nº 37 | julho de 2012 |
pi primeira impressão
O céu de cada um
carta ao leitor O céu na cabeça
Q
uem conhece as histórias em quadrinhos de Asterix e de seus amigos sabe que o maior medo daquela turma de gauleses é que o céu caia em suas cabeças. O temor dos personagens de Gos-
cinny e Uderzo representa com bom humor a relação existente entre os homens e o céu. A humanidade evoluiu, grandes descobertas foram feitas, pestes foram erradicadas, as pessoas se comunicam virtualmente, mas ainda não é possível controlar a imensidão azul. O homem estuda o espaço, descobre planetas, coloca satélites no ar e até já pisou na Lua, mas ainda não consegue ter absoluta certeza se no dia seguinte vai chover ou se existe vida fora da Terra. O céu continua sendo tão misterioso que simboliza, para muitos, a vida eterna. Nesta edição da Primeira Impressão, os repórteres e fotógrafos se propuseram a tentar compreender como diferentes pessoas se relacionam com o céu. Para alguns, como os agricultores, o sustento depende dele. Para outros, como os esportistas, possibilita a superação. Há aqueles que perderam vidas no céu, e os que receberam órgãos vitais através dele. O céu pode ser local de trabalho, nome de lugar, pode lembrar histórias de sucesso. Os perfis que você lerá mostram que cada um tem o seu céu. Até o final desta edição, o céu não havia caído em nossas cabeças, mas certamente ele não sairá da sua até você chegar na última página da revista. Thaís Furtado Flávio Dutra Professores-orientadores
ANDRÉ SEEWALD
| 4 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2012
índice Página
O céu como...
Na vida de...
8
Superação
Alfio
14
Previsão
Artur
18
Persistência
Balbinot
22
Diversão
Janito
26
Sonho
Alemão
32
Realização
Vinícius
36
Conhecimento
Thaisa
40
Expectativa
Carlos
44
Profissão
Mattei
48
Céu
Rodrigo
52
Escola
Marisa
56
Lembrança
Dario e Ana
62
Brincadeira
Giba
66
Contato
Rafael
JOEGUS74 (STOCK.XCHNG)
Página
O céu como...
Na vida de...
72
Salvação
Kettermann
76
Moradia
Seu Jorginho
80
Influência
Michelli, Ilena e Leila
86
Desejo
Manuel
90
Paixão
Leitão
94
Teto
Claudiomiro
98
Esperança
Michele
102
Sabor
Gilberto e Juraci
106
História
Ussanovich
112
Vizinho
Paulo
118
Meta
Leonardo
122
Estudo
Thais
126
Responsabilidade
Marcelo
130
Mistério
Elisabeth
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LUCIANA BOHN
‘‘
O céu é só uma promessa Eu tenho pressa, vamos nessa direção Atrás de um Sol que nos aqueça Minha cabeça não aguenta mais” Engenheiros do Hawaii
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O céu como superação
Do medo da altura ao tetracampeonato de parapente Texto de DIEINES FRÓIS. Fotos de RAFAELA KLEY E DANIELA FANTI
DANIELA FANTI
Voo para a liberdade
A
lfio Vegni Junior, desde seus 19 anos, deixou o medo de lado e abriu asas em direção ao vento. Sempre teve curiosidade pelo céu, o que ele esconde e é capaz de proporcionar. Por influência de seu ex-cunhado, Alfio sempre acabava indo para o morro Ferrabraz, localizado em Sapiranga, região metropolitana de Porto Alegre, onde começou a se interessar pelo voo livre. Desde o seu primeiro contato com o parapente, ele sabia que não largaria mais. “No primeiro voo, as pessoas não prestam muita atenção, chegam lá embaixo sorridente, mas sem saber muito o que aconteceu. No segundo e no terceiro, aí sim, se enxerga tudo longe, carros e prédios pequeninhos. Nesse momento, tu entras numa plenitude maluca e te sente um passarinho”, diz. O atleta, natural de São Leopoldo, também localizada na região metropolitana de Porto Alegre, hoje já tetracampeão gaúcho, sempre teve muito medo de altura. Em casa, não chega perto da sacada. Para trocar a lâmpada, sempre liga para um amigo convidando-o para um churrasco, só para que ele faça esse favor. “De costas, apoiado na sacada, nem pensar”,
comenta. Próximo à rampa de decolagem, ele não chega perto sem estar devidamente equipado. O interessante é de onde ele tirou a coragem para voar, já que tem fobia de altura. O que o encorajou foi que, antes de começar a voar, é preciso toda uma preparação teórica, na qual são apresentados todos os equipamentos de segurança e se aprende como fazer o uso devido deles. Isso o deixou tranquilo para arriscar. Até hoje ele afirma ter medo na hora da preparação para o voo. “O medo sempre está ali, e é preciso que esteja para que tu possas respeitar os teus limites. O sentimento é necessário para sabermos até onde podemos ir. Isso faz com que eu sempre esteja seguro”, diz. A família de Alfio sempre o apoiou nas escolhas, e, segundo ele, ter o apoio dos pais e do irmão foi fundamental. Tanto um quanto o outro fizeram o curso e começaram a voar com ele, o que o estimulou a seguir em frente. “Sempre gostei de esportes. Durante toda minha adolescência meu hobby era estar no mar, sempre ia à praia para poder surfar. Quando descobri o voo, me encontrei no esporte. Estar no ar me proporciona RAFAELA KLEY
DANIELA FANTI
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DANIELA FANTI
uma paz de espírito. Sou um competidor nato, e isso também é uma motivação”, declara Alfio. Seu interesse se iniciou antes mesmo de se imaginar voando. “Minha curiosidade foi desde sempre, e quem não tem interesse pelo céu? Quem nunca voou de avião e ficou olhando a paisagem e as nuvens pela janelinha, imaginando como seria estar ali?”, pergunta. Militar concursado, atualmente é Primeiro Sargento e serve no Quinto Quartel General do Comando Militar do Sul, em Porto Alegre. Por isso o jeito mandão que o caracterizava desde o início, quando ia com o ex-cunhado ver os outros saltarem e ficava dando palpites no que estava, a seu ver, errado. Isso acabou originando seu apelido de Sargento. Quando se fala em saltar, todos parapentistas são categóricos: “Não saltamos, nós somos pilotos, por isso decolamos”. Ao iniciar a vida de atleta, Alfio teve dois patrocinadores que o ajudaram muito para chegar onde chegou. Um posto de gasolina contribuía com o combustível para a locomoção, e a loja Krakatoa bancava as despesas, ambos de São Leopoldo. Como era início,
inclusive os patrocínios eram amadores, mas foram de extrema importância para que o atleta pudesse conquistar seu primeiro título de campeão gaúcho, em 2000. “O patrocínio desse esporte, aqui no Brasil, ainda não é bem explorado. As empresas não investem muito, diferentemente do que acontece lá fora, onde os atletas contam com o apoio de grandes marcas. Aqui os patrocinadores são das marcas e empresários de equipamentos para voo mesmo”, queixa-se. Depois de um tempo, obteve o apoio de uma profissional da área de comunicação, sua esposa e também sua assessora, Cristine Penna, que deu início ao trabalho de marketing pessoal de Alfio. O resultado foi uma maior exposição na mídia. Com isso, veio o patrocínio da Tryon, que proporcionou a Alfio a possibilidade de participar de campeonatos nacionais e ter um bom destaque no ranking. Assim, ele pôde representar o Brasil em competições internacionais, como o campeonato Mundial na Autrália, em 2007, e na Itália, em 2009. Pelo fato de estar competindo, Alfio acaba se envolvendo nas questões burocráticas também. Durante dois mandatos consecutivos, foi presidente da Federação Gaúcha de Paraglider, e, por DANIELA FANTI
RAFAELA KLEY
DANIELA FANTI
Força: Alfio se define como um competidor nato, e isso sempre o motivou a praticar esportes
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DANIELA FANTI
se relacionar muito bem com o pessoal da Associação Brasileira de Vôo Livre (ABVL), assim que ele se desligou da Federação, já recebeu o convite para ser diretor técnico da ABVL. Aos 38 anos, ele se declara um competidor nato e apaixonado tanto pelo esporte quando pelo ar. Para expressar sua paixão ele usa uma frase de Leonardo Da Vinci: “Quando tiveres provado a sensação de voar, andarás na terra com os olhos voltados para o céu, onde estiveste e para onde desejarás voltar.” Os voos de Alfio são constantemente apreciados por sua mulher, Cristine, e por seu filho, João Victor, de quatro anos. O piloto tenta passar para eles sua admiração pelo esporte: “Quando estou no céu, me encontro com uma força maior, que, para muitos, pode ser chamada de Deus, ou sei lá. Posso afirmar que voando é quando me encontro comigo”.
medo é necessário “ Opara sabermos até onde podemos ir” Alfio Vegni Junior, atleta de parapente
DANIELA FANTI
Amor compartilhado: os voos de Alfio são acompanhados pela mulher, Cristine, e pelo filho, João Victor
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
uando foi decidido que o tema da revista seria céu, pensei, e agora? No dia seguinte, cheguei ao meu trabalho e falei para uma das colegas do tema escolhido, e ela logo disse para eu entrevistar seu marido, então me expos as razões pelas quais, realmente eu me interessei pela história do Alfio. Sabe quando alguém tem um sentimento tão grande por alguma coisa que acaba nos deixando também interessados? Senti isso em dois momentos, e muito forte. Quando expus o tema da pauta e vi a Cris falar com tanto orgulho do seu marido, e quando vi o próprio, no dia das fotos, falar da paixão por se sentir um pássaro. Não tive a oportunidade de voar, mas confesso que quando se está lá no alto, observando os pilotos se aprontarem, já é possível sentir um pouco daquela sensação de liberdade que todos afirmam sentir. O vento que balança nosso cabelo, a pele que arrepia com a brisa, a cidade que fica pequena. Privilégio daqueles poucos que, por alguns instantes, se arriscam para ter a visão de um pássaro em seu voo livre rumo à imensidão”
O céu como previsão
De olho na meteorologia O interesse pelos fenômenos climáticos que surgiu aos 11 anos se transformou em uma grande paixão para Artur
Texto de HENRIQUE MACHADO Fotos de DIENIFER CECCONELLO e MEK KORMIK (STOCK.XCHNG)
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“A
meteorologia para mim é uma espécie de romance que estou lendo; uma espécie de novela. Tu tens personagens, enredo, só que não tem fim. É uma narrativa que vai continuar mesmo depois de eu morrer.” Com essa frase, o diretor da Unidade de Serviços Acadêmicos da Unisinos, Artur Jacobus, define sua paixão pela meteorologia. Natural de São Leopoldo, filho de mãe professora e pai industriário, casado com Dora Jacobus, o professor formado em Letras com mestrado em Linguística Aplicada e doutorando em Administração conta que o seu interesse pela meteorologia vem desde cedo. Com 11 anos ele e alguns amigos produziam jornaizinhos feitos com canetinha. “A gente vendia o jornal para os amigos e havia uma seção de meteorologia. Ali comecei a reparar se tinha feito muito calor, ou chovido muito, assim se iniciou esse interesse”, conta. Quando não havia termômetros, Artur ia para o pátio de casa e anotava em uma espécie de diário como estava o tempo naquele dia e naquela hora para, no futuro, poder consultar e verificar o que havia acontecido em anos anteriores. Aos 15 anos comprou seu primeiro termômetro e, juntamente com o irmão mais novo, Daniel, começou a fazer registros meteorológi-
DIENIFER CECCONELLO
UMA ESTAÇÃO METEOROLÓGICA EM CASA
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Quando morava com seus pais, Artur tinha um termômetro, mas o instrumento não dava a confiabilidade de uma estação meteorológica. A medição da temperatura mínima e máxima era feita de forma manual. Após casar-se, foi morar em um apartamento, o que fez com que suspendesse esses registros. Em 2006, Artur se mudou para uma casa que tinha uma enorme piscina na parte da frente do terreno. Com uma filha de dois anos, resolveu aterrar a piscina por questão de segurança, colocando em seu lugar um gramado. Quando executou essa obra, pensou: “Ali vai dar para colocar uma estação meteorológica”. Em julho de 2010, o professor adquiriu uma estação meteorológica dos Estados Unidos. No dia 25 de setembro do mesmo ano, a estação entrou em operação e, de lá para cá, transmite dados a cada cinco minutos via internet, sem interrupção. A estação que Jacobus construiu em casa contém um mastro, a uma altura de sete metros em relação à rua. Possui um anemômetro, aparelho que mede a direção e a velocidade do vento; um ventilador, que ajuda a arejar o espaço onde fica o termômetro, o que dá uma confiabilidade maior do que as estações que não têm esse aparelho. O funcionamento da estação é à base de energia solar com uma bateria para reserva. “É uma maravilha em termos de economia”, diz. Nessa estação, há uma central que fica no pátio, transmitindo dados via rádio a um computador que está 24 horas por dia ligado e armazena os dados. Esse computador envia as informações em tempo real pela internet. O professor conta que certa vez a estação meteorológica auxiliou a população de São Leopoldo prestando um grande serviço. Teve uma chuva muito forte que inundou a cidade no dia 6 de fevereiro de 2011 e inclusive fez uma vítima fatal. “Houve um grande prejuízo no telhado do Hospital Centenário e, como os dados que eu coleto são disponibilizados de uma forma gráfica, eles foram reproduzidos no jornal da cidade’, conta. Como Artur mora bem próximo ao hospital, as informações desse dia foram utilizadas pela prefeitura de São Leopoldo para que se conseguisse sensibilizar a defesa civil nacional a fim de que fosse feita a reforma no telhado do Hospital Centenário, mostrando que o que ocorreu naquele dia foi um fenômeno completamente atípico que justificaria a alocação de recursos.
MEK KORMIK (STOCK.XCHNG)
cos. “De tempos em tempos, a gente ia lá e anotava como estava a temperatura e a umidade, para depois fazer uma consulta e saber o que tinha acontecido”, relata. Com 17 anos, começando os estudos universitários, Artur entendeu que era tempo de trabalhar. Queria iniciar em algo que achasse interessante, então começou na empresa Torricelli Meteorologistas, que prestava serviço para o Grupo Caldas Júnior fazendo a previsão do tempo para a Rádio e TV Guaíba e os jornais Correio do Povo e Folha da Tarde. Sua tarefa era auxiliar os meteorologistas da Torricelli: “Entre o final de 1980 e meados de 1986, trabalhei dentro da Caldas Júnior assessorando os profissionais em meteorologia da empresa no recebimento de boletins que eram encaminhados para posterior leitura e interpretação dos meteorologistas. Neste ambiente aprendi muita coisa”, conta. Naquele período, Artur tinha alguns termômetros e fazia registros meteorológicos. Ele acredita que, de certa maneira, havia em casa um ambiente que favorecia o interesse pelo conhecimento, além de ele morar em frente a uma biblioteca na qual havia muitos livros sobre meteorologia.
“
A natureza tem sua vida própria. Acompanhar o tempo, ver as coisas acontecendo é uma admiração pela força da natureza que está além do homem” Artur Jacobus,
professor de Letras e apaixonado por meteorologia
Quando liberaram os recursos, a Metsul enviou um e-mail para Artur informando que os dados da sua estação meteorológica foram muito importantes para que a cidade conseguisse recursos para a reforma do telhado do hospital. “Isso, para mim, é extremamente gratificante, por isso que eu digo que a estação meteorológica não pode sair do ar”, diz. Para o professor, a informação meteorológica é pública e precisa estar disponível para as pessoas acessarem. “Clima é uma coisa sobre a qual nós não temos controle. Ninguém consegue parar um ciclone. A natureza tem sua vida própria. Acompanhar o tempo, ver as coisas acontecendo é uma admiração pela força da natureza que está além do homem”, diz.
CRENDICES E SUPERSTIÇÕES
A meteorologia sempre teve por parte daqueles que vivem da agricultura inúmeras crenças que passam de geração em geração. Um exemplo é a afirmação de que a mudança da fase na lua influencia no clima, ou que a floração dos maricás antes do dia 19 de março é sinal de inverno rigoroso e seco. A meteorologista Estael Sias afirma que a floração dos maricás tem, sim, relação com a alteração da temperatura. “A Lua cheia interfere de fato nas marés, isso não é crendice. Embora seja um fenômeno astronômico e não atmosférico, em noites de Lua cheia é como se a Terra fosse atraída na direção da lua, e isso promove a elevação das marés”, explica. Estael também diz que há alguns indicativos das mudanças do tempo, como quando o rosto fica corado à noite e a pele ressecada. Isso é sinal de que vai gear no amanhecer. De acordo com ela, essa afirmação é verídica, pois a combinação do ar seco, frio intenso e pouco vento, na maioria das vezes, favorece a formação de geada no dia seguinte. Artur diz que quando trabalhava na Caldas Júnior havia um livro antigo de meteorologia que falava de uma pesquisa feita nos anos 40 sobre a relação entre as fases da Lua e a chuva. As pessoas diziam que chovia sempre que a Lua mudava de fase. O professor sempre foi cético quanto a isso. “Eu sempre pensava: bom, a Lua muda de fase no planeta inteiro, então vai chover em todos os lugares do planeta quando a Lua trocar de fase?”, questiona. A pesquisa concluiu que não há a menor relação entre mudança de tempo e Lua. Artur completa: “Pode ser que exista, mas até hoje eu nunca consegui perceber alguma relação do tempo com essas mudanças. Se existir, a ciência está aí pra comprovar”, diz.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“G
osto muito de fazer perfis. Entrevistar alguém e conhecer sua história de vida é algo que me fascina. Para mim, é uma troca de experiências que na maioria das vezes faz com que a entrevista vire uma conversa formal entre dois amigos que estão se conhecendo naquele momento. De um lado, está um curioso e do outro, alguém disposto a contar sua vida. Entrevistar o Artur foi uma bela experiência. Ao saber que ele possuía uma estação meteorológica em casa pensei que era algo surreal, pois sempre imaginei que fosse uma sala cheia de botões, alavancas e comandos, quando na verdade é um aparelho compacto que faz lembrar aquelas luzes de jardins que ficam sobre suportes com uma casinha onde os equipamentos ficam alojados. O prazer do professor em falar sobre meteorologia e sua estação meteorológica foi uma oportunidade muito proveitosa. Ouvindo sua história pude ver como alguém que possui um hobby, consegue conciliar o trabalho com um passatempo levado muito a sério.”
O céu como persistência
Com as próprias asas Balbinot dedicou-se por anos à construção de sua aeronave, que acabou levando sua família a uma tragédia Texto de PRISCILA PILLETTI Fotos de DANIELA FANTI
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U
m inventor excêntrico, que pode lembrar Santos Dumont, com direito a hangar no jardim de casa, a metros de um local de onde pode decolar. A descrição combina histórias de filmes e desenhos animados norte-americanos, mas pertence a um morador de Garibaldi, município de 30 mil habitantes, a cerca de 110 quilômetros de Porto Alegre. Há quem considere Luiz Alberto Balbinot um estranho na cidade pequena. O galpão que abriga dois aviões desmontados, muitas peças e ferramentas pode ser confundido com uma grande garagem por quem não o conhece. Mas quem passa pela rua isolada, em direção ao aeroclube, vê todos os dias o
homem de cabelos brancos entretido com suas máquinas. Foi por meio de uma delas que se tornou conhecido na região: Balbinot construiu, do início ao fim, seu próprio avião, uma aventura que durou seis anos e teve um final trágico. O interesse pela aviação foi despertado ainda na infância. Sua casa, que não é a mesma em que reside hoje, também ficava próxima ao aeroclube. “Desde criança eu vivia lá”, lembra, sem conseguir especificar a primeira vez que entrou no local. Filho de alfaiate, sem nenhuma influência familiar para o gosto, ele acredita que, para ser piloto, se nasce com a vontade – que, ao longo dos anos, não esmorece.
Paixão: Balbinot monta aviões no galpão da própria casa. Algumas peças são reaproveitadas de outras máquinas
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Toda a experiência aérea que acumula ao longo de 53 anos de idade ele relembra como se tivesse vivido na última semana. Fez o curso para piloto entre os 16 e 17 anos, idade em que voou pela primeira vez. “Foi num Paulistinha P-56, que ainda está lá no aeroclube”, lembra. Na época, com essa idade, se podia fazer o brevê, enquanto carteira de motorista, apenas com 18 anos. Hoje, ambas as permissões só podem ser encaminhadas com a maioridade. “O início do curso para piloto privado soma 40 horas de voo, fora teoria, que são sete matérias. Hoje em dia, isso custa cerca de R$ 15 mil. Na minha época não era tão caro, o governo subsidiava o combustível, materiais, até aviões para incentivar o aeroclube, o que não existe mais”, explica. Ter boa saúde é outro requisito para pilotar. Quem tem problema de coração, principalmente, é considerado inapto para voar. Os exames devem ser refeitos de dois em dois anos até os 40, depois, anualmente. Após certa idade, a revisão precisa ser feita a cada semestre. Sua relação com o aeroclube segue forte. Já assumiu a vice-presidência e hoje atua como diretor de segurança. A função do clube de Garibaldi é oferecer formação e treinamento para pilotos. A escola, porém, está desativada há alguns anos. Os pilotos associados que desejam voar com a aeronave disponível pagam R$ 220 a hora. Quem tem avião particular paga a garagem. Balbinot conta que são cerca de 40 associados, mas meia dúzia frequenta mesmo. “A maioria não é muito ligada à aviação, são sócios por influência de alguém da diretoria ou da família, ou mesmo para ajudar a entidade”, explica. Ele garante que pilota todo o final de semana, geralmente aos sábados. Mesmo se tratando de sua paixão, a aviação sempre foi um hobby para Balbinot. Hoje, aposentado, pode se dedicar mais ao assunto, mas durante os 33 anos em que trabalhou no setor administrativo de uma vinícola local, os voos e montagens de aviões ficavam restritas ao tempo livre. Seus olhos tímidos brilham ao falar do avião que construiu. A aviação experimental é o tema que o garibaldense domina e se empolga ao conversar. A construção de seu avião foi iniciada em 1994, impulsionada por um anúncio de revista. Nos Estados Unidos, as aeronaves “caseiras” sempre foram comuns, ao contrário do Brasil. Balbinot e um grupo de amigos compraram um projeto e, a partir daí, iniciaram a montagem. Balbinot explica sobre cada componente: o revestimento pode ser de madeira, fibra, tela, aço ou alumínio. O motor de avião é o mais recomendado, por ter refrigeração a ar e ser, assim, mais leve. Mas motores au-
tomotivos também podem ser adaptados, muitos escolhem o de Fusca, segundo ele. O processo deve ser fiscalizado por um engenheiro aeronáutico e, quando o veículo está pronto, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) emite um prefixo – uma identificação, como a placa de um automóvel. A fuselagem, ou seja, o revestimento externo da aeronave de Balbinot, era de fibra e madeira, materiais com os quais mais gosta de trabalhar, com motor próprio para aviação. “As pessoas duvidavam que fosse levantar voo. Quando eu dizia que seria de madeira, achavam que ia quebrar”, lembra. A parte instrumental, como altímetro, velocímetro e bússola, foi importada dos EUA. A capacidade era para duas pessoas e a velocidade chegava a 200 quilômetros por hora. Foram seis anos de construção no porão de casa e um gasto de cerca de R$ 40 mil. O conhecimento para desenvolver esse trabalho, Balbinot afirma que adquiriu no boca a boca e na persistência, além de um pouco de habilidade. Foi criando uma rede de contatos e aprendendo. “Fui a muitos lugares para me informar com pessoas diferentes. Hoje, tem gente que vem aqui para ouvir o que tenho a ensinar”, completa. “Na aviação experimental, a vontade é movida pelo gosto, não pelo lucro.”
