show. Uma espécie de muito-obrigado-por-tanto-carinho-recebidodurante-o-espetáculo. Carinho esse manifestado em São Leopoldo das mais diversas formas. Havia gente caracterizada tal como os palhaços da trupe, excursões de diferentes cidades do interior, pais que levavam os filhos, casais de namorados, cerca de quatro mil olhos contemplativos que assistiam à apresentação do grupo sem aquela histeria coletiva comum a shows em que o público é jovem. Andrea define o espetáculo como uma forma de tirar as pessoas de suas realidades duras, de tirar um pouco o pé do chão. A poucos metros do palco, topamos com outra bailarina. Mesmo com a passagem de som, a conversa se desenrola leve. Ela tem rosto de boneca, daquelas de louça pintadas à mão. De jeans e camiseta, é uma moça comum. Formada em Jornalismo, 25 anos de vida, batizada Andreia e transformada em Deinha Lamego. É quando o show se aproxima que ela surpreende. Volta do hotel já com o figurino e a maquiagem. Uma inspiração na década de 20,
“Eu sinto que sei que so um tanto bem maior” u PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 49
flor que o “Borboleta parece da vento tirou pra nçar”
“Flor parece a gente, pois so semente do que ainda virá” mos 50 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
talvez. “O Teatro Mágico é uma coisa muito intensa. Brinco que a gente sai do palco e desaba no camarim, porque é muita entrega de energia.” Começou com o teatro, que por acaso era ao lado de uma academia de circo. “Aí eu entrei e fiz, nunca pensei que isso fosse virar meu trabalho, nem minha vida.” Mas virou. Foram três anos trabalhando num circo de verdade. Até que o convite do amigo Fernando Anitelli – criador da trupe – pôde ser aceito. Corria o ano de 2008. “Aí teve uma redução de elenco da galera, acabei saindo. Fiquei um tempo fora, e esse ano o Fê me liga: Oh, estou precisando que cê volte.” E ela voltou, mais madura e determinada. “Meio que a vida me levou, não teve muita decisão. Virou profissão por acaso, acho que o universo conspira. É o lugar onde você pode expressar a arte com a sua identidade de uma forma diferente de qualquer outro. Não tem uma coisa mais legal. É o que é pelo todo.” Logo na entrada do ginásio, ao pé da arquibancada, estava sendo montada a lojinha: uma porção de prateleiras prémoldadas e mesas que, em pouco tempo, estariam forradas de CDs, DVDs e camisetas do Teatro Mágico. O vendedor? Um simpático senhor, progenitor do líder da trupe. Foi difícil se aproximar dele. Não por falta de oportunidade, mas por receio de atrapalhar seu trabalho. Odácio Anitelli tem 65 anos e uma família rara. Já estava montando sua lojinha há mais de uma hora quando parou para respirar e para um dedo de prosa. “Nós somos de Presidente Prudente, lá perto do Mato Grosso. Mas o Fernando só nasceu lá, foi criado em Osasco.” São três filhos. Gustavo tem 27 anos e é o caçula, que cuida de quase tudo. Fernando, 36, criou e lidera a trupe. E Rodrigo, 39, após uma década nos Estados Unidos, trabalha em São Paulo, no ramo de restaurantes. “Foi pra ele que o Fernando fez a música do Anjo mais velho. Foi por causa dessa distância. Bonito, né?” A família se completa com Delmina, a mãe “mão fechada” responsável pela contabilidade. “Todo show sem exceção, antes de começar, a minha esposa liga pra ele e faz uma oração por telefone. Nós somos evangélicos. Os meninos já nem são mais, eles têm a base construída, a moral. Tanto que se você ouvir o primeiro disco, faz muita referência à Bíblia, à Igreja, que é a base. A gente tem muito essa coisa de estar junto. A gente se cuida muito. A gente se cuida mesmo!” Seu Odácio já foi caixa de banco e trabalhou com treinamento de pessoas. Mas hoje cuida da lojinha da trupe. Chega ao local do show no início da tarde e só vai embora bem depois do final. Enquanto todos voltam ao hotel e descansam após a passagem de som, ele continua na loja. Por isso, não aceita que reclamem de viagens longas e cansativas. “Primeiro você pergunta pra mim. Se eu estiver cansado, tudo bem. Mas, se eu disser que não estou, está faltando é vergonha!” Durante a rápida coletiva que concedeu já no Ginásio, Fernando destacou o clima de paz que cerca as apresentações do TM: “Um amigo meu comentou uma vez que os únicos lugares em que ele ia e onde as pessoas cantam e se abraçam sem conhecer umas às outras, ou é na igreja ou é em show do Teatro Mágico”.
APESAR DE TER APENAS 23 ANOS, ANDREA BARBOUR MOSTRA NO OLHAR A DETERMINAÇÃO DE QUEM JÁ SABE O QUE QUER
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IMPRESSÕES DE REPÓRTER
s o h l o s o r t u o Com Camila Nunes
“F
oi minha primeira vez em uma apresentação do grupo. Confesso que a curiosidade tomava conta. Afinal, como uma deficiente visual perceberia um show que trabalha tanto com imagens? Durante o dia, Vanessa, minha colega de reportagem, se esforçava para me explicar os figurinos usados por eles. Mas, por mais que eu tentasse, tudo aparecia de forma muito confusa na minha cabeça. A coletiva de Fernando Anitelli já havia terminado. Sem pensar muito se aquela postura caberia a uma repórter, me aproximei e perguntei: - Posso pedir uma coisa? - Claro! - Posso tocar na sua roupa? - Claro! Ele, de forma muito sensível e atenciosa, pegou em minha mão e mostrou calmamente cada acessório do figurino. O colete que vem por cima da camisa é jogado no palco por Anitelli no meio do
show. “Tá sentindo? Este é o meu cinto. Perceba que ele tem várias cordas entrelaçadas. Aqui embaixo, uso essa bota grande que parece um sapato de palhaço. Ah, e tem a minha barba! Você não pode deixar de tocar na minha barba! Tá vendo como ela é?” O show finalmente começou. Ficamos posicionadas na boca do palco, do lado de dentro da grade que separava o público. Minha parceira de reportagem, incansavelmente, ia relatando em meu ouvido os detalhes de cada coreografia. Eu e Vanessa dançamos abraçadas durante as quase duas horas de show. Fernando cantava Pena, a última música. Enquanto pulava feito criança feliz, senti uma mão me puxando. Era Andrea Barbour, aquela lá do início da reportagem, que havia descido do palco. Ficamos ali dançando como se nada mais houvesse ao redor. Um momento mágico para encerrar um dia igualmente mágico.”
o ç i t i e f e a Magi Vanessa Reis
“E
ssa reportagem foi um desafio e deu bastante trabalho! Mas... Caramba! Foi muito gostoso de fazer! Começamos a jornada seguindo o carro da produção até o local do almoço, permanecendo ao redor do grupo o dia todo, com direito ao jantar pós-show que nos uniu ao Teatro Mágico e à produção ao redor de pizzas, num bate-papo descontraído. Acompanhar a Camila foi um desafio à parte. Ser os olhos dela naquele mundaréu de cores, luzes e performances acrobáticas foi angustiante, sim. Como explicar os movimentos da bailarina, que rodopia,
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salta e dança com mais velocidade do que as palavras podem dizer? De qualquer forma, imagino ter conseguido, ao menos um pouquinho, transmitir a ela, e também aos leitores, a atmosfera daquele dia. Mas alguns instantes permanecem indizíveis. Ouvir o verso que diz “só enquanto eu respirar vou me lembrar de você” e ao mesmo tempo ver a magia que salta dos olhos dos músicos e bailarinos qual feitiço, enquanto atrás de mim um menino de 12 anos cantava em uníssono ao coral de quase quatro mil vozes contém fagulhas de emoção que – eu desisto – as palavras não vão dizer. “
APÓS UM PERÍODO LONGE DA TRUPE, DEINHA LAMEGO VOLTOU AO TEATRO MÁGICO MAIS PREPARADA
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OS PORTÕES DE HADES
MÚSICA PARA VIAJAR
O QUE É A “DROGA DIGITAL” QUE DOMINOU A INTERNET, CAUSOU ALVOROÇO NA MÍDIA E PREOCUPA AS AUTORIDADES INTERNACIONAIS?
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É
um quarto escuro. Em um dos cantos, há uma cama de solteiro desarrumada. Livros, CDs, revistas e pequenos objetos enfeitam a bagunça adolescente no chão e em algumas prateleiras na parede do fundo. A única luminosidade vem da fraca tela de um computador ligado, fora de quadro, e de uma janela ao fundo. O vídeo é gravado toscamente, de forma que através do vidro se vê apenas uma imensidão branca. Deitado na cama, um jovem com cerca de 15 anos, sem camisa, usa um grande fone de ouvido. O silêncio é quebrado pela respiração ofegante do rapaz. A expressão bizarra em seu rosto passa uma mistura de agonia e prazer. Um leve chiado escapa dos fones de ouvido. O ruído aumenta gradativamente, acompanhado pela expressão de dor na face do sujeito. Após um espasmo súbito – como um grande susto – o adolescente arranca os fones, joga-os longe, coloca as mãos no rosto e em seguida desliga a câmera.
TEXTO DE MARCELO COLLAR E TAÍNA LAUCK FOTOS DE MARCO ANTÔNIO FILHO
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O i-doser usa as chamadas “batidas binaurais”, que são dois sons de frequências semelhantes reproduzidos em cada um dos ouvidos. Quando escutados com fones, a sensação é de que existe um terceiro som, que parece vir de dentro da própria cabeça. A técnica foi descoberta em 1839 pelo físico alemão Heinrich Dove. A prática é normalmente usada em sessões de meditação e também em músicas. A novidade é o uso das batidas binaurais para tentar obter efeitos semelhantes aos de drogas ilegais. A febre começou com o site i-doser.com, que prometia aos usuários uma forma barata, segura e legal de usar drogas. O site vende as “doses” de áudio que prometem diversos efeitos: das sensações semelhantes ao uso das mais diversas drogas, às afrodisíacas, ou que garantem uma noite de sono tranquila. Ao todo, são mais de 200 tipos diferentes de doses. O preço de cada uma delas varia de US$ 2,50 aos salgados US$ 199,95. As doses mais populares são “Gates of Hades” (portões de Hades) e “Hand of God” (mão de Deus), que, segundo os criadores, provocam os efeitos mais extremos. Essas doses são também responsáveis pela grande maioria dos vídeos encontrados no YouTube mostrando a reação dos usuários. “Acho que, por eu estar concentrado e relaxado, funciona, e me deixa mais calmo
FUNCIONA?
Vídeos como esse contaminaram sites como o YouTube durante o primeiro semestre de 2010. Centenas, literalmente. O chiado nos fones de ouvido é o chamado i-doser, a “droga digital”. De acesso e uso simples, o i-doser consiste em arquivos comuns de áudio em estéreo que, se ouvidos com bons fones, provocariam uma hipotética mudança nas ondas cerebrais do usuário, causando efeitos similares ao do uso de drogas.
MARCELO TAÍNA
m um desses sites de idoneidade moral questionável, consegui várias das “doses” referidas na página do i-doser. Coloquei os fones de ouvido e toquei a tal Gates of Hades. Nos primeiros minutos, um som mais grave e repetitivo inunda os fones. Existe a possibilidade de um efeito placebo, mas eu me senti – de fato – um pouco relaxado. Subitamente o som muda para um ruído alto e estridente. O relaxamento induzido pelo som anterior me fez levar um enorme susto. Meu coração disparou e meus ouvidos demoraram a se adaptar ao novo ruído de alta frequência. Algum tempo depois, comecei a sentir uma leve tontura, como se estivesse no segundo ou terceiro copo de cerveja. E não passou disso. Fiquei levemente enjoado, como quando se sobe a Serra de carro. Os efeitos passaram segundos após eu tirar o fone de ouvido. Com minha breve experiência com o i-doser, posso afirmar que alguma coisa ali existe. Placebo, talvez. Sei que funcionou comigo, mas nada que se equipare ao efeito devastador do álcool no sangue, por exemplo.”
“E
or algum motivo ainda não bem definido, esse movimento i-doser me fez lembrar o filme Barbarella, de 1968. Talvez seja o fato de no filme o sexo ser feito através da ingestão de cápsula... e agora essa! Droga virtual. Fiquei chocada. Tecnologia para o bem e para o mal, dependendo do ponto de vista. A tensão pré-dose de i-doser foi por água abaixo depois da experiência. O que era expectativa se tornou frustração. Mudança essa de sentimentos que aconteceu em menos de meia hora, já que eu não aguentei ficar ouvindo aqueles sons – para mim absurdamente irritantes – por mais de quinze minutos. Tentei duas vezes. O mesmo quick happy. E nada de emoção adversa. Talvez tenha sido a minha incredulidade. Quem sabe? Segui as instruções do site para atingir o sucesso com a minha dose: sala escura, o silêncio como companhia, fones de ouvidos a postos... e nada, diferente do meu colega Marcelo. A única sensação que eu tive era uma certa dor de cabeça por aquele som chato invadindo minha mente, além do pensamento: o que leva as pessoas a escutar isso?”
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A prática logo ganhou espaço na mídia mainstream dos Estados Unidos. O jornal USA Today se referiu ao i-doser como “a nova preocupação dos pais”. Na rede CBS foi ao ar uma reportagem com a psicóloga Jennifer Hartstein, uma das primeiras a pesquisar os efeitos do i-doser. Ela afirma que uma das principais preocupações do estudo foi definir se a suposta droga digital poderia ser uma porta para as drogas “reais”. Conclui: “Estou cética quanto a isso, não acredito que os efeitos do i-doser possam levar alguém às drogas convencionais”. Também na CBS News o jornalista da editoria de ciências Brian Dunning afirmou que as pessoas compram qualquer coisa que seja vendida com uma campanha convincente. “Você pode usar inúmeros termos científicos, ondas alfa, ondas gama; e explicar como isso deveria funcionar. Se convence, vende”, afirma Dunning. No Brasil a febre do i-doser na mídia não parece ter o mesmo efeito que nos Estados Unidos. A mídia tocou com timidez no assunto. A Folha Online publicou uma reportagem na qual o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, da Unifesp, declara que é impossível um som reproduzir o efeito químico de uma droga. A opinião segue a da maioria dos veículos mundiais, que veem a tal “droga digital” mais como um efeito de auto-sugestão do usuário do que algo que possa causar os efeitos psicotrópicos prometidos. Nas redes sociais, o i-doser chegou a ter certa visibilidade no Brasil. No Orkut, por exemplo, as duas principais comunidades relacionadas ao tema somam cerca de 70 mil usuários, com tópicos relatando experiências individuais e troca de arquivos de doses. Mesmo com a classe científica vendo a prática com ceticismo, é inegável que muitas pessoas sentem os efeitos do i-doser. Em razão disso, resolvemos tentar nós mesmos. Entramos no quarto escuro.
I-DOSER NA MÍDIA
e tranquilo”, comenta Patrick, 22 anos, usuário habitual de i-doser, se referindo à dose quick happy. Ele descobriu o i-doser na internet no início do ano passado e desde então tem usado o som para relaxar. Os arquivos de i-doser estão no celular dele e são escutados frequentemente. Outro usuário, que não quis se identificar, afirmou que escuta uma determinada dose para ter mais concentração. Diz já ter experimentado vários tipos de doses até encontrar a mais eficiente para ele. Acrescenta: “Tem dias em que a pessoa parece estar mais sensível aos efeitos, e fica mais fácil”. Outros afirmam não terem sentido quaisquer efeitos após experimentar o i-doser. É o caso do estudante Rafael Tourinho. Ele experimentou uma dose que simularia o efeito de cinco doses de gim. Compara o som ao de “naves espaciais de filmes de ficção científica”.
MÚSICA PARA TATUAR
NA PELE, NA ALMA QUANDO A MÚSICA ULTRAPASSA OS LIMITES DO SOM E PASSA A ESTAMPAR O CORPO TEXTO DE ADAM SCHEFFEL E LARISSA DE OLIVEIRA FOTOS DE JÉSSICA BERGER 58 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
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Q
uando decidiu fazer a sua terceira tatuagem, Pietro não teve dúvidas. Seria, mais uma vez, uma declaração de amor à música. Aos 23 anos, ele acumula no corpo o símbolo máximo do grupo Rolling Stones – a famosa língua de fora – e a silhueta, não menos emblemática, da capa do álbum London Calling, do The Clash, cada uma delas em uma panturrilha. Agora, o símbolo escolhido para estampar o braço direito do estudante de História da PUCRS – e DJ nas horas vagas – é o da banda Red Hot Chili Peppers. Entre ter a ideia e concretizá-la, Pietro Santos de Souza levou menos de um mês. Assim como as tatuagens, o ofício (ou diversão) é recente. Datava de nada muito além de um semestre, quando começou a discotecar na festa Roque Town, em Porto Alegre. Já as tatoos começaram aos 22, três anos após Pietro ter ido a Buenos Aires assistir ao show dos Rolling Stones, em 2006. O gosto pela banda começou em casa, sobretudo com sua mãe. “Foi com a minha família que aprendi a gostar de rock’n’roll”, lembra. O tempo para maturar a ideia pode ter sido longo, mas desencadeou uma vontade que parece não cessar tão cedo de mostrar no corpo a sua paixão pela música. “Gosto de fazer tatuagens relacionadas às bandas que curto há algum tempo e que tenho certeza de que não vou me arrepender depois. Fiz primeiro a dos Stones porque, para mim, é a melhor banda de rock”. No dia em que foi entrevistado, Pietro tinha ido orçar e agendar sua nova companheira em um estúdio no centro da Capital. Era um sábado de sol, e ele parecia empolgado. Pelo menos até a timidez causada pelos flashes o deixarem sem jeito. Na segunda-feira, lá estávamos nós o acompanhando novamente. Dessa vez, ele parecia mais apreensivo. O nervosismo aumentou com um imprevisto. Marcada para as 10h, a sessão só começou trinta minutos depois. O tatuador Alemão e Fernanda, sua companheira há cinco anos, se atrasaram por conta de um acidente doméstico com a cadelinha de estimação, Meg. “Ela teve um machucado grave ao cortamos a unha dela em casa, daí tivemos que levar ao veterinário”, resumiu Fernanda, que também é recepcionista do estúdio. Juliano Ribeiro, de 27 anos, é mais conhecido no meio como Alemão. Há sete anos atuando no ramo, já “trampou” em outro estúdio de Porto Alegre, passou dois anos trabalhando na Guarda do Embaú, em Santa Catarina, e voltou para a capital gaúcha, desta vez para o Kadu Tattoo. Foi ele que fez a primeira tatuagem de Pietro em 2009. Alemão nos conta que as tatuagens relacionadas à música são pedidas frequentemente, mas não chegam a ser as mais requisitadas. “Quando tem show de uma banda grande na cidade, aumenta a procura. Cheguei a fazer três seguidas do Pearl Jam na época em que eles vieram pra cá (em 2005)”. A última que lembra ter sido gravada por suas mãos foi a capa do álbum The dark side of the moon, do Pink Floyd, na semana anterior à nossa visita. Antes de começar, foi preciso preencher um formu-
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lário detalhado sobre possíveis doenças, medicações, cirurgias estéticas e até mesmo uso de drogas – que nossa fonte afirmou não estar usando no momento. Em dois minutos, Pietro já estava na mesa do Alemão, pronto para 45 minutos de dor em que não gritou nem um aizinho. A preparação é muito simples. Marca-se o molde, para saber se está do tamanho desejado pelo cliente. Depois, raspa-se com gilete a área onde será gravada a imagem. Feito isso, é sentar e esperar a mágica acontecer. No começo da sessão o nervosismo de Pietro parecia ter desaparecido. Quase que impassível à dor, conversava tranquilamente com todos. “A primeira doeu mais, acho que era pela expectativa”, relembra. Alemão complementa: “É comum cair a pressão de quem faz pela primeira vez, mas está mais ligado ao nervosismo. Às vezes a pessoa não come antes de vir, daí pode se sentir um pouco mal”. Pietro também foi esperto, um dos motivos de ter escolhido o braço foi pela fama de doer menos. “Locais como barriga, costelas e até pé e pescoço doem mais”, comenta o tatuador.
IDENTIDADE
Pequenas, imensas, discretas, multicoloridas, para toda a vida e até provisórias. Cada marca expressa na pele um momento, um sentimento, um desejo, a saudade de quem se foi, a alegria de quem chegou. Em outros casos, o registro aparece como forma de adoração a um ídolo. Funciona como um louvor. A admiração àquele artista é tamanha que é preciso manter um símbolo sobre a pele com a função de homenagear, mas também de pertencer a um grupo. São símbolos de identificação que estão impregnados de um potencial mágico e místico. Quem se tatua quer expor não somente o corpo, mas o desenho ali inserido dolorosamente. Assim, a tatuagem surge como a principal artista. É o ponto de poder, de encanto. Para a psicóloga Márcia Viana, ao se tatuar, a pessoa está manifestando um posicionamento pessoal relativo àquele momento. Como a marca dificilmente será apagada, os desenhos evocarão constantemente uma época remota. Enquanto a evolução é um movimento de mudança contínua, a tatuagem representa a imobilidade da consciência presa a épocas, ideias e momentos que já passaram. Mas que continuaram inesquecíveis, ligados à memória e à pele de cada um. “Os estudos sobre a necessidade de ‘marcar’, materializar no corpo uma experiência ou simbolizar a vivência fazem parte de um processo de organização subjetiva em direção à vida adulta, à maturidade e à autonomia”, explica. A psicóloga ainda ressalta que tatuagem, para muitos, é um tipo de paixão incondicional. “Paixão é pathos, sofrimento. E o que é a loucura de um fã senão a não consciência de si?”. Desse modo, as pessoas tendem a se encontrar nos mitos e procurar nos heróis maneiras de lidar com a finitude, com os limites, com as perdas, além de preencher o que dentro está vazio, intolerável, e transformar isso em marcas.
Essa é, mais ou menos, a relação que Pietro tem com a música. “Posso dizer que minha relação com ela é de dependência. A música está presente em quase todos os momentos do meu cotidiano e isso é porque encontro nela a expressão dos meus sentimentos: se estou feliz, triste, ansioso, sempre tem alguma música na qual posso me apegar”. Então, nada mais natural do que gravar isso na pele para toda a vida. “As bandas que tenho tatuadas no corpo são bandas de atitude, que realmente gostam do que fazem e não estão no ramo só por dinheiro, mas sim por amor à música. Por isso me senti seguro em gravá-las em mim”, finaliza.
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“A
caça por um case especial é aquela novela. Ao pensar a pauta nos primeiros dias, o case está lá no papel, idealizado, pré-agendado, cheio de detalhes bonitos que o jornalista crê que vai dar certo. Muitas vezes até dá. Mas as divergências não se aquietam e sempre aparecem para incomodar. O case se muda. Perde o emprego. Desiste da entrevista. Tem compromissos marcados estrategicamente naqueles dias que estão disponíveis para os repórteres. Parece mentira, mas não é. Contudo, achar a fonte ideal é só metade do jogo ganho. Outras coisas ainda precisam dar certo. O tempo tem que colaborar, o trânsito precisa fluir e o papo precisa render. Com o Pietro foi assim. Ficamos na incerteza de conseguir conciliar a data da sessão da tatuagem com o prazo para execução desta matéria. Felizmente, deu tudo certo e passamos dois dias na cola do rapaz. No primeiro, fomos juntos agendar horário no estúdio e ver a discussão da ideia do desenho com o tatuador. Neste dia, aproveitamos para levá-lo à Casa de Cultura Mário Quintana e fazer nossa entrevista lá mesmo – para adiantar nosso lado –, além de algumas fotos para a matéria. Já na segunda vez, presenciamos a sua nova marca no corpo e ficamos contentes por a reportagem continuar seguindo sem percalços. Ao final desta reportagem, nós – narradores nãotatuados desta história – pudemos aprender que a moldura que contorna nossas paixões pode ser, muito bem, a nossa própria pele.”
O ESTUDANTE PIETRO SOUZA DURANTE A SESSÃO DA SUA TERCEIRA TATUAGEM
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CAROLINA TREMARIN
ANTÔNIO TRIERWEILER CONDUZ OS BÚFALOS AO SOM DE SEU VIOLINO
MÚSICA PARA TRANSFORMAR
MAIS QUE UM ENCANTADOR DE BÚFALOS TEXTO DE BRUNA SCHUCH E CAROLINE RAUPP | FOTOS DE BRUNA SCHUCH E CAROLINA TREMARIN
D
iante do homem tranquilo sentado no sofá, um pouco tímido, de botas, bombacha e camisa clara que combina com seus olhos, duvida-se que se trate do mais ilustre morador do pequeno município gaúcho de General Câmara. Antônio Trierweiler, 50 anos, é veterinário, advogado, músico e criador de búfalos. Há alguns anos, ficou conhecido na região depois de descobrir uma maneira diferente de fazer o manejo dos animais, guiando-os apenas pelo som de seu violino. Nascia o mito do encantador de búfalos, apenas uma impressionante história dentre as tantas que Antônio tem para contar. Desde a infância, o amor pela música clássica o levou naturalmente a querer aprender um instrumento. Apesar de já se interessar pelo violino, nos idos de 1970 esse instrumento era quase inacessível. Optou, então, em fazer aulas de violão clássico. Mas, por causa de um acidente doméstico que o deixou com os movimentos do braço direito limitados, passou a sentir muitas dores e acabou tendo que desistir do violão. Quando menino, morava em Porto Alegre e passava os finais de semana com seu avô na fazenda. Uma figura muito importante na sua vida, e a quem gostava de imitar. Muito ligado ao campo e à música, precisou decidir qual curso fazer na universidade. A dúvida entre a Música Clássica e a Veterinária acabou sendo decidida em função das dores no braço. Após concluir o curso de Veterinária, mudou-se para a fazenda de sua família e passou a administrá-la. De uma situação inusitada, surgiu uma amizade que comove pela lealdade e dedicação. Emocionado, Antônio recorda seus momentos com dona Adélia. Ela, que já passava dos 60 anos, entrou na sua vida pouco antes da
COMO O VIOLINO MUDOU A VIDA DE ANTÔNIO TRIERWEILER, VETERINÁRIO E ADVOGADO DO INTERIOR DE GENERAL CÂMARA
universidade, numa ocasião delicada. A perda de um amigo em comum a levou até a sua casa. As afinidades e a paixão pela música os aproximou. Dona Adélia se dispôs a lhe ensinar piano e, durante o tempo em que duraram as aulas, a amizade se fortaleceu. Quando a técnica passou a lhe exigir mais, as dores no braço voltaram e, por fim, não foi possível continuar conciliando música e faculdade. Durante quase 20 anos, a música perdeu espaço para o trabalho. Formou-se em Veterinária, depois em Direito e não restava tempo para mais nada. Foram anos de dupla jornada: durante o dia, o desgastante trabalho como veterinário; à noite, a análise de processos. A rotina extenuante o levou a enfrentar graves problemas
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ARQUIVO PESSOAL
ANTÔNIO EM UMA DE SUAS VISITAS MUSICAIS A DONA ADÉLIA
de saúde. Decidiu deixar de advogar e voltar a levar uma vida mais simples e tranquila. Era a brecha necessária para a música voltar a fazer parte de sua vida. Mesmo quando a vida o fez colocar a música em segundo plano, Antônio nunca deixou de visitar dona Adélia, amizade que foi determinante para a grande mudança ocorrida em sua vida. “No Natal de 1999, resolvi dar um presente pra ela, então com 93 anos. Aí pensei: se eu der uma caixa de bombom, a moça que cuida dela vai traçar. Flores, no outro dia estão murchas. Aí peguei um violinista, fui até Porto Alegre e levei para tocar para ela... filmei tudo, ela ficou muito feliz”, relembra Antônio. Naquele dia ressurgiu a vontade de aprender a tocar violino. Na volta para casa, Antonio percebeu que tocar o instrumento exigia menos de sua mão direita, já que ela apenas conduz o arco. Assim, começou a fazer aulas com um violino alugado, pois, mesmo no final dos anos 1990, comprar um bom violino ainda não era tarefa fácil. Acabou descobrindo uma grande paixão. A partir de então as visitas à dona Adélia passaram a ser sempre musicais. Ele não deixava de tocar para ela, nem mesmo quando por vezes ela estava dormindo. A relação de amizade entre os dois era tão bonita e verdadeira que foi perpetuada por dona Adélia quando, em uma das visitas, resolveu lhe presentear com seu violino, um instrumento muito antigo que havia sido trazido da Itália no início do século passado, réplica de um Amati. O presente foi dado com duas condições. A primeira: ele deveria aperfeiçoar sua técnica para que pudesse tocar no dia em que ela morresse. A segunda era não mexer na alma do violino — peça responsável pelo som do instrumento — pois era a alma dela que estava ali. Antônio ressalta a lucidez de dona Adélia, que na época estava com 93 anos e, mesmo assim, tinha capacidade de fazer metáforas. “Eu aprendi a tocar por ela e para ela”, conta o músico. Dona Adélia faleceu em 2003, com 97 anos, Antônio tocou violino em seu funeral, uma última homenagem a sua grande amiga, como havia feito por todos aqueles anos.
A MÚSICA E OS ANIMAIS
Antônio conseguiu apurar tanto sua técnica que mesmo o fato de ter iniciado tarde seu aprendizado não o impediu de fazer parte de uma orquestra. Participa desde 2002 da Orquestra de Lajeado e, desde 2006, da Unisc. Foi assim que a relação da música e dos búfalos começou a surgir. Enquanto ensaiava em sua fazenda, percebeu que, ao tocar uma determinada música — Amazing Grace — um búfalo que pastava nos arredores da casa
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se aproximou. Antônio estranhou o fato e começou a fazer algumas experiências, até perceber que não só aquele búfalo se aproximava ao ouvir o som da música como todos os outros também. Aos poucos, foi se acostumando a fazer a lida do campo, trocá-los de pastagem, somente pelo comando do violino. A cena é inacreditável. Vera Regina, que mora há pouco tempo em General Câmara, ficou conhecendo a história do encantador de búfalos e quis assistir de perto. “Fomos com Antônio até sua fazenda para ver a famosa história dos búfalos. Quando paramos na estrada, não se enxergava nenhum animal, apenas árvores e um grande descampado. Antônio começou a tocar o violino no meio do campo. Tocou por alguns minutos, e cheguei a pensar que nada iria acontecer. Foi quando comecei a ouvir ao longe o barulho daqueles animais enormes correndo em nossa direção, fiquei com medo e voltei para o carro, fiquei vendo a cena de longe. É ao mesmo tempo encantador e assustador. Incrível como eles parecem ser atraídos pelo som do violino e como a música consegue acalmá-los”, conta a moradora. Esse jeito peculiar transformou Antônio em mais do que um homem do campo, mais do que um músico, mais do que um advogado. Transformou-o em um personagem, que já teve sua história contada em jornais, revistas e até na televisão, mas principalmente em um homem que encontrou o equilíbrio em sua vida fazendo as coisas que mais gosta. Com certeza é esse o legado que pretende deixar para seu filho Carlos Augusto, cinco anos, que desde o ano passado tem aulas de violino. O valor da amizade, a importância da qualidade de vida e o amor pela música.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“P
ensávamos que a tarefa mais difícil seria o momento em que estivéssemos frente a frente com os búfalos ferozes. Nossa aventura começou quando escolhemos o dia errado para irmos até ao encontro do nosso entrevistado. Pegamos o carro e o mundo começou a desabar em Porto Alegre. A chuva era tão forte que era difícil enxergar a estrada em nossa frente. O destino era General Câmara, uma hora de Porto Alegre. Quando chegássemos lá, enfrentaríamos mais uma hora em uma estrada de chão batido até o sítio onde são criados os búfalos. Passamos a entrada que deveríamos seguir e fomos parar em uma infinita estrada com enormes campos
e lavouras ao nosso redor. Três meninas e o medo de estar cada vez mais indo para o rumo errado, o desconhecido. Decidimos voltar. Não conseguiríamos ver búfalos, fotografar búfalos e escrever sobre búfalos naquele dia. O dia certo chegou. Sol, calor e, dessa vez, pegaríamos um ônibus na rodoviária para não ter erro. Depois de muito chão e poeira, chegamos no sítio. O som do violino funciona mesmo, e o barulho que os búfalos provocam com suas patas é assustador, mas, quando chegam perto, são animais dóceis e afetuosos. Repórteres e fotógrafa ficaram impressionadas com o carinho e a sintonia do encantador e seu rebanho.”