“
Na aviação experimental, a vontade é movida pelo gosto, não pelo lucro” Luiz Alberto Balbinot, piloto e inventor
MANOBRA NA VIDA
Sua família e sua própria aeronave, duas coisas que Balbinot viu crescer com carinho por anos, porém, foram perdidas de uma única vez. A tragédia aconteceu em agosto de 2007. Henrique, o filho mais velho do aviador, na época com 18 anos, morreu ao cair do avião que pilotava – a aeronave construída pelo pai. Segundo Balbinot, o acidente, que também matou o piloto comercial Cláudio Marques, foi causado por uma manobra malsucedida. “Henrique fez o brevê no aeroclube e estava estudando aviação comercial. Ele voava com o meu avião, voava muito bem, mas às vezes tentava acrobacias escondido. Aí deu problema...”, Balbinot relembra, perdendo as palavras. Para fazer acrobacias no ar, é preciso que o avião tenha a aerodinâmica e manobrabilidade necessária, além de preparação do piloto. Assim como jovens motoristas se aventuram com seus veículos nas estradas, pilotos recém “brevetados” tendem a testar o limite das máquinas e, no caso, os seus próprios. A dor de perder o filho no veículo que construiu não foi suficiente para fazer Balbinot desistir. Mesmo enfrentando o preconceito de quem o condenava, suporta, até hoje, o sofrimento sem culpa. Ainda este ano, quer iniciar a construção de uma nova aeronave para, novamente, voar com as próprias asas.
Fatalidade: foi no avião que levou seis anos para ser construído que o filho de Balbinot morreu
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“M
esmo se tratando de um personagem da minha cidade, eu não conhecia a história de Luiz Alberto Balbinot. Localizá-lo, porém, não foi tarefa difícil, dado o diferencial da atividade que exerce e o episódio trágico sobre o filho. Impossível não fazer a analogia do pai e do filho garibaldenses com os mitológicos Dédalo e Ícaro – na história grega, o filho morre ao cair no mar após usar imprudentemente as asas de cera construídas pelo pai. O entrevistado tímido se mostrou mais solto na presença da esposa Vanessa e do parceiro aviador Isaac, que acompanharam a conversa e também deram suas impressões. A tragédia acontecida a Henrique foi relatada em meio aos outros tópicos, mostrando que, mesmo sendo um assunto doloroso, já foi digerido e é tratado com maturidade pelo pai. A aviação parece, realmente, seu refúgio: ao chegarmos para a entrevista, a esposa precisou chamá-lo no aeroclube; no final, despediu-se e pediu licença para trabalhar no seu galpão, enquanto nos retirávamos.”
O céu como diversão
estou brincando “comQuando uma pipa, é como se eu estivesse livre e planando entre as nuvens” Janito Ribeiro,
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soldador e apaixonado por pipas
De geração para geração Janito ensina sua filha de 11 anos o que aprendeu com seu pai: a arte de fazer e soltar pipas Texto de FRANK SCHMITT Fotos de BRUNA VARGAS
L
egado de seu pai. Assim começou a paixão de Janito Ribeiro pelas pipas. Filho de um torneiro mecânico e de uma dona de casa, soldador no polo petroquímico de Canoas e gremista de coração, já foi ajudante de pedreiro, padeiro, funileiro e pintor automotivo. Desde cedo, o pai lhe ensinou os segredos e a paixão por essa brincadeira. Em um bairro pacato da zona sul de Porto Alegre, ainda colorido pelo verde na natureza, Janito encontra um espaço já quase inexistente no restante da cidade, para soltar pandorgas. “Com a chegada do progresso, os espaços abertos estão cada vez menores”, brinca, lembrando que o local onde mora já foi considerado “fim do mundo”. Ao falar de sua paixão, esse porto-alegrense tímido e de poucas palavras demonstra uma alegria sem tamanho, gesticulando muito e contando de quantas maneiras é possível empinar um papagaio. Mesmo tendo uma vida humilde e sofrida,
Janito não deixa de lado seu jeito moleque, e vai mostrando, depois de algum tempo de conversa, que é um grande amante da arte milenar das pipas. A missão agora é passar seus conhecimentos para a filha de 11 anos. Com seu pai, aprendeu a dedicação e a paciência para trabalhar com papel-de-seda, varetas, linhas e cola. Depois de muitas tentativas e erros, ainda criança, levantou a primeira pandorga. As cores não poderiam ser outras: azul e branco, homenageando seu time. “Essa mesma dedicação quero passar para os jovens”, afirma Janito. Por falta de tempo e por questões financeiras, sua oficina de pandorgas ainda não pôde sair do papel, mas isso não diminui o gosto pela brincadeira. “Quando estou brincando com uma pipa, é como se eu estivesse livre e planan-
do entre as nuvens”. Ele diz que não tem um modelo preferido e que, na hora de soltar, o que importa mesmo é a diversão. Faz poucos dias que Janito comprou seu primeiro computador e fez sua primeira viagem pela internet. Agora ele aproveita o tempo livre para pesquisar mais sobre sua brincadeira favorita. “Tu sabias que a pandorga em outros estados é chamada de cafifa, papagaio, quadrado, piposa e arraia?”, conta empolgado, enquanto mostra a busca que fazia sobre o assunto. O empinador de pandorgas mais querido do bairro Abertas dos Morros conta que a pipa foi inventada na China antiga, por volta de 1200 a.C. pelo general Hau-sin. “Ela, era utilizada como dispositivo de sinalização militar. Suas cores e movimentos eram interpretados como mensagens pelos militares que estavam à distância”, revela. No dia 9 de setembro, “Dia do Papagaio”, crianças e adultos, todos do sexo masculino, sobem às colinas para empinar pipa. No Oriente a tradição segue até hoje, porém, com a finalidade de espantar “espíritos malignos”. Na Malásia, a tradição é outra. As pessoas soltam pandorgas a grandes altitudes e cortam a linha em seguida. Acredita-se que, assim, estarão se livrando de algum grave problema, podendo começar uma vida nova. No Iraque, se enxerga um lindo céu estrelado à noite, quando várias pipas com lanternas en-
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“N
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unca fui ‘guri de apartamento’, e brinquedos feitos por nossas próprias mãos sempre foram para mim mais interessantes que bugigangas tecnológicas. Soltar pipa novamente me fez relembrar como foi divertida minha infância. Acabei destruindo a pipa, quebrei a coitada no meio, justo quando estava ficando bom de verdade. Recomendo a quem nunca soltou uma pandorga que o faça. O prazer de brincar na rua, em meio a um lugar verde e tranquilo, não se compara de maneira alguma ao melhor videogame do mercado.
chem a escuridão com estrelas artificiais. “Infelizmente os campeonatos são poucos ou nem existem mais”, comenta Janito. O soldador conta como é a sua rotina diária: o dia começa cedo, levanta às 5h da manhã, de segunda a sábado, prepara seu café, toma banho, prepara sua roupa, acorda sua filha que estuda na Escola Municipal Anísio Teixeira, bem próxima da sua casa. De casa, sai sempre apressado. Até o Centro são 15 quilômetros de ônibus lotado e mais 30 minutos de trem até a Estação Petrobras, em Canoas. Quando chega ao trabalho, leva “dois dedinhos de prosa” com o vigilante do turno da noite e prepara o material para mais uma jornada longa e cansativa de trabalho. Bem-humorado, ele cumprimenta todos pelo caminho até chegar ao seu posto de trabalho, assumindo o controle de maçaricos e soldadores de metal. Entre pedaços de canos, ferramentas e seu radinho de pilha, Janito executa sua função até às 18h, quando inicia a longa jornada de volta para casa. O sonho do guri que aprendeu com o pai a delicada arte da pipa é dar para sua filha uma vida melhor, vê-la na faculdade e, acima de tudo, feliz. Trabalhando muito e economizando, ele pretende ver um dia Jéssica formada. “Ela quer ser bióloga”, conta. Jéssica é enfática: “Tenho o melhor pai mais legal do mundo”. Orgulhosa e ao mesmo tempo muito tímida, ela fala sobre
o amor que sente por ele, sua admiração e do esforço que Janito faz para proporcionar o melhor para ela. De volta em casa, depois de mais uma longa jornada de trabalho, Janito janta com a filha e a esposa, arruma seu unifor-
me e prepara tudo para iniciar mais um dia no Polo Petroquímico. “Deito de noite no travesseiro com a sensação de mais um dever cumprido.” Todos os sábados, o soldador desliga-se dos problemas e sai voando junto com suas pandorgas coloridas.
Brincadeira segura
Confira as dicas de Janito Ribeiro • Procure lugares abertos, como campos ou parques • Não solte pipas em dias nublados • Não solte pipas no alto de lajes ou telhados. Olhando para cima, você poderá cair • Nunca use cerol • Jamais solte a pandorga próxima de linhas de alta tensão • Caso a pipa enrosque em um fio, evite tirá-la. É melhor fazer outra do que levar um choque • Evite construir sua pipa com papel laminado, o risco de choque elétrico é grande
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O céu como sonho
Piloto virtual Apesar do grande desejo, Alemão nunca conseguiu concretizar o sonho de ser piloto Texto de BÁRBARA NATÁLIA Fotos de RENATA STRAPAZZON
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eus dá asas a quem sabe voar”, já dizia o antigo provérbio. No caso de Johnata Fiorenzano, Deus não deu asas, mas deu de sobra a imensa vontade de voar. E muito alto. O protagonista dessa história é o que se pode chamar de um homem com a cabeça nas nuvens, literalmente falando. Sua vida sempre foi ligada à aviação, mas seu desejo de ser piloto nunca se concretizou. Durante os primeiros 10 minutos de entrevista, um forte barulho cortou o céu azul quase escuro pela chegada da noite e interrompeu a conversa. Era um avião privado sobrevoando logo acima do local onde acontecia o bate-papo. Não que o ruído provocado pelos motores da aeronave impossibilitasse o entendimento, já que a 37 mil pés de altura, o barulho, capaz de quebrar a barreira do som, pouco atrapalhava a audição e a fala. Na realidade foi o próprio Johnata que, fascinado com o que via e ouvia, calou-se durante a rápida passagem do avião naquele curto trajeto. Uma situação que certamente causaria estranhamento a qualquer pessoa que não tivesse conhecimento da relação de fascínio entre ele e a aviação, mas que impressiona pela genuidade da atitude e pela história por trás dela.
PAIXÃO DE OCASIÃO
Johnata, 28 anos, é mais conhecido por Alemão. As razões não podiam ser mais óbvias, dado o seu tipo físico germânico, que pouco remete à real descendência italiana presente no sobrenome Fiorenzano. O apelido, mesmo não sendo original e muitas vezes pejorativo, não o incomoda. Alemão teve uma infância simples e um pouco diferente da maioria de seus amigos, mas nem por isso menos feliz.
Criado pelos avós paternos, pois seus pais biológicos não tiveram Diante de todo esse potencial e paixão nítidos, só cabe quescondições de sustentá-lo, ele diz nunca ter se sentido sozinho ou tionar: por que Alemão não se tornou um piloto? Sua resposta é diferente por isso: “Minha família me deu muito carinho e amor, curta e honesta: “Eu achava que era muito novo para ficar estuagradeço a minha rica educação a meus queridos avós, pois desde dando para a AFA e fui curtir minha adolescência. Pena que não os seis meses de idade sempre estive ao lado deles. Eles são meus dá para voltar no tempo”. A Academia de Força Aérea (AFA) é verdadeiros pais”. considerada uma das três melhores escolas de formação de piloVizinhos e colegas de colégio foram amigos e testemunhas de tos militares do mundo, e seu ingresso se dá através de concursua história de amor pela aviação, sentimento nutrido por acaso, so público. Um meio trabalhoso, mas bem menos custoso para desde muito cedo em sua vida. Amigos como Gustavo Provin, 26 pessoas que, como Alemão, não tinham condições financeiras de anos, que não só acompanhou, mas também compartilhou granbancar um curso de piloto civil. de parte dessa viagem. “Conheço o Alemão desde os meus oito anos. Lembro de um dia em que um cara trouxe um aeromodelo e PARQUE DE DIVERSÕES ficou brincando com ele num terreno atrás das nossas casas. JunPlanos mudam, sonhos se adaptam. Essa passou a ser a filosotou muita criança, e o Alemão, logicamente, ficava colado no então fia de Alemão, que teve que lidar com alguns momentos desenpiloto do brinquedo, perguntando o tempo todo: como é que faz? corajadores ao longo desse processo. O fato de não conseguir ser Como que é?. Ele até já sabia o modelo do aviãozinho, um Tucano piloto não mudou seu desejo de trabalhar com aviões, já que, ao (T-27) da Esquadrilha da Fumaça”, enfatiza Gustavo, ao relembrar a completar 18 anos, a apresentação para o serviço militar ainda vontade precoce do amigo em ser piloto. era uma possibilidade de entrar para a Aeronáutica. Pode-se dizer que o cenário para despertar tamanha fascinação Entre tantos jovens que fazem de tudo para escapar da carem crianças como Alemão e Gustavo não poderia ser melhor. Careira militar, Alemão era um dos poucos entusiastas que fugiam noas, onde moram, é conhecida por ser a “Cidade do Avião” devià regra. Infelizmente a regra não fez a exceção, e por não ter o do à importância da Aeronáutica para o desenporte físico requisitado nos testes físicos, foi volvimento municipal. A cidade, localizada na mais uma vez impedido de realizar sua meta Região Metropolitana de Porto Alegre, é sede principal. Acompanhando o sucesso na emda base da Força Aérea Brasileira, a Base Aérea preitada de amigos como Gustavo, que já de Canoas, que, além de servir de aeroporto iniciava carreira como sargento em São Pauonde já desembarcaram presidentes da Repúlo, Alemão mais uma vez decidiu mudar os blica e outras personalidades, anualmente traz planos, sem abandonar o sonho. ao município jovens soldados de todo o país “Em 2004, já com 20 anos, larguei meu dispostos a fazer carreira como militares, muicurrículo na Varig e, em seguida, fui chatos que, como Alemão, sempre sonharam em mado para participar do processo seletivo ficar perto das aeronaves. da Varig Engenharia e Manutenção (VEM). Além da Base, o ponto turístico mais emLembro que quando recebi a ligação dizenJohnata Fiorenzano, blemático no cartão postal canoense é a Praça do que fui aprovado, eu pulava de alegria, mecânico de aviões Santos Dumont, a “Praça do Avião”. Ela fica sipois sabia que não interessava o que faria tuada no centro da cidade, onde, sustentado por um suporte de lá dentro, com certeza estaria sempre ao lado de algum avião”, concreto, um avião de fabricação inglesa F-8 Gloster Meteor desarecorda, com um sorriso no rosto. tivado é permanentemente exibido para quem passa pelo km 265 Alemão iniciou trabalhando com polimento, limpeza, lixada BR-116, que fica colada ao local. mento e pintura das aeronaves da Varig, tendo contato com as mais diversas peças e compartimentos dos aviões. Para ele, era MEMORIZAÇÃO E TREINO como se fosse um verdadeiro parque de diversões, onde podia O bairro em que os amigos Alemão e Gustavo moram é muito mexer e “brincar” com todos os brinquedos. Mas Alemão queria próximo à Base Aérea. Passaram a infância e a adolescência acommais e sabia que podia mais. Por isso decidiu abraçar a possibilipanhando de perto os treinamentos militares feitos com os caças dade de crescimento na empresa e começou a fazer um curso inF-5 semanalmente sobre a região. Situação que provocava interesterno oferecido para mecânicos de aeronaves, tornando-se então se, principalmente no jovem loiro de olhos azuis, tão azuis quanto responsável pela área de motores e bordo de fuga da asa (local a cor do céu que ele tanto adora. onde se encontram as partes móveis situadas na traseira das exO sonho de pilotar aumentou com o passar dos anos, assim tremidades das asas). como o conhecimento sobre o assunto. O Boing 747 da Panam, Como mecânico, casualmente a mesma profissão de seu falecique fazia barulhos e levantava as asas mecanicamente, e os dois do pai, que consertava motores de carros, Alemão encontrou sua modelos F15, brinquedos dados pelos seus pais, já serviam como realização profissional na aviação. Empolgado, ele relata a emoção enfeites nas prateleiras do quarto, junto a fotos e artigos sobre de remover o motor de um Boing 737-300, além de contar momenaviação. Gustavo relembra o esmero de Alemão: “Na casa dele potos comuns no seu dia a dia, como quando passava os intervalos e dia mexer em tudo, inclusive comer o que tivesse pela frente, mas almoços dentro do avião em que estava trabalhando, sentado no nem pensar em tocar nos aviões de estimação”. cockpit, ou dentro do tanque de combustível: “Tudo isso só para Conversando sobre suas relíquias, é quase impossível não se imcurtir o momento, somente eu e o avião”, complementa. pressionar com a facilidade que ele tem em reconhecer os modelos Foi realizando o seu trabalho na Varig que Alemão viveu o dia das aeronaves, o histórico de fabricação e detalhes sobre manobras mais feliz da sua vida: voou pela primeira vez. “No voo teste, esde voos que nem todos os estudantes de uma faculdade de Ciências távamos liberando um avião que tinha sido angarado para fazer Aeronáuticas saberiam responder em uma prova de conhecimentos check-in. Nossa, me lembro que saí correndo, entrei no avião e específicos. Uma facilidade adquirida com boa memorização e treifalei comigo mesmo que de lá ninguém me tirava. Fiquei sentado no quase que diário no simulador de voo amador Flight Simulator, na poltrona que ficava bem atrás da asa, vendo o trabalho de software disponível para download na democrática internet. seus comandos primários e secundários. A sensação era inexpli-
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Nasci para isso, estar sempre ao lado de um avião, seja no ar ou no solo”
cável e hoje tenho certeza de que nasci para isso, para estar sempre ao lado de um avião, seja no ar ou no solo”, conclui emocionado. Foram quatro anos trabalhando como mecânico na Varig. Em 2008, depois de alguns problemas pessoais dentro do trabalho, Alemão decidiu deixar a VEM. Depois disso, ele teve outras experiências como motorista de uma locadora de carros dentro do Aeroporto Salgado Filho. Sua última ocupação até o final de 2011 foi na área de manutenção de uma empresa de locomotivas, trabalho diferente de tudo o que tinha feito até então, mas que, segundo ele, em nada se compara com a manutenção dos “seus aviões”. Seu amigo Gustavo atualmente é 3º Sargento Especialista em Mecânica de Aeronaves, seguindo os mesmos passos de seu próprio pai e, de certa forma, também influenciado pela amizade com Alemão. As metas de Johnata Fiorezano continuam firmes. Ele pretende agora oficializar sua profissão garantindo dois registros essenciais para seu currículo: o Certificado de Conhecimentos Técnicos (CCT) e o Certificado de Habilitação Técnica (CHT), provas teórica e prática da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) para o exercício reconhecido da profissão de mecânico de aviões. Hoje, para Alemão, voltar a viver o sonho é uma realidade muito melhor do que viver sonhando: “Deus pode não ter me dado asas, mas por que eu preciso de asas se o avião pode me levar ao céu?”.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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uando o tema ‘céu’ foi escolhido pela turma, confesso que fiquei intrigada, pensando sobre se realmente poderia encontrar possibilidades interessantes para fazer o assunto render uma reportagem. De qualquer maneira, não foi difícil decidir qual seria minha história e quem seria meu personagem. O fato de ter sido criada num meio em que o céu era como uma ferramenta de trabalho para o meu pai, controlador do voo, facilitou a escolha de traçar o perfil de alguém apaixonado por aviões. Porém, me propus ao desafio de contar a história de uma pessoa que, diferente do meu pai, ainda não havia tido seu ‘final feliz’. A relação de Alemão com os aviões cativa, não só pela superação diante às dificuldades que a vida lhe impôs, mas principalmente pelo amor que ele justifica como razão para nunca desistir daquele que diz ser o seu ‘Sonho de Ícaro’, letra de sua canção preferida e que, não por acaso, abre a minha reportagem. Os registros fotográficos feitos pelos colegas, Renata e João Diego, só confirmam essas minhas impressões.”
Fascinação: o amor pela aviação começou quando Alemão ainda era criança
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SEMIRA MARTINS
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Minha gata não insista Disneylândias não vão te levar pro céu Nem o céu dessas revistas Que ilumina o teu barquinho de papel” Nei Lisboa
O céu como realização
O sonho de voar Para Vinícius, o balonismo é uma mistura de adrenalina e liberdade
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Texto de RAFAEL KEHL Fotos de RAFAEL KEHL e TAMIRES FONSECA
TAMIRES FONSECA
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uando estou voando, volto no tempo. Voando me sinto realizado. Desfruto do sonho do homem de voar.” É assim que Luiz Vinícius Tedesco, 23 anos, resume a paixão pelo balonismo. Natural de Torres, o jovem é piloto de balão, algo até certo ponto comum na cidade conhecida como Capital Brasileira do Balonismo. O envolvimento com o céu demorou a acontecer, embora a paixão pelo balonismo tenha começado muito cedo. Desde criança, Vinícius foi fascinado pelos balões que insistiam em sobrevoar sua casa: “Corria acompanhando o balão até ele pousar”. O contato com esse esporte se deu na escola, através de balões de taquara e arame, além de trabalhos com pipas e desenhos relacionados ao balonismo. “Sempre gostamos de balonismo”, afirma seu pai, Luiz Veríssimo Cardoso, 54 anos. Torres tem como um dos principais atrativos para o turismo o balonismo. O Festival de Balonismo iniciou por acaso. Em 1989, durante os preparativos da II Febanana, festa anteriormente realizada no município, os organizadores resolveram inovar e trazer alguns balões para a divulgação do evento. O interesse do público pelos balões foi tanto que, em outubro daquele ano, surgiu o 1º Festival Sul Brasileiro de Balonismo em Torres. A Febanana acabou extinta, enquanto que o Festival de Balonismo passou a ser realizado anualmente, tornando-se o principal e mais tradicional acontecimento da cidade. A primeira edição foi um verdadeiro sucesso, contou com a participação de 10 enormes e coloridos balões e chamou a atenção principalmente por se tratar de um evento inédito no sul do país. Jornais do Rio Grande do Sul divulgaram e destacaram o acontecimento, possibilitando que pessoas de todo o estado tomassem conhecimento. Como era realizado no mês de outubro, porém, os ventos da primavera atrapalhavam um pouco a competição, impedindo os balões de alçarem voo em muitas provas. Agora, a competição é realizada no outono, e a cada ano aumenta o número de competidores no evento, colorindo ainda mais o céu de Torres e ganhando a empatia do público. A partir do contato na escola e da realização do festival em Torres, Vinícius teve a vontade de realizar algo relacionado com o balonismo. Ele conta que tem medo de viajar de avião e que não pratica outros esportes relacionados ao céu, como saltos de paraquedismo ou asa-delta. “Até gostaria de conhecer esses outros esportes, mas falta tempo.” Assim, há aproximadamente dois anos, o sonho tornou-se realidade. Com a ajuda de amigos e familiares, surgiu uma nova equipe
de balonismo em Torres, a Brasil Sul Balonismo. No entanto, para tornar-se definitivamente piloto de balão, foi necessário que Vinícius tirasse o brevê, licença específica emitida pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), após 16 horas de aulas a um custo em torno de R$ 30.000. Vinícius não sobrevive do balonismo. Ele trabalha em Torres com a família em uma empresa de pisos para calçadas. Porém, é da empresa que vem a maior parte da renda para custear a prática do esporte, servindo de patrocínio para as competições de balonismo que ocorrem em diversas partes do Brasil e da América do Sul. Além disso, a empresa também custeia a manutenção dos balões, que deve ser feita com uma certa frequência. “A cada 50 horas de voo ou seis meses, preciso mandar o equipamento para São Paulo para uma revisão, o que custa entre R$ 3.000 a R$ 5.000. A segurança nesse esporte é fundamental”, afirma Vinícius. Como forma de ajuda para o custeio de equipamentos e manutenção, a equipe realiza voos cativos na cidade de Torres e arredores, o que custa algo em torno de R$ 300 por tripulante para um voo de até uma hora. “Muitas pessoas têm medo de voar de balão. É normal. Como todo esporte radical, há um risco, e o balonismo não foge disso. Porém, de acordo com a Federação Aeronáutica Internacional, o balonismo é o esporte mais seguro dentre os praticados nos céus há mais de vinte anos, em função do balão ser constituído por um material feito com tecnologia espacial aplicada a aeronáutica”, comenta Vinícius.