BRUNA SCHUCH
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SITES ESPECIALIZADOS EM CIFRAS MUSICAIS TAMBÉM CONTÉM A LETRA DE JINGLES FAMOSOS, COMO O DA LIQUIGÁS
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MÚSICA PARA GRUDAR
O LUCRO AZUL DO CACHORRINHO O JINGLE PUBLICITÁRIO VALORIZA UMA MARCA E PODE DETERMINAR O SUCESSO DE PRODUTOS MERCADOLÓGICOS NA VISÃO DE QUEM O CRIA TEXTO DE CRISTIANE SERRA E MATEUS FERRAZ FOTOS DE CAROLINE SCHMEDECKER
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I
magine a cena. Sábado de manhã, 7h. Você dorme o sono dos justos após uma semana de aula, trabalho e um eventual cinema. Tudo o que você não quer é ser importunado. De repente, um sonho intranquilo toma conta de seu momento de repouso. Nele, pessoas de macacão azul oferecem um produto seguro de norte a sul do Brasil. Como você sabe desses detalhes? Simples. Uma música acompanha toda a cena. Quando você percebe, já está até cantando junto. Uma sonora estrofe invade o quarto ao mesmo tempo em que você acorda ao som de “Se tem o lacre azul do cachorrinho…” Você levanta da cama de mau humor por ter sido despertado de maneira tão inusitada, mas passa o dia inteiro cantando a tal música do lacre azul do cachorrinho. Uma chatice, pensa. Mas, após uma análise aprofundada, você chega à conclusão de que os versos repetidos à exaustão cumprem bem o seu papel. O de tornar uma marca conhecida. Um bom jingle deve ser assim. Chato para alguns, brilhante para outros, mas que consiga se fixar ao ponto de ser repetido ou, em casos extremos, até criticado pelo públicoalvo. Isso porque as propagandas que ficam na cabeça da população são sempre as muito boas ou as muito ruins. Os versos que tomam ares de algo simplista devem ser objetivos, para passar uma mensagem em apenas 30 segundos, e imediatistas, pois geralmente as campanhas duram, no máximo, dois meses. A simplicidade está presente em grande parte das músicas de campanhas que marcaram a população. Seja pela letra, acessível a uma determinada camada que recebe a informação, o público-alvo, ou por um refrão repetitivo. Essa situação passa a impressão de que é fácil compor algo que tenha como marca registrada a acessibilidade da informação. Engano. O guitarrista da banda Papas da Língua, Leo Henkin, trabalhou por vários anos na composição de jingles e trilhas sonoras e diz que a música comercial deve, primeiramente, seguir regras. São demandas do cliente, do público a ser atingido, além de ser uma criação em cima de um produto existente. Resumindo, um processo criativo que não é livre. Ainda há a necessidade de se fazer algo acessível. E é esse o ponto que apresenta o maior desafio em sua opinião: “É muito difícil ser simples. Ao mesmo tempo, as grandes músicas são as que beiram a simplicidade e, até por não existir uma fórmula pronta, eu considero a criação de um jingle uma tarefa das mais complicadas”. Além disso, há a distinção do veículo que receberá a peça. Em uma campanha para o rádio, a própria letra da música deve ser clara e dizer tudo de uma vez. Na tevê, o som é acompanhado de imagens, o que pode tornar o jingle mais flexível e subjetivo. Com isso, quando Leo pega seu violão ou senta ao piano, a música não é composta apenas pelo briefing do cliente. “O próprio compositor deve ter um conhecimento musical e intelectual abrangente e estar aberto a todas as possibilidades sonoras”, sublinha. Para ele, o músico deve ouvir todos os estilos, que podem ir do erudito até a ultravanguarda. “Tem muito de uma parte que é do criador, de buscar a sonoridade, atmosfera, isso vai de uma experiên-
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cia cultural de toda, por assim dizer, biblioteca musical”, entusiasma-se. Leo reconhece uma influência do trabalho como compositor de jingles sobre seu desenvolvimento para as demais áreas da música. Hoje, grande parte das composições da banda Papas da Língua tem sua assinatura. “Aprendi muito fazendo jingles. Foi um grande laboratório. Te ensina a trabalhar com tempo limitado e torna acessível o formato pop”, comenta.
TRABALHO CONJUNTO
Atrás de um jingle, nunca há apenas o músico. Há uma empresa que visa o lucro. O “chefe” é quem vai definir a linha do trabalho a ser realizado. Reuniões, roteiros, teto de investimento e retorno são levados em consideração. Além disso, após a conclusão do trabalho, é necessário ganhar a simpatia do contratante para a ideia desenvolvida. Existem histórias, algumas que adquiriram o status de lenda, de clientes que preferiram a intransigência de sua própria ideia a aceitar uma boa campanha sugerida pela agência prestadora de serviço. Segundo o diretor de criação da Paim Comunicação, Fabio Bernardi, essa situação é mais rara do que parece. Geralmente, as peças são finalizadas de forma conjunta, entre agência e produtora. Porém, o projeto só ganha a gravação definitiva após passar pela aprovação do cliente. Como as empresas de comunicação trabalham em cima de um roteiro previamente discutido com o contratante, as chances de recusa são mínimas. Quanto à escolha da música para passar uma ideia, Bernardi acredita que essa é a única arte realmente instantânea. Ela deve ser usada para passar emoção e dizer muitas coisas em pouco tempo. “Diversas campanhas trazem muito conteúdo e, como o tempo é reduzido (cada peça tem cerca de 30 segundos), fica mais fácil colocar a ideia em uma letra.” Ele cita um exemplo marcante, que ocorre pelo menos a cada dois anos: “Os jingles de campanhas eleitorais devem passar emoção, o plano de governo e ainda ser de fácil repetição.” É fácil perceber quando uma cam-
LEO HENKIN RECONHECE UMA INFLUÊNCIA DO TRABALHO COMO COMPOSITOR DE JINGLES SOBRE SEU DESENVOLVIMENTO PARA AS DEMAIS ÁREAS DA MÚSICA
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m um primeiro momento, a escolha do tema da revista nos pareceu algo comum, batido. Mas, ao lembrar de vários jingles que pulavam de nossa lembrança, especialmente a remota, vimos a possibilidade de realizar um trabalho prazeroso. Ao encontrarmos nossa fotógrafa, ficamos ainda mais satisfeitos, já que ela é publicitária, o que nos proporcionou uma visão diferente do tema por alguém que teria uma maior compreensão sobre o assunto. Fomos a campo. Pesquisamos, relembramos, ouvimos diferentes peças e lembramos o mau humor das manhãs de sábado ao sermos acordados pela ótima composição do Lacre azul do cachorrinho ou, em escala amadora, pelo vendedor de bananas que oferecia três quilos do produto por um real ou a melancia calada e garantida. Isso fez com que a empolgação fosse crescente. E se, ao final do texto, alguém ficar com algum jingle na cabeça, isso mostra que não escolhemos o tema errado. Junte-se a nós: “O vendedor tem um crachá de identificação, o uniforme, o caminhão, a chama é azul...”
panha publicitária obtém êxito pela sua repercussão junto à sociedade. Especialmente quando ela ultrapassa os limites do curral formado pelo público alvo e é comentada em qualquer roda de amigos. O “lacre azul do cachorrinho”, sucesso em festas de aniversário e empresas, é apenas um exemplo. Pode-se, ainda, resgatar o jingle dos cobertores Parahyba, das Casas Pernambucanas, do Guaraná Antárctica e, mais recentemente, o dos tubos e conexões Tigre. No Rio Grande do Sul, um exemplo de uma campanha de conscientização que acabou ganhando a simpatia da população foi a dos Monstrinhos, veiculada pela RBSTV, em 2003. Além de personagens caricatos, como o Bicho Papão, a Bruxa Malvada, o Boi da Cara Preta e até o Diabo, a peça trazia uma música que colava no ouvido. Os comerciais logo caíram no gosto da criançada e também dos adultos, chegando a figurar no set list do cantor gaúcho Nei Lisboa, que entre seus Telhados de Paris e Faxineiras, lascava um “Não acredito que falem/que maltrato meus boizinhos/Eu sempre dei a eles/Muito amor e carinho”. Bernardi esteve na criação da peça e não esconde o entusiasmo. “Tem vários casos na agência de campanhas que geram mobilização por parte do público alvo, mas acho que o maior exemplo é a campanha ‘O Amor é a Melhor Herança. Cuide das Crianças’, dos Monstrinhos do grupo RBS.” A persuasão através da música se mostra um método eficaz para a venda de uma ideia. Quando o mercado publicitário alia-se a uma boa melodia e a um refrão instantaneamente decorado, pode-se apostar no sucesso do produto oferecido. Isso porque, se é a emoção o que move o mundo, nada mais óbvio que utilizar esse artifício para influenciar atitudes e hábitos de consumo. Enquanto alguma outra maneira de chamar a atenção para uma marca, tão eficaz quanto o jingle, não for encontrada, as variações do lacre azul do cachorrinho ainda poderão acordá-lo durante vários sábados de sua vida.
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MÚSICA PARA CANTAR
A VOLTA DA AÍDA TEXTO DE ISABEL BONORINO E RODRIGO RODRIGUES | FOTOS DE ELIS BRAZ
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A ENCENAÇÃO DA ÓPERA AÍDA É O GRANDE MOMENTO DO ANO PARA AS MAIS DE 300 PESSOAS ENVOLVIDAS NA MONTAGEM. ENTRE PROFISSIONAIS E AMADORES, O OBJETIVO É O MESMO: TRABALHAR PARA QUE O ESPETÁCULO ACONTEÇA DA MELHOR FORMA POSSÍVEL
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A
paixão entre a escrava etíope e o general egípcio conduz os quatro atos da ópera Aída, de Giuseppe Verdi. Uma história de amor impossível. Ao contrário do que é representado no palco, possível é palavra de ordem no Instituto de Cultura Musical (ICM) da PUCRS, em Porto Alegre. Apesar das limitações técnicas e financeiras, o sonho idealizado pelo maestro Frederico Gerling Jr., afastado pela primeira vez de uma montagem por problemas de saúde, tem seguimento na família formada ao longo dos últimos 37 anos da instituição. “Cada gesto, cada nota feita, tudo que estamos fazendo é para ele”, conta a diretora do ICM e também soprano que interpreta a personagem-título da obra, Adriana de Almeida. Dezenove anos após a última montagem de Aída no Rio Grande do Sul, o ICM voltou a apresentar a obra em quatro récitas, nos meses de outubro e novembro. Dessa vez com a participação argentina do maestro Mario Perusso e outros quatro solistas. Para realizar um grande espetáculo como esse e superar todos os seus obstáculos, o trabalho começa cerca de três meses antes. No mês anterior à estreia, os ensaios do coral e da orquestra são intensificados e é incluída a parte cênica.
ENSAIAR É PRECISO, TOLERAR TAMBÉM
VICTORIA TRABALHA PASSO A PASSO A MONTAGEM JUNTO AO CORO
Pense em torno de 350 pessoas, atuando nas mais diversas funções, no palco e fora dele, sendo que a maioria está ali voluntariamente. Agora, imagine ter de contar com a compreensão de todos, entender eventuais ausências, desistências de última hora e saber que o tempo joga contra. O fato de a maioria ser amadora torna a realização da ópera um desafio e um exercício de tolerância, já que muitos trabalham durante a semana ou não sabem ler partituras. “É um trabalho que depende da boa vontade de todos para estarem nos ensaios. Trabalhamos sempre com condições acessíveis, não ideais”, relata a diretora com certo tom de
lamento. Para ela, o ideal seria contar com um coro profissional, assim como é a orquestra. Não sendo possível, a colaboração vem do amor à arte. “É um produto feito com pessoas amadoras. Realmente o nome já diz: amam aquilo que fazem”, conclui Adriana. Mariele Beckenkamp, 41 anos, fisioterapeuta, entrou para o coral por acaso, junto com a mãe, a artista plástica Jalda, 66. Foi ao teste para acompanhá-la, acabou sendo convidada a participar e há oito anos faz o que mais gosta ao lado da mãe. Ela não é a única nessa situação. A médica Clarissa Bassin, 49 anos, desde ano passado tem a companhia de sua filha Virgínia, 28, tradutora, que canta ao lado do noivo Eliandro Both, 28. Com tanto tempo compartilhado, namoros não são raros no grupo. O casal Maria Isabel, 63 anos, e Isidro Piazzetin, 60 anos, participou das outras montagens locais de Aída, feitas em 1977 e 1991 pela PUCRS, e sabe bem a razão para os relacionamentos começarem. Integrantes do coral desde 1969 e 1973, respectivamente, a professora de francês e o bancário se conheceram ali e já perderam a conta de quantos casais se formaram e de quantas óperas participaram. Ano que vem completam 30 anos de casados, o mesmo número de óperas que acreditam terem feito. Não é para menos. Maria Isabel está no coral antes mesmo do maestro Gerling assumir o grupo, em 1972. A entrada de Isidro, na época seminarista, se deu após a divulgação em uma turma de Filosofia sobre as “benesses” que o canto traria aos jovens aspirantes a sacerdotes. Quando chega a época dos ensaios de cena, lá estão eles, junto a Mariele. “O que mais nos entusiasma é fazer a ópera. A gente canta e interpreta, depois ouve o aplauso do público. Ao final nos sentimos realizadas”, conta a fisioterapeuta. Nessa montagem ocorreram seis trocas de cenário, e cada personagem teve em média três figurinos.
LIMITES SUPERADOS
No galpão ao lado do prédio do ICM existe uma espécie de oficina onde funcionários dão forma ao cenário das óperas. Ali foram feitos os últimos ajustes nas esfinges de esponja, remontando às do Egito, e nas grandes estruturas de cerca de seis metros de altura. Deixando
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o papel de Aída de lado, Adriana de Almeida pediu que ninguém tirasse fotos durante os ensaios, ou que não as colocassem em sites de relacionamento. O motivo? Sem cenário e figurino completos, a divulgação poderia dar uma ideia errada do espetáculo, que este ano foi assinado pelo cenógrafo Valdir Martins, com a assessoria de Zeca Zenner, que já trabalhou com o carnavalesco Joãozinho Trinta. Tudo bem diferente de décadas atrás, quando Gerling criou o coral. “Ou a gente fazia com as condições que tinha, ou não fazia. Uma época o maestro teve que vender o piano dele para pagar uma montagem”, exemplifica Isidro. Há cerca de oito anos, a preparação de cena é feita pela coreógrafa Victória Milanez, e o trabalho não é fácil, pois, além de cantar, é necessário interpretar. Há quem tire de letra, caso da fisioterapeuta Mariele: “Por ter sido bailarina, é mais fácil. O bailarino é um ator que dança. Mas não é fácil para todo mundo”. Por isso as cenas são repetidas para mudar o que não está bom. “Entra soldado! Entra povo! Calma! Devagar!”, berra da plateia, com microfone na mão, Victoria, ao observar a movimentação do grupo de solistas, coro e balé. Devido à idade, ou a problemas de coluna, sete mulheres cantam parte de uma cena fora do palco, nas coxias. A dificuldade para ficar de joelhos resultou em contraturas musculares, que fizeram algumas visitarem o ortopedista e a fisioterapia, caso de Virginia Bassin. A contralto estava se recuperando de hérnia de disco, mas não desistiu de participar da montagem. Nos ensaios, o clima de descontração disfarça a timidez e a ansiedade. Segundo Adriana, as brincadeiras e as piadas fazem essas sensações passarem: “À medida que eles vão se inteirando do que será feito, compreendendo toda a movimentação, vão entrando no espírito”. A opinião da diretora é compartilhada por Mariele: “Os ensaios são sempre uma festa, mas quando vai chegando o dia, todo mundo vai se concentrando, ficando sério.
Quando tem o ensaio geral, que você coloca a roupa, sempre dá aquele nervoso”. Quando chega o grande dia, a ansiedade dá lugar à emoção, garante Jalda.