PROJETOS OUSADOS
A Brasil Sul Balonismo possui hoje apenas um balão, mas como a equipe é composta por cerca de 20 integrantes, os demais componentes auxiliam diversas outras equipes nas competições. Para mudar essa situação, Vinícius tem projetos ousados para o futuro, como a compra de um balão de forma. Os balões de formatos especiais, conhecidos como ”special shapes”, fazem sucesso entre os adultos e encantam as crianças pelas suas formas e cores, normalmente ligadas a um personagem infantil. Outro projeto da equipe para o futuro é participar de festivais fora do país. “É importante trocar experiência, ter esse intercâmbio com os pilotos de outros países. Temos muito a aprender com os balonistas do exterior. No festival deste ano estive junto de um piloto francês, o quarto melhor no último mundial, e aprendi muito”, afirma Vinícius. Entre tantos planos para o futuro, o jovem piloto de balão se diz realizado pelo projeto social que realiza hoje. Em parceria junto à prefeitura de Torres, Vinícius e sua equipe
fazem apresentações com o balão nas escolas municipais e estaduais da cidade, demonstrando o funcionamento do esporte. “É uma alegria só quando as crianças estão perto do nosso balão. Lembro-me de quando eu era criança. É a mesma sensação”, comenta. Além disso, a parceria com a prefeitura do município faz com que Vinícius e sua equipe divulguem o festival da cidade de Torres em diversos outros municípios do Rio Grande do Sul. “Vamos a cidades e proporcionamos às pessoas que não convivem com o balonismo conhecer um pouco mais o esporte que encanta a todos”, resume Vinícius. A alegria das crianças fascina Vinícius, mas participar do Festival Internacional de Torres é o que mais emociona o jovem piloto. “Não tem coisa melhor do que estar ao lado do nosso ídolo”. Vinícius refere-se à alegria de poder voar ao lado de pilotos experientes que já competiam em Torres quando ele ainda era criança. “Hoje tenho a honra de voar ao lado deles, competindo contra e até vencendo eles”, conclui. Vinícius acredita que ele e os demais pilotos da cidade têm uma leve vantagem junto aos demais competidores quando o festival é realizado em Torres. “Estou voando no quintal de casa, conheço o clima, o vento, e minha equipe sabe onde vou pousar. Posso dizer que conheço os atalhos do céu de Torres”, diz. Vinícius terá um forte concorrente em breve. O irmão, Fabrício, 21 anos, natural de Nova Prata e chefe da equipe Brasil Sul Balonismo, pretende em breve tornar-se também piloto. “Comigo foi a mesma coisa. Aqui em Torres respiramos esse esporte, desde muito cedo”, comenta o Vinícius. Com um total de cinco filhos, a família Tedesco pega junto quando o assunto é o balonismo. “Todos participam, cada um sabe o que fazer quando estou pilotando, a correria é divertida”, diz Vinícius. Até mesmo quem não é da família demonstra envolvimento com a causa. “Trabalho na empresa de pisos para calçadas da família Tedesco, mas também sou motorista do carro de apoio e uma espécie de faz tudo na equipe Brasil Sul Balonismo. Pegamos junto”, diz Edmilson Rodrigues da Luz, 58 anos. “É necessário gostar disso. Acordar cedo e realmente ajudar, se não pode ficar em casa”, resume o pai, Luiz. A história do Vinícius e da equipe Brasil Sul Balonismo resume bem a paixão das pessoas e da cidade de Torres por esse esporte no qual o importante não é vencer, mas apreciar as belezas naturais do mundo lá do alto, do céu. “É uma sensação de total liberdade”, resume Vinícius. São pessoas que, como diz o jovem piloto, possuem a oportunidade de desfrutar do antigo sonho do homem de voar.
RAFAEL KEHL
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O balonismo, existente há mais de 20 anos, é o esporte mais seguro dentre os praticados no céu” Luiz Vinícius Tedesco, piloto de balão
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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screver sobre o balonismo apenas comprovou a minha primeira impressão sobre esse esporte. O perfil do jovem Vinícius surgiu por acaso. A equipe Brasil Sul Balonismo e o Festival Internacional de Torres seriam o foco da matéria, pois confesso que fiquei fascinado pela dedicação e envolvimento das pessoas. Mas a humildade e o amor de Vinícius pelo balonismo alteraram o rumo da matéria. Fiquei impressionado com a forma como ele tornou o seu sonho de voar uma realidade. Uma história que confirma o encantamento das crianças pelas formas e cores dos balões, pois foi isso que impulsionou Vinícius ainda quando criança. Essa pauta me proporcionou voar de balão. Uma sensação única, que ainda não consigo descrever aos meus amigos e familiares. Algo surreal para aquele que tem um certo temor das alturas. Uma mistura de liberdade, paz e adrenalina ao mesmo tempo. Contudo, prazer maior foi descobrir e vivenciar a paixão e dedicação do Vinícius e dos moradores de Torres pelo balonismo.”
O céu como conhecimento STÉFANIE TELLES
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Astronomia: Thaisa é uma das pesquisadoras brasileiras mais citadas em publicações científicas internacionais
Coberta de estrelas Mãe, astrônoma, mulher. Thaisa é um típico exemplo da harmonia como caminho para o sucesso
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Texto de JULIANA SPITALIERE Fotos de LUCIANA BOHN e STÉFANIE TELLES
ra março de 1997. Como pós-doutora em Física, Thaisa tinha em suas mãos uma grande oportunidade para sua carreira como astrônoma. Foi convidada a acompanhar um grupo de renomados pesquisadores em uma viagem de estudos para o Observatório Interamericano de Cerro Tololo, no Chile, um dos observatórios astronômicos mais importantes de todo o mundo. Tinha sobre sua cabeça um universo infinito, que ansiava por ser explorado. Tinha sob seus braços seu filho caçula, com três meses de idade, que necessitava ser cuidado. Thaisa não hesitou em momento algum: optou por ser uma mãe-pesquisadora. Uma mãe um tanto diferente das demais, que, no passado, já havia substituído o papel de protetora dos dois filhos maiores e fora em busca do sonho de se tornar uma grande cientista. Agora, já não conseguiria optar por uma coisa ou outra. Levou seu bebê para a expedição na zona montanhosa chilena.
Afastada dos outros pesquisadores, a maioria homens, ficou em um local isolado para que os choros de seu pequeno não incomodasse o sono dos demais. Eram oito horas de observação por noite, interrompidas por meia hora para amamentação, para sua completa satisfação. É em uma tarde de terça-feira, 15 anos depois, que Thaisa Storchi Bergmann, hoje uma das maiores pesquisadoras na área de astronomia no mundo, relembra essa história, olhando para si mesma através do espelho, enquanto se maquia. As matérias de revista emolduradas contrastam com o azul das paredes de seu gabinete no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É ali que passa várias horas de seu dia desvendando a astronomia extragaláctica, mais especificamente a atividade nuclear em galáxias. E é no instituto que, atualmente, pesquisa buracos negros supermassivos em galáxias, leciona em cursos de graduação e pós-graduação, orienta projetos de alunos e chefia um grupo de pesquisa em astrofísica.
EM BUSCA DO NOVO
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Entre todos seus estudos desenvolvidos, Thaisa acredita que a pesquisa realizada por ela há 21 anos foi sua maior conquista acadêmica. Trata-se da descoberta que a tornou a cientista brasileira mais citada em publicações nesta área no exterior. Thaisa foi a primeira cientista a detectar um disco de acreção em torno de um buraco negro no centro de uma galáxia. A descoberta comprovou, por observação, a teoria de que os buracos negros podem sugar qualquer coisa que se aproxime deles. “Sempre estive disposta a deixar uma contribuição inédita no campo da astronomia. Esse era meu maior objetivo, quando o concretizei custei a acreditar”, conta. Entre as maiores publicações da pesquisadora, está também um Atlas Espectral de Galáxias, utilizado por astrônomos de todo o mundo, onde construiu modelos de distribuição de energia vinda de galáxias, diferentes da Via Láctea. “Ainda houve, no entanto, quem garantisse que eu não fosse capaz de ser merecedora dessas conquistas”, fala, ao relembrar os momentos de preconceito que sofreu, principalmente na academia, por cientistas que não apostavam em sua capacidade investigadora pelo simples fato de ser mulher. Em uma das viagens de estudo que realizou para os Estados Unidos , chegou a ser confundida como secretária de um dos astrônomos que a acompanhava. “Não era concebível a ideia de uma pesquisadora mulher, bem apessoada, e bem arrumada. Usar terninho e salto alto era coisa para secretárias. Pesquisadores preferem usar tênis, calça jeans e camiseta”, reflete. Mas esta bela senhora de meia-idade, com nome de menina, que gosta de manter-se maquiada e bem arrumada até para observar o céu, garante nunca ter se abalado com episódios como esse. Pelo contrário, foram um estímulo para sua persistência, pois, além de mulher, Thaisa era casada e mãe de família. Aliás, quando toca nesse aspecto, Thaisa poupa suas armaduras de pesquisadora durona, e se cobre de sensibilidade. Casada desde os 22 anos com o mesmo homem, é mãe de três filhos, que apresenta orgulhosa. E foi dentro do lar que a pesquisadora viveu os maiores impasses de sua carreira. “Foi difícil para minha família compreender minhas diversas horas de estudo por dia, meus momentos dedicados às aulas que devo preparar e minhas viagens à campo”, revela. Para convencer um marido administrador de que as estrelas também carecem de estudos aplicáveis, ela suportou uma quase separação, acompanhada das reclamações dos filhos mais velhos, que viveram arduamente seus anos mais atribulados de pesquisa. A calmaria veio junto aos prêmios que Thaisa começou a receber pelos louros de seu trabalho, e quando os veículos importantes a procuravam insistentemente para coletar algumas palavras suas. “Foi um choque de realidade para eles. Perceberam que meu trabalho e desgaste haviam valido a pena”, avalia.
Mas para quê valeram a pena? É inevitável conhecer a história de vida da pesquisadora e não se questionar onde, afinal, são aplicadas essas longas horas de estudos diários. Para ela, suas pesquisas são direcionadas a melhor compreensão da nossa natureza, apesar de ainda não poder ser totalmente aplicada no cotidiano. “Aí, eu pergunto: qual é a aplicação prática de um trabalho artístico? Acredito que o estudo da astronomia, além de trazer uma satisfação para o intelecto, também contribui para o desenvolvimento de métodos científicos para outras pesquisas. Temos espaço para tudo na área acadêmica, as pesquisas se complementam.” Atualmente, segundo a pesquisadora, a maioria das descobertas no campo da astrofísica convergem na busca por planetas e civilizações em outras estrelas. Thaisa, como a maioria dos astrônomos, vê esta questão com forte ceticismo. “Não podemos sonhar com vida em outros planetas, uma vez que temos em nossas mãos diversas teorias. Se formos medir as distâncias, por cima, a Via Láctea tem cem mil anos-luz de tamanho. Se houver alguma civilização em algum lugar fora de nossa galáxia, ela manterá um diálogo fora da escala de nosso tempo, a não ser que tenha desenvolvido um sistema de comunicação que emita sinais com velocidade maior do que a da luz, o que consideramos bem difícil”, calcula. Para ela, os astrônomos estão bastante cientes dessas dificuldades para comunicações extragalácticas, por isso são tão céticos. Thaisa também leva o ceticismo em sua vida pessoal. Considera o poder que a espiritualidade tem para ajudar o ser humano, mas não acredita em uma religião. Para ela, somos um acidente de percurso, uma junção de moléculas que deram origem à vida, logo seria muita arrogância acharmos que temos um Deus a nossa imagem e semelhança, e que governa todas as coisas do universo. “Porém, até hoje, nem nós cientistas conseguimos explicar como ocorreu este acidente de percurso, logo também seria muita pretensão da nossa parte dizer que temos todas as respostas e que não precisamos de um Deus. Deus, pra mim, é o limite da minha ignorância”, resume.
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onheci Thaisa pelas matérias que li sobre ela em revistas e sites de renome nacional. Ela parecia uma pesquisadora comum, bem arrumada para a fotografia e com discurso maquiado para parecer fantástico. Minhas percepções sobre ela se transformaram ao adentrar seu pequeno gabinete, me deparar com uma mulher naturalmente bela e que me tomou de empréstimo um espelho para retocar o batom. Vi que Thaisa era mais comum do que eu imaginava, mas que eu não estava mais condicionada a vê-la como queriam que eu a visse. Desprendi-me, mais ainda, do repúdio ao ordinário e me deixei levar pelo desafio de contar histórias. De possuir incontáveis informações e de organizá-las em formato de narrativa. Tentei deixar transparecer, por entre as linhas, percepções acerca de uma personagem que não apresentamos para ser amada ou odiada. Objetivei com este texto, que chamo de narrativo-jornalístico, explorar o que anseio ver mais em veículos segmentados: uma tradução literária dos acontecimentos cotidianos. Um contar de modo diferente a história que todo mundo vê.”
STÉFANIE TELLES LUCIANA BOHN
Sempre estive “disposta a deixar
uma contribuição inédita no campo da astronomia. Esse era meu maior objetivo”
Thaisa Storchi Bergman, astrônoma
STÉFANIE TELLES
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O céu como expectativa
Dependendo dele Para que as plantações de milho e soja se desenvolvam, Carlos aguarda a colaboração do céu
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Texto de PRISCILA CARVALHO Fotos de ESTEFÂNIA CAMARGO
le dorme e acorda olhando para o céu. Tenta descobrir se o dia será bom para o trabalho na roça ou se terá que ficar em casa e aguardar por um melhor momento de seguir para a lida no campo. O céu traz o sustento, mas ao mesmo tempo pode tirar, como já aconteceu algumas vezes. Olhando para esse infinito, muitas vezes azul, espera-se de tudo: sol forte, chuva em abundância, geada, neve... Isso para pessoas que apenas admiram o céu, mas, para quem depende dele para viver, a história é diferente. Não é apenas mais um dia de chuva, é mais um dia que não se pode plantar ou colher. Não é mais um dia de sol escaldante, é mais um dia em que o calor pode prejudicar as sementes que nascem na terra seca. Quem sobrevive da agricultura ou da pecuária e mora em estados como o Rio Grande do Sul, com clima subtropical e estações do ano bem definidas, tem que enfrentar os efeitos climáticos que influem diretamente na sua renda familiar. Carlos Rudolfo Cassel, 39 anos, é um desses agricultores que aprendeu a lidar com as mudanças do tempo e a esperar por dias melhores. Ele divide 60 hectares de terra e 150 cabeças de gado de corte, na região da Lomba Grande, em Novo Hamburgo, com o irmão, Jorge, 40 anos. Na mesma
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Perda total: a pior seca que Carlos enfrentou foi em 2005, quando a falta de chuva fez toda a colheita se perder e a ĂĄgua faltou atĂŠ para os animais
propriedade ainda trabalha outro irmão, que assume as tarefas branca, que só aparecem com a seca”, diz Jorge, olhando para a de uma oficina mecânica. Carlos e um funcionário cuidam da plantação de soja que este ano dará apenas para cobrir os custos. plantação de milho no local e de 75 cabeças de gado. A soja e Por causa da seca do fim do ano passado e das pragas, a soja da a outra metade dos animais fica com Jorge. Tudo que os irmãos propriedade deve ficar em torno de 15 sacas por hectare. Cassel plantam é vendido pela região. Em tempos de colheitas O céu pode tanto trazer sol quanto chuva. Pode prejudicar fartas, se tira uma média de 50 sacas de grãos para o comércio. tanto pela estiagem quanto pela enchente. Carlos sabe bem o Quando o clima não ajuda, dá para tirar cerca de 10. O preço da que é sofrer com esses fenômenos. A pior seca que enfrentou foi saca é outro fator instável. Em épocas de vacas magras no planem 2005, quando a falta de chuva fez toda a colheita se perder e tio, os preços sobem, vão a R$ 50 por saco, isso porque poucos a água faltou até para os animais. Perderam tudo. O prejuízo foi conseguem colher bons grãos. tão grande que não conseguiram cobrir nem os custos da plantaCarlos, que mora com a mulher numa ção. Em 2011, no começo do inverno, era a casa não muito distante dali, tem uma prechuva que caía em abundância do céu. Foi ocupação a mais quando se trata da agricultanta água que provocou erosão na terra, tura. Além do tempo, que muda constantejustamente na época do início do plantio do mente e pode atrapalhar, ainda há o que ele milho. A produção ficou prejudicada, e o rejulga ser mais assustador do que as viradas sultado foi a colheita de grãos que só rendeu meteorológicas: a política. A ajuda política, dinheiro para pagar os custos. ao mesmo tempo em que incentiva e orienta Carlos não tira férias. Nem pode. Mesquem vive da roça a tirar o seu sustento da mo que não esteja em época de plantio e melhor forma, também aplica taxas e burocolheita, ainda tem que cuidar dos animais, cratiza o auxílio oferecido aos agricultores. que também lhe trazem alguma renda. Os Carlos Cassel, Carlos está inscrito em programas de finanafazeres da propriedade não param em neagricultor ciamento de bancos filiados, mas a espera nhuma estação do ano. Por esse motivo, por aprovação é difícil. Desde dezembro, ele o céu e as expectativas sobre o tempo lhe aguarda a ajuda do ProAgro, que auxilia os agricultores com uma acompanham todos os dias. “É a primeira coisa que eu olho, seja verba em tempos de dificuldades causadas pelo clima. na colheita ou no plantio”, conta Carlos, “para ver se vai dar um dia bom para colher e um dia bom para plantar”, explica. Ele diz AMOR PELA TERRA também que tem que programar as atividades diárias a partir das A família de Carlos tem tradição na lida do campo. Seu pai e condições apresentadas pelo céu. “Nunca se pode fazer aquilo sua mãe eram agricultores, ele e seu irmão seguiram o exemplo. que se quer sem contar com o tempo. Olho para o céu antes de No tempo em que seus pais comandavam a área que agora está dormir e quando levanto”, diz Carlos, exaltando a esperança que sob os cuidados de Carlos e Jorge, as coisas eram um pouco mais leva consigo cada vez que lança seu olhar para o gigante azul. fáceis. Havia mais terra para plantar. Hoje em dia, existem muitos moradores na região, mas que não vivem da agricultura e não querem arrendar ou vender sua terras. Mesmo assim, o amor pela agricultura passou de pai para filhos, e agora é também do solo que Carlos tira seu sustento. Para auxiliar no cuidado da terra, a propriedade tem colheiIMPRESSÕES DE REPÓRTER tadeiras, tratores, ensiladeiras, entre outras máquinas. Carlos, juntamente com seu funcionário Milton Marques, 47 anos, trata do plantio e colheita do milho – entre um e outro, o tempo é de uando pensei em algo relacionado com o céu, saí da aula falando em chuva, ou melhor, a falta aproximadamente 120 dias – e ainda cuida do gado com a ajuda dela. Ao ficar decidido que teríamos que fazer um perfil, de três cavalos. A época para começar o cultivo de milho é entre fiquei com medo. Achei que não era o melhor estilo agosto e setembro, quando as chuvas se intensificam no estade matéria para a minha pauta e que poderia não dar do por causa do fenômeno conhecido por El Niño. Durante esse tão certo quanto eu imaginava. Procurei um agricultor tempo, Carlos analisa as condições do céu e dos grãos que estão que tivesse sofrido com a estiagem e encontrei Carlos germinando. Se chover demais, a planta fica encharcada e não Cassel, que me recebeu com boa vontade e me contou cresce. Por outro lado, se não chover, os grãos secam e a colheita sobre como é a vida de um agricultor. Eu, que tenho se perde. Quando o milho já está pronto para ser colhido, chegam família no interior e sabia um pouco do assunto, os meses de verão, época em que o sol brilha forte e a seca pode juntei-me a fotógrafa Estefânia, amiga e igualmente atingir e destruir o que já estava pronto. A esperança é de que com família que vive da agricultura, e tentamos tudo venha na hora certa. Chuva em quantidade suficiente para compreender mais sobre o tema conversando com a planta crescer e sol para quando ela estiver quase pronta para nosso entrevistado. O papo rendeu e acabei deixando a colheita. A soja de seu irmão tem tempo parecido, começa seu meu medo de lado quando comecei a escrever. Ao plantio em outubro e termina próximo a janeiro, mas não precisa terminar, sabia que tinha retratado o que Carlos tentou ser exatamente nessa época. me explicar. Acho que deu certo. Senti que expressei Os irmãos Cassel buscam a qualificação de seus grãos. Por o melhor que pude na minha pauta, pelo olhar de isso, o dinheiro que conseguem vendendo suas sacas também Carlos, em relação com o tema escolhido. No fim, eu e serve para participar de feiras agrícolas em outros lugares do esEstefânia sentimos a sensação de dever cumprido, pois tado. As feiras ajudam Carlos e Jorge a ficar por dentro de novos não só nos esforçamos e fizemos a reportagem, mas produtos e máquinas e assim melhorar sua produção. também procuramos entender melhor sobre agricultura A falta de chuva traz também as pragas que se proliferam pee suas dificuldades.” las plantações. “Há tipos, como a broca alfinete e a mosquinha
Nunca se “ pode fazer aquilo que se quer sem contar com o tempo”
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O céu como profissão | 44 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2012
Patrulheiro dos ares Mattei deixou o curso de Agronomia um ano antes de se formar para realizar o sonho de ser piloto Texto de VITOR DE ARRUDA PEREIRA Fotos de ÂNGELO DE ZORZI
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esde pequeno sou apaixonado por aviação”, ressalta Ricardo Mattei Santos, 34 anos, o capitão Mattei do Batalhão de Aviação da Brigada Militar. Essa paixão aumentava cada vez mais ao ouvir as histórias de seu avô, que foi piloto na Segunda Guerra. E não foi nada fácil para chegar ao posto de capitão. O caminho percorrido consumiu nove anos. Antes de ser militar, ele cursava Agronomia na Universidade Federal de Santa Maria e fazia o curso para piloto privado. A ideia era exercer aviação agrícola. “Mas o custo era muito alto e a minha família não tinha
como me auxiliar”, diz. Até que um dia um amigo lhe avisou que tinha aviação na Brigada Militar e que estava aberto um concurso. “Eu estava no oitavo semestre de Agronomia, faltava um ano para me formar”, conta Mattei, que não pensou duas vezes na hora de abandonar o curso.
NO INÍCIO
Logo que passou no concurso, Mattei não começou como piloto. Aliás, estava bem longe disso. Ele iniciou trabalhando na rua, em barreiras, confrontos com os sem terras, ou dentro do Presídio Central. Também foi bombeiro, trabalhando como
salva-vidas. “Eu queria ser piloto civil, mas como sabia que havia possibilidade dentro da instituição, resolvi ingressar na carreira de oficial da Brigada”. Segundo ele, só pode ser quem é oficial. “Tenho seis anos de aviação, mas 80% da minha experiência adquiri trabalhando nas ruas. Principalmente na questão de se antecipar às ocorrências.” Ele ressalta que uma pessoa tem que exercer no mínimo dois anos de trabalho de rua antes de ser piloto. “Ter uma noção, um conhecimento daquilo que está acontecendo lá embaixo. Eu tenho de servir como uma plataforma de informação para quem está na parte terrestre.”