ARTE PELA ARTE
Por mais que as limitações existam, a evolução do ICM foi grande. Hoje o que se vê é uma estrutura adequada que atende às principais necessidades do coral, dos solistas e da orquestra, como palco, salas de ensaio e camarins. Há local inclusive para a turma da costura fazer o figurino das óperas. Tudo no complexo do Salão de Atos da PUCRS, onde está localizado o instituto. “A cultura é um investimento humano para a sociedade”. A recepção do público, segundo ela, é ótima: “Trabalho há 23 anos produzindo espetáculos e sempre tivemos casa lotada”. Após tamanho trabalho de bastidores, a realização das récitas é a concretização do sonho de todos. “Quando atingimos aquele sonho, o ideal que se criou e que gerou uma expectativa, a sensação é muito prazerosa e contempla os desafios que nós tivemos e que acabamos superando por essa satisfação de ver o espetáculo ganhar vida”, diz Adriana.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Isabel Bonorino
Rodrigo Rodrigues
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ma coisa é você ser coralista e participar de uma ópera; outra é, além de tudo, observar detalhes e conseguir reportar, entre tantas coisas, apenas o mais interessante para o leitor. Por participar do coral, tive acesso a ensaios e fontes facilmente; porém, a confiança de que tudo estava sob controle acabou quando as pessoas escolhidas resolveram faltar e até abandonar o coro. A cada dia algo novo para contar. Adoentado, o maestro Gerling não pôde ver Aída. Uma semana após a última récita, ele morreu.”
screver uma grande reportagem já é por si só um bom desafio. Mas descrever, nos tantos mil caracteres dessa matéria, algo até então desconhecido para você, eleva a dificuldade na realização da tarefa. Não sou lá um grande apreciador da música erudita e seus espetáculos (concertos, óperas). O pouco que conheço vi pela televisão. Portanto, o ensaio e os entrevistados, além da minha dupla, me mostraram esse novo mundo. Onde se faz o possível para chegar ao desejado, assim como fizemos essa redação.”
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MÚSICA PARA CELEBRAR 74 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
GUIZOS E TAMBORES
TEXTO DE GUTIÉRI SANCHEZ E ROGÉRIO R. BERNARDES FOTOS DE FERNANDA BRANDT
O
ALÉM DE UMA MANIFESTAÇÃO CULTURAL, COM TRONO, REI E RAINHA, O MAÇAMBIQUE, DANÇANTE E ALEGRE, DÁ RITMO E NOME A UM ESTILO MUSICAL DO RIO GRANDE DO SUL
Grupo Maçambique de Osório, cidade do Litoral Norte Gaúcho, é considerado uma das últimas amostras de devoção católica negra no Rio Grande do Sul. É uma manifestação sociocultural e religiosa que tem o seu ponto forte, todos os anos, no mês de outubro, quando a Igreja Católica celebra a Festa de Nossa Senhora do Rosário. A santa é conhecida como a protetora e padroeira dos Maçambique. A inspiração para a criação do grupo vem de um velho reino em Angola, país da África, que teve no século XVII, um reinado com o Rei Congo e a Rainha Ginga. Juntos, eles lideraram em uma guerra, a resistência de Congo e de Angola, que representa a reação de Portugal à escravidão. Este fato venceu o tempo, atravessou mares e, em Osório, a história virou folclore. Os integrantes do grupo se autodenominam de Maçambiques. Alguns historiadores acreditam que parte dos escravos do litoral gaúcho veio de Moçambique. Ao longo da história, podem ter trocado a primeira vogal. Atualmente o grupo religioso está, em sua maioria, vivendo no bairro Caravágio, em Osório. Tem na Rainha Ginga, Severina Dias, de 84 anos, e no Rei Congo, Sebastião Antônio, de 82 anos, as duas principais autoridades. A Rainha apresenta sempre a última palavra, exercendo o poder de decisões relativas ao grupo. Ainda há pajens do rei e da rainha e outros integrantes com nomes de patentes militares, como os capitães da espada, o chefe dos dançantes, a vara dos dançantes, as alferes da bandeira e os tamboreiros. Os dançantes portam em suas pernas uma espécie de guizo denominado maçacaia, que é utilizado para representar o som das correntes usadas pelos escravos que fugiam dos maus tratos de seus senhores. Caracterizado por dançar descalços, com seus rituais, o grupo tem passado de geração em geração, levando a cultura de um povo sempre à frente. Os tambores utilizados em suas danças são feitos pelos próprios componentes. “Só quem está ou já passou pelo Maçambique de Osório, saberá fazer o instrumento musical utilizado por nós, que é trabalhado com couro de cabrito”, revela Francisca Dias, presidente do grupo e filha da Rainha Ginga Severina. Assim sendo, como em uma Monarquia, Francisca é virtual sucessora ao trono.
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A FESTA
A festa de Nossa Senhora do Rosário representa para os Maçambiques, a coroação da Rainha Ginga e do Rei Congo. Através de cânticos, vestimentas brancas e cerimônias, os integrantes do grupo seguem os costumes dos seus ancestrais, que, ainda no tempo da escravidão, viam na devoção à santa uma esperança para a sua libertação. Durante quatro dias, às vésperas do feriado de 12 de outubro, a cultura negra floresce na cidade de Osório. Diversas são as homenagens à santa, sempre com os tambores e danças embalando os rituais. Nesse período são realizados baile, promessas, missas, danças, procissão, almoços e jantas. O Maçambique de Osório resgata uma cultura que iniciou a quilômetros de distância, mas que se depender dos seus integrantes, jamais morrerá. O grupo, apesar de manter uma tradição e ser famoso em diversos locais do estado, do país e até do exterior, não parece ter o reconhecimento merecido por parte das autoridades locais. Para se ter uma idéia, nem uma sede própria os Maçambiques de Osório possuem. No entanto, outro lado desta cultura tem se tornado famoso e até financeiramente independente: o Maçambique como gênero musical.
Ventre Livre
(Ivo Ladislau e Carlos Catuípe)
(Ou maçacaia): espécie de balainho de taquara, tendo em seu interior uma frutinha seca chamada de caeté. Prende-se no tornozelo
O Maçambique não se cala Ao som do tambor e da puíta No machacá chocalha caeté Chocalha o caeté na batida do pé. Não se rompem os grilhões Dessa mãe que ainda vive Sangra negra, ama e sua Que teu filho será livre. Livre para ser escravo Que tem preço, a caridade Se teu filho for um bravo Chegará à liberdade Vão ser livres, vão ser livres Os filhos dessas mulheres?! Casa grande e senzala Tronco, sinhô e chibata. A luta ainda se arrasta
Instrumento semelhante a cuíca, feito com couro de cabrito e uma haste de bambu. O grupo não usa puíta hoje em dia
A frutinha e semente da planta caeté são utilizadas dentro do maçacaia
Entre cantos e gemidos Pra ser livre a luta é vasta Não basta só ter nascido. “Oi vamo-nos embora E não fica ninguém Que a virgem do Rosário Vai com nóis também!” “Lá vem o Rei do Congo com a sua infantaria Coroa na cabeça e um Rosário de Maria! Ai, minha Rainha Ginga olha e pisa devagar, Pras pedras miudinhas não sair do seu lugar!” “O Tambor tá batendo, ta repenicando! São seus dançantes, oi senhor! Que o tambor tá chamando!”
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MÚSICA
Os guizos, os tambores e as danças serviram de inspiração e raiz para o que hoje, levando o mesmo nome do grupo folclórico, é reconhecido como um gênero musical. Segundo o maestro radicado em Osório Paulo de Campos, a célula rítmica da batida do tambor Maçambique e o rufar sincopado (com pausas curtas e marcantes) são os elementos que caracterizam a cultura. Misturados a instrumentos como a guitarra, o teclado, o contrabaixo e outros, formam esse gênero osoriense e gaúcho. Os primeiros músicos que tiveram a ideia de compor canções com a batida do tambor dos Maçambiques foram Ivo Ladislau e Carlos Catuípe. No começo da década de 1980, encantados com a cultura litorânea e maçambiqueira, os músicos e compositores resolveram colocar nas letras e melodias o que envolvia os Maçambiques. Pensaram em batizar o ritmo como congada, mas, para não confundir com ritmos do centro e nordeste do Brasil e caracterizálo como uma cultura própria do Litoral Norte Gaúcho, optaram por Maçambique. Não bastava escrever alguma letra que contasse sobre o folclore. Era preciso algum elemento que caracterizasse bem os Maçambiques. Para tanto, nada mais adequado e marcante do que os tambores. A letra de Ventre livre estava pronta, mas faltava a melodia. Foi então que Carlos Catuípe encontrou quem hoje pode ser considerado – apesar da relutância do grupo folclórico – o elo entre o folclore e o ritmo. Nascido em Osório e hoje com 52 anos, Mário DuLeodato cresceu com a família ligada ao folclore Maçambique. Ele conta que aprendeu uma batida diferente do que se ouve hoje nos festejos quando tinha apenas oito anos. E foi exatamente essa batida que encantou Catuípe. “Aquela batida com um ritmo mais rufado que aprendi quando era novinho se encaixou perfeitamente na música do Ladislau e do Catuípe”, explica DuLeodato. A música Ventre livre, que já tinha a letra homenageando os negros dançantes, estava completa com o acompanhamento do tambor. Depois da primeira composição, muitas outras nesse estilo vieram. O ritmo Maçambique hoje é tocado e reconhecido por muitos músicos, mas no começo não foi assim. Como tudo que é novo, aquela extensão de uma congada causava certa resistência em jurados de alguns festivais. DuLeodato conta que ouviu em uma rádio da região, logo que se inscreveram no primeiro festival, que a música deles não passava de um “batuque africano falando de praia, escravidão, pescador e dunas”. Em festivais nos quais ritmos mais tradicionalistas reinavam, como toadas e milongas, era difícil inscrever o ainda desconhecido Maçambique. Alguns truques foram feitos para que as composições pudessem ser mostradas. Estudioso do ritmo Maçambique, Paulo de Campos conta que Catuípe inscrevia as músicas como se fossem milongas, mas na hora de subir ao palco le-
vava DuLeodato vestido a caráter e com seu tambor, apresentando a verdadeira versão no ritmo maçambiqueiro. Depois de certa resistência, a Moenda (Santo Antônio da Patrulha), a Tafona (Osório) e depois o Musicanto (Santa Rosa) foram os primeiros festivais a difundir e acreditar no ritmo. Outras canções foram sendo compostas e apresentadas em festivais. Algumas composições fizeram parte de festivais como a Califórnia da Canção, em Uruguaiana, e a Escaramuça da Canção Gaudéria, em Triunfo. Hoje, o Maçambique é um ritmo incorporado ao repertório de artistas e grupos como Loma, Kako Xavier, Catuípe Junior, Ivo Ladislau, Richard Serraria, Bataclã FC, Serrote Preto, Cantadores do Litoral, Paulinho diCasa, entre outros. O grupo Cantadores do Litoral, liderado por Paulo de Campos, tem um disco gravado com músicas litorâneas. Muitas delas são Maçambiques. O grupo de dançantes, com rainha, rei e capitães, luta para nunca se perder ao longo da história. Sem interferir no folclore, mas dialogando com ele, o gênero musical Maçambique também deverá ser perpetuado nas letras e canções dos músicos. Hoje, graças ao folclore, Osório e o Litoral Norte podem se orgulhar de uma música nascida no Rio Grande do Sul com uma levada alegre e marcante que não só vence festivais como enriquece nossa cultura.
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“E
scolher uma pauta entre tantas possibilidades no mundo da música foi complicado. Pensávamos nos deslocamentos de Osório, onde moramos, para os locais das entrevistas. Foi então que tivemos a ideia de falar sobre nossa terra. Nossa música foi sempre ligada aos Maçambiques e nada mais osoriense do que eles e suas canções. Foi incrível poder entrar em um universo que conhecíamos muito superficialmente desde crianças. Aqueles homens cantando e dançando vestidos de branco acompanhados de espadas, um rei
e uma rainha em frente à igreja. Lógico que eles são muito mais do que isso. Bem mais também do que o tamanho que tivemos disponível nesta revista. Os músicos todos foram muito atenciosos e era visível o orgulho que sentem de levar a cidade e a região na letra (no tambor) de suas composições. Encontramonos com a rainha Ginga e o rei Congo. Visitar suas casas foi muito enriquecedor. É como nos disseram em meio às entrevistas: “Vocês sentaram à mesa com um rei e uma rainha de verdade.”
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CARTOLA
QUEM MANDA
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MÚSICA PARA DANÇAR
SINDY LONGO
NA PISTA
DJs VIVEM E SE DIVERTEM DA ARTE DE TOCAR MÚSICA
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ocar música é uma arte? O assunto é controverso e muitas pessoas podem achar que não. A função surgiu com a industrialização da cultura, principalmente da musical. As pessoas que tocam ou remixam melodias, seja no rádio ou ao vivo, são conhecidas como DJs. Essas figuras sobreviveram à era da digitalização da música e agora tocam músicas direto de computadores em formato MP3. Seja em festas auto-intituladas bregas, em baladas destinadas a público da terceira idade, em danceterias ou em programas de rádio, os DJs vivem de sua arte e podem até não produzir suas próprias melodias, mas são a essência dessas festas.
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SOU TRASH, MAS TÔ NA MODA
TEXTO BIBIANA BARBARÁ | FOTOS DE BRUNA SCHUCH
U
ma hora. Era esse o tempo de espera para entrar no Laika Club, na Rua Venâncio Aires, nº 59, em Porto Alegre, na noite de sábado. Na fila, diferentes estilos de pessoas. Esperamos esse tempo, eu e mais três amigos, curtindo um “aquece” de músicas bregas. Cantávamos as clássicas da festa: Molejo, Latino, É o Tchan!, entre outras músicas que fazem o tempo passar mais rápido, numa viagem de volta a outra época. A Bailalaika é a festa mais “bombante” em termos de público no Laika, mesmo que toque um tipo de música que não se ouve mais nas rádios. Amanda, Déia, Vini e Zack formam um grupo de amigos que, cerca de cinco anos atrás, teve a ideia de promover uma festa fora dos padrões das que existiam até então no Laika. “Sempre brinco que somos a versão anos 90 da Balonê”, conta a DJ Amanda Rech, referindo-se à festa anos 80 mais popular da capital gaúcha. Apesar disso, a Bailalaika está longe
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de ser apenas uma festa anos 90. A melhor forma de descrevê-la é como um “revival do brega”. “Quando tivemos essa ideia, nunca imaginamos que daria tão certo assim”, afirma Amanda. A festa que ocorre todo mês começou ainda no Laika antigo, um miniclub que ficava na Rua Santana. A Bailalaika atrai um público bem alternativo, mas que viveu sua infância ou adolescência na década de 1990 e hoje se diverte ao som das trilhas de desenhos, filmes, novelas, boy bands e outras pérolas que marcaram suas vidas e trazem lembranças de uma época nem tão distante. O set da Balalaika é decidido antes da balada começar, até porque são várias as músicas a serem procuradas e baixadas da internet, das mais absurdas e trashs. Também conta com o perfil @bailalaika na rede social Twitter, onde recebe pedidos de músicas. Mas para serem atendidas, claro que as sugestões têm que ter a ver com a
proposta da festa. As músicas são as mais variadas e, quanto mais brega, mais o público delira. O pessoal faz coreografias ao som das mais famosas. Ragatanga do Rouge, Prometida, do Broz, qualquer uma das Spice Girls e dos BackStreet Boys, além de funk carioca, Molejo, É o Tchan. Os DJs da Bailalaika também são convidados para tocar em festas em outros clubes de Porto Alegre. Uma destas é a do Clubinho Nonsense, no Verde Club, localizado na Avenida Goethe, 200, onde a cada edição dois DJs da Bailalaika tocam. Entrevistar os DJs durante a balada foi um desafio. Eles não param quietos. Divertem-se com as músicas, dançam muito e não se preocupam com o ridículo. Prova que o trash pode fazer muito sucesso, é o público fiel que a Bailalaika tem. Quando saí do Laika já era dia, não sei a hora, mas com certeza já passava das seis da manhã. A pergunta que todos fazem quando a festa acaba: quando será a próxima?
OS DJS DA FESTA BAILALAIKA SÓ TOCAM MÚSICAS BREGAS
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CARTOLA
DOS COPOS ÀS PICAPES
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TEXTO DE ÉDER ZUCOLOTTO | FOTO DE JÉSSICA BERGER
N
DJ RÉGIS TEM MAIS DE CINCO MIL MÚSICAS ARQUIVADAS
oite de domingo. Sem entrevistados. Falta menos de 24 horas para entregar a matéria da revista Primeira Impressão. Solução: subornar um amigo motorizado e sair a cata de um DJ. Local mais próximo: Bar Alternativo, às margens da ERS-239, no Km 18,3, em Novo Hamburgo. São 10h45min e meia dúzia de gatos pingados circula pela pista principal da casa noturna. O som mecânico dispara a música que faz parte da temática da noite de domingo na casa: pagode. “Lalaiá, ela me deixou.” O local é conhecido pelo ecletismo musical. Cada noite tem uma temática diferente: pagode, sertanejo universitário, funk, música dos anos 80 e 90 e tecno. Pergunto ao garçom se há ou haverá DJ na casa naquela noite. “Hoje só tem esta pista e vai ter show de pagode, mas discotecagem só começa depois das três da madruga, e o DJ Régis só aparece depois da meia-noite, deixa que te aviso.” Sentamos numa mesa e tomamos algumas cervejas esperando a chegada do Régis. Não muitas, pois precisava estar sóbrio para a entrevista. O movimento aumenta, mas lentamente. “Leleiê, ela me traiu.” Algumas garotas sambam animadas pela música. “Sou muleque, sou guerreiro e, como todo bom brasileiro, não vou me entregar.” À meianoite, o DJ surge num canto do palco fazendo ajustes na mesa de som. Subo e me apresento, digo que estamos fazendo uma matéria sobre pessoas que colocam som na noite, e ele, muito simpático, acerta que, assim que a pagodeira começar, ele dará a entrevista. Não demora muito e, às 0h15min, o grupo de pagode começa a tocar. Régis desce e vamos até o espaço externo do bar, que está vazio. Sentamos os três numa mesinha: eu, o DJ e o meu amigo. DJ Régis é Régis Diego de Almeida Rosa. Tem 27 anos, mas aparenta menos. E já soma 10 anos de estrada conduzindo as picapes. De jaqueta sintética preta, camisa branca e calça de brim, o jovem fala rápido e gesticula muito com as mãos. É difícil acompanhar a verborragia do rapaz em meu bloquinho de notas. “Trabalho só como DJ. Aqui no Alternativo na terça, quinta e domingo, sábado em Campo Bom e também alguns dias em Sapiranga e Riozinho. Além disso, há muito trabalho em festas particulares durante os outros dias. Tem semanas que trabalho toda a noite. Vivo só disso e vivo bem. Toco de tudo e gosto de tudo. O pessoal (outros DJs)
só quer tocar eletrônico ou sertanejo, que também está em alta. Mas têm coisas como o funk e o eletro-funk que estão vindo com força também. É preciso estar sempre ligado no que está rolando de novo. Tenho mais de cinco mil músicas arquivadas e sempre estou catando algumas novas.” Régis vive agora da música, mas nem sempre foi assim. Começou como garçom, recolhendo copos em uma boate de Novo Hamburgo. Com o tempo, passou a iluminador e sempre que podia ia ver como o DJ da casa trabalhava. Com a força de quem já entendia do tablado, aprendeu na prática e nunca fez curso para a profissão. “Já toquei para mais de 8 mil pessoas durante um festival de música em 2008 e foi muito bom. O meu diferencial é que tenho comunicação. Além de tocar a música, eu falo com o público. Tem muito DJ que não faz isso. Hoje tenho casa própria em Estância Velha graças ao meu trabalho como DJ.” Você se considera um artista? “Sim, me considero um artista. Não sou como Luan Santana, mas sou um artista.” Ser DJ ajuda a pegar mulher? “Ajuda e muito. Já namorei muito. Mas agora tô namorando firme, faz sete meses.” O que é chato em ser Dj? “Chato são os caras que não querem ir embora da festa quando ela tá acabando. Nem estão ouvindo a música, e mesmo assim, não vão embora.” Seu sonho? “Hoje posso dar uma vida boa para minha filha Érika, de cinco anos, com meu trabalho. Meu sonho é seguir como DJ até ficar velhinho.” Despedimo-nos do DJ Régis e voltamos à festa. A pagodeira ainda está animada, e a pista segue lotada. À 1h40min a banda encerra as atividades (antes do que esperávamos), e é hora do DJ Régis assumir o espetáculo. Para iniciar, ele dispara um remix da música. “Você é boi garantido, puxa o rabo dela, está correndo perigo, vai segurar vela...” Seus olhos atentos dividem a atenção entre as picapes e equalizadores e o movimento da pista. Começou servindo copos e agora serve música para os sedentos da pista. Depois surge algo do Kings of Leons, que me agrada, mas que logo depois é rebatido com o refrão demoníaco da música chiclete Pan-Americano. Fim da pauta, pago a conta e vamos embora. Mais de R$ 80. E o carro do meu camarada não tem nem rádio.
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CARTOLA
AFINIDADES
NO AMOR
E NA MÚSICA 84 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
LAÍS E GABRIEL SE CONHECERAM NA ÉPOCA DO COLÉGIO. HOJE SÃO NAMORADOS E TRABALHAM JUNTOS COMO DJs
TEXTO DE ADRIANO DE CARVALHO E PATRÍCIA OLIVEIRA FOTOS DE SINDY LONGO
E
la é Laís Longo. Ele é Gabriel Alano. São Djs e namorados. Trabalham juntos e vivem imersos em música durante quase todas as 24 horas do dia. Fazem sucesso em diversas rádios online no mundo inteiro e em rádios FM de todo o Brasil voltadas para a música eletrônica. “Música é tudo na minha vida. Eu acordo ouvindo música, sempre saio de casa com um fone no ouvido e não consigo imaginar a minha vida sem isso”, diz ele. “A música é tudo na minha vida também. Seja o estilo que for, tem que estar tocando música”, sentencia ela. Nosso primeiro contato com o casal aconteceu no apartamento deles, no meio de uma tarde de domingo. Ao chegar na porta do edifício, tivemos que tocar a campainha mais de uma vez, já que ninguém nos atendia. O desepero tomou conta da dupla de repórteres, já que essa pauta era nossa segunda opção e tínhamos apenas esse final de semana para concretizá-la. Por sorte e alívio, Laís atendeu a campainha e abriu a porta se desculpando. “Tocamos até as 14h. O sono bateu, mas estamos prontos”, disse ela. Encaramos numa boa e logo percebemos o quanto os dois se dedicam à profissão. Nos dirigimos ao local da entrevista: um pequeno estúdio montado dentro do apartamento, onde eles podem gravar seus próprios sons. Durante a conversa, percebemos que são um casal de namorados com diversas afinidades, grande parte delas expressas pela música. Nossa impressão sobre o entrosamento da dupla não se forjou apenas durante a entrevista, mas também quando conhecemos o trabalho do casal, que mistura música eletrônica com voz e violão. “É algo que tu vive o dia inteiro. Mesmo fora do estúdio, tu fica pensando, prestando atenção em alguma coisa e tendo uma ideia para uma nova música”, relatou Gabriel sobre como surgem as inspirações para novas composições. Os dois se conheceram nos tempos de colégio e seguiram caminhos diferentes depois da formatura. Entretanto, o tempo foi, pouco a pouco, fazendo com que se encontrassem novamente. Gabriel nos contou que, após uma temporada longe
do estado, Laís resolveu voltar para o Rio Grande do Sul por causa dele. “Éramos colegas no Ensino Médio. Mas a Laís foi morar em São Paulo, e nos afastamos. Numa dessas idas e vindas dela aqui para Porto Alegre, acabamos nos encontrando novamente, decidimos namorar e um tempo depois ela voltou a morar aqui”, revelou Gabriel. Laís já ensaiava os primeiros passos como Dj ao final do Ensino Médio. Se interessou pela profissão ao ir em festas e ver como outros se apropriavam das pickups que hoje ela comanda. Com o incentivo de uma amiga, aprendeu a mixar músicas e, aos 19 anos, resolveu ir para São Paulo fazer faculdade de Produção de Música Eletrônica. Já Gabriel iniciou graduação em Administração logo após o colégio. Tempos depois, trancou o curso e resolveu fazer Publicidade. Gostou no começo, mas nessa época ele já tocava — também foi incentivado por um amigo a experimentar mixagens e produção de músicas — e se viu obrigado a realizar uma escolha. “Tive que trancar a faculdade. Precisei dar mais ênfase à profissão. Não conseguia me comprometer com o curso e comecei a ir mal. Não tinha tempo e precisei deixar os estudos em segundo plano”, explica. No desenrolar da conversa, percebemos nitidamente o prazer dos dois em poder fazer o que gostam. Fica claro que o casal fez a escolha certa. Hoje os dois estão felizes com o rumo que suas vidas tomaram. Com uma agenda lotada, já fizeram apresentações não só no Rio Grande do Sul, como também em Santa Catarina, no Paraná e outros estados da Região Sudeste e Centro-Oeste. Uma rotina agitada e desgastante. “Muita gente entra por modismo e não consegue permanecer na profissão. Para continuar, tu precisa gostar muito do que faz. Às vezes a festa não dá certo, acontecem problemas e tem todo esse lado que não é tão profissional quanto a gente gostaria”, conta Gabriel. “É preciso gostar e ter muita disposição para ficar comandando uma pista durante a noite inteira. Nós, basicamente, trocamos o dia pela noite”, revela Laís. Mas o grande desafio da carreira de um Dj, nos revelou o casal, está na dificuldade de se produzir as músicas. Embora
seja uma atividade prazerosa, é algo que dá muito trabalho e que não só toma muito tempo, como também impõe um custo alto. “É uma atividade muito complexa. Fora o alto investimento. É tudo muito caro. Os equipamentos são importados e muitas peças tu não encontra aqui no país”, comentou Gabriel. “A produção musical é algo meio que sem fim. É um video-game de adultos, porém o momento em que terminamos uma música e depois a tocamos na pista, compensa tudo”, avalia o músico. Antes de finalizar a entrevista, tínhamos que descobrir como Gabriel e Laís lidam como o assédio dos fãs. A saída, para eles, sempre está em encarar tudo na esportiva para evitar constrangimentos. “No início, tínhamos mais problemas com o assédio do pessoal. Agora, como somos mais conhecidos aqui no Sul, isso não acontece tanto. Mas em outros lugares ainda acontece, pois as pessoas não sabem que somos namorados”, afirmou Laís. “Sempre tem uns gritinhos. Isso incomoda. Mas a gente precisa levar na boa. Tu te acostuma, já que naquele meio tu é uma pessoa pública e tem que estar disposto a passar por isso”, conclui Gabriel. Depois de uma hora de entrevista, ficamos impressionados com o estilo de vida dos dois. Manter um relacionamento é difícil, mas, com tantas afinidades no amor e na música, isso ficou simples para o casal.
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MÚSICA PARA GRAVAR
PAIXÃO COMO
TEXTO DE AMINIE JARDIM, MANOELI RODRIGUES E PABLO FURLANETTO FOTOS DE FILIPE GAMBA
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INTEGRANTES DA BANDA GAÚCHA MARIA DO RELENTO MOSTRAM QUE DINHEIRO NÃO COMPRA TUDO E QUE AINDA EXISTEM MÚSICOS PREOCUPADOS COM A VALORIZAÇÃO DO ROCK
PEPPE JOE, ALÉM DE MÚSICO, É O MOTORISTA DAS DUAS BANDAS QUE INTEGRA: A MARIA DO RELENTO E A ATAQUE COLORADO
M
eados de 1995. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Em uma garagem, em meio a cabos, pedestais e pedais, nascia mais uma banda de rock. Influenciados no estilo de se portar no palco por um dos maiores apresentadores da televisão brasileira, Silvio Santos, os fundadores da Maria do Relento não imaginavam que estavam criando um novo estilo no cenário do rock gaúcho. Liderados pelo vocalista Peppe Joe, os músicos iniciaram suas atividades sob influências nada comuns. “A Maria sempre foi muito eclética. Desenvolve uma mistura de som brega que vai de Black Sabbath a Waldick Soriano. Um brega metal, chique”, relata com orgulho Peppe. Não foi só no estilo que o grupo inovou. No mesmo palco que eles, uma das maiores bandas de punk dos anos 1990 no Brasil, os Raimundos, tocou pela primeira vez no Rio Grande do Sul. “Em 1995, no antigo Opinião, dividimos um show com os Raimundos, que depois desse dia levou nosso disco demo para São Paulo. Em duas semanas estávamos com gravadora. Logo nossas músicas tocavam nas rádios. Fomos a primeira banda da época a romper a barreira do alternativo e ir ao Planeta Atlântida”, conta o frontman do quinteto gaúcho. A banda, que teve seu boom nos anos 1990, hoje não é tão conhecida pela nova geração. O grupo não está com tanta frequência nas ondas da FM, por não ter mais gravado tantos sucessos. Esse status é percebido pelos próprios músicos. “Chegamos à conclusão de que para a Maria não vale mais a pena tocar só por tocar. Tivemos umas experiências de nos apresentarmos para pessoas que não são nosso público. Hoje, nos shows, tem uma gurizada de 14, 15
COMBUSTÍVEL PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 87
anos que não conhece nada do que fizemos”, desabafa o guitarrista Kako. Com isso, o grupo prefere fazer shows só quando sabe que realmente vai agradar. Motivados pelas boas lembranças propiciadas por sucessos como Conhece o Mário?, Beep Beep, O Vagabundo e Meio Devagar, os integrantes da banda gaúcha - formada por Peppe Joe nos vocais, Guilherme Barros e Kako Kanidia nas guitarras, Ricardo Pêdo no baixo e Gesner Messa na bateria - prometem voltar à tona com o novo disco, o sétimo álbum do grupo, que será lançado em breve. Com um estilo que remete ao início de sua carreira, a Maria do Relento pretende mostrar aos fãs que sua essência continua a mesma. Com versões de músicas bregas dos anos 1980, o quinteto relançará sucessos de cantores conhecidos nacionalmente, como Amado Batista, até grupos mais regionais, como Barbarella. Assim, a banda quer voltar a vivenciar, com mais frequência, situações de reconhecimento dos fãs. Momentos inusitados, como quando o grupo se apresentou no “interior do interior” de Santa Catarina e viu o público entoar seus sucessos. Como toda banda independente, os músicos tentam se virar como podem para manter viva a maior ideologia que levam consigo: o amor pela música. Isso pode ser percebido nas falas e atitudes de todos eles. “Pretendo continuar vivendo da música, porque a Maria é minha família”, diz Guilherme. Assim, Peppe vira o motorista da banda. Kako, o empresário. Ricardo, o responsável pelo twitter e site. O espírito é esse. Não importa que todo dia 30 o aluguel precise ser pago, que não se saiba como serão os próximos anos. Para eles, o principal é que, como diz uma das canções da Maria, “se o sol não me acompanhar, eu tenho a lua para desabafar”. NASCE A ATAQUE COLORADO A paixão pela música, por um clube — o Internacional — e o apoio de amigos trouxeram uma novidade para a vida de três dos integrantes da Maria do Relento: Kako, Peppe e Guilherme. Os meninos que tinham gosto por futebol direcionaram suas metas, definiram sua escolha profissional e transformaram, sem querer, todo esse sentimento pelo Inter em alegria para os torcedores. Assim nasceu, em 2005, a banda Ataque Colorado. A Ataque surgiu com uma pitada da essência da Maria. Com a ideia de ser mais criativa, fazer vários estilos de sons, brincar com o ritmo das canções, tornando mais divertida a parte da composição, mas com a música direcionada a traduzir o sentimento de seus integrantes pelo clube do coração. Não demorou muito para o trio tornar-se um quarteto, com a inclusão de mais um dos componentes da Maria, o colorado Gesner Messa, que assumiu a bateria. Para completar o elenco de músicos da banda, só faltaria a participação de Ricardo Pêdo, no baixo, mas ele é gremista e, se participasse, iria contra os seus princípios e os dos próprios amigos colorados. Ricardo também tem outro projeto paralelo. Atua