Ele diz que não pode se envolver emocionalmente numa missão, o que exige sangue frio para fazer esse tipo de trabalho. “O piloto jamais pode esquecer o que está fazendo durante uma ocorrência. Isso é óbvio, tem de cuidar das funções da aeronave”, diz Mattei, que lamenta por não ter começado mais cedo nessa profissão. O capitão está contando as horas de voo para virar comandante. São obrigatórias 500, e lhe faltam poucas. Quando completar as horas, além de virar comandante, ele vai virar também piloto de helicóptero. No momento, ele só está habilitado para pilotar sozinho outros tipos de aeronaves, como o Ximango. Mattei não pretende voltar ao patrulhamento na rua. “Fiz um investimento muito alto. E trabalhar aqui é um vício.” De acordo com o capitão, hoje, para formar um piloto completo, investindo nas 500 horas, é necessário gastar meio milhões de reais.
MANUTENÇÃO
A frota da aviação gaúcha é muito antiga, tem helicópteros de 1982. Para cumprir a legislação, é obrigatório fazer a manutenção nas aeronaves a cada 100 ou 200 ho-
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Eu tenho que servir como uma plataforma de informação para quem está na parte terrestre” Ricardo Mattei Santos, capitão da Brigada Militar
ras de voo, dependendo da situação. Mattei conta que os custos são bastante altos. Cada hora de voo sai por R$ 860 (manutenção mais combustível). Ele já trabalhou com três governadores diferentes durante seus seis anos de aviação, Germano Rigotto, Yeda Crusius e, agora, Tarso Genro.
Até hoje ocorreram dois acidentes com as aeronaves da Brigada. Em 2004, um Ximango chocou-se com um pássaro (um dos pilotos faleceu). O outro, em 2009, quando um avião Bonanza teve de pousar de barriga. Porém, nenhum dos acidentes aconteceu durante as missões. E sim em voos de teste. Em relação às experiências positivas que o batalhão já presenciou, fica na memória do capitão os resgates em São Lourenço do Sul. No passado, a cidade sofreu com as enchentes. “São muitas. É difícil de contabilizar. Mas os regastes em São Lourenço serviram como ensinamento para o batalhão”, diz. Mattei, que ainda tem mais 21 anos para exercer na aviação, ressalta que esse serviço não pode parar. “O capitão Mattei é um passageiro, estou aqui só de passagem. Por isso, temos de formar mais pilotos. Os gastos com pilotos e manutenções serão pagos salvando vidas.” Ele conta que nunca imaginou que seria piloto militar e que não serve para ser piloto civil. “Eu me lembro muito bem, na formatura, quando cheguei à frente do palanque do governador e disse: ‘Mesmo com o risco da própria vida.’”
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Cuidados: a legislação exige que sejam feitas manutenções nas aeronaves a cada 100 ou 200 horas de voo, dependendo do caso
APOIO QUE VEM DO CÉU
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
A história do Batalhão de Aviação da Brigada Militar começou em 6 de agosto de 1915, quando o comandante-geral da época, coronel Afonso Emíllio Massot, propôs ao então governador do Estado, Borges de Medeiros, a criação de uma escola de aviação. O projeto, porém, foi recusado pelo governador, que considerou assunto da alçada do Governo Federal e do Ministério da Guerra. Oito anos depois, segundo o sargento Sandro Gonçalves, que é auxiliar da seção de operações, o coronel viu uma nova oportunidade para introduzir a aviação. Ocorreu durante o movimento revolucionário de Assis Brasil. “Depois de tanto esforço, dia 28 de maio de 1923, foi regulamentado o Serviço de Aviação da Brigada Militar”, diz o sargento. Ele conta que os primeiros aviões vieram da Argentina. Eram dois Breguet 14 usados, adquiridos, na época, pelo Governo Estadual, através da Secretaria de Obras Públicas. Receberam a identificação de BM-1 e BM-2. Em 30 de maio de 1923, ocorreram os primeiros voos de experiência sob os céus de Porto Alegre e proximidades.
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No dia 9 de agosto de 1923, o BM-1, durante uma missão de observação, incendiou-se em pleno voo. Os voos passaram a ser realizados só com o BM-2. Já bastante desgastado, começou apresentar panes constantes. Sem avião e sem apoio para adquirir novas aeronaves, Massot teve que decretar a extinção do serviço, no dia 2 de janeiro de 1924. Em 22 de setembro de 1989, o governo do Rio Grande do Sul, atento à necessidade de modernização da sua polícia militar, criou o Grupamento de Policia Militar Aéreo. “Com a missão de apoiar as unidades de policiamento e de bombeiros”, explica o sargento Gonçalves. Assim, constituindo-se “o apoio que vem do céu” aos efetivos da corporação. A novidade na época foi a aquisição de um helicóptero MD500. Em 2000, três motoplanadores Ximango passaram a fazer parte da frota. O capitão Mattei ressalta que o estado foi o pioneiro e serviu de exemplo para outros estados brasileiros ao utilizar o Ximango nas patrulhas aéreas, pois ele facilita operações em voos baixos.
u achava que na aviação da Brigada Militar só tinha o avião Ximango. No dia de fazer as entrevistas e recolher os dados, fiquei impressionado com a estrutura do local. Era totalmente ao contrário do eu imaginava. Descobri que há um batalhão e não um simples avião com o nome de um pássaro para auxiliar nas missões aéreas. Eu e os fotógrafos fomos bem recebidos pelo capitão Matei e sargento Gonçalves. Gostei que eles nos deixaram bem à vontade para fazer perguntas e tirar as fotos. Tive a sorte de acompanhar a chegada do helicóptero do governador Tarso Genro no batalhão e de ver todo o procedimento que a Brigada faz pra transportá-lo. Escolhi o serviço aviação da Brigada Militar para representar o tema “céu” porque queria mostrar e conhecer um assunto que é pouco abordado.”
Investimentos: o sargento Sandro Gonçalves acompanhou parte da história do Grupamento de Polícia Militar Aéreo do estado
O céu como céu | 48 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2012
Questionamento: Rodrigo, ateu, acredita que fazer o bem para ir para o céu não é ser genuinamente bom
O paraíso de quem não crê Crer em um céu como destino após a morte certamente influencia a vida. Então qual a visão de um ateu sobre o sentido da existência? Texto de TARCÍSIO BERTIM Fotos de SEMIRA MARTINS
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m épocas de conhecimento científico quase nulo, as religiões, de forma geral, explicavam os mistérios da natureza, a origem e o destino da vida. Não demorou para muitas crenças se tornarem apenas mito, como na Grécia, com a ascensão dos filósofos. Entretanto, algumas religiões, além de ainda refeltirem sobre dúvidas eternas – de onde viemos e para onde vamos? –, versam sobre comportamento, moral, ética e ensinam que o que fazemos em vida pode ter consequência direta após a nossa morte. Logo, a fé também funciona como um regulador social, seja por medo, esperança de algo melhor no porvir, ou apenas para acalmar o anseio da ideia de finitude. No Brasil, o Censo do ano 2000 indicou que cerca de 90% da população se declara cristã, entre católicos, protestantes e outros. Apenas 7,4% dos brasileiros se dizem sem religião. Será que se Deus não existe, então tudo é permitido? Quais os limites e o compromisso, nesta vida, de alguém que não aguarda nada após a morte, nem recompensa, nem castigo? “Questiono pessoas que dizem ser boas para não serem punidas ou para irem para o céu, pois há alguém obervando. Isso não é ser genuinamente bom. E uma das coisas boas do ateísmo é se livrar desse Big Brother”, diz Rodrigo da Silva Guerra, engenheiro de controle e automação com doutorado em Robótica cursado no Japão. Um rapaz com a idade de Cristo – 33 anos – e feições serenas. Aparentemente incapaz de causar qualquer mal a alguém. Ateu. Ele diz não ter qualquer desprezo pelas crenças. Considera que as religiões foram úteis quando não se tinha respostas; contudo, para ele, o que sabemos hoje nos pos-
sibilita rever, inclusive, conceitos morais impostos por dogmas religiosos.
DE ONDE VIEMOS?
Rodrigo cresceu em um ambiente católico. Nascido em São Leopoldo, a 40 quilômetros de Porto Alegre, estudou em escola franciscana e fez primeira comunhão e crisma, exatamente como a tradição religiosa determina. Sua faculdade e mestrado também foram cursados em instituições católicas. Conta ele que, desde criança, sempre questionou todos os princípios de fé, mas foi o estudo da robótica e da cognição humana que culminaram em seu posicionamento ateísta de forma convicta. “A educação liberta. Faz-nos saber o que e como questionar. Vejo pessoas que dizem crer em algo, mas não sabem se posicionar. Tampouco sabem se acreditam mesmo no que dizem”, ressalta. Rodrigo conta que as primeiras dúvidas surgidas na infância diziam respeito à incoerência dos fatos bíblicos tidos como verdadeiros, como as histórias de Adão e Eva e da Arca de Noé. Para ele, num Universo com bilhões de galáxias iguais a nossa, é antropocêntrico e egoísta demais conceber que alguém tenha criado a humanidade nos últimos 100 mil anos – uma fração de segundos para os bilhões de existência do Universo – e que tudo gire em torno do Homem. A própria História levou Rodrigo a concluir que o conceito de um ser divino e criador é obra das culturas através dos anos. Assim, em sua concepção, estava refutada de vez a possibilidade criacionista da origem do Universo. “Em uma viagem ao Egito, estive em ruínas em que havia, na mesma construção, deuses egípcios, romanos e inscrições católicas. A guia turística
muçulmana, usando um véu e tudo, dizia que ‘eles’ acreditavam nisso e naquilo. Como ela não questiona a própria crença?”, indaga.
O BEM E O MAL
A forma como o cristianismo aborda o sexo também é criticada por Rodrigo. “Sabe-se hoje, por exemplo, que a homossexualidade, que não é aceita no meio católico, é algo natural. Acontece, inclusive, no reino animal.” Ultimamente, o grande embate entre ciência e religião tem sido acerca do aborto. Para Rodrigo, é a atividade cerebral que determina o início da vida. “Não quero que se cometa um assassinato, por isso é preciso saber exatamente quando isso acontece. Agora, quanto a um bebê anencéfalo, por exemplo, é muito cruel obrigar uma mãe a carregar durante nove meses uma criança que vai morrer alguns minutos ou horas depois de nascer”, opina. Estudar a cognição para aplicá-la à robótica fez Rodrigo concluir que a moral vem do mesmo lugar, tanto em ateus quanto em religiosos: da consciência. Ele afirma que, por sermos seres grupais, é natural termos empatia. Portanto, a moralidade não viria de ensinamentos religiosos, mas do senso comum de cada época e contexto social.
PARA ONDE VAMOS?
A crença na vida após a morte serve de alicerce para muitas pessoas, senão a maioria, conseguirem lidar com o fato de que tudo que é vivo morre. O céu do cristianismo é uma representação concreta dessa possibilidade de vida após a morte. Rodrigo não se conforma com o fato de que seja preciso crer em outra vida, ou esperar reencontrar entes queridos que se foram, para se dar valor a esta.
Quanto ao vazio que as pessoas podem sentir por não esperar nada além desta vida, ele ironiza: “Quando se descobre que Papai Noel não existe é supertriste também”, e acrescenta, “Mas como você se sentia antes de nascer? O que te machucava? Você não existia. A morte é assim, não me assusta.”
Como você se “sentia antes de
nascer? O que te machucava? Você não existia. A morte é assim, não me assusta” Rodrigo da Silva Guerra,
engenheiro de controle e automação, ateu
O COLORIDO DA VIDA
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De acordo com Rodrigo, ser ateu não tira sua sensibilidade para enxergar a beleza. Em sua opinião, o céu que a religião propõe impede que as pessoas vejam a poesia da vida em si: “A ideia que se tem é de que a ciência é fria, mas eu entendo que ela traz mais cor para a vida. Quando vemos um implante fazer alguém voltar a ouvir, é como um milagre. É lindo”. Porém, salienta ele, não há verdade apenas nas ciências exatas. História, Sociologia e Antropologia são exemplos de estudos cujos métodos científicos não são exatos, e isso não diminui sua veracidade e importância. “A música também é algo inexplicável. Tem um poder incrível, e não sabemos exatamente o porquê. Mas a música é real e bela”, completa. Rodrigo é um pesquisador que também aprecia a arte – filmes, livros, pinturas. Quando criança, queria criar desenhos animados, e desenhar é um hábito que o acompanha até hoje. Fã de artes visuais, fotografar é seu principal hobbie. “Fotografar me tira de dentro de casa e me faz conhecer lugares, pessoas e outras perspectivas.” Rodrigo da Silva Guerra, ateu, doutor em robótica, tornou-se vegetariano (vegano) mesmo depois de ter experimentado diversos tipos de carnes durante os anos vividos fora do Brasil. “Me casei na igreja católica, porque seria importante para minha esposa e minha família. Mas ainda não me declarava ateu. Tive que prometer ensinar meus filhos sobre Deus e Cristo. E vou cumprir minha promessa. Mas vou ensinar também sobre Zeus, Hórus e outras crenças. Assim como não vou impor o vegetarianismo. Quero que eles decidam no que acreditar. “
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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odo e qualquer assunto sobre religiões me interessa muito. Quando o tema céu foi escolhido para esta edição da Primeira Impressão, vislumbrei a possibilidade de explorar esse assunto que tanto me instiga. Entretanto, o ponto de vista de um céu metafísico a partir de várias religiões seria uma pauta extremamente batida para se construir. Decidi inverter os valores e procurar saber qual a visão desse mesmo céu espiritual para alguém declaradamente ateu. Uma matéria ao mesmo tempo instigante e extremamente difícil para mim. Instigante, pois entrevistar e buscar informações para fazer o perfil de um ateu, certamente, me acrescentaria um conhecimento desejável. Mas a tarefa árdua, em particular, seria manter distância de minhas próprias crenças, pois sabemos o quão passionais esses temas nos tornam. No final, as entrevistas foram ótimas. O perfilado da matéria me mostrou que temos mais em comum do que diferenças. Concluo que somos todos humanos em uma busca. E jornalisticamente, creio que cumpri com o propósito inicial de imparcialidade, deixando a opinião para os entrevistados.”
Que céu é este? No cristianismo, o Céu é a habitação de Deus. O Deus consciente e criador, que busca relacionar-se com sua criação. O desejo de Deus é que o homem esteja apto para entrar no Céu e vê-lo face a face. Entretanto, é a própria condição humana que impede essa reaproximação. Cristãos crêem que Jesus Cristo ascendeu aos céus em um corpo ressurreto. Portanto, o Céu seria um lugar físico. Apenas um ser pleno poderia adentrar neste lugar. “É impossível para alguém como nós, como somos e estamos, entrar nesse lugar. Simplesmente não conseguiríamos suportar a presença de Deus. Por isso cremos na restauração, quando teremos um corpo glorificado, como o de Cristo, e pronto para entrar no lugar onde Deus está”, diz Felipe Pinheiro, 24 anos, teólogo protestante.
OS CAMINHOS PARA O CÉU
“O Céu não é um lugar que a gente mereça. Nada que eu faça me leva ao Céu. E nada que eu deixe de fazer vai me impedir de ir para lá. Entraremos nele pela graça de Deus, que é para todos”, afirma Felipe. Assim, de acordo com o teólogo, o plano de Deus se concretiza: para que ninguém se vanglorie da própria salvação, nenhum sacrifício pessoal é válido. Na
verdade, nem mesmo necessário, o que impede alguém de se tornar, sozinho, digno de entrar na morada do Senhor. De acordo com Felipe, a única condição para que alguém esteja pronto para a vida eterna é a fé. Fé em Jesus. Jesus Cristo seria o próprio Deus, que se fez homem e habitou entre os homens, ou seja, ele mesmo pagou pelos pecados que separavam os homens de Deus. Reconhecer a obra de Deus, negando o orgulho próprio e aceitando o fato de que apenas ele pode transformar o ser, é o caminho para entrar no Paraíso. “Quem não acredita nisso terá, de qualquer forma, um julgamento justo, pois Deus é amor e justiça. Nosso senso de justiça é muito limitado. Posso pensar que vou para o Céu, pois creio em tudo isso. Mas, quem sabe eu não vá?”, finaliza Felipe.
Só sei que nada sei Crer ou não na existência do Céu e de um Deus criador não são as únicas opções possíveis para as pessoas. No meio do caminho há os que têm certeza apenas de não ter certeza alguma. São os chamados agnósticos. Alguns pendem para o lado dos ateus – agnósticos ateístas – e outros, para os crentes – agnósticos teístas. Mas há os que não se posicionam de lado algum e não fazem disso uma busca incessante. “Não sei se existe ou não e me conformo com essa situação de não saber”, diz Rômulo Garcia, 25 anos. Segundo ele, os argumentos ateus e religiosos nunca o fizeram ter certeza de qual posicionamento seguir. Os ateus não o convencem da não existência do divino; no entanto, para crer, ele afirma que não espera necessariamente provas palpáveis. “Eu precisaria apenas sentir algo diferente. Cresci em família católica, mas ia à igreja apenas para fingir que acreditava naquilo, porque eu não sentia nada.”
Ateus precisam ter tanta fé quanto os religiosos para crer no próprio ponto de vista, segundo Rômulo, pois a ciência não dá provas concisas para não acreditar. Além disso, ele afirma que atualmente o status intelectual do ateísmo leva muitas pessoas a se declararem assim. “Está meio na moda ser ateu. Porque parece ser mais inteligente”, ironiza. Se de um lado Rômulo metralha o ateísmo, do outro não faltam tiros para o cristianismo. Para ele, as religiões oferecem uma vida após a morte para quem a compra, como um produto. “Se soubéssemos de onde viemos e para onde vamos, tudo na vida seria tão certo. Por isso sou agnóstico.” O sentido da existência, para Rômulo, não está em crer ou não em outra vida, mas em viver esta com entusiasmo. “Se pensarmos em tratar o próximo como queremos ser tratados, tudo muda. Por isso, sou convicto na minha dúvida.”
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O céu como escola
STÉFANIE TELLES
Um pedacinho do céu Escola infantil em Sapucaia carrega em seu nome a razão de sua existência
Texto de JAIRTON CAMISOLÃO Fotos de STÉFANIE TELLES E TAMIRES FONSECA
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corrente no pescoço demonstra a sua fé, e fica evidenciada sua devoção a Nossa Senhora da Conceição. Cabelos bem penteados, unhas pintadas, bem vestida, e uma cor de batom que realça mais ainda a sua bela aparência. Esse é o visual do dia a dia da professora e proprietária da Escola de Educação Infantil Pedacinho do Céu, Marisa Kutter, 54 anos. Na recepção, o quadro na parede já mostra os princípios com que é regida a instituição. Sua missão é disponibilizar projetos de múltiplas aprendizagens de forma lúdica através dos profissionais que trabalham os valores das crianças, assim oportunizando um desenvolvimento amparado nos princípios da ética. Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Borja (Fafisb), sua terra natal, Marisa chegou a Sapucaia do Sul, onde fica a escola, em 1982. Professora aposentada da rede pública estadual, casada há 28 anos com o arquiteto Adolfo Kulmnn, 56 anos, é mãe dos estudantes Mariana, 16 anos e Rodrigo, 18 anos. Sapucaia do Sul fica a 19 quilômetros de Porto Alegre, pertence à Região Metropolitana, conta com uma extensão territorial de 58,644 quilômetros quadrados e uma população estimada em um pouco mais de 130 mil habitantes. Conforme Marisa, a escola localizada no bairro Camboim foi adquirida por ela há 10 anos quando a instituição tinha oito anos de existência. Não se sabe de fato quem batizou a escola de Pedacinho do Céu. A principio, chegou a ser cogitada a troca de nome, mas, segundo ela, houve uma pequena mobilização da comunidade do bairro pedindo para que isso não acontecesse, e o nome original acabou sendo mantido. “Já teve pais que só deixavam as crianças aqui na escola pelo fato de o nome ser Pedacinho do Céu, pois eles entendiam que trataríamos os seus filhos como se todos fossem anjinhos”, conta a professora. Conforme a pedagoga, que também é secretária adjunta de Educação de Sapucaia do Sul, Pedacinho do Céu refere-se à localização geográfica da escola, pois ela fica em uma parte alta da cidade. Segundo ela, o nome também remete a um lugar que só existe no imaginário. Seria acolhedor e amoroso, com uma característica forte de aprendizagem. Com capacidade para 100 crianças, mas atualmente atendendo 90, a Pedacinho do Céu divide os seus hospedezinhos por faixa etária. Começa no berçário, que vai de zero a 2,5 meses, passa pelo maternal, que é de 2,6 meses a três anos, e termina na pré-escola, entre quatro e cinco anos.
Marcela Garcia Pacheco, quatro anos, já está na pré-escola. Segundo sua mãe, a soldado da Brigada Militar (BM) Ana Lucia Pacheco, 41 anos, sua filha tinha gagueira infantil (problema de articulação na fala). Uma fonoaudióloga indicou que Marcela ficasse em uma escola que lhe oferecesse toda a estrutura para superar esse problema. Hoje Ana Lucia recorda que a menina começou a falar sem a pausa na voz em menos de duas semanas graças a estrutura da Pedacinho do Céu. Marisa, que já foi coordenadora de Educação de Jovens e Adultos (EJA), apresenta a Pedacinho do Céu com o sorriso estampado no rosto e muita satisfação. Mostra as salas de aula e de atividades múltiplas, apresenta os lugares onde são ensinados o balé, a capoeira e a música. Nem os banheiros e a cozinha escapam das apresentações. A escola fica em uma casa de dois andares e foi reprojetada pelo arquiteto Adolfo Kulmnn, marido de Marisa. Paredes decoradas e desenhadas, variação nas cores da pintura e brinquedos espalhados pelo chão caracterizam a escola. Em cada ambiente da casa, as cenas protagonizadas pelas crianças são diferentes. No maternal, são bebês chorando e muitas vezes trocando a
Dedicação: Marisa é pedagoga e secretária adjunta de Educação de Sapucaia do Sul
fralda ao mesmo tempo. Dependendo do lugar, algumas crianças brincam, enquanto outras dormem. Pedagogos, orientadores, nutricionistas, psicopedagogos, psicólogos e estudantes fazem parte da equipe de trabalho. Todos nesse lugar são movidos pelo entusiasmo de cuidar e tratar bem as crianças. Os princípios da instituição parecem estar no DNA de sua diretora e de todos os funcionários. A afinidade de Marisa é tão grande com a escola que sua história de vida se confunde com a do Pedacinho do Céu. A pedagoga, que chega a encher os olhos de lágrimas quando o assunto é criança, tem boa parte da sua vida dedicada a área infantil. “Sou uma pessoa muito feliz e por isso me sinto totalmente realizada. Lembro que uma vez chegou aqui na escola uma menina que era portadora de necessidades especiais, seus pais estavam encontrando dificuldades para deixá-la em outras instituições, e nós prontamente a recebemos. Isso dá uma sensação de dever cumprido”, afirma. Marisa recorda sempre com muito orgulho que é uma pessoa vinda do interior e que foi muito bem recebida pelos sapucaienses. Ela define o céu como uma dimensão, ou seja, um
TAMIRES FONSECA
lugar de muita paz e felicidade. Em cada final de expediente, a professora que faz da escola a sua segunda casa, fica posicionada bem próximo à porta de saída da instituição. Abraços e beijos nas criaças e mães já fazem parte da sua rotina aos finais de tarde. O aceno com a mão direita da pedagoga, significa um até amanhã para os anjinhos desse Pedacinho do Céu de Sapucaia do Sul.
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Já teve pais que só deixavam as crianças aqui na escola pelo fato de o nome ser Pedacinho do Céu, pois eles entendiam que trataríamos os seus filhos como se todos fossem anjinhos” Marisa Kutter,
educadora e proprietária da Pedacinho do Céu
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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uando foi aprovado o tema para a revista Primeira Impressão deste semestre, confesso que não havia gostado muito. Achei que a minha pauta não renderia uma boa matéria. Passou alguns dias e liguei pela primeira vez para minha fonte da Pedacinho do céu, instituição que até então eu chamava de creche. Nesse primeiro contato, achei que a reportagem não renderia mais que 200 caracteres. Chegou o momento da entrevista com a proprietária da Pedacinho do Céu, a pedagoga Marisa Kutter, que me recebeu muito bem na sua instituição. Logo em seguida, ela tratou de diferenciar creche de escola. Destaco a qualidade e a riqueza das informações que ela me passou e também o tratamento que Marisa me deu ao longo do tempo em que estive realizando a entrevista com ela. Olhando toda estrutura da escola e conhecendo a história que a fonte tinha para me contar, mudei meu pensamento e vi que estava diante de uma grande pauta. Só dependia de mim explorar para que ela me contasse tudo com a maior clareza possível, e foi que acabou acontecedo.”
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O céu como lembrança
ARTE SO BR E FO
TO DE JU LIA NO
AM AR AL
Uma nova história Após perder a filha Thais no acidente da TAM, os pais Dario e Ana decidiram ter um casal de gêmeos e começar uma nova etapa da vida Texto de PRISCILA GOMES Fotos de JULIANO AMARAL E AGÊNCIA LUZ/ABR/AGÊNCIA BRASIL
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Recomeço: Anna Beatriz e Tomas deram um novo sentido à vida do casal
rimeiro, veio o clarão e o barulho de um choque. Em seguida, o fogo quase tomou conta de toda a cena, exceto pela cauda do avião que ficou à vista, fazendo com que a palavra “TAM” fosse identificada. Em seguida, às 18h50min do dia 17 de julho de 2007, mais 199 estrelas passaram a brilhar no céu. Os momentos de sofrimento causados pelo maior acidente da aviação brasileira, com o Airbus A320 da TAM, foram transformados em superação por muitas pessoas próximas às vítimas. O casal Dario e Ana Sílvia Scot, que perdeu a filha Thais Scot, de 14 anos, é um exemplo de família que, aos poucos, reconstruiu a vida. Pouco mais de dois anos após a tragédia, eles deram um passo importante: decidiram ter outros filhos, já que a jovem passageira do voo JJ 3054 era a única filha do casal. “Percebemos que chega certo tempo em que acabamos vivendo em função das crianças e, por isso, pensamos que poderíamos renascer tendo outro bebê”, conta Ana. A vontade que Thais tinha de ter irmãos também foi decisiva para a escolha dos pais. “Ela sempre se preocupava com o fato de não poder ter sobrinhos”, lembra a mãe, sorrindo. Para surpresa do casal, o presente para a nova etapa veio em dobro. No dia 18 de agosto de 2010, nasceram os gêmeos Anna Beatriz e Tomas Aramis. Apesar dos riscos da idade, pois Ana tinha 51 anos, a gravidez ocorreu normalmente. “Deu tudo certo. Penso que foi
FOTOS AGÊNCIA LUZ/ABR/AGÊNCIA BRASIL
um presente do céu mesmo.” As lembranças da irmã mais velha fazem parte do dia a dia dos pequenos. Nos corredores da casa da família Scot, em São Leopoldo, há quadros com os delicados traços das pinturas de Thais, que era apaixonada pela arte, área em que pretendia seguir carreira, pois queria cursar a faculdade de Design de Moda. “Na medida do possível, vamos contando sobre a Thais para os bebês. Eles já sabem que as pinturas foi ela quem fez”, destaca a mãe. Uma das atividades favoritas de Tomas é pegar um banco e sentar em frente a um porta-retrato digital, que fica na sala de estar – local onde era o antigo quarto de Thais – para observar diversas fotos que passam em sequência. No pequeno quadro, tem retratos dos baixinhos, do casal Dario e Ana e de toda a família reunida. Há, ainda, imagens que mostram momentos inesquecíveis da filha mais velha. Os cabelos escuros e lisos, os olhos expressivos e o sorriso meigo de Thais ficam eternizados. Hoje, as artes e as fotos são os únicos
objetos da casa que remetem ao passado. Um das primeiras decisões após a tragédia foi fazer uma modificação na residência para não mudar para outro endereço. As roupas e muitos pertences da adolescente foram doados para entidades carentes. “Ela era uma pessoa muito sensível e preocupada em ajudar o próximo, por isso achamos bacana fazer doações”, diz Dario.
A NOVA ETAPA
Cuidar dos pequenos Anna e Tomas não é uma tarefa tão fácil. São dois banhos, duas fraldas ao mesmo tempo, duas papinhas para preparar e duas mudas de roupas para pegar ao mesmo tempo. É tudo em dobro. Hoje, a rotina de Dario, que tem 49 anos e trabalha na unidade de ensino à distância da Unisinos, e Ana, 53, que faz parte do PPG de História da universidade, é um desafio. Enquanto os pais estão no trabalho, os gêmeos ficam em uma escola de educação infantil, dentro da própria Unisinos. A correria e os obstáculos, que são enfrentados todos os dias, valem a pena
A tragédia Os dois últimos anos de vida da Thais foram aproveitados com intensidade. Essa época causa nostalgia em Ana e Dario. Após já terem morado em Portugual e em São Paulo, o casal e a filha se mudaram para Porto Alegre com o objetivo de ficarem mais próximo uns dos outros, pois o dia a dia na cidade paulista era corrido. No Rio Grande do Sul, o tempo para ficar em casa se tornou maior. Em julho de 2007, Thais resolveu convidar a amiga Rebeca para passar as férias escolares na casa de seus avós, em São Paulo. Foi então que as duas embarcaram no voo JJ3054 da TAM sem saber que fariam parte da maior tragédia aérea do país. O Airbus que saiu da capital gaúcha não conseguiu parar na pista do Aeroporto de Congonhas e se chocou contra um depósito de cargas da própria empresa, às 18h50min do dia 7 de julho. Ao todo, 187 passageiros e 12 pessoas que estavam no solo morreram. Hoje, no local da tragédia há um muro azul com o desenho de 199 estrelas e os nomes das vítimas gravados em cima delas.
A esperança formou a Afavitam
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Muitas pessoas ficaram sem rumo após a fatalidade, que teve um conjunto de erros e coincidiu com o caos aéreo que se encontrava em um período grave no Brasil em 2007. Com o intuito de encontrar forças com a união e, ainda, evitar que mais pessoas percam entes queridos em tragédias de avião, os familiares formaram a Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Acidente da TAM (Afavitam), da qual Dario se tornou presidente. Cinco anos depois da tragédia, os integrantes ainda se reúnem. Entre as missões da entidade, está lutar pela defesa de todos que sofreram com a morte de pessoas próximas; representar e auxiliar os associados a obter informações pertinentes ao evento e sensibilizar a população e autoridades para que o Brasil tenha mais segurança, transparência e responsabilidade no setor aéreo, contribuindo para evitar outros acidentes.
o que será dos próximos “ Nãodiassabemos e nem procuramos planejá-los. Estamos vivendo o momento” Dario Scot,
pai de vítima do acidente da TAM
e são gratificantes. Com travessuras e sorrisos, os pequenos enchem a casa, em São Leopoldo, de alegria. “Eles deram sentido ao nosso dia a dia e nos possibilitaram a chance de perspectivas para o futuro”, afirma Dario. Além de conseguir encontrar meios para continuar dando sentido às suas vidas, a família Scot também transformou a dor da perda em grande aprendizado. “Uma das coisas que hoje podemos afirmar com convicção é que a vida passa rápido. Muitas pessoas não têm noção disso. Temos que aproveitar o máximo que pudermos”, ressalta Dario. Ana destaca que perder pessoas queridas é complicado, mas existe esperan-
ça de seguir em frente. “No nosso caso, perdemos nossa filha, o que não é o ciclo natural. Podemos falar que superar essa situação é muito difícil mesmo. Porém, não impossível”, diz. De acordo com ele, ainda não há projetos para longo prazo. “Não sabemos o que será dos próximos dias e nem procuramos planejá-los. Estamos vivendo o momento.” Para eles, os 14 anos vividos com Thais foram maravilhosos e inesquecíveis. Mas o casal sabe que, quando eles sentirem saudades, podem recorrer à ligação que tem com o céu: uma estrela, a filha mais velha.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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ara mim, o mais fascinante do jornalismo é poder contar histórias. O repórter pode conversar e, muitas vezes, arrancar confissões de pessoas que nunca viu na vida sem ser chamado de louco. O interessante de entrevistar diversas pessoas é que sempre alguma delas tem o que ensinar, seja algo pequeno ou grandioso. No casal Dario e Ana Scot eu vi um exemplo de força e coragem. Apesar de dividirmos dores parecidas – porque eu também perdi um familiar no acidente da TAM –, eu pude aprender que, mesmo que as pessoas não queiram, a vida segue e é preciso aproveitá-la. Vi também que as decisões são importantes para que os pés se movam e a caminhada continue. Os gêmeos fazem parte de uma nova etapa, que já está sendo aproveitada com risadas e diversão. É claro que o passado não será esquecido, mas percebi que a perda de Thais não será mais lembrada só com tristeza e sim como uma celebração da vida, pois esses pais apaixonados são gratos pelos anos que passaram com Thais. Foi uma experiência única fazer essa reportagem. Se permitir aprender e ver o mundo de forma diferente e um dos fascínios da profissão.”
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STÉFANIE TELLES
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A minha dor é enorme Mas eu sei que não dorme quem vela por nós Há um Deus, sim! Há um Deus! E esse Deus lá do céu há de ouvir minha voz” Lupícínio Rodrigues
O céu como brincadeira
A magia está no ar Aos 70 anos, Giba tenta passar para seus alunos a paixão pelo aeromodelismo
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Texto de DIEGO JABUINSKI Fotos de FRANCIS TARGANSKI
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s cabelos brancos sob o boné confessam os 70 anos de experiência do desportista natural da cidade serrana de Nova Bassano, Gilberto Roque Moschini, conhecido pelos amigos por Giba. O esporte por ele praticado está em constante aumento do número de seguidores no Brasil. Trata-se do aeromodelismo, modalidade na qual o praticante controla o voo de uma aeronave, em escala reduzida, geralmente, via radiocontrolador. Instrutor de voo há cinco anos, ele é um dos idealizadores do Grupo Viamão de Rádio Controle (GVRC), clube que foi fundado em 1989 na cidade vizinha a Porto Alegre e que atualmente conta com cerca de 100 sócios além de grande estrutura em um espaço de 63 hectares. A pista em asfalto é um das maiores do estado. Amantes do esporte reúnem-se no local sempre aos finais de semana. Giba tem história no aeromodelismo. Na modalidade acrobacia, foi campeão gaúcho. Em campeonato brasileiro realizado no próprio clube, conquistou o 4° lugar entre um total de 12 competidores de “altíssimo nível”, como conta. A paixão pelo esporte começou há muito tempo, como conta o senhor de descendência italiana e alemã: “Meu avô tinha uma ferraria onde eu, desde muito pequeno, brincava. Gostava dessa coisa de mecânica. Eu próprio construía meus brinquedos, eram umas porcarias de feios, mas eu tinha depositado amor ali, naquela construção”. Normalmente as pessoas vão ao clube como visitantes, mas logo não resistem e pedem pra fazer uma aula, e aí, como Giba diz, “é cachaça, é algo viciante”.
APRENDIZADO COM CAMPEÃO
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As aulas são tratadas por Giba com seriedade e profissionalismo, contrastando com a fala mansa do senhor já aposentado. Acontecendo no clube sempre aos fins de semana, cada uma dura em torno de 15 minutos, tempo que é limitado pela pequena capacidade de armazenamento de combustível do aeromodelo. Giba dedica seu tempo para transmitir um pouco de conhecimento a pessoas que desejam aprender a pilotar um aeromodelo. Segundo ele, o tempo de aprendizado varia de pessoa para pessoa, sendo necessárias de 15 a 20 aulas em média “para o cara ficar bom”, sendo que podem ser feitas até três aulas no mesmo dia. A primeira aula é sempre especial. O aluno recebe um rádio controlador que é ligado por um cabo ao outro rádio, do instrutor. Logo recebe uma explanação sobre os comandos disponíveis no seu equipamento e algumas instruções gerais como, por exemplo, jamais voar sobre as dez bancadas ao lado da pista que servem para reparos de mecânica, reabastecimento e recarga elétrica nos aviões, ou áreas onde circulam pessoas, a menos que seja em uma altura bastante razoável. Em pouco tempo, Giba dá partida no motor do avião de aulas e o conduz já no chão, até a pista. A decolagem é feita por ele. Ao lado, o aluno aguarda ansioso com seu controle esperando pelo momento de assumir o voo. Quando é atingida altura segura, Giba aciona o botão que transfere o comando para o aluno e, com sorriso desafiador, diz: “Tá contigo”! O começo serve para a familiarização com o equipamento. Voando em um circuito imaginário oval, não há espaço para grandes manobras. Erros são normais, já que a adrenalina do momento é grande. No entanto, o mestre, percebendo que o aluno fez movimento estranho, com a calma que lhe é peculiar, dá o tempo necessário para que o mesmo conserte. “É importante que ele próprio corrija, pois assim vai ver onde está errando. Claro, quando eu percebo que não há reação, aí eu assumo o comando para não ocorrer perda do equipamento”, conta. Após a conclusão das aulas, Giba preenche um formulário a ser en-
tregue na secretaria do clube, dando autonomia ao aluno para pilotar sozinho. A partir de então, aquele que foi seu aluno passa a ser mais um a tomar o céu do GVRC, aos finais de semana, com seu aeromodelo.
DOCES QUE CAEM DO CÉU
Ao longo dos mais de vinte anos no clube, Giba já construiu inúmeros aeromodelos. Um com significado especial. Criado como uma espécie de reprodução daqueles usados em combates, dos quais paraquedistas são lançados, ele desenvolveu um avião cargueiro, o seu xodó. Uma criação que, nasceu com um propósito um pouco mais doce do que aqueles originais de guerra e com a capacidade de levar a magia ao céu. Era um modelo construído especialmente para festas. Com capacidade de carregamento de carga superior a 2 kg, inicialmente o cargueiro foi utilizado em eventos na base aérea de Canoas, sempre nos dias 12 de outubro, o Dia da Criança. Giba iniciava o voo sempre com o olhar curioso das crianças. Após algumas piruetas, loopings e outras manobras, era acionado um comando para abrir o compartimento inferior, lançando alguns doces aos pequenos que, olhando para o céu, esperavam ansiosamente. Era sempre uma grande festa. O invento, que começou como um mimo às crianças, acabou tornando-se também alegria para os adultos. Claro, porque mudou também o carregamento. Agora, ao invés de doces, eram colocadas duas latas de cerveja amarradas a mini-paraquedas que, após algumas manobras, eram soltas do aeromodelo. Lá embaixo, feito crianças à espera das balas, os grandinhos, inclusive alguns já com o cabelo branco, aglomeravam-se na disputa pelo espaço e pelo prêmio que vinha do céu. Os óculos de grau, usados por Giba há alguns anos, minimizam a diminuição gradual da capacidade de visão que a idade lhe trouxe. Mesmo com auxílio das lentes, Giba, em uma festa recente, perdeu seu cargueiro em acidente por conta desta dificuldade aliada à exposição direta ao sol. A queda praticamente inutilizou a invenção. Apesar do problema, ele tem disposição e promete reconstruí-lo para continuar fazendo a alegria da criançada, lançando doces do céu, fazendo acrobacias, dando espetáculo digno de um campeão.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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artimos em um sábado pela manhã em direção a cidade de Viamão, a repórter fotográfica Semira Martins e eu. Tínhamos a missão de produzir uma matéria sobre um esporte pouco usual, o aeromodelismo. Foi um prazer realizá-la. Percorrer pouco mais de 40 km, em um caminho que incluía a esburacada RS-118 e outra parte ainda pior, já na zona rural da cidade vizinha de Porto Alegre, tinha que valer a pena. E valeu! Quando ultrapassamos a portaria do clube, ainda distante 500 metros da pista de vôo, já era possível ouvir o ruído dos motores. Imediatamente o olhar correu ao céu e lá estavam, dando show, os aviõezinhos. Na chegada, foi nos apresentado o clube, e podemos realizar o trabalho em meio ao receptivo ambiente. A missão estava quase completa. Faltava o meu vôo. Não poderia perder a oportunidade. As mãos que tinham o comando suavam. Da boca não saía uma palavra. Os olhos miravam apenas o avião a muitos metros do chão. O coração estava a mil. A adrenalina de pilotar um aeromodelo é algo viciante. Logo volto lá!
VOCÊ SABIA? O aeromodelismo é o conjunto da prática de atividades de construção e voo de modelos, em escala reduzida, de aeronaves. Existem diversas categorias de vôo além da modalidade por radiocontrole utilizada atualmente no clube GVRC, em Viamão. Nos primeiros anos do clube, no final da década de 1980, a prática do esporte acontecia no modo VCC- voo circular controlado, no qual o aeromodelo fica ligado ao aeromodelista por meio de cabos, que podem variar de 15 a 18 metros de comprimento. Atualmente a opção mais utilizada é o Radiocontrolado, com o qual a sensação de liberdade proporcionada é maior em relação às demais. O aeromodelo é controlado por meio de um transmissor de radiofrequências, das quais podem ser FM, AM e PCM. Com menos adeptos, existe ainda a modalidade Voo livre, na qual o aeromodelo – podendo ser com motor, com elástico ou sem propulsão própria – não sofre mais nenhuma interferência por parte do aeromodelista após ser lançado ao céu. No Brasil, o órgão máximo que regula a prática do esporte é a Confederação Brasileira de Aeromodelismo (Cobra). A prática do esporte não é algo barato. Os preços de um modelo variam de R$400, aqueles mais simples, até os mais sofisticados, que ultrapassam R$ 10 mil.
aeromodelismo “Oé uma cachaça, é algo viciante” Gilberto Moschini, instrutor de voo para aeromodelos
O céu como contato
Observando os mistérios do espaço Rafael é fascinado pela ufologia e por atividades aeroespaciais não identificadas
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Texto de GUILHERME BARCELOS Fotos de ANDRÉ SEEWALD, GILDERM E ALEXANDER RIST (STOCK.XCHNG)
GILDERM (STOCK.XCHNG)
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m garoto de 11 anos caminha pela estreita viela até uma venda com a missão de buscar leite. Alguns dos seus novos amigos jogam bola no campinho próximo. Andar sozinho pelas ruas do bairro, aos poucos, foi se tornando natural, embora o choque de se mudar para São Paulo tenha causado certo espanto no começo. Sentia saudade de General Câmara, dos hábitos e dos costumes de uma outra infância no interior do Rio Grande do Sul. O céu da sua cidade natal era mais limpo, mais colorido, uma melhor inspiração para os seus desenhos. Quando ganhou uma luneta do pai, o menino foi apresentado aos astros. Porém, a proximidade com os segredos do espaço alcançaria novas perspetivas a partir daquela marcante noite no inverno de 1981, no bairro Pinheiros. Ao sair da venda, o garoto atravessa a rua e seu corpo para bruscamente, seus olhos azuis fixam com espanto um objeto estranho que sobrevoa a região: “Era enorme! Eu pensei que fosse um avião”. O garoto segue estático, mirando a tragédia prestes a acontecer. Aquela “aeronave” se aproximava de uma grande parede, na lateral de um prédio. Iria bater, e o menino em choque não poderia fazer nada. As luzes vão chegando cada vez mais perto do prédio. O saco de leite cai no chão.
Em uma noite de sábado, duas senhoras descem do carro e vão até um mirante no Morro da Cruz, um antigo ponto turístico de orações e observação. No horizonte noturno, é possível ver as luzes da cidade de Santa Cruz do Sul, que dorme calada e alheia. A dupla de senhoras se dirigiu ao local depois de um pressentimento que se abatera sobre ambas. A sutil intuição surgiu enquanto Dona Celi Simeone e sua amiga Marilene conversavam em casa naquela estranha noite. Algo lhes disse que precisavam ir até lá. Eis que surge a possível razão de estarem ali. Celi registra com uma antiga filmadora, por cerca de 20 minutos, um objeto luminoso que paira sobre a cidade. Um fato raro e impressionante, que muito iria repercutir entre pesquisadores sérios da região, bem como em encontros ufológicos internacionais. Entretanto, naquele momento, Celi não tinha noção de que essa não seria a última vez em que estaria se deparando com aquilo que atualmente classifica como “tentativas de contato”.
ANDRÉ SEEWALD
No sanguão do Hotel Praia Sul, alguns funcionários conversam sobre a diferente movimentação daquele final de semana nos hotéis da praia de Peruíbe, litoral paulista. Na recepção, a conversa tem tom de brincadeira, pois muitos hóspedes não vieram exatamente em busca das belezas da praia. Vieram debater sobre objetos e seres desconhecidos, no “Oitavo Encontro Ufológico de Peruíbe” e na “Segunda Conferência Internacional sobre Vida Extraterrestre da Jureia”. O catálogo informativo com a lista de palestras chamaria a atenção de qualquer curioso: “Abduções Alienígenas Analisadas e Vivenciadas”, “Discos Voadores em Ação em Minas Gerais”, e ainda “Os Verdadeiros Homens de Preto”, do inusitado palestrante americano James Carrion. Não é à toa que o evento, com entrada franca, atrairia centenas de participantes, dos dias 13 a 15 de Abril deste ano.
Fenômenos: Rafael Amorim relata inúmeras casuísticas estudadas pelo Movimento Gaúcho de Ufologia (MGU)
O objeto era quadrado, emitia luzes azuis e vermelhas nas extremidades, no centro havia uma luz mais clara. Daquele tamanho só poderia ser um avião. Com toda certeza se chocaria no grande paredão do edifício na Rua Capote Valente. Até que o espanto do garoto se transformou em desentendimento. A poucos metros do prédio, o objeto simplesmente deu um giro muito rápido, inverteu sua direção e se distanciou pelo céu. O menino saiu gritando e chamou os amigos. Alguns ainda conseguiram ver alguma coisa, porém já a uma certa distância. Logo o objeto sumiu. Quase ningúem acreditou, alguns riram e muitos disseram que deveria ter sido um balão. Os pais tentaram acalmar o menino e não deram muita atenção.
Uma criança de 11 anos, que gostava das estrelas, olhando para o céu de São Paulo, poderia se confundir e se impressionar com facilidade. Porém, no dia seguinte, aquilo que deveria ser só imaginação infantil causou dúvida. Um jornal da cidade informou que diversas pessoas haviam visto aquele objeto estranho nas imediações do bairro. Com o tempo, o fato caiu no esquecimento, mas não para o menino Rafael. “Ali nasceu o pesquisador”, diria ele, décadas depois, em uma entrevista no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre.