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como web designer desde 2005. Mas garante que sempre incentivou os amigos. “Desde o começo, apoiei esse projeto. A Ataque Colorado é formada por caras que considero meus irmãos, e sempre vou torcer por eles. Sei que eles fazem algo de qualidade.” Proprietários da Na Canela Produtora e Na Canela Discos, a rapaziada da Ataque grava, além de suas próprias músicas, as da torcida. Os CDs já tiveram mais de 10 mil cópias vendidas. O material é distribuído pela própria banda, sem fins lucrativos, que repassa o dinheiro da venda à torcida Guarda Popular do Inter, para auxiliar na compra de instrumentos. Assim como aconteceu com a Maria do Relento, os músicos da Ataque também gostam de fazer tudo por si próprios. Não só as gravações dos instrumentais. Cada um é responsável por alguma coisa e, assim, eles vão se organizando. Cuidam da parte logística, estratégica e da assessoria de imprensa. Guilherme é responsável pelo site da Ataque, que tem seu twitter linkado com o do Internacional e monitorado pela assessoria de imprensa do clube. Peppe dirige a van que eles possuem e é o responsável pela venda e distribuição dos CDs (também vendidos nos shows da Ataque pelo preço de R$ 10,00). Kako faz a parte burocrática: trata da distribuição dos discos para as 98 lojas licenciadas do clube, além de colocar som no estádio em dias de jogos. “Nós não queremos pagar para ninguém”, afirma o econômico Peppe, pai de gêmeos. Se não bastasse, eles ainda dão força para os consulados do Internacional espalhados pelo interior do Estado. “A Ataque é bem mais flexível. Se vamos tocar em um local e lá não tem hotel, não tem problema, ficamos no camarim. O legal é que nós chegamos e montamos, nós mesmos, a estrutura”, diz Peppe. Acreditando que a fase em que o time se encontra favorece a ascensão da banda, a Ataque Colorado crê que, independente da quantidade de fãs, enquanto houver pessoas que curtam o show e as músicas, eles tocarão. “A Ataque tem uma coisa muito legal, porque nos shows há pessoas de várias idades. E nos emocionamos cantando uma música quando vemos o público chorando”, conta o vocalista. Essa é a grande diferença entre fazer e fazer com a alma. A ADMIRAÇÃO DO PÚBLICO Seja Maria do Relento ou Ataque Colorado, a admiração do público não diminuiu. Pelo contrário, aumentou. Encontrar alguém que traduza o significado, tanto da banda Maria, quanto da Ataque, não é uma missão muito difícil. Primeiro, porque a Maria decidiu selecionar seu público e preservar sua identidade para não cair no modismo. Segundo, porque a Ataque não é uma mera banda de clube, e sim uma demonstração de fanatismo e amor, tanto pela música quanto pelo futebol. Uma demonstração de tietagem foi a do jornalista esportivo Alex Escobar, que em uma aparição da banda Ataque Colorado no programa Globo Esporte pediu que os
KAKO, PEPPE, GUILHERME E GESNER FORMAM A ATAQUE COLORADO
músicos tocassem Conhece o Mário?, um hit antigo da banda. “Ficamos surpresos. Quando o Alex descobriu que éramos da Maria, só faltou nos beijar! Ele quer que toquemos em seu aniversário, no Rio de Janeiro”, fala, todo orgulhoso, Peppe. Acadêmica do curso de Educação Física da Feevale, Itajanara Moraes é uma das fãs da Maria: “O primeiro show de rock que assisti, aos 11 anos, foi deles. Preciso dizer mais alguma coisa? Essa banda tem algo que falta em outras: personalidade. Com bons músicos, carisma e, principalmente, respeito pelos fãs, ela não renega o passado. Continua com o espírito de sempre. O primeiro álbum é um dos itens mais queridos da minha coleção de CDs.” Para o geógrafo Eduardo Alves, os jogos no estádio Beira-Rio não são mais os mesmos depois da criação da Ataque, pois a vibração é outra, e a intensidade da torcida só tende a aumentar. “Depois da Ataque, os jogos ficaram com outra cara. A galera agita muito na torcida cantando as músicas da banda. Eu tenho
todos os CDs e curto muito. O trabalho dos caras é bacana e tem uma resposta muito grande. O som é muito, muito bom.” É assim que a música reflete seu verdadeiro papel: sensibilizar,
apaixonar, contagiar, reanimar aqueles que absorvem sua essência. Tanto a Maria do Relento quanto a Ataque Colorado buscam, com seus trabalhos, alimentar o amor pela música.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“S
implicidade. Essa foi a principal virtude que encontramos nos músicos das bandas Maria do Relento e Ataque Colorado. E isso se revelou na atitude que eles tiveram conosco. No início, achamos que estávamos lidando com aqueles “rockeiros” com jeito pop star. Várias tentativas de entrevistas foram desmarcadas. Nos sentíamos “despistados”. Mas depois percebemos que, na verdade, julgamos erroneamente os músicos. Porque no dia D, quando finalmente conseguimos entrevistá-los, eles nos esperaram por uma hora em frente ao prédio do Guilherme, um dos integrantes das bandas. Tudo em virtude de nosso atraso. Demos uma de colono, confundindo a rua Garibaldi, no bairro Bom Fim, com a rua Anita Garibaldi, no bairro Mont’Serrat. Imaginamos que, quando chegássemos, os músicos não estariam mais lá. Mas não, permaneceram no local combinado e nos trataram muito bem. Durante a conversa, percebemos que ainda existem pessoas que fazem as coisas com amor, mesmo que isso não renda necessariamente um bom salário. E que para tudo se dá um jeito. O mais importante no final é simplesmente o amor e a alegria.”
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MÚSICA PARA AQUECER
ONDE O SOM DA GAITA ECOA 90 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
EM SÃO FRANCISCO DE PAULA, DUAS HISTÓRIAS DE VIDA SE CRUZAM, UNINDO O NOVO E O CONSAGRADO NUMA MESMA PAIXÃO: A MÚSICA GAUCHESCA TEXTO DE MANUELA TEIXEIRA E MIRIAM MOURA FOTOS DE CARINE FERNANDES E CLARISSA FIGUEIRÓ
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CLARISSA FIGUEIRÓ
GONZAGA DOS REIS (À DIREITA) E JARDEL BORBA, MESTRE E ALUNO, COMPARTILHAM DO GOSTO PELA GAITA
CLARISSA FIGUEIRÓ
CARINE FERNANDES
E
m São Francisco de Paula, nos Campos de Cima da Serra, permanecem hábitos que já foram esquecidos nas grandes cidades. As casas ainda utilizam o fogão a lenha para aquecer os dias em que o inverno é mais rigoroso. Os mais velhos não se desfazem de suas pilchas mesmo quando andam pelas ruas da cidade. Ainda se veem cavaleiros na avenida principal, ladeada por plátanos. O anúncio fúnebre é veiculado por uma narração que vem da torre da igreja matriz. Saindo da zona urbana, os campos tomam a paisagem, verdes no início do dia e dourados no entardecer. É em um cenário onde as tradições gaúchas se mantêm vivas que essa história começa.
O GAITEIRO
O movimento repetitivo dos dedos que, inquietos, batem sobre uma caixinha de plástico contrasta com a fala serena: “O músico não consegue parar com as mãos. Tem que estar sempre batendo, fazendo ritmo. O músico é uma pessoa muito sensível”. Aos 56 anos, Gonzaga dos Reis, como é conhecido nos palcos de todo o Rio Grande do Sul, fala da música gauchesca com a experiência de quem tem mais de 30 anos de carreira. Nascido em São Francisco de Paula, Gonzaga aprendeu a tocar gaita sozinho, aos 14 anos, em 1970. Três anos depois, já estreava em um baile na cidade de Rosário do Sul. “Fomos em um fusquinha com duas gaitas, um violão, uma aparelhagem de som da época e três músicos. Parece mentira, mas é verdade. Foi um baile muito grande”, conta. De 1979 a 1989, estava com Paulo Siqueira no grupo Velha Porteira. Junto desse conjunto, gravou dois discos. Na década de 1990 deu início a sua carreira solo, que resultou em cinco trabalhos: De gaita nas costas foi o primeiro disco, em 1995. Depois dele, vieram Bem campeiro, Parceiros de canto e Lida, Campeando recuerdos e Gaudério serrano, lançado em 2009, com a participação de dois dos seus três filhos. Não poderia ser diferente, já que a aptidão e o talento para a música foram herdados por seus três descendentes. Losenir, Rodrigo e Juliano já subiram no palco com o pai. “É bastante gratificante olhar aqueles homens ao seu redor e ver que são seus filhos, e todos músicos, o que me dá muito orgulho. Um filho nascia hoje de manhã e de tarde eu já estava tocando gaita perto do bercinho. Eles não choravam por causa da música”, relata. O som da gaita vem acompanhado de composições que exaltam a vida campeira, a lida com o gado, os bailes de antigamente. A cada música, um pouco de sua própria história. “As letras que eu escrevo falam de campo, falam de festa, de rodeio, de mulher bonita, de loira, de morena, de rancheira, de tudo que é coisa. A composição é uma imaginação. Tem que imaginar uma coisa para escrever uma letra. Muitas vezes o sujeito nunca pegou num laço, mas na letra é laçador”. Ao ganhar os palcos, a canção passa a ser
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não a história de um, mas a de todos aqueles que a escutam e que, naquele momento, tornam-se laçadores também, mesmo sem nunca ter pego num laço.
PAIXÃO QUE NÃO CONHECE IDADE
Amante das lidas gaúchas, Gonzaga se refugiou no campo, onde tiveram início suas origens e os valores que o acompanharam por toda a vida. É numa fazenda na localidade de Lomba Chata, em São Francisco de Paula, que ele se encontra atualmente. Os bailes e shows deram lugar à vida campesina. Mas o acordeonista serrano serve de exemplo para jovens que buscam seus ensinamentos, como Jardel Borba. Com apenas 16 anos, ele é um dos gaiteiros e vocalistas do conjunto que leva o seu nome: Jardel Borba e Grupo Brasil de Bombacha. O ano de 2009 trouxe o primeiro CD do jovem, que conta com a participação de Gonzaga dos Reis, na música Lenço Solto, de autoria dele. Gonzaga proporcionou um dos momentos mais especiais para o guri: a primeira vez sobre um palco. “Quem me deu incentivo a criar o grupo foi ele, em uma participação no programa Coisas do Sul. Como tinha duas músicas para tocar, uma delas deixou para mim. Fiquei muito feliz”, se emociona Jardel. A participação no programa Coisas do Sul aconteceu em 2006. Nesse mesmo ano, o jovem ganhou o primeiro lugar do “Ronquinho”, concurso jovem que integrava o Festival de Música Ronco do Bugio, de São Francisco de Paula. O conjunto Jardel Borba e Grupo Brasil de Bombacha surgiu um ano depois. Mas a
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tema música é amplo e de muitas possibilidades. No entanto, fomos desafiados a encontrar novos olhares sobre esse assunto já tão pautado por tantos veículos de comunicação. Para nós, parecia incabível não falar do estilo musical que caracteriza a cultura tradicionalista do Estado, a música gauchesca. Seguimos, então, para São Francisco de Paula. O que para uma das repórteres (Manuela) representou o reencontro com suas origens, significou para outra (Miriam) a descoberta de uma cultura pouco vivenciada por ela. São Francisco de Paula é uma típica cidade interiorana: população pequena, costumes antigos e um grande sentimento pelo “ser gaúcho”. No dia das fotos, o próprio clima presenteou repórteres e fotógrafas com o frio, característico da Serra Gaúcha. Os termômetros marcaram apenas 8ºC numa manhã nublada e úmida de primavera. Conversar com os dois gaiteiros escolhidos como fontes, denominados como o novo e o consagrado, foi revelador. O momento da entrevista foi também um momento de comunhão: os sentimentos revelados aos repórteres por vezes os tornam confidentes. Desabafos nunca ditos antes foram eternizados nas páginas da Primeira Impressão.”
história de Jardel e Gonzaga iniciou-se quando o guri tinha apenas 10 anos e procurou o professor para que ele lhe ensinasse a tocar. Aos 14, as aulas tiveram fim. “Sou muito grato ao Gonzaga. É um mestre da música. Somos amigos”, destaca Jardel. O jovem representa a terceira geração de gaiteiros de sua família. O pai e o avô já tocavam o instrumento. Com quatro anos, pegava a gaita do pai, o qual hoje é também seu companheiro de palco no grupo em que toca. Ainda estudante, concilia as aulas de Ensino Médio com os ensaios e trabalhos do conjunto. “Estudo pela manhã e ensaio duas vezes por semana. Toco no sábado e no domingo”, diz. A pouca idade contrasta com a maturidade musical. “Para ser músico tem que cantar com sentimento. Eu me emociono com toda a composição que toco. O público percebe que falta alguma coisa naquele que canta sem sentimento, mesmo que não saiba bem o que é”, relata.
SONHOS DE GAITEIRO
Dois gaiteiros, duas trajetórias musicais que se cruzam em histórias de vida marcadas pela devoção à gaita. A música é emoção, sentimento, vontades e sonhos. Alguns conseguem realizar tudo o que sempre buscaram. “Na música eu não posso me queixar, tudo o que eu queria, conquistei”, conta Gonzaga. Outros seguem lutando atrás de seus sonhos. “Sonho que um dia estoure uma música minha, que eu consiga gravar um DVD e ser reconhecido em todo o Estado e no Brasil”, confidencia Jardel.
CLARISSA FIGUEIRÓ
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
É pelas mãos de jovens como Jardel, apadrinhados por gaiteiros experientes como Gonzaga dos Reis, que a música gauchesca se perpetua. E não podia ser diferente, numa terra que já formou outros grandes acordeonistas: Albino Manique, Leonel Almeida, Neusa Regina, Ângelo Marques, Daltro Bertussi, Paulinho Siqueira, Rodrigo Lucena e os sempre lembrados Irmãos Bertussi. A relação da cidade com a gaita começou com a formação da dupla de acordeonistas Irmãos Bertussi, composta por Honeyde e Adelar Bertussi, no ano de 1947. Esses artistas, além de pioneiros, tornaram-se ídolos de toda uma geração de músicos não só de São Francisco de Paula, como de todo o Rio Grande do Sul. “Muitos gaiteiros surgiram em São Francisco de Paula, seguindo os passos dessa dupla e mantendo o mesmo estilo, caracterizando os acordeonistas serranos com identidade própria”, afirma o poeta e pesquisador Léo Ribeiro. Segundo ele, a relação de São Francisco de Paula e seus gaiteiros é diferenciada do resto do Estado porque dessa região originou-se um estilo próprio, que é a música fandangueira ou galponeira, própria para os bailes. “Na fronteira, usava-se muito o bandoneon e a gaitade-botão, ou gaita de voz-trocada, com ritmos acastelhanados, como chamarras e milongas. Já na Serra, a gaita pianada (ou de teclado), proporcionava outros ritmos, inclusive com o surgimento do único compasso genuinamente gauchesco, o bugio, oriundo dos Campos de Cima da Serra”, completa Léo. Em São Francisco de Paula, o som da gaita ecoa mais forte pelas mãos daqueles que a ela dedicam sua vida.
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MÚSICA PARA TOMAR MATE
BOEMIA GUASCA EM MEIO AO CONCRETO TEXTO DE PEDRO LUIS BICCA E GUSTAVO ALENCASTRO | FOTOS DE FERNANDA HERRERA
NO BAR ESTÂNCIA DE SÃO PEDRO, LOCALIZADO NO BAIRRO CIDADE BAIXA, MOVIMENTADO POINT DA BADALADA VIDA NOTURNA DE PORTO ALEGRE, O ATRATIVO PRINCIPAL É A MÚSICA NATIVISTA
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bairro Cidade Baixa está situado na região central de Porto Alegre. É considerado pelos porto-alegrenses como o principal ponto boêmio da cidade. À noite, o local é dominado por jovens com gostos e estilos urbanos, que podem optar por bares, restaurantes e danceterias. Na contramão dos modismos que predominam a capital gaúcha, o Bar e Restaurante Estância de São Pedro se destaca como único local no bairro a contemplar as tradições do Rio Grande do Sul. Uma máquina registradora antiga sobre o balcão, logo na entrada, dá ao Estância de São Pedro a sensação de um típico bolicho de campanha. Uma roda de carroça é usada como janela interna, separando os ambientes. Utensílios de trabalho pecuário pregados nas paredes, junto com quadros e fotografias antigas, de estancieiros e seus peões, relembram a história do gaúcho. Lamparinas sobre as mesas recordam os antigos lampiões, que iluminavam as noites do guasca nos campos do pampa. Móveis antigos e objetos rústicos causam a impressão de estar na sede de uma verdadeira estância gaúcha.
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Além da decoração dedicada às tradições do Estado e da música nativista tocada ao vivo, há também comida típica campeira. No cardápio, existem pratos que fazem referência à cultura. Entre eles, nomes como vaca atolada (costela bovina com mandioca) e espinhaço de ovelha com ensopado de mandioca. Os destaques ficam para o carreteiro de charque e a picanha da estância. O Estância de São Pedro existe há 13 anos. Na época de sua fundação, ali perto só existia o Bar Ossip, na Rua João Alfredo. Logo a casa se tornou reduto boêmio da cidade. O público era variado, já que a casa não estava voltada somente para as tradições gaúchas e abrigava outros estilos. Há um ano Lourenço Bicca está à frente do negócio. Frequentou o local como cliente por 10 anos. Esporadicamente subia ao palco para dar sua colaboração, tocando percussão, bumbo legueiro e pandeiro. Em 2009, trocou o emprego em uma grande empresa de telefonia
MÓVEIS ANTIGOS E OBJETOS RÚSTICOS RECRIAM O AMBIENTE DE UMA ESTÂNCIA GAÚCHA
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AQUI VAI UMA LEGENDA BEM LEGAL PARA ESSA MATÉRIA, QUE EU ACHO BOA, PORQUE ACREDITO NO SISTEMA
e passou para o outro lado do balcão, dedicando-se exclusivamente ao estabelecimento. Segundo ele, o bar foi à venda quando o antigo proprietário sofreu um derrame, em meados de 2006. “Ao adquirilo, juntei a intenção de ter um negócio com o gosto pelas tradições gaúchas. Já sabia que existia uma clientela cativa e não precisaria me preocupar em retornos financeiros, pois o público já estava formado”, conta Bicca. O proprietário afirma que outros estabelecimentos com o estilo gauchesco, no caso as churrascarias, têm as atrações voltadas mais para o turismo, fugindo da proposta do bar. Só exaltam o churrasco e a dança. “Não há um clima com uma boemia gaudéria. É só chegar e curtir um bom pedaço de carne e assistir às apresentações com boleadeiras.”
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Para ele, falta alma e raiz nesses lugares, coisa que no Estância é a atração principal. “Aqui o gaúcho se sente em casa e não em uma churrascaria. Só falta chegar galopando no asfalto da João Alfredo. Aqui todos os aspectos da cultura gaúcha são respeitados e praticados.” A música nativista é o objeto principal para reunir poetas, compositores, intérpretes e amantes das tradições do Estado. O técnico agrícola Lucas Ramos, 32 anos, é gerente do estabelecimento desde setembro de 2009. Segundo ele, não há outro local com características semelhantes em Porto Alegre. Ele cita muitos artistas consagrados que já se apresentaram no bar. “Não tem como lembrar todos. Foram muitos, mas dá para destacar Leonel Gomes, Luiz Marenco, Marcelo Oliveira,
Lisandro Amaral, Leôncio Severo. Alguns são frequentadores da casa e aparecem às vezes para tomar uma cerveja gelada, degustar uma boia campeira, conversar com os amigos. Quase sempre acabam sendo convidados para tocar alguma coisa junto com o músico que está se apresentado”. Perguntado sobre o público que frequenta a casa, o gerente diz: “A faixa etária dos clientes começa nos 18 e vai até os 30 anos, há pessoas com mais idade, mas em uma noite de casa cheia, 80% são jovens. Acontece de muitos estudantes do interior, de cidades como Santa Maria, São Borja e Livramento, virem ao Estância pra matar a saudade de suas origens, saborear uma comida campeira e ouvir música nativista.” A proposta do local é agradar a todas as pessoas que curtem
cultivar as tradições do estado. Segundo o escrivão Luiz Alberto Jardim, 65 anos, cliente da casa, é um lugar para que se cultuem as tradições. “Tudo é voltado à vida no campo. Mas estamos dentro de Porto Alegre. Antigamente eu vinha todas as noites, atualmente venho às vezes. A casa não mudou em nada nesses 13 anos. A única novidade é que o público já não é mais o mesmo de antigamente”. O músico Jader Leal, 33 anos, declara que sua carreira em grande parte se desenvolveu no bar. Não é à toa que há dez anos se apresenta no local. Ele cita que no Estância não há distinção: o profissional da música e o apreciador do estilo se encontram e tocam juntos. O clima de camaradagem e entrosa-
mento é o ponto alto. “Isso aqui é um gueto de músicos. Todos se reúnem para cultuar as tradições e evocar as raízes do nosso estado”, diz o cantor que hoje é um artista consagrado do gênero. Durante todos esses anos, o cantor expandiu sua carreira, já sendo um artista consagrado do gênero. O palco do Estância de São Pedro é território livre para celebrar a cultura rio-grandense em forma de música. Embora existam atrações contratadas, sempre há espaço para o improviso e a participação do público. No entanto, há uma condição: não se permite a entrada de pessoas portando facas e adagas – objetos que a gauchada tradicionalista costuma carregar consigo.
LOURENÇO BICCA É PROPRIETÁRIO DO BAR QUE REÚNE ARTISTAS CONSAGRADOS COM MÚSICOS AMADORES
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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esde o momento que a turma decidiu optar por abordar o tema “música” como assunto principal da Primeira Impressão deste semestre, a dupla teve o desejo de retratar a história do Bar e Restaurante Estância de São Pedro. No entanto, não tínhamos ideia de como relacionar o tema escolhido com o local. Através de pesquisas on-line, e de algumas fontes oficiosas, tivemos o material necessário para defender nossa escolha diante dos editores. Ainda que já soubéssemos um pouco sobre o bar, nosso conhecimento sobre ele era muito limitado para que pudéssemos começar a construir a matéria. Partimos então para o reconhecimento do local. Estivemos lá algumas noites, algumas como repórteres, e outras como clientes. Conhecemos pessoas novas e descobrimos histórias fascinantes, de música, tradicionalismo e camaradagem. Um estabelecimento em meio ao maior reduto boêmio de Porto Alegre, que através da música tradicionalista do Rio Grande do Sul reúne pessoas para resgatar um pouco de sua própria cultura.”
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MÚSICA PARA TORCER
AS VOZES DO CALDEIRÃO 98 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
ESBANJANDO CRIATIVIDADE, TORCEDORES DA DUPLA GRE-NAL FAZEM A FESTA NO ESTÁDIO, MOTIVAM JOGADORES E EXALTAM EM CANTOS E VERSOS O AMOR PELO CLUBE DO CORAÇÃO E SUA ETERNA RIVALIDADE TEXTO DE EVERTON BERTOLLI E RENATA STRAPAZZON FOTOS DE AMANDA MUNHOZ
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orto Alegre, Rio Grande do Sul, estádios Olímpico e Beira-Rio. Casas dos dois maiores clubes do estado abrigam, em dias de jogos, uma multidão de apaixonados. Vindos de distintas querências, são mais do que apenas torcedores. São amantes de um clube, seja ele Internacional ou Grêmio e, dispostos nas arquibancadas, querem mais do que assistir à partida. Querem torcer, motivar, cantar. Isso mesmo, a música faz parte da vida desses guerreiros dos estádios. Desde o hino oficial dos clubes até canções próprias recheadas de criatividade, tudo é motivo para transformá-los no 12º jogador, dando voz aos caldeirões. Para isso, eles não medem esforços. Abdicam de atividades normais da vida de qualquer jovem para se entregar de corpo e alma ao time do coração. Ao invés do cinema no sábado à tarde, ensaios com o pessoal da banda. Jogos de videogame no tempo livre se transformam em horas de trabalho na criação de uma nova música. Os ouvidos que antes apreciavam canções das bandas preferidas agora vivem atentos para qualquer tipo de canção, treinados para reproduzir os ritmos junto à massa no estádio. Essa é a rotina dos membros das torcidas Guarda Popular Colorada e Máfia Tricolor. Criadas para representar os clubes onde quer que eles joguem, as torcidas da dupla têm como marca suas músicas cantadas em coro durante as partidas. E não é só em casa que eles mandam bem. Quando Inter e Grêmio jogam fora do seu habitat natural, lá se vão os torcedores cantores dar show em terrenos adversários. Foi assim com o Inter, naquela emblemática primeira partida da final da Libertadores da América em 2006. Num jogo difícil contra o todo poderoso São Paulo, o colorado venceu por 2 a 1 o tricolor paulista, calando o Morumbi. Pela transmissão na tevê, puderam ser ouvidas as vozes da torcida que, em minoria numérica, ecoava em cantos a felicidade do título que se aproximava. Este ano, quando de sua segunda conquista da América, desta vez contra a equipe mexicana do Chivas Guadalajara, o Inter mais uma vez pôde contar com a força das músicas de sua torcida. Na final, dentro do Beira-Rio, os milhares de colorados cantaram em uníssono todo o amor e devoção pelo time e es-
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pecialmente pela camisa vermelha. A euforia da torcida bicampeã da América ganhou destaque novamente durante a transmissão da partida pela Rede Globo. Tanto que, quando o locutor Galvão Bueno pediu para ouvir a torcida, a letra da “canção-símbolo” na atual campanha foi estampada na tela para que gaúchos de todos os cantos do Brasil pudessem seguir a banda da Popular. Antes disso, em julho, as músicas da Popular foram pauta de uma matéria do programa Globo Esporte, apresentado por Tiago Leifert. Na ocasião, ganharam destaque nada menos que oito produções da torcida, inspiradas em grandes clássicos da música mundial. Um reconhecimento tardio, segundo o líder da Popular, Hierro Martins, 39 anos. Conforme ele, a torcida e sua banda, existente desde 2005, já despertaram o interesse de revistas, jornais e de estudantes a fim de transformar o fenômeno do estádio Beira-Rio em trabalho de conclusão. No entanto, a maioria dos profissionais que procurou Hierro e sua equipe não teve sucesso em suas matérias e trabalhos. Nem mesmo a potente equipe da revista Placar. “Normalmente não damos entrevistas. Quando fomos procurados pela Placar, dissemos apenas que, para conhecer o que é a Popular, tem que ir ao estádio, sentir a vibração da torcida de perto”, comenta Hierro. A distância entre a torcida e a imprensa, principalmente as do centro do país, tem uma explicação. Para o pessoal da Popular, o reconhecimento de anos de trabalho chegou tarde demais, depois de se esgotarem as pautas com clubes do eixo Rio-São Paulo. O INÍCIO NÃO FOI FÁCIL Desde a criação até os dias de hoje, um longo caminho foi traçado pelos idealizadores da banda. Membro da torcida desde o princípio, Hierro lembra com emoção das primeiras manifestações da banda. “Para tocar no estádio, era um trabalho danado. Entrávamos com um único bumbo escondido e tocávamos com um par de tênis”, conta. Com o passar do tempo, a banda foi crescendo, chegaram novos instrumentos, e a parceria com os dirigentes e seguranças do clube permitia agora não só a entrada de todo o grupo, como disponibilizava espaço adequado para os ensaios. “Sempre ensaiávamos no túnel de acesso, horas
antes dos jogos, até que a Brigada Militar começou a implicar, e o pessoal do Inter nos disponibilizou um espaço junto ao Portão 7 do Beira-Rio”, resume Ricardo Branco Rogoski, 29 anos, integrante da banda desde 2006. A organização da banda da Popular é tanta que entre a equipe tem aqueles encarregados de criar as canções, outros responsabilizados pelos instrumentos de percussão e aqueles a quem compete a tarefa de trazer novidades para o grupo. Esse último foi o trabalho do músico profissional Anderson Ferreira de Souza, 34 anos, o Nescau. Desde que entrou para a banda, há dois anos, Nescau foi o responsável por introduzir instrumentos de sopro à formação que antes utilizava apenas percussão. “Tudo acaba se tornando experiência para o meu currículo. É a primeira vez que toco numa banda de torcida, antes já havia participado de charanga”, diz. Assim como Nescau, outro membro experiente da banda da Guarda Popular é o estudante de Publicidade Endrigo Giacomin Gonçalves, 24 anos. A Endrigo, é destinada a árdua missão de criar músicas originais e com letras mais brandas, todas elas de incentivo ao time. Autor de oito músicas até agora, Endrigo cria os clássicos a partir de qualquer música que caia sobre sua mesa. Sem preconceito em relação ao gênero, vai de Mamonas Assassinas, passa por Pink Floyd, esbarrando ainda nos garotos de Liverpool. São dele hits clássicos como Minha camisa vermelha, Vidas em vermelho, Oh Inter e Gaúcho e campeão. Todas essas, respectivamente, versões de Pelados em Santos, dos Mamonas, Another brick in the wall, do Pink Floyd, Oh Carol, de Neil Sedaka, e I wanna hold your hand, sucesso dos Beatles. Em suas músicas, o estudante procura ressaltar a paixão pelo Inter e pelo Rio Grande, além de destacar histórias típicas dos torcedores dentro do estádio. Foi dessa forma que criou uma das músicas mais procuradas nos sites sobre o Internacional. “Minha camisa vermelha nasceu numa mesa de bar quando, no meio de uma conversa, alguém comentou a vontade de ver o Beira-Rio lotado gritando ‘Você me deixa doidão’. Gostei da ideia e, a partir daí, fui criando a música”, diz. Além de Endrigo, apenas outros cinco
integrantes da Popular são responsáveis por criar novas músicas. Todos com suas características particulares. Enquanto Endrigo compõe letras emotivas, outro colega escreve canções provocativas ao Grêmio, por exemplo. É característica da banda aceitar sugestões apenas desse seleto grupo de criação. Para participar tocando, basta ter envolvimento, dedicação e amor pelo Inter. COM A PALAVRA, O PROFESSOR Para o professor do curso de graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) doutor Dimitri de Ávila Cervo, as canções entoadas nos estádios são consideradas como músicas que desempenham uma função unificadora. “Sem dúvida, o que é cantado no estádio é música. Uma música mais complexa ou elaborada se define por melodia, ritmo e harmonia. No caso da torcida de futebol, temos melodia e ritmo, e a presença apenas desses dois elementos é comum em manifestações populares, ou de grandes coletividades. Eles são criativos ao encaixar a letra do time em músicas conhecidas. A forma como cantam é perfeitamente adequada à finalidade a que se propõem. Nesse caso, o mais importante a ser considerado não é a função artística da música, mas a função social que desempenha nesse contexto sócio cultural, sendo um elemento agregador, que estimula e unifica o ritual coletivo”, assegura Cervo.