É final de tarde, quando vem saindo pela recepção um hóspede de estatura média, barba bem feita, óculos escuros, vestindo calças escuras, terno preto e um broche marrom no peito com um símbolo incomum – uma flor-de-lis. O sujeito chama atenção dos descontraídos empregados. Seria ele um verdadeiro MIB, Man in Black? Ao perceber a comparação, o homem sorri e tranquiliza o pessoal. O traje todo escuro é acaso, e o broche, na verdade, trata-se de um símbolo do escotismo mundial. O ufólogo estava na cidade com a missão de abrir os trabalhos do evento com a palestra “Extraterrestres no Sul do País, no Uruguai e Argentina”. Entre diversos exemplos de casuísticas (termo utilizado pelos ufólogos para os casos relatados), estava o misterioso caso da senhora de Santa Cruz do Sul. “É um grande mistério que a gente ainda trabalha, porque depois do relato de Dona Celi, vários outros fenômenos ocorreram no local onde ela mora”, afirma. Rafael Amorim trabalha com publicidade e produção gráfica. É consultor de arte da Revista UFO, presidente do Núcleo de Estudos Ufológicos de Santa Cruz do Sul (NEUS), diretor do Movimento Gaúcho de Ufologia (MGU) e membro da Comissão Brasileira de Ufólogos (CBU). O menino calado, que lia e desenhava muito, que derrubou o leite e saiu gritando em
pessoas “nãoAspresenciam os fenômenos porque não olham para o céu” Rafael Amorin,
presidente do Núcleo de Estudos Ufológicos de Santa Cruz do Sul
pânico, há mais de 20 anos vem se dedicando ao estudo de fenômenos aéreo espaciais não identificados e, principalmente, comprovando equívocos e falsas provas que giram em torno desse curioso assunto. Conhecido por Bala entre os amigos, ou Chefe Bala dentro do movimento escoteiro desde 1986, Amorim é pai do pequeno Francisco de 1 ano e casado com Fernanda Karlz, professora de enfermagem e também entusiasta da ufologia.
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Cerca de três horas da manhã, Celi perde o sono e se levanta para buscar um copo d’água. Ao passar pela sala, vislumbra pela janela a presença de luzes no lado de fora. Sua crença e espiritualidade fazem com que ela não tema a situação. Desde o dia em que filmara o fenômeno no alto do morro, volta e meia vê aquelas luzes em sua chácara. Rafael, após ouvir inúmeros relatos, resolve fazer uma vigília noturna no local, com
os companheiros do MGU. “Nessa vigília nós presenciamos o fenômeno”, relata com seriedade. Eram oito estudiosos reunidos na vigília. Por volta das duas e quarenta da madrugada de um sábado chuvoso, objetos sobrevoaram a chácara. “Eu deixei eles à vontade para observar algo. Acho que fui dormir mais cedo naquele dia”, comenta Celi, tranquilamente. Eram luzes que giravam em torno do próprio eixo com altitute relativamente baixa. “A gente ficou apavorado”, lembra Rafael. O conhecimento dos pesquisadores poderia garantir que não se tratavam de satélites ou aviões, de acordo com o horário e o movimento dos objetos. O grupo em êxtase saiu correndo, pegando câmeras e seguindo as luzes. Foram nove aparições naquela madrugada. No final da conversa com Amorim, indago sobre a grande hipótese: uma possível chegada de seres de outras galáxias na Terra. Nesta hora, a fé do ser humano cala o cético pesquisador e deixa seu recado: “Acho que haveria uma grande implosão sociológica, seria um trampolim para todas aquelas pessoas que tem uma mentalidade boa e uma filosofia harmônica de vida. Essas pessoas iriam saltar. Enquanto outras iriam cair...”.
ALEXANDER RIST (STOCK.XCHNG)
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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urante horas, no segundo piso do Aeroporto Salgado Filho – local onde outrora também já foram avistados objetos, em forma de disco voando próximo à pista, por cerca de quinze testemunhas – repórter e fotógrafo ouvem um homem falar com propriedade e empolgação sobre os fenômenos curiososos que investiga. Conhecer alguns dos mistérios do universo a partir da visão de uma boa fonte é fascinante. Sair de uma entrevista cheio de informações, mas com a nítida certeza de que poderíamos conversar por muito mais tempo, é estranho, porém interessante. Na minha opinião, a essência do jornalismo é justamente esse conteúdo rico em informação, mas também aberto para novas dúvidas, novos desdobramentos. Espero ter conseguido expressar no meu texto o imaginário fantástico pelo qual viajei para chegar ao fim dessa matéria e também instigar no leitor as minhas dúvidas. Imaginário esse que nada mais é do que uma tradução de conteúdo cru em conteúdo jornalístico. Também real, porém lubrificado em algo novo. Embora o foco principal seja a palavra do sujeito entrevistado (sem ele não há matéria), penso que sempre há uma genuína troca entre as partes envolvidas.”
O céu como salvação
Ajuda que vem do alto Kettermann é especialista em resgate aéreo com helicóptero e, apesar de conviver diariamente com o perigo, sua grande gratificação é poder salvar pessoas Texto de GUILHERME ENDLER Fotos de MARCOS LUDVIG E ALEX BRUDA (STOCK.XCHNG)
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soldado João Francisco Kettermann Teixeira está acostumado com a adrenalina. Já dedicou 15 dos seus 34 anos à carreira militar e desde 2005 é bombeiro do Grupamento de Busca e Salvamento (GBS), em Porto Alegre. Kettermann, como é chamado pelos companheiros de unidade, é um apaixonado pela atividade militar, e, principalmente, pela possibilidade de ajudar outras pessoas. Assim que ingressou no Corpo de Bombeiros, Kettermann fez um curso preparatório e se tornou especialista em resgate aéreo com helicóptero. Participa todos os anos da Operação Golfinho, que mobiliza centenas de policiais militares e rodoviários para o litoral gaúcho durante os meses de verão. Seu trabalho consiste em ficar na parte de trás da aeronave em conjunto com outros três colegas, pronto para descer – muitas vezes com o helicóptero ainda no ar – para socorrer vítimas de acidentes no mar e na estrada. Em casos extremos, como quando há pessoas se afogando além da rebentação, por exemplo, Kettermann pula no mar e auxilia a vítima com uma boia, para depois a içar usando uma maca ou um “cesto” – chamado puçá – e voltar para a praia. Também é comum usar o helicóptero e esses equipamentos para a busca e transporte de cadáveres que se perderam no mar, o que o bombeiro afirma ser a pior parte do seu trabalho. “Dependendo do tempo que o corpo está ali no mar, o cheiro fica forte e incomoda. O aspecto físico dele, também. É bem difícil”, pontua.
ALEX BRUDA (STOCK.XCHNG)
MARCOS LUDVIG
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Adrenalina: a única coisa que causa frio na barriga de Kettermann é não saber o que o espera na próxima ocorrência
SALVANDO VIDAS
O treinamento especial não é útil somente em operações no litoral. As técnicas de rapel também são usadas para salvamentos em incêndios que ocorrem em prédios altos na capital. Nem sempre há a possibilidade de entrar em um apartamento pela porta da frente. O bombeiro conta que já precisou descer de uma janela para outra em mais de uma ocasião, inclusive em situações inusitadas. “Tem casos que a gente se mobiliza e no fim chega lá e é só uma panela queimando no fogão. O cara chegou bêbado da balada, botou para cozinhar alguma coisa e esqueceu. Já aconteceu mais de uma vez isso”, conta. Kettermann garante que sempre gostou da sensação de voar e de estar em ambientes elevados. Mas, curiosamente, o caso que mais marcou o bombeiro não aconteceu em um helicóptero. Além de resgates aéreos, os profissionais do GBS atuam nas mais diversas ocorrências, desde a captura de animais ferozes até auxílio em casos de tentativa de suicídio e, principalmente, vários tipos de acidentes. Em agosto de 2011, uma laje desabou sobre 11 funcionários que trabalhavam em uma obra no bairro Hípica, zona sul de Porto Alegre. O desmoronamento fez com que os trabalhadores caíssem de uma altura de 12 metros e ficassem soterrados por concreto, hastes de ferro e madeira. Duas pessoas morreram e nove ficaram feridas. “Foi o caso mais difícil em que eu já participei. Havia muito vento e estava chovendo, então o concreto acabou secando rápido. Foi muito complicado de trabalhar lá”, afirma Kettermann.
VIDA DE BOMBEIRO
Antes de entrar para os bombeiros, Kettermann serviu por oito anos no Exército em Santa Maria, sua cidade natal, experiência que considera ter sido muito importante. “Para mim foi muito bom, foi essencial. Ajudou na formação do meu caráter e da minha personalidade”, afirma. Foi nesta época, então com 27 anos, que Kettermann resolveu seguir um sonho antigo e fazer o concurso para bombeiro, atividade que une a disciplina e a estrutura militar com a possibilidade de ajudar o próximo. Com a troca de profissão, o policial militar se mudou para a capital com a sua esposa, Lidiane, e passou a atuar no GBS. A base de operações do grupo fica na Avenida Mauá, no deque C1 do Cais do Porto, em frente ao Mercado Público. Como os bombeiros passam muito tempo de plantão, o prédio tem uma boa infraestrutura. Há um refeitório, quartos com beliches e até uma quadra de futsal e uma academia. Kettermann conta que existe muita união entre os profissionais do grupo, que passam 24 horas seguidas de
em que a gente se mobiliza “ Tem casos e no fim chega lá e é só uma panela queimando no fogão” João Francisco Kettermann, bombeiro do Grupamento de Busca e Salvamento
serviço e depois ganham três dias de folga. O horário de trabalho incomum é complicado para Kettermann, que por vezes acaba ficando tempo longe da sua esposa, residente de Educação Física no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre. Mesmo casada com o policial militar há 11 anos, Lidiane prefere não saber detalhes sobre as missões feitas pelo marido. “Ela não me deixa nem lavar o uniforme em casa, porque às vezes está sujo de sangue”, lembra Kettermann. O soldado planeja ser pai daqui alguns anos e pensa em incentivar o futuro filho a seguir a carreira militar, embora Lidiane “não goste muito” da ideia de ter um outro bombeiro na família, como brinca Kettermann. “Gosto do meio militar por causa da disciplina. Acho que isso está se perdendo muito hoje em dia, principalmente entre as crianças. Converso bastante com a minha esposa sobre esse assunto. Penso em, quem sabe, colocar meu filho num colégio militar”, conta. O aspecto disciplinar está presente até nos momentos de folga de Kettermann, que costuma nadar e correr para manter o condicionamento físico. Muito caseiro, o bombeiro pouco sai. “No máximo para tomar um chimarrão em algum parque com a Lidiane”, diz. Também não gosta de beber e tampouco fuma. Acredita que é essencial cuidar do bem estar e do corpo, muito exigido pela profissão. Tão importante quanto o cuidado com o corpo é o preparo mental. Como voar se tornou algo corriqueiro desde a época do curso, o que ainda causa frio na barriga de Kettermann é a expectativa de não saber o que o espera em cada uma das ocorrências. E a única forma de tentar controlar isso é por meio de muito treinamento. “Praticamos sempre que temos tempo livre. Se tu sabes que está bem treinado, o teu psicológico também fica pronto.” Como já completou sete anos de Brigada Militar, Kettermann planeja fazer curso para sargento, que deve ocorrer neste ano ou em 2013. Mas garante que, se vier, a nova patente pouco mudará a sua atividade no GBS. Continuará buscando o melhor para a sua unidade e para todas as pessoas que necessitem de ajuda, seja no mar, na terra ou no ar.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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ealizar esta pauta foi mais complicado do que eu imaginava. A necessidade de haver uma liberação do comando do Grupamento de Busca e Salvamento para que os soldados fossem entrevistados, e o próprio horário de trabalho de Kettermann tornou o trabalho um pouco mais difícil. Mas assim que eu consegui encontrá-lo na base, tudo deu certo. A equipe do GBS foi muito receptiva o tempo todo e, mesmo tímido, Kettermann foi solícito durante as nossas conversas. Aprender sobre a rotina de alguém que participa de operações de resgate dignas de filme de ação também foi muito interessante, principalmente quando tu vês que aquele cara que pula de um helicóptero para salvar uma pessoa tem os mesmo desejos, anseios e dúvidas do que qualquer um.”
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O céu como moradia
FOTOS STÉFANIE TELLES
O porteiro da CEU Seu Jorginho trabalha na Casa de Estudante da UFRGS há 22 anos
Texto de LETÍCIA SILVEIRA Fotos de DIEGO DIAS e STÉFANIE TELLES
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oi em 1990, após receber um calote de seu contador, que Jorge Augusto Menegotti foi selecionado em um concurso e passou a abrir as portas da CEU. A Casa de Estudantes da UFRGS está localizada na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre e, além de abrigar estudantes do estado e até mesmo de fora, é um dos principais cenários da vida de “Seu Jorginho”. “Fui São Pedro por muito tempo”, diz ele. Abrir as portas da CEU para tanta gente não poderia ficar nas mãos de qualquer um. O simpático ex-porteiro (sua profissão foi extinta) agora ajuda na administração da casa. Para ele, a melhor parte de trabalhar na CEU são as pessoas. Nesses mais de 20 anos de trabalho, já conheceu muita gente e tenta manter contato sempre que possível. Alguns ex-moradores ligam e até o visitam. Para facilitar esse processo, o senhor de 66 anos tem contas no Orkut e no Facebook. Seu Jorginho chegou para trabalhar na CEU com 44 anos. Antes disso muita coisa ele já tinha vivido. Com 15 anos fazia o que seria um técnico dos dias de hoje, em contabilidade. Gostava muito de números, embora agora não goste mais. Na época, decidiu largar tudo para jogar futebol em Santa Catarina. Ficou lá por seis meses, jogando no Internacional de Lages. Ele era centro-médio, volante atualmente, e diz que jogava “tipo o Falcão”. Voltou para Porto Alegre e chegou a disputar alguns campeonatos pelo time juvenil do Grêmio. Mas só o futebol não lhe servia. Em paralelo a isso, cantava em boates e barzinhos. “Eu jogava e cantava paralelamente. Parava a bola e ia para o baile. Por isso, não consegui me profissionalizar”, confessa Seu Jorginho. Parou cedo. Largou o futebol e ficou só na noite. Cantava de tudo, para agradar a todos, até os “descornados” que queriam ou-
STÉFANIE TELLES
vir musica romântica. A vida boêmia durou dois anos. Ele já estava com 26 anos e precisava ganhar dinheiro de verdade. Foi aí que montou um armazém. O negócio ia bem, até que deu problema. Seu guarda-livro, o contador daquela época, lhe deu um golpe. Seu Jorginho o pagava para que regularizasse o ICM e INPS e, pelo jeito, o guarda-livro não fazia. Ele descobriu isso somente quando os fiscais fecharam seu boteco. “Fui trabalhar com vendas. Eu vendia piso, depois comecei a trabalhar com esquadrilha de alumínio”, recorda. Sua vida mudou quando, um dia, uma amiga disse a ele que havia aberto um edital para a UFRJorge Menegotti, GS. Como ele não sabia o que fazer, ela funcionário da CEU sugeriu que fizesse concurso para porteiro. “Aí fiz o concurso e estou aqui”. Seu Jorginho é casado há 20 anos e não tem filhos. “Ao menos que eu saiba”, diz. Ele conta que, mesmo se tivesse tudo certo para se aposentar, não faria. Vai esperar. O trabalho é bom e ele gosta das pessoas. Desde que entrou na CEU, muitas coisas mudaram. O convívio com os moradores, por exemplo, ficou mais fácil para ele. Ele diz que houve uma época que até briga de facão já separou, mas que isso não é mais necessário. Apesar de tudo, sempre foi de “boa paz”, como ele mesmo diz. As pessoas, ele garante, sempre o respeitaram. O exporteiro sempre esteve engajado em causas para melhoria da casa e de seu trabalho. Foi delegado da Associação de Servidores da UFRGS (ASSURFGS) e, toda vez que pôde, apoiou e acompanhou a Associação de Moradores da CEU (Amceu). Konrado Machado, estudante de Engenharia de Minas, é mineiro, mora na casa desde 2008 e foi presidente da Amceu por duas gestões. Ele afirma que, principalmente no início, sempre que precisava, recorria a Jorge. Imaginem só quanta gente Seu Jorginho já conheceu nesses 22 anos de trabalho. A casa conta aproximadamente com 400 moradores divididos em oito andares. Além de pessoas do Rio Grande do Sul, a casa recebe estudantes de outros estados e estrangeiros também. O ex-porteiro se corresponde até hoje com argentinas que passaram pela CEU. Histórias para contar não faltam. Certa vez, em um chá de fralda organizado para uma moradora, se vestiu de mulher, grávida, com direito a peruca e salto alto. “Já me diverti muito nesses anos de trabalho”, afirma. No final de 2009, descobriu um câncer. Teve que ficar afastado por um ano e três meses por causa do tratamento. Durante esse período, alguns moradores da casa montaram uma banda e foram até sua casa para tocar para ele: “São coisas boas que a gente sente assim. Eu gosto daqui, gosto mesmo, voltei com tudo”.
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Uma história de liberdade
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Quando foi fundada, em 1950, a casa era exclusivamente para homens, e a presença feminina era expressamente proibida. Por volta de 1980, iniciou-se uma mobilização para a moradia mista livre. Após alguns protestos, reivindicações e até invasões, em 1982 a casa passou a ser definitivamente para homens e mulheres. Oito anos depois, Seu Jorginho, ex-porteiro da casa, começou a trabalhar no local. Segundo ele, naquele tempo era mais difícil lidar com os estudantes. “Quando eu entrei aqui, era na época que estava terminando aquele negócio da revolução e tal, então os jovens estavam muito com a ânsia da liberdade, e acabaram confundindo liberdade com liberalidade, então faziam e aconteciam”. Hoje em dia, os estudantes estão mais calmos, e suas reivindicações são mais tranquilas. Konrado Machado, ex-presidente da Associação de Moradores da CEU (Amceu), diz que atualmente a casa vive um momento bom, com dinheiro e reformas de estrutura, mas quando entrou não era bem assim. Tinha falta de água com frequência, falta de luz, e tudo era mais complicado. Havia um relacionamento mais tenso com a direção, com os funcionários, hoje em dia mais pacífico. “Agora tem problema, mas antigamente tinha problema muito maior. Melhorou bastante. A gente trabalhava fim de semana e ficávamos um final de semana inteiro sem água”, complementa o ex-porteiro. Seu Jorge e Konrado concordam que a nova direção tem ajudado muito para as melhorias da casa. Há pouco tempo entrou um dinheiro do Governo Federal e do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o que facilitou para que o local recebesse algumas reformas. Liciê Nardi é diretora da Divisão de Moradia Estudantil há aproximadamente um ano e coordenou parte dessas mudanças. Segundo ela, há muita coisa para mudar. Eles estão começando aos poucos. Já conseguiram trocar portas, janelas, pintar paredes. O próximo passo é a atualização da parte elétrica e do encanamento. Seu Jorginho salienta que uma das mudanças realizadas na gestão de Liciê que facilitou o trabalho de porteiro foi a implantação das carteirinhas. Se antes qualquer um entrava na CEU, atualmente o estudante precisa apresentar sua carteirinha da universidade para que a porta se abra. Fora isso, os moradores que recebem visitas devem anunciar antes, e os visitantes assinam um livro na entrada.
Fui São Pedro por muito tempo”
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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pesar de saber da existência, nunca havia visitado uma casa de estudantes, e, confesso, que minha surpresa foi enorme. A CEU tem uma grande estrutura, e não encontrei nada da bagunça que se imagina ao falar em casa de estudantes. Apesar das dificuldades e de algumas reformas serem necessárias, os alunos contam com um sistema de impressão e cópias, rede de computadores, sala de estudo, cozinha, lavanderia e até um local para fazerem festas. É um grande apoio pra quem precisa desse recurso para estudar. Quanto ao Seu Jorginho, sem palavras. Um senhor simpaticíssimo, que adora trabalhar na CEU e, principalmente, conhecer pessoas. No auge dos seus 66 anos, com várias histórias pra contar e uma trajetória impensável, o exporteiro já jogou bola e cantou na noite. Quem imaginaria?
DIEGO DIAS
Experiência: Seu Jorginho já separou até briga de facão na casa de estudante, mas diz que hoje a relação entre os moradores é mais tranquila
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O céu como influência
ROOTER (STOCK.XCHNG)
A mãe Lua Por mais que a ciência não comprove, especialistas garantem que a Lua influencia nos nascimentos Texto de DOUGLAS BONESSO Fotos de FERNANDA ESTRELLA E ROOTER (STOCK.XCHNG)
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ichelli Osanai, 39 anos, médica ginecologista e obstetra, em 15 anos de profissão, já realizou três mil partos, tendo em média cinco partos por dia. Apesar de não haver nenhuma comprovação científica, Michelli acredita que as mudanças de fases da Lua podem influenciar nos nascimentos dos bebês. “Meus plantões são sempre nas trocas de lua, e vejo a diferença dos outros dias em que não ocorrem”, diz a médica, que trabalha no Hospital Centenário, de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre. Ela conta também que em 2011 teve um dia em que realizou 14 partos, justamente quando houve mudança de fase da Lua.
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FOTOS FERNANDA ESTRELLA
Na lua minguante, demora mais para a bolsa da gestante romper” Ilena Inácio Bitelo,
auxiliar de enfermagem aposentada
Crença: quando Leila estava à espera da segunda filha, Alana, acreditava que ela nasceria na mudança da Lua, como a primeira. Acertou
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Ilena Inácio Bitelo, 68 anos, auxiliar de enfermagem aposentada há um ano, trabalhou no Hospital Centenário por 43 anos. Sua especialidade era ajudar os médicos no ato do parto. “O Dr. Henrique Torel, médico obstetra na época, ensinou todas as enfermeiras a fazer o parto, caso ele não estivesse no local”, conta. Ao longo de sua carreira, Ilena coordenou 20 partos sozinha, alguns deles dentro de carros, pois não havia tempo de levar a gestante para a ala médica do hospital. “Era muito comum fazermos o parto dentro de carros e nos corredores do hospital. Isso acontecia com frequência”, sublinha. A aposentada acredita fielmente que a Lua influencia no processo de gravidez. Ela conta que em todas as trocas de fase da Lua havia mais nascimentos no hos-
pital. Além disso, essa crença vem de família, pois sua mãe, Marzilia, falecida há cerca de 15 anos, era parteira e sempre falava que a maioria dos partos que fazia era justamente nessas mudanças. Marzilia auxiliava no trabalho de parto no interior de Gravataí e atendia praticamente todos os recém-nascidos. “Minha mãe teve nove filhos e todos nasceram na troca da Lua”, diz. Segundo Ilena, o tempo de gestação é contado através do sistema lunar - a cada 28 dias. O período então é calculado por nove ciclos do satélite, desde o dia da fecundação até o momento previsto do nascimento, e não nove meses completos. Cada troca de fase de lua dura de sete a oito dias, completando um ciclo total de 28 dias. Temos quatro fases da Lua que podemos observar da
Terra: a lua nova, a lua crescente, a lua cheia e a lua minguante. “Na lua minguante, demora mais para a bolsa da gestante romper”, garante. A gravidez é um período de expectativa. A mulher imagina e fantasia várias situações: como será o bebê? Qual será a cor dos olhos? Será menino ou menina? Se parecerá com quem? Em que dia e horário este bebê chegará? Quem viveu recentemente essa espera foi Anastácia da Rosa, 40 anos – Leila, como gosta de ser chamada. Leila já é mãe de uma menina de oito anos que, segundo ela, nasceu na troca de lua cheia. Ela teve sua segunda filha no mês de abril deste ano: a pequena Alana. Leila entrou em trabalho de parto na lua minguante. “Desde a minha infância sempre ouvi dos pais agricultores que as plantas e os bebês sofrem diretamente
Na prática: Michelli já fez três mil partos e percebe que, quando seus plantões são em dia de mudança da Lua, o número de nascimentos aumenta a influência da Lua. Dito e feito, aconteceu com minhas filhas”, conta. Até então, não existe uma só publicação científica na área da saúde que explique a influência da Lua nos partos, mesmo que quem trabalhe nessa área vivencie o contrário. Existe algo místico, uma ligação desconhecida entre a Lua e os nascimentos. “Praticamente programava os dias de trabalho com mais movimento na ala obstétrica a partir do calendário lunar”, ressalta Ilena. A Lua é capaz de causar mudanças em determinados elementos da Terra. Os mais visíveis são os elementos fluídos, como as marés, por exemplo. No entanto, será mesmo possível que ela também interfira nos fluídos que envolvem o período de gestação? Eles realmente interfeririam no trabalho de parto? Cabe a você, caro leitor, escolher em que acreditar.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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colega de aula, Fernanda Estrella, surgiu com a ideia de investigar a influência da Lua no nascimento dos bebês. A partir dessa sugestão, lembrei que minha avó sempre falava isso. Na hora me prontifiquei e aceitei o desafio de saber mais sobre o assunto. Foi algo bem diferente para mim, pois nunca acompanhei uma mulher no processo de gestação. Ao longo das entrevistas, fui me envolvendo mais com a matéria e, ao mesmo tempo, perguntei a conhecidos se eles se identificavam com esse fenômeno. A maioria me respondeu que sim e, assim como eu, ficaram maravilhados com os resultados dessa pesquisa informal. Inclusive eu nasci na troca de fase de Lua. Fiquei impressionado e me perguntei: como nunca pensei nisso antes? Como não há comprovação científica sobre o assunto? A partir da minha curiosidade, consegui ir mais fundo no contexto e assim apresentar os dados que estão nesse texto. Convido você, caro leitor, para conhecer e, até mesmo, se envolver com esse tema.”