O TOM DO LADO TRICOLOR Do lado gremista, a unidade da torcida também se fortalece a cada verso entoado na arquibancada. Diferentemente da torcida do Inter, no Grêmio qualquer torcedor é convidado para contribuir com uma boa música. Quem garante é o presidente da Máfia Tricolor, Cristian Vianna Garcia, 22 anos: “Desde os diretores da torcida, até mesmo o pessoal da bateria, todos podem criar as canções que cantamos para o Grêmio”. Além disso, conforme Garcia, outros membros estão se especializando em criar músicas para a Máfia. No Olímpico, a banda da Máfia Tricolor conta com uma média de sete componentes fixos que cantam e tocam repique, surdo, tarol e caixeta. Todos os membros da bateria são componentes de escolas de samba, o que dá um toque especial e profissional à banda. Nas letras da torcida gremista, criada em 1995, palavras de incentivo ao clube se misturam a provocações ao grande rival. De acordo com o puxador das músicas, Thiago Cavalheiro Alves, o Lara, 20 anos, a Máfia possui atualmente cerca de 20 músicas próprias. Todas elas, conforme o estudante, inspiradas no apoio incondicional ao clube da Azenha, marca registrada da organizada. Para fazer bonito nos jogos, as músicas são ensaiadas pouco antes das partidas. O horário apertado para os ensaios, no entanto, tem uma justificativa. “No momento não há encontros da bateria fora de jogo devido a temporada de en-
saios das escolas de samba, que já começou”, explica Lara, integrante da Máfia desde 2008. Assim como acontece na Popular Colorada, na Máfia Tricolor as novas músicas são divulgadas no site oficial da torcida e disponibilizadas no canal de vídeos Youtube. O empenho dos líderes da Máfia para fazer com que todos os componentes saibam o maior número de letras tem um motivo. Na opinião de Cristian Vianna Garcia, a torcida pode fazer a diferença nos jogos da equipe. Para ele, a força do canto, por vezes, torna-se o décimo segundo jogador em campo, capaz de reverter resultados ruins e empurrar o time para a vitória. E, para isso, o batuque típico das escolas de samba da capital faz toda a diferença. “Se o canto for com amor, entusiasmo e vontade, passando verdade, emoção e a empolgação do torcedor, ele com certeza reflete não só nos jogadores, como no dirigente que assiste nos camarotes. Assim como todo e qualquer gremista que essa música consegue alcançar. Porém, mesmo que seja o canto mais alto do estádio, se não for verdadeiro, se for puramente profissional ou tradicional, não emociona e não incentiva ninguém”, argumenta. Para Thiago Cavalheiro Alves, companheiro de organizada de Cristian, o canto misturado com o som da bateria é a melhor forma de incentivar o time durante a partida. “Sem canto, não há incentivo. Sem incentivo, não há motivação dos jogadores”, opina.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER Renata Strapazzon
Everton Bertolli
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U, COLORADA. Fanática, apaixonada pelo Inter. Mesmo assim, não foi fácil convencer o pessoal da Popular a falar para a PI. Os caras já deram as costas até para a revista Placar. Na época, a desculpa foi a de que o trabalho da Popular se reconhecia no meio da torcida. Por que diabos iriam nos atender então? Foram muitos os contatos com o líder da torcida até que ele cedesse conversar conosco. Numa tarde fria de início de setembro fomos ao Beira-Rio com a missão de acompanhar um ensaio e conversar com músicos da banda. Depois de falar por quase três horas com os responsáveis por fazer o estádio explodir, saí de lá mais convencida de que o amor dos colorados pelo Inter não pode ser traduzido em nenhuma matéria de revista. Para saber como é, só indo a uma partida, cantando junto, sentindo de perto”.
U, GREMISTA. Apesar de não ser tão fanático quanto a minha colega de matéria, confesso que não fiquei nada à vontade na sede dos arquirrivais durante a entrevista com o pessoal da Guarda Popular. No lado azul, depois de inúmeros contatos pessoalmente, por telefone, e-mail, conseguimos conversar com o diretor e integrantes da Máfia Tricolor que estiveram sempre a nossa disposição. Para colaborar com a matéria, o pessoal do Grêmio não mediu esforços nos auxiliando em todos os nossos questionamentos.Para mim, o mais legal do trabalho que realizamos para a revista Primeira Impressão foi ver o amor incondicional que as torcidas tanto a do Grêmio quanto a do Inter têm pelo seu time do coração”. PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 101
VÉU, GRINALDA E ROCK‘ N’ ROLL
MÚSICA PARA CASAR
A MÚSICA ESTÁ PRESENTE EM NOSSO COTIDIANO. MAS QUANDO QUEREMOS QUE ELA NOS TORNE FELIZES PARA SEMPRE, OS ACORDES SE TRANSFORMAM EM ALGO FORA DO COMUM
TEXTO DE BIA MROSS E JOICE PAZ FOTOS DE ISADORA MÜLLER
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stamos na era do MP3, a música digitalizada que podemos compartilhar. Houve um tempo em que, para reviver o momento em que tocou aquela música, naquela festinha, quando conhecemos aquela pessoa, era necessário fazer uma busca pelas lojas de discos ou esperar que ela tocasse no rádio, para podermos gravar em uma fita cassete. Agora compare isso a você estar conversando com a mesma pessoa no MSN e a mesma música estar na sua informação “O que estou ouvindo”: é, no mínimo, sugestivo. Hoje essas facilidades e opções nos levam a ser seletivos. Por mais mídias que tenhamos, sempre há um limite a respeitar. O de um CD é um álbum, o de um iPod é um número “x” de gigas. Temos que selecionar o que vamos levar para nos fazer companhia. Temos que reunir o que é mais importante e montar um playlist dessa trilha. Neste admirável mundo novo no qual vivemos, o poder de personalizar nossas preferências — ao mesmo tempo limitadas e ilimitadas — passa a influenciar o modo de nos relacionarmos socialmente, e isso inclui casar. AMOR À PRIMEIRA TRILHA Decidir se casar, sem dúvida é uma grande decisão. Uma nova vida, uma vida a ser compartilhada a dois. Para alguns casais, essa nova etapa acontece ao som de uma marcha nupcial, para outros, ao som de Nirvana. Totalmente inserida nesse “mundo novo”, a jornalista Gabrieli Chanas é a personificação desse modo de viver e casar. O primeiro olhar entre Gabrieli Chanas e Marcelo Hugo, em uma despedida de um amigo em comum, prova que a música é um fator que faz diferença: logo na primeira conversa, o casal teve Joss Stone como Cupido. “Eu e o Marcelo temos gostos musicais muito peculiares. Ver que eles eram praticamente os mesmos, lá naquela primeira conversa, ajudou bastante a levar o papo adiante. Gostamos muito de Joss Stone, e, com cerca de seis meses de namoro, fomos ao show dela. Dias depois ele me surpreendeu com um pedido de noivado ao som de
The chokin kind, uma das nossas preferidas da Joss”. Para Manuela Damasceno e Rafael Wolfarth, o casamento veio depois de constatarem que foram feitos um para o outro. Afinados, é a palavra que melhor define Manu e Rafa. Foi o gosto pelo grunge do Nirvana que levou Manuela a certo barzinho, onde “Kurt”, apelido de Rafael por sua semelhança com o vocalista da banda norte-americana, fez o coração da estudante de Jornalismo bater em bits acelerados. “A música é muito especial na nossa história. Foi em um show que nos conhecemos, temos gostos musicais parecidos, essas afinidades ajudaram muito para a história ter continuidade. Saber que o Rafa tinha uma banda foi muito legal. Sonhava em namorar vocalista de banda.” SIM Para quem disse “sim” e vai celebrar essa decisão — seja na tradicional igreja ou em um lugar diferente —, tem que se preparar para uma verdadeira turnê por muitas outras decisões. Novos recursos permitem fazer um casamento personalizado, modificar ou seguir a tradição, e essas possibilidades atraem cada vez mais casais que querem fazer esse momento mais singular do que já é. Quando chegou a internet, maior acesso a MP3, CD, iPod, todo mundo passou a se relacionar com a música de forma diferente. “A gente começou a gostar de 10 bandas por dia, não mais 10 bandas por ano. Era claro que toda essa onda iria se refletir nos casamentos e que as pessoas desejariam um momento com ‘a sua música’”, diz Gabrieli. Tornar aquele momento algo único e bem particular passou a ser fundamental. Se tornou uma forma de diferenciar o casamento. “Ninguém quer o mesmo vestido de noiva e nem as mesmas músicas da amiga. A variedade está aí para ser usada, isso vale do docinho à música de entrada da noiva”, diz a jornalista. Mas nem sempre esse toque moderno na cerimônia tem o efeito desejado. Gabrieli, que mantém o blog Noiva.com, tem contato com muitos casais que temem errar o tom. “A principal dúvida dos noivos é se a música vai ficar bem
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Manuela também priorizou seu sonho, porém ele se enquadrava naquela listinha que o Padre não daria ok...
ou não. Todo mundo gostaria de entrar na igreja com uma música do Bon Jovi, que tocava quando o casal se conheceu, mas tem que ver se a letra ou a melodia não são agressivas demais para um momento tão solene”. Por esse motivo, Manuela optou por não casar na Igreja. “Como desde o início a decisão era uma cerimônia ao ar livre, não precisamos seguir as normas da Igreja. As músicas são liberais, mas claro, me preocupo se tal música ficará legal só em voz e violão. Muitos casais querem inovar nas músicas, como tocar Single ladies, da Beyoncé, na hora do buquê, e não é bem assim”, ressalta Manu. Nessa questão, Gabrieli dá dicas para quem não abre mão do casamento religioso. “Algumas igrejas não permitem que sejam tocadas outras músicas além daquelas que estão em uma listinha pré-aprovada e que geralmente traz apenas as mais tradicionais. Esse é um cuidado que os noivos precisam ter
ao reservar a igreja.” Quer música moderna? Então cheque se o padre permite. Em alguns casos, ele pede para ouvir as músicas e dá seu ok final. “No meu caso, o que fizemos foi contratar uma orquestra e pagar por arranjos diferentes. Saímos da igreja ao som de I’ll be there for you, trilha de abertura do seriado Friends em uma versão com violinos e violoncelo. Ficou lindo e não deixou o padre de nariz torcido”, conta Gabrieli. Apesar de alterar a trilha, a jornalista não abriu mão de algumas tradições, como a Igreja Santa Terezinha, em Porto Alegre, e a marcha nupcial. “A marcha nupcial de Mendelssohn é uma das mais tradicionais e, para mim, a mais bonita. Eu mudei todas as músicas da minha cerimônia, mas para a minha entrada quis ter aquela que sempre me deixa com lágrimas nos olhos quando eu ouço. Sempre me imaginei entrando na igreja com essa música e jamais trocaria.”
O ROCK’ N’ ROLL Assim como o casamento, rock não se faz sozinho. Desde 2001 os pombinhos Manuela e Rafael ensaiam o mesmo riff. Mesmo exausta por causa dos preparativos para o grande dia, Manuela reservou umas horinhas, antes da sua última aula de dança, para contar como vai ser o casamento. “Rafa vai entrar ao som de Nirvana. Consultamos os cantores e eles garantiram que podem fazer um arranjo até de Smells like teen spirit.” Manuela conta que teve cuidado para não exagerar na dose, para que esse momento não fique ofuscado pela temática. “A identidade visual do convite tem dois passarinhos e notas musicais com a letra de uma música, e as mesas, o nome de bandas que gostamos.” Além de toda a parte visual, Manuela garante que o casamento terá muito rock’ n’ roll. “A lembrança é uma seleção de músicas que nós gostamos, e que certamente tocarão na cerimônia. A arte do CD tem as nossas caricaturas, eu com uma revista, o Rafa com uma guitarra.” Seja tradicional ou arrojado, um casamento não vive de música, mas, certamente, ele inspira o que nos torna realmente felizes para sempre: o amor. E esse sempre tem uma trilha sonora. Afinal, como o convite de casamento de Manuela e Rafael diz: “Quando um certo alguém, desperta um sentimento, é melhor não resistir, e se entregar”...
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ecidir um tema que pudesse agradar duas cabeças tão diferentes foi o grande desafio desta reportagem, ainda mais em um assunto tão explorado como a música. Quem diz que duas cabeças pensam melhor do que uma está equivocado... Após semanas divergindo sobre uma pauta, finalmente concordamos que ela deveria cair. Partimos em busca de um algo que nos envolvesse, que nos desse prazer em realizar. Então nos demos conta de que conhecíamos uma história de amor e música: Manuela e Rafael. O contato que fizemos com o mundo das músicas de casamento nos inseriu
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em um universo completamente desconhecido por nós,cheio de expectativa, paixão e encanto. Um elegante café no centro de Campo Bom foi o cenário da entrevista com a nossa amiga Manuela Damasceno. A profissão agitada e os preparativos para mais um Encontro de Noivas nos levaram a uma conversa pelo MSN com a gentil Gabrieli Chanas. Blogueiras, apaixonadas e noivas por opção, o fato é que as entrevistadas salvaram nossa dupla de uma separação litigiosa. Produzir esta reportagem foi como uma relação a dois, porque acreditem, fazer a Primeira Impressão é quase um casamento!”
Melodias para casar Músicas que não podem faltar na playlist do casamento GABRIELI CHANAS The chokin kind, (Joss Stone, é claro) How deep is your love (Bee Gees) Better together (Jack Johnson) Realize (Colbie Caillat) And I love her (Beatles) MANUELA DAMASCENO All you need is Love (Beatles) Heart shaped box (Nirvana) You’ll be in my heart (Phil Collins) Um certo alguém (Lulu Santos) Cant take my eyes of you (Laurin Hill)
Ps.: O material nos envolveu tanto que não resistimos em também fazer as nossas listinhas! E foi bem difícil, pois são tantas músicas que amamos... BIA MROSS You’re the one that I want (Trilha do filme Grease) Don’t let me down (Trilha do filme Across the Universe) The winner takes it all (Trilha do filme Mamma mia) Mr. Cellophane (Trilha do filme Chicago) Singing in the rain (Trilha do filme Singin’ in the rain) JOICE PAZ Piece of my heart (Janis Joplin) Be my baby (The Ronettes) Mmmbop (Hanson) Needles and pins (Ramones) Hey now (Cindy Lauper)
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EXPEDIENTE Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Gustavo Fischer COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs
pi primeira impressão
REDAÇÃO TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: primeiraimpressao@icaro.unisinos.br BLOG: http://www.portal3.com.br/hotsites/impressoesliterarias/ Professores-Editores Eduardo Veras (efveras@unisinos.br) - Redação Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia Reportagem Alunos Adam Nicolas Scheffel, Adriano de Carvalho, Aline Bof, Amínie Pinheiro Jardim, Ângela Loppe Virtuoso, Bia Mross, Bibiana dos Santos Barbará, Bruna Schuch, Camila Nunes, Carolina Anchieta, Caroline de Oliveira Raupp, Cristiane da Silva Serra, Daniela Cristina Machado, Dierli M. Santos, Eder Fernando Zucolotto, Éder Romeu Kurz, Eduardo Dullius Feldens, Everton Fabiano Ribeiro Bertolli, Fabiana Peixoto Lopes, Gianini Oliveira da Silva, Giovani Francisco Vicente das Neves Júnior, Gustavo Alencastro da Costa, Gutiéri Sanchez, Isabel Bonorino, Joel Antônio Oliveira, Joice Paz, Juliana Jeziorny, Larissa de Oliveira, Letícia Bresolin Cardoso, Manoela Poitevin Bandinelli, Manoeli Marschner Rodrigues, Manuela Moraes Teixeira, Marcelo Collar, Mateus Ferraz , Miriam da Luz Moura, Pablo Furlanetto, Patrícia Oliveira, Pedro Luís de Holleben Bicca, Renata Rodrigues Lopes, Renata Strapazzon, Roberta Becker dos Reis, Roberta Roth, Rodrigo Jonathan Rodrigues, Rogério Bernardes, Rosanna Ramos, Taína Vanda Lauck, Tatiane Marques de Lima, Tiago Fraga de Vargas Ramos, Vanessa Reis e Vinícius Ghise. MONITORA: Bárbara Keller. Fotografia Alunos Amanda Munhoz, André Ávila, Anderson Lopes, Andressa Pazzini, Ângela Virtuoso, Camila Cabrera, Carine Fernandes, Carolina Tremarin, Caroline Schmedecker, Clarissa Figueiró, Elis Braz, Fernanda Brandt, Fernanda Herrera, Filipe Gamba, Gabriela da Silva, Isadora Müller, Jéssica Berger, Júlia Warken, Liziane Alves, Luciana Borba, Marco Antonio Filho, Mariana Halmel, Renata Parisotto, Ricardo Machado, Sindy Longo, Tatiele Prudêncio e Mauricio Montano. MONITORA: Bruna Schuch. FOTOS DE CAPA: Marco Antonio Filho. PRODUÇÃO GRÁFICA Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado PROJETO GRÁFICO e DIAGRAMAÇÃO: estagiários Gabriela Schuch e Marcelo Grisa, sob orientação do jornalista Marcelo Garcia. PUBLICIDADE Os anúncios publicados nesta edição foram vencedores da categoria Redação Publicitária II do 10º Propaganderia, mostra competitiva de trabalhos desenvolvidos por alunos do Curso de Publicidade e Propaganda. CRIAÇÃO: alunos Tiago Braga de Almeida (página 2) e Heleusa Bonato Coitinho (página 107), sob orientação do professor Ângelo Cruz; Willian Gaviragui e Surian Engel (contra-capa), sob orientação da professora Daniela Horta. ARTE-FINALIZAÇÃO: estagiário Renan Steyer, sob supervisão do professor Ângelo Cruz e do publicitário Robert Thieme, da Agexcom.
106 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
[Cartola]
108 | novembro/2008 | primeira impressĂŁo|