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STÉFANIE TELLES
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Eu canto, eu canto Por poder te ver No céu, no céu Como um balão” Vitor Ramil
O céu como desejo
Sonhando alto Manuel trabalha no aeroporto e nunca andou de avião Texto de JÚLIA KLEIN Fotos de LÍLIAN STEIN
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oar não é privilégio dos pássaros. Os brasileiros têm viajado de avião com mais frequência em função de passagens aéreas mais baratas, pacotes turísticos em promoção e o aumento da renda. Segundo dados do Ministério do Turismo, o movimento registrado nos aeroportos do país em 2011 foi o maior dos últimos 13 anos. Entre janeiro e dezembro do ano passado, foram 79 milhões de desembarques domésticos. A Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero), responsável pela operação de vôos no Brasil, coloca os aeroportos paulistas, Guarulhos e Congonhas, no topo dos mais movimentados. Mesmo assim, ainda existe muita gente que não teve a oportunidade de atravessar os céus. Inclusive, pessoas cujo dia a dia é dentro de um aeroporto. Manuel Messias, 20 anos, trabalha como auxiliar de serviços gerais no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre e nunca andou de avião. O jovem é responsável por carregar e organizar os carrinhos que transportam as bagagens. Com uma jornada que vai das 7h às 15h, o rapaz ainda encontra tempo para se dedicar a uma segunda atividade, a de instalador de banners e painéis. Natural de Pernambuco, começou a trabalhar ainda criança, com apenas três anos. Inicialmente, catava latinhas para ajudar a mãe e os irmãos. Tempos depois, a família se mudou para Alagoas, onde o jovem foi criado. Aos 17 anos decidiu se aventurar em outra cidade e escolheu Porto Alegre pelas oportunidades que a região Sul oferece. “Cheguei aqui sem conhecer ninguém. Vi um pessoal na rua instalando outdoors e me apresentei. Dias depois já estava com esse bico, me chamam sempre que tem algum trabalho”, diz. Manuel estudou até a 6ª série do Ensino Fundamental, já que precisava dedicar o dia inteiro ao trabalho. Hoje ele reconhece a importância dos estudos e, ainda em 2012, conclui o Ensino Médio através do programa de Educação para Jovens e Adultos (EJA).
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Assim que chegou ao Estado, Manuel alugou uma casa em Eldorado do Sul, região metropolitana de Porto Alegre. A maior parte dos móveis já fazia parte da residência, mas, aos poucos, o garoto foi personalizando o local, com itens de capoeira e futebol. No quarto, mantém um pôster de Carlos Alberto Torres segurando a taça de campeão do Mundo, pela Copa de 1970. Já, na cabeceira da cama, quem ocupa espaço nobre é seu mini berimbau de estimação trazido de Alagoas. O jovem praticava capoeira com alguns amigos no nordeste e é fã do esporte. A roupa utilizada nos treinamentos veio junto na mudança, mas hoje Manuel a utiliza apenas nos passeios que faz por aqui. Permanecer longe da família e amigos é o mais difícil para Manuel. Ele também sente falta das praias alagoanas e de algumas comidas típicas, como a carne de sol. O jovem chegou a ficar sete meses sem ter notícias dos familiares, porque estava sem telefone e evitava gastar dinheiro com correio ou cartão telefônico. Há cerca de um mês, conseguiu comprar um telefone celular, e a primeira pessoa com quem falou foi a mãe. Inclusive, as novidades o deixaram surpreso: a família havia aumentado. “Eu nem sabia que minha mãe estava grávida. De repente ligo para saber como ela está e descubro que tenho uma irmãzinha, foi um susto!”, comenta. Agora, com a família maior (ao todo são 17 irmãos), Manuel faz planos para visitar os parentes em junho, época das animadas festas juninas. Desde que está no Rio Grande no Sul, o rapaz retornou a Alagoas apenas uma vez. Foi daqui para lá de carona com um tio caminhoneiro, que faz diversas viagens, atravessando o país. E é de carona, no caminhão do tio, que pretende voltar dessa vez. Manuel lembra com orgulho sua chegada ao solo gaúcho. Veio de carro com alguns amigos, em uma viagem que durou quatro dias. Para o jovem, o Rio Grande do Sul é um lugar privilegiado, com oportunidades de ocupação para quem tem vontade. “Eu sempre me comuniquei bem e nunca tive problemas em aceitar trabalho, faço de tudo, por isso me dei bem desde o começo”, afirma. O bico na empresa de comunicação visual, onde instala adesivos e outras peças, foi a primeira oportunidade encontrada pelo pernambucano. Há um ano e meio trabalhando no aeroporto, Manuel gosta do que faz, principalmente pelo contato com pessoas diferentes. “Aqui é muita gente circulando, todo o tipo de pessoa. Toda a hora conheço alguém, dou uma informação, ajudo um passageiro a carregar alguma coisa. Esses dias mesmo, um senhor esqueceu um livro no carrinho de bagagem e corri para devolver”, comenta.
Imagino que viajar de “ avião seja emocionante. E tem
a comida também, que deve ser muito boa, não é?” Manuel Messias,
auxiliar de serviços gerais do Aeroporto Salgado Filho
MEU FUTURO PRÓXIMO
Viajar de avião é um dos objetivos de Manuel. Todos os dias ele vê centenas de pessoas passando com bagagens, apressadas, animadas... Realmente, o dia a dia no aeroporto é bem movimentado. E estar ali, no ambiente de viagem das pessoas, aumenta ainda mais a vontade de cruzar os céus naquela máquina de asas. “Imagino que viajar de avião seja emocionante. E tem a comida também, que deve ser muito boa, não é?”, questiona, sorrindo. “Estar ali dentro é meu futuro próximo. Pretendo retornar às Alagoas uma vez por ano, e ainda vou conseguir ir pelos céus”, afirma. Enquanto não realiza seu desejo, o
pernambucano se diverte na Capital gaúcha. Passear no Gasômetro e no Mercado Público são atividades que o garoto faz em suas horas vagas. “Também gosto muito de jogar futebol. Inclusive, quando cheguei aqui, fiz um teste no Internacional, mas me mandaram procurar o São José”, comenta. O rapaz só não procurou o time porque não conhecia a cidade e não sabia como chegar até o clube. Já acostumado com as temperaturas frias do inverno gaúcho e com o sotaque bem particular, Manuel pretende construir uma família por aqui. Voltar para Alagoas, só mesmo de visita. “Lá não vejo expectativa nem oportunidade. Aqui sou muito feliz”, completa.
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onhecer o Manuel foi uma experiência um tanto curiosa. É surpreendente ver um rapaz tão jovem e com tamanha bagagem. Começou a trabalhar ainda criança, com apenas três anos, catando latinhas. Trabalha desde muito novo para ajudar a família, que aumentava a cada ano. Com pouca perspectiva de crescimento e melhoria de vida, resolveu vir para o Rio Grande do Sul tentar a sorte. E pode-se dizer que conseguiu. Assim que chegou ao estado encontrou trabalho e se instalou fácil. De sorriso largo e boa conversa, o garoto passa uma tarde contando a vida, sem se preocupar com as perguntasse ou o click da câmera. Empolgado, se dispõe a dar uma volta pelo aeroporto e espiar os aviões. E o experiente rapaz, que vive com saudades da mãe, fala da família cheio de carinho nos olhos, esperando o momento em que vai chegar rapidinho em casa, como ele mesmo diz, “atravessando os céus”. O jovem nordestino é mais um entre tantos que sonham. Queria ser jogador de futebol, já pensou em cantar música sertaneja e até mesmo sobreviver jogando capoeira. Mas a vida é difícil. Exige da gente mais que do que apenas um sonho. E Manuel está indo atrás do seu.”
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O céu como paixão
KRISS SZKURLATOWSKI (STOCK.XCHNG)
Para observar Para o astrofísico Leitão, o céu proporciona fenômenos impressionantes. Observá-los é a sua vida Texto de SAMANTHA GONÇALVES Fotos de LÍVIA SAGGIN E KRISS SZKURLATOWSKI (STOCK.XCHNG)
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inguém deve morrer sem presenciar um eclipse total do Sol.” A frase, dita por Luiz Augusto Leitão da Silva, demonstra sua paixão por fenômenos astronômicos, pela física e, especialmente, pela astronomia. Leitão, como é conhecido entre os alunos, é astrofísico, professor do curso de Física na Unisinos e um grande observador do céu. Quando criança, recebeu de presente de sua tia-avó um livro escrito pelo professor Rubens de Azevedo, importante divulgador científico da astronomia no Ceará. “Achei aquele livro muito bonito! Ele me despertou um enorme interesse”, diz. Esse interesse ficou em standby até 1973, quando Leitão começou a acompanhar alguns artigos sobre o tema publicados nos jornais Correio do Povo e Zero Hora de autoria do astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Na época, o estudioso mantinha uma coluna mensal sobre os aspectos do céu e foi isso que intensificou o gosto de Leitão pela área. No mesmo ano, 1973, houve a passagem do cometa Kohoutek nas proximidades da Terra – que fez muito sucesso na mídia devido ao fato de que seria um cometa muito brilhante. “Na verdade, toda a euforia foi uma decepção. O Kohoutek mal foi visível a olho nu”, relembra o astrofísico. Bacharel em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Leitão é mestre em Astrofísica e foi contratado como professor, pela Unisinos, em 1992. Em sua carreira docente também constam aulas na Pon-
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tifícia Universidade Católica (PUCRS) e no Planetário José Baptista Pereira, ambos em Porto Alegre. Como divulgador de conhecimento científico, Leitão fundou, nos tempos da faculdade, a Sociedade Astronômica Riograndense, uma entidade voltada para a divulgação científica. A intenção era conceder à imprensa entrevistas e materiais de divulgação acerca da astronomia e de todos os fenômenos relacionados a ela. Entre 1980 e 2000, dedicou parte do seu tempo à difusão de conhecimentos fazendo aparições na televisão e tornando-se colaborador em veículos como Rádio Gaúcha, Rádio e TV Guaíba e jornais como Zero Hora. Neste último, Leitão escrevia regularmente para o extinto caderno Eureka, que mais tarde passou a se chamar Globaltech. Sua experiência com fenômenos astronômicos é incontestável: durante 10 anos – de 1986 a 1976 – fez intensas observações amadoras noturnas do céu. “Eu tinha um telescópio no quintal da minha casa. Nesse período, fiz um estudo sistemático de todas as constelações visíveis na latitude de Porto Alegre. Dividi esse estudo por áreas e procurava observar tudo o que tinha ao alcance do telescópio em cada região”, detalha. A prática acrescentou à sua carreira uma extensa bagagem experimental e observacional. Além disso, complementava os estudos feitos do ponto de vista teórico. Durante a graduação, a observação do céu passou a ser realizada profissionalmente em observatórios, como o do Morro Sant’Ana, que pertence a UFRGS, o Observatório Pico dos Dias, em Brasópolis, Minas Gerais, e em alguns na Argentina, enquanto fazia a Pós-Graduação. Observar o céu é como uma terapia para os que o admiram. Por ser visual, o ser humano tende a apreciar coisas bonitas, paisagens deslumbrantes e tudo que atraia a visão. O céu é algo que proporciona esse prazer. Apesar de ser intocável e estar tão longe, a imensidão azul é responsável por momentos únicos e sensações ímpares. De acordo com Leitão, os fenômenos que podemos observar são incontáveis. No que diz respeito ao sistema solar e ao sistema terra-sol-lua, talvez os mais comuns e conhecidos do público sejam os eclipses solares e lunares. A aparição de cometas brilhantes também pode entrar na lista, apesar de acontecerem com mais irregularidade, despertam bastante a atenção das pessoas. Para o físico, o eclipse total do Sol é um dos fenômenos mais interessantes. “Vi dois eclipses totais do Sol. O mais bonito aconteceu em três de novembro de 1994. Esse fenômeno foi visto em Santa Catarina e no norte do Rio Grande do Sul. No meio da manhã, a lua ocultou totalmente o sol, durante uns quatro minutos. Ficou noite em pleno dia! A minha recomendação é de que ninguém morra antes de ver um eclipse como esse, mesmo que seja preciso viajar para algum lugar muito longe. Vale muito a pena. É uma das coisas mais impressionantes que a natureza tem a nos oferecer”, destaca. Como professor na Unisinos, Leitão já deu aulas em outros cursos além da Física, como Matemática, Engenharia e Geologia. Ele ministrou a disciplina opcional, a nível de graduação, chamada Introdução a Bioastronomia. Sinônimo de astrobiologia, a bioastronomia, é a ciência que estuda a possibilidade de existência de vida fora da terra. “Com essa iniciativa, a Unisinos foi a primeira universidade do Brasil a instituir esse tipo de disciplina na graduação”, afirma. Atualmente a atividade não existe mais, porém, um desdobramento dela, em 2006, culminou na criação de um Curso de Extensão.
Denominada Ufologia: Ciência ou Pseudociência, a extensão tinha carga horária de 60 horas. Seu objetivo era demonstrar que a mania de ver discos voadores não tinha nada de extraterrestre e que ainda não havia acrescentado nada de cientificamente válido no contexto da astrobiologia. “A astrobiologia é uma ciência séria, apesar de que ainda não se tenha comprovação da existência de vida em nenhum lugar fora da Terra, os cientistas envolvidos com essa ciência são unânimes ao afirmar que é muito alta a probabilidade de vida fora do planeta”, sublinha. Dentro desse contexto, de acordo com ele, a ufologia entra como uma pseudociência e, quando a questão é analisada, percebemos que não tem nada de extraterrestre. “Na verdade, ver discos voadores trata-se de um fenômeno completamente humano. Ele surgiu durante a Guerra Fria: foi uma espécie de paranoia comentada, que se espalhou muito rápido e persiste até hoje. Além do mais, está meio fora de moda ver discos voadores. Menos pessoas se impressionam com isso nos dias de hoje, e aqueles que ainda acreditam nisso podem ser caracterizados como integrantes de um grupo místico de uma religião moderna”, ressalta. Leitão não é ufólogo, mas resolveu fazer o curso para mostrar que a ufologia é uma área vazia do ponto de vista científico e que não há nada que possa se aproveitar cientificamente nela. Segundo ele, as aulas se desenrolaram em um tom imparcial. “Acredito que tenha sido uma iniciativa corajosa por parte da universidade. Até hoje não tenho conhecimento de uma instituição que tenha atacado esse problema, mesmo que a nível de curso de extensão”, conta. Com 20 anos de Unisinos, Leitão realizou muitos estudos, teve diversos alunos e atitudes pioneiras. O professor também é o responsável pela criação das Oficinas de astronomia, que existem há 16 anos. Elas sugiram a partir da reivindicação de alunos que queriam discutir assuntos ligados à astronomia e não conseguiam fazer isso em aula devido ao tempo e as exigências do currículo. “Elas surgiram em abril de 1997 e acontecem até hoje, todas as sextas-feiras. São 10 encontros em um ambiente agradável, uma vez que todos os participantes estão lá porque querem, realmente, aprender. Em posse da programação, eles podem selecionar apenas aquilo pelo que se interessam e assistir às palestras”, explica. Ultimamente, o físico está envolvido na criação de uma fundação privada e filantrópica, voltada à melhoria do nível de educação científica em todas as categorias populacionais: estudantes, leigos, profissionais. O projeto, que está em andamento desde 2006, conta com diversas ações, como a utilização de um planetário móvel equipado com um projetor japonês que possibilita aos usuários ver todas as constelações. Além disso, há a ideia de montar uma estação meteorológica em Novo Hamburgo, equipada com câmeras automáticas que farão imagens do céu e postarão na internet. O site da entidade está sendo elaborado e deve entrar no ar dentro de três meses. A paixão de Leitão pela astronomia cativa e estimula seus alunos. Carlos Henrique Rosse foi seu orientando e conviveu com ele em mais de uma atividade acadêmica. Carlos Henrique afirma ter aprendido muito. “Um bom professor faz com que seus alunos aprendam independente do conteúdo, por mais simples que sejam. O Leitão fez com que despertasse meu gosto pela astronomia. Ele sempre falava de um jeito cativante, e isso me influenciou muito”, relata. Segundo o estudante, Luiz Augusto é um daqueles professores que vão ficar marcados para sempre na memória.
LÍVIA SAGGIN
Encantamento: durante dez anos, Leitão fez observações amadoras do céu. Hoje, isto é a sua profissão
O eclipse total do Sol é uma das “coisas mais impressionantes que a natureza tem a nos oferecer” Luiz Augusto Leitão da Silva, astrofísico
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“A
escolha do tema Céu me deixou bastante confusa e intrigada. Por se tratar de um assunto incomum, tive que pensar muito na escolha do meu case e me surpreendi! O professor Luiz Augusto foi muito gentil e demonstrou ser aficcionado pelo céu. Portanto, fiz a melhor escolha! Fazer perfil é bem complicado porque não conhecemos a intimidade do perfilado e, no meu caso, não tenho convivência com ele. O tema da revista fez com que eu parasse para pensar em quantas vezes nem prestamos atenção às coisas bonitas que estão ao nosso redor. Com essa vida corrida que levamos, nem sempre paramos para apreciar bons momentos, lugares ou paisagens. Depois que comecei a escrever, passei a ser uma observadora do céu – sem telescópios, claro. Essa observação amadora despertou em mim diversos sentimentos, acalmou ânsias e angústias. Percebi, por exemplo, que o céu em Porto Alegre é “pequeno” dependendo do ponto de observação, mas é de um azul limpíssimo, profundo. E mesmo com toda a selva de pedra ao redor, ele está lá, despertando emoções, faça chuva ou faça sol.”
O céu como teto
Nas ruas de Porto Alegre mora um tal de Claudiomiro Na capital gaúcha, 1.347 pessoas moram a céu aberto. Claudiomiro é uma delas Texto de MARCELO FERREIRA Fotos de LÍLIAN STEIN
“Era uma casa muito engraçada Não tinha teto, não tinha nada”
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O
poético morador da “casa muito engraçada”, citada acima, poderia ser considerado um privilegiado – são poucos os que têm o céu sempre ao alcance do olhar. Mas há uma diferença entre a realidade e a arte, que nem sempre é tão bela quanto uma canção infantil. Quando os versos do poeta Vinicius de Moraes escapam da imaginação das crianças e ganham vida nas ruas das grandes cidades brasileiras, deixam de ser engraçados. São graves a ponto de ferir a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no seu artigo XXV estabelece: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”. Em Porto Alegre, conforme pesquisa realizada em dezembro de 2011 pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), foi detectado que 1.347 pessoas vivem nas ruas da cidade. O alto índice pode até preocupar, mas não revela o lado humano da questão. Os motivos que os levam a tal situação são os mais diversos e adversos, e cada um desses moradores é dono de uma história que vai muito além das estatísticas oficiais. Claudiomiro da Silva dos
Dualidade: para Claudiomiro, espaços públicos e privados se confundem
Santos, 42 anos, é um deles. Diariamente, dorme, acorda e trabalha como catador de latas de alumínio sob um céu nem sempre amigável, como também nem sempre é amigável o que está no chão, ao seu redor.
O FRIO DAS RUAS
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Fluxo de pessoas, carros tomando as ruas, comércio abrindo as portas. No viaduto que liga o Centro Histórico de Porto Alegre à zona Sul da cidade, local conhecido como Escadaria da Borges, é frequente a presença de moradores de rua. Sentado próximo ao banheiro público da região, Claudiomiro aproveita a ensolarada manhã de sábado de começo de outono. Mantém uma animada conversa com uma amiga. Ao seu lado, conserva tudo o que possui: um saco preto com algumas roupas, um boné para se proteger do sol, uma espécie de cajado feito de madeira e uma garrafa plástica sempre ao alcance da mão. Dono de um olhar tímido e de uma fala sincera, ele não esconde seus sonhos, muito menos sua consciência. Na noite anterior, como de costume, havia dormido nos bancos do pátio do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Claudiomiro acha o lugar tranquilo e revela que os seguranças deixam moradores de rua dormir lá, desde que não incomodem. Talvez por isso prefira esses bancos ao chão do terminal de ônibus junto ao Centro Popular de Compras. Segurança e conforto são outros motivos para a preferência. Morador de rua também tem medo de dormir em local aberto.
Mesmo sem ter sofrido violência física – uma vez teve os tênis roubados por dois jovens, teme tomar uma paulada na cabeça. Além disso, os bancos do Hospital de Clínicas são melhores para quem não tem um colchão. Abriu mão do pequeno conforto devido à complicação de cuidar e carregar um objeto tão grande. Qualquer pessoa que conheça a rigidez do clima gaúcho pode imaginar a complicação que é dormir direto no chão durante as noites frias. Por isso, o calor do final de março é providencial. Claudiomiro conta que frio e chuva são problemas difíceis de lidar quando o céu é o teto de sua casa. Não precisa de muito tempo para contar que o conteúdo de sua garrafa contém uma bebida alcoólica que funciona como remédio para vencer a timidez e acaba se tornando, também, remédio para a inevitável friagem das ruas.
SEM OPÇÃO
Quando, cercado pelas escadarias, Claudiomiro volta seu olhar para o céu, dificuldade não é o primeiro pensamento que lhe vem em mente. Carregando nos olhos uma expressão profunda e séria, releva: “Liberdade. Gosto de olhar o sol nascer, é a imagem da própria vida”. A reflexão desperta memórias que o fazem sorrir, e o leva a conclusão de que foi a busca pela liberdade que acabou o levando às ruas. Claudiomiro é dependente de álcool. Gostaria de parar, mas a ideia parece inatingível. Julga-se uma pessoa muito tímida e crê ser este o motivo que o leva
a beber com frequência. Aos sete anos já trabalhava, ajudando a mãe na lavagem de roupas. Por falta de vagas nas escolas, começou a estudar aos dez. Cursou até a segunda série. A pouca escolaridade não o impede de ser um leitor de jornais, os quais encontra ou compra. Entre as leituras preferidas estão as revistas de fofocas de artistas. “São boas para comentar com amigos ou quando se encontra alguém da família”, releva. Até 1989 não bebia. Aos 20 anos, porém, uma fobia se manifestou. Surgiu um medo inexplicável e incontrolável de sair de casa. Ele lembra claramente: “Não saía nem para ir ao armazém, não conseguia pegar um ônibus”. Com a bebida, se sentiu confiante outra vez. Acredita que isso é genético, herança do pai. Daí até morar na rua foi uma questão de oportunidade, ou da falta dela, e da surpresa dos caminhos da vida. Viveu com os irmãos entre 2000 e 2006, até adquirir uma casa na Lomba do Pinheiro por R$ 800. Nesse período, trabalhava fazendo a limpeza do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Tudo estava bem até ter problemas com a vizinhança, quando se viu obrigado a vender o terreno por uma quantia menor do que havia pago na compra. Foi um momento de vida em que, devido à consciência do seu envolvimento com a bebida, não enxergava perspectivas de retorno à casa de nenhum dos irmãos – sabia que não teria a liberdade que precisava. Pela primeira vez foi morar nas ruas, próximo à Igreja São Jorge, no Bairro Partenon. A experiência
Liberdade. “Gosto de olhar o sol nascer, é a imagem da própria vida” Claudiomiro Santos,
A céu aberto: Na maioria das vezes, viver nas ruas é saída para quem não tem outra escolha
morador de rua
não foi nada boa. Sentiu medo de outros moradores em situação semelhante. A família não foi a favor, e não gosta de vê-lo vivendo nas ruas, mas voltar a viver com um dos irmãos está fora dos planos. Por isso decidiu, depois desses 15 primeiros dias tendo o céu como o teto de sua casa, ir para uma clínica de tratamento de alcoolismo. Ficou lá por cerca de um ano, até ter sua primeira recaída. Está na rua desde outubro de 2011, após mais algumas internações e novos retornos ao álcool.
UM OLHAR DIFERENTE
O preconceito é uma constante para quem não tem o padrão de vida mínimo, garantido a todos em leis nacionais e declarações universais, mas negado a alguns pelas circunstâncias. “O olhar das pessoas é diferente. Sinto uma diferença. Nos estabelecimentos, as pessoas ficam olhando por estar sujo. Uma vez fui seguido por seguranças num supermercado. Eles só pararam quando eu mostrei uma nota de R$ 10 e disse que não ia roubar, que tinha dinheiro”, relata e dá uns goles na sua bebida. Quando precisa de apoio, uma roupa ou um banho, Claudiomiro recorre a instituições voltadas para a questão da moradia de rua. As pessoas que andam pelas ruas também o ajudam. Estadia em albergue, porém, não lhe agrada. Considera-se “meio espiado”, não gosta de bagunça nem de ajuntamento. “E mais”, relata, “no albergue, dá pra ficar até 15 dias. Tem cama e comida, mas se não voltar numa das noites, não fica mais. E tem que chegar cedo todo o dia”.
A situação de rua parece não lhe ser motivo de muitas queixas, mas Claudiomiro é incisivo ao afirmar: “Morar na rua não é vida não”. Pretende ter uma casa, sonha em ter mais uma vez o seu lugar. Quem sabe até morar com uma companheira. Sorrindo, releva que não tem namorada atualmente, mas “fica, como dizem por aí”. Ainda sorrindo, mistura-se à multidão de pessoas que se aglomeram sob o céu do Centro Histórico de Porto Alegre, muitas carregando o pior problema do mundo, muitas não percebendo que existem problemas maiores do que o seu próprio mundo.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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uando escolhemos o tema desta edição da revista Primeira Impressão, logo me veio a ideia de refletir sobre os problemas habitacionais de nossas grandes cidades. Ao propor a pauta “moradia a céu aberto”, planejava um texto falando de moradores de rua e também dos movimentos sociais que lutam pela causa. Porém, a entrevista com o movimento escolhido não rendeu o esperado – felizmente, no jornalismo, as coisas nem sempre acontecem como o planejado – e o resultado final foi outro. Não pude ir por outro caminho senão contar um pouco da história daquele homem, encontrado ao acaso nas ruas de Porto Alegre, que havia compartilhado sua vida comigo de forma tão sincera. Nossa conversa começou tímida, tateando os limites entre entrevistado e entrevistador, e terminou com sorrisos e um caloroso aperto de mão. Reflito sobre o papel social do jornalismo, do jornalista. Penso na necessidade de enxergar e mostrar ao mundo o que muitos parecem ter esquecido: que pessoas diferentes de nós também são pessoas, cada qual com uma vida repleta de histórias, amores, dificuldades e sonhos.”
O céu como esperança
Com a vida nas mãos Transportar órgãos é uma tarefa de grande responsabilidade para as companhias aéreas. Michele espera que do céu venha o rim que a libertará da hemodiálise Texto de ANDRESSA BARROS Fotos de FERNANDA ESTRELLA E LÍVIA SAGGIN
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oar um órgão é dar a chance de um coração continuar batendo, de olhos continuarem admirando as maravilhas do mundo, de um pulmão sentir o frescor do orvalho, enfim, é saber que a morte de uma pessoa amada pode ser o recomeço da vida para muitas pessoas. Michele Aparecida da Silva, 37 anos, casada, mãe de uma menina de 11 anos, tem um motivo para olhar para o céu: ela está novamente à espera de um rim. Ela iniciou a batalha há sete anos, quando os primeiros sintomas da insuficiência deram sinais. “Começaram a inchar minhas mãos e meus pés, a pressão disparou. Tive que procurar atendimento médico”, diz Michele. Após quase um ano de investigações médicas, exames, procedimentos e angústias, teve então, que iniciar as sessões de hemodiálise. A batalha foi grande. Cheia de inseguranças e sofrimento. Foram várias sessões de hemodiálise, que deixavam a moradora de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, presa a uma máquina para
FERNANDA ESTRELLA
Persistência: o primeiro rim que Michele recebeu foi perfurado durante um exame. Agora, ela aguarda outra chance
filtrar seu sangue quatro horas ao dia, três vezes na semana. O tão esperado dia chegou e o céu ajudou a realizar seu sonho. O novo rim partiu de Pernambuco em janeiro de 2011, depois da morte cerebral de um senhor que sofreu um infarto. O céu não podia estar mais lindo naquele dia. O sonho só tornou-se realidade graças à sensibilidade da família do doador. Família que, devido a questões éticas, Michele nunca poderá agradecer pessoalmente. Além disso, o transplante só foi possível porque existem empresas que têm o cuidado LÍVIA SAGGIN
adequado para transportar órgãos. Após a morte cerebral do doador ser confirmada, com o consentimento da família, incia-se a busca pelos receptores dos órgãos. O Brasil tem uma lista única, mas o estado onde ocorreu a morte tem prioridade. Se não houver possíveis receptores na região de origem do órgão, a busca por pacientes que necessitam de um transplante é aberta para o todo o Brasil. Cada estado tem o perído de uma hora para solicitar a doação. O processo é uma corrida contra o tempo, já que orgãos como o fígado, têm um limite de 12 horas para permanecer fora do corpo. Para transportar, ele é armazenado em uma caixa térmica, e, durante a viagem de avião, permanece na cabine, sob responsabilidade do comandante, que tem prioridade de pouso e decolagem da aeronave. Já no local de desembarque, o orgão é retirado antes da saída de qualquer passageiro do avião, e não precisa passar por nenhum tipo de procedimento de segurança, já que aparelhos como detectores de metais podem comprometer suas propriedades naturais. Segundo a assistente social Maria Marta Leirias, da Central de Transplantes do Rio Grande do Sul, o transporte de órgãos ou tecidos que podem permanecer resfriados por mais de três horas pode ser realizado por empresas aéreas comerciais. Nesse caso, o serviço é feito gratuitamente, mediante termo de cooperação. Nos demais casos, se freta um voo, que é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
ERRO MÉDICO
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O transplante de Michele foi realizado com sucesso no início de 2011, mas, em maio do mesmo ano, durante um exame, acidentalmente os médicos perfuraram o rim transplantado. Foram mais 32 dias de internação e sofrimento. No 22º segundo dia, o destino pregou uma peça em sua vida. O rim transplantado teve que ser retirado. Deste então, Michele segue realizando sessões de hemodiálise três vezes por semana, torcendo para que, novamente, o céu a ajude na conquista de um novo órgão. Nas sessões de diálise que realiza, na Clínica de Hemodiálise São Leopoldo, Michele tenta manter a alegria. Segundo a equipe de enfermagem do serviço, a paciente nunca deixa a peteca cair, está sempre sorridente. A turma da sala que ela frequenta nas
segundas, quartas e sextas é muito animada. A tristeza e o desânimo são deixados de lado. Depois do agito da chegada e a instalação das agulhas, vem a hora do lanche. O lanche, que, para qualquer um, é um momento corriqueiro, para os pacientes com problemas renais é uma ocasião especial. Este é o momento em que eles podem satisfazer os seus desejos de, por exemplo, comer uma carambola. Tudo porque, caso não passem pela sessão, uma simples frutinha poderia virar um grande pesadelo. Durante a sessão de hemodiálise, o rim artificial se encarrega de eliminar o excesso de potássio. Depois de toda essa função e do desgaste da sessão de hemodiálise, os pacientes aproveitam para tirar um cochilo. Passar um tempo com esse pessoal é uma verdadeira lição de vida. Conviver com a espera, contar com a generosidade das pessoas mantendo a autoestima elevada e o brilho no olhar não é tarefa fácil. A leopoldense consegue como poucas pessoas. De acordo com a assistente social Maria Marta Leirias, o estado tem um total de 1.634 pacientes à espera de um órgão. Os mais esperados são rim, córnea e fígado. Nos primeiros três meses de 2012 foram realizados 454 transplantes no Rio Grande do Sul, sendo que 245 pessoas voltaram a ver o brilho do sol e o colorido da vida. Somente um coração voltou a bater em outro peito. No mês de março, o Rio Grande do Sul teve somente 18 doadores efetivos. Os transplantes também podem ser realizados entre pessoas vivas, no caso de rins, córneas e medula óssea se ocorrer compatibilidade. A espera pelo órgão respeita uma lista única para o país inteiro. Devido ao período máximo que cada órgão resiste fora do corpo, o transporte precisa ser rápido e seguro. Esse transporte pode ser feito pela terra ou pelo ar, e é todo custeado pelo Sistema Único de Saúde. Dessa forma, as chances dos pacientes encontrarem o órgão tão sonhado aumentam. Mesmo assim os números de transplantes ainda estão baixos. O Brasil registrou no ano passado 21.040 transplantes, um número recorde, ultrapassando os 20.053 realizados em 2009. Para mudar essa realidade, não basta apenas declarar no RG. É preciso conversar com familiares e amigos sobre a vontade da doação. De nada adianta querer doar e não comunicar e convencer as pessoas mais próximas. A doação é um gesto seguro para o
À espera de um órgão
No Rio Grande do Sul, até julho, 1.634 pessoas aguardavam na fila por um transplante. Confira quais órgãos elas esperam
1039 Rim 362 Córnea 148 Fígado 57 Pulmão 13 Coração 9 Pâncreas + rim 6 Fígado + rim doador e para o receptor. A avaliação de morte cerebral é feita através de exames, testes e avaliações médicas em momentos diferentes para certificar a segurança que a família que está doando necessita. Essas avaliações sempre passam pela análise de vários profissionais. Os órgãos não são vendidos ou compra-
dos, são doados de livre e espontânea vontade em comum acordo de todos os membros da família. O trabalho é sério e feito com o consentimento da família a partir do momento em que realmente a morte cerebral é confirmada. Fica nas mãos da família decidir dar continuidade à vida. Michele continua esperando.
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mpossível não pensar na fragilidade da vida enquanto converso com Michele. Penso também na injustiça cometida ao ter que entrar na fila de espera de doação um órgão novamente. Injustiça cometida por quem? Deus? Um erro médico, um descuido, como pode mudar a vida de alguém assim desse jeito? Ponho-me em seu lugar e definitivamente não sei como reagiria. Com certeza não teria a mesma força de vontade e a mesma alegria pela vida que ela tem. Michele conta sua história com naturalidade. Sem mágoas ou raiva reprimida. Ainda em casa, antes de chegar ao hospital, fiquei pensando em como perguntar coisas tão íntimas sobre um assunto tão delicado. Estou acostumada a ficar atrás da câmera sem falar, sem me meter no que o repórter está fazendo, ficar apenas observando. E desta vez os papéis foram trocados. Eu sou a repórter. Estava tremendo. Preferia milhões de vezes ser a fotógrafa. Depois que a conheci, nosso papo foi rolando tranquilamente. Parei de tremer. Achei-a uma heroína. Incrivelmente bem humorada e positiva. Se aprendi a ser repórter, não sei, mas com certeza aprendi muito sobre garra e vontade de viver.”
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O céu como sabor
Doce cultivo A laranja é a fruta mais plantada do Brasil. Entre as inúmeras variedades, a laranja do céu, produzida pelo casal Gilberto e Juraci, em São Sebastião do Caí, é a de menor acidez
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Texto de LISIANE MACHADO Fotos de NATACHA OLIVEIRA
a beira do quilômetro 20 da ERS-122, em São Sebastião do Caí, a placa empoeirada já anuncia o caminho. Poucos são os quilômetros na estrada estreita de chão batido até a entrada, sem grades nem muros, apenas marcada por roseiras coloridas, da propriedade rural de Gilberto Vizentini. A atividade naquela manhã ensolarada de sábado era diferente da lida da semana, mas mantinha o contato com a terra: Gilberto cortava grama. Natural de Dois Lajeados, Gilberto, 46 anos, vive em São Sebastião do Caí há pouco mais de duas décadas. Sua companheira durante todo esse tempo é a esposa, Juraci Toesca Vizentini, mesma idade, com quem é casado há 23 anos. “Minha grande paixão é minha esposa”, declara. Ela responde: “Ele é uma pessoa especial como marido e como pai. Trabalhador, caprichoso, tudo de bom”. Apreciador do jogo de bocha, Gilberto divide com a esposa o gosto pela dança, especialmente a valsa. Pele clara da descendência italiana, cabelos grisalhos, olhos azuis e mãos bem cuidadas, Gilberto deixa para trás o conceito de produtor rural com mãos calejadas e pouca instrução. O filho de Luiz Vizentini, 71 anos, e Carmelina Veroneze (já falecida) é grato pela herança mais valiosa que poderia receber dos pais: “O que eles me ensinaram de mais importante foi o ofício da agricultura e o incentivo ao estudo”. Gilberto é técnico agrícola e tem na terra a fonte de renda para manter a família. Juntos, Gilberto e Juraci trabalham duro, faça chuva ou faça sol, para criar os filhos, Daniela Vizentini, 15 anos, e Hédi, 22. Juntos, também constroem a casa nova, em uma propriedade de três hectares, e dividem sonhos. “A gente sempre quer ter saúde para poder trabalhar e ter dinheiro suficiente para viver bem”, admite Gilberto. O local onde constroem a casa já possui uma área plantada com 350 pés de laranja do céu, além de limão, caqui e bergamota, para serem comercializados. As terras são vizinhas daquela em que a família vive hoje. A propriedade de 15 hectares é pertencente à Gabardo Agroturismo. De tudo o que produzem, recebem uma porcentagem. São 4.150 pés de bergamota (deles, 3.500 são Montenegrina, 450 Caí e 200 Parecí), 1.300 pés de pêssego, 350 pés de laranja do céu, 100 pés de caqui e 35 pés de quinca – ou laranjinha da Índia. Além disso, a propriedade possui 1.400 metros quadrados
de açude com peixes e dez colmeias para a produção de mel. Tudo aos Na propriedade de Gilberto, a laranja do céu é vendida em caicuidados do casal. “Nós dois que tomamos conta de tudo. Na época de xas de 20 quilos. Em 2011 a média de preço da caixa foi de R$ 16. O safra, contratamos três pessoas para nos ajudar”, explica Gilberto. agricultor conta que depois que saem de sua propriedade, 90% das Em 2010, o agricultor foi o campeão da 18° Festa Nacional da Berlaranjas estão em plenas condições de serem consumidas e são enviagamota, tradicional evento de São Sebastião do Caí, na categoria ladas diretamente para os supermercados. Os outros 10% são enviados ranja do céu tardia. A fruta cultivada por Gilberto, também conhecida para a Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa/RS). como laranja lima em outros estados brasileiros, é uma das variedades Durante um passeio de trator, Gilberto e Juraci mostram as terde baixa acidez. Em todo o mundo, há cerca de 100 variedades produras onde trabalham. Contam que no final de 2011 começaram a imzidas em escala comercial. plantar o sistema de irrigação em parte das plantações Entretanto, o cultivo da fruta exige cuidados. de pêssego e de bergamota montenegrina. A moderA laranja do céu é sensível a várias doenças, e a nização os tranquiliza quanto à época de estiagem. A principal é o cancro cítrico, explica Gilberto: “É preocupação com o meio ambiente também faz parte uma doença sem cura que começa a aparecer do dia a dia de trabalho dos dois. Gilberto aponta os pelas folhas e passa para as frutas”. Outra vilã das galhos secos no meio do caminho, entre uma fileira de laranjeiras são as moscas da fruta que aparecem pés de bergamota e outra, e explica: “Existe um instruna fase de maturação do pé. O assistente técnico mento que vai embaixo do trator que tritura esses gaem Fruticultura da Regional da Emater/RS-Ascar lhos que depois vão virar adubo”. No final do passeio, Lajeado Derli Paulo Bonine indica o trabalho de o veículo para sob o teto de um galpão onde ficam um profissional para o controle de pragas: “O os utensílios de trabalho. São tesouras, caixas e uma principal é identificar quais doenças ocorrem na esteira que chama a atenção. Gilberto conta que, em região e recorrer a um engenheiro agrônomo”. época de safra, a esteira é capaz de lavar e polir cem O agricultor conta que os cuidados com a lacaixas de laranja ou bergamota por hora. ranja do céu são os mesmos que se deve ter com Sempre com um sorriso no rosto e fazendo brinGilberto Vizentini, outras espécies: exige atenção desde a plantação cadeiras, Gilberto fala do seu jeito de levar a vida sem agricultor dos pés, passando pelo uso de produtos defensinunca se esquecer da honestidade: “Procuro fazer as vos, até a colheita. “A vida útil de um pé depende coisas sem pensar em tristeza e desânimo, porque a só dos cuidados com ele e com o solo, que, se for adequado e fértil, vida é muito curta”. Para ele, a palavra céu significa tudo que é o torna praticamente vitalício”, diz. Gilberto faz o plantio uma vez por mais doce, pois, segundo o agricultor, a variedade não é exclusiva ano, no inverno. A colheita, no caso da laranja do céu tardia, se dá entre da laranja, também remete à bergamota. Ao definir a palavra céu agosto e setembro. A variedade precoce é colhida entre junho e agosto. em uma só, Gilberto foi certeiro: “Doçura”.
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Procuro fazer as coisas sem pensar em tristeza e desânimo, porque a vida é muito curta”
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Realização: Gilberto e Juraci possuem uma área com 350 pés de laranja do céu
LARANJA O ANO TODO A laranja é uma fruta cítrica encontrada o ano inteiro, e o Brasil é líder mundial na sua produção. Com mais de 800 mil hectares, a fruta é a mais plantada no país. Cerca de 70% dessa área se encontra no estado de São Paulo. No Rio Grande do Sul, o cultivo da laranja ocupa 17.963 hectares e emprega 10.047 produtores, segundo dados da Emater/RS-Ascar. O que favorece o Rio Grande do Sul na cultura da laranja do céu são as estações bem definidas. A região do Vale do Caí é a maior produtora de frutas cítricas do Rio Grande do Sul, com área de 11.700 hectares, 1.742 citricultores e uma produção de 202 mil toneladas ao ano. A laranja do céu, por sua vez, ocupa 767 hectares e representa uma produção anual de 15.340 toneladas na região. Os citricultores do Vale do Caí recebem R$ 6,4 milhões pela produção comercializada de laranja do céu. O valor que circula na região, envolvendo toda a cadeia produtiva, está estimado em R$ 32 milhões. São Sebastião do Caí, a 65 quilômetros de Porto Alegre, tem, em média, 600 hectares plantados de frutas cítricas, 45 deles de laranja do céu. No município, 40 são os produtores que cultivam a fruta gerando uma média de 900 toneladas por ano.
LARANJA TODOS OS DIAS A nutricionista Rafaela Santiel, de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, elenca os benefícios de consumir a laranja: “Além da vitamina C, ela também oferece grande quantidade de vitamina A e vitaminas do complexo B. Apresenta quantidades significativas de sais minerais, como cálcio, potássio, magnésio, fósforo e ferro. Além disso, o fruto contém fibras”. Segundo a nutricionista, as propriedades da laranja juntas são capazes de controlar a pressão sanguínea, combater o colesterol, estimular as funções intestinais e reforçar as defesas do organismo. A nutricionista Amanda Gonçalves Reda, também de Gravataí, reforça a importância da vitamina C, que contribui no combate de sintomas de gripes e resfriados: “A vitamina C é um antioxidante poderosíssimo. Estudos evidenciam seu papel, inclusive, na prevenção do câncer. Por não ser sintetizada por nós seres humanos, seu consumo diário é essencial”.
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uando peço um suco de laranja no bar, ele já vem prontinho e até adoçado. Quase penso que a laranjeira possui uma torneirinha e de lá jorra suco de laranja. Algo tão simples como uma laranja pode revelar curiosidades e render boas histórias. Escrever esta matéria me fez perceber o quanto é importante estarmos sempre dispostos a aprender. Além de conhecer sobre algumas variedades de frutas, aprendi que pouco sabemos sobre como os produtos chegam a nossa mesa. Entender esse processo é um trabalho realmente riquíssimo. Por trás da laranja, pude conhecer a família que planta a muda de laranjeira para que um dia eu possa comer a laranja ou beber seu suco. E tive a satisfação de conhecer uma família acolhedora que abriu as portas de sua casa e me proporcionou uma manhã fantástica. Além de realizarem meu modesto sonho de andar de trator, me falaram de suas realizações, de seus sonhos e me lembraram do quanto vale um sorriso no rosto para que tudo dê certo.”
O céu como história
Uma vida suspensa no ar No ano em que a Varig completaria 85 anos, ex-comissário relembra como foi voar pela estrela brasileira
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Texto de LUCAS REIS. Fotos de ANDRÉ SEEWALD
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a mitologia grega, Ícaro, junto de seu pai, Dédalo, um reDIVIDINDO A EXPERIÊNCIA nomado inventor, tentou deixar a ilha de Creta usando Foi em 1995 que Ussanovich sentiu a necessidade de dividir sua exasas feitas com cera de mel de abelha e penas de gaivota. periência, como comissário, com outras pessoas, jovens que, como Porém, contrariando as recomendações do pai, Ícaro voou ele, tivessem o mesmo sonho de ficar mais perto do céu. Nascia a próximo demais ao Sol, que derreteu a cera de suas asas, fazendo Aerosul, Centro de Formação de Comissários de Vôo e Assessoria ao com que ele despencasse no mar Egeu. Serviço de Bordo, que viria a ser a escola pioneira desse tipo no Rio A mitologia de Ícaro serviu de inspiração para muitos outros Grande do Sul. “Antes só São Paulo e Rio de Janeiro dispunham de lohomens. Ele, aliás, estampou por mais de três décadas a fuselacais especializados no treinamento de comissários”, ressalta Marcos, gem dos aviões da Viação Aérea Rio Grandense, a Varig, primeira orgulhoso. “Mas, para abrir a escola, enfrentamos inúmeras dificulempresa aérea do Brasil. A data da fundação da empresa é 7 de dades, sobretudo na aquisição de equipamentos, fundamentais para maio de 1927 e seu idealizador foi o ex-piloto de combate da Seo treinamento dos novos comissários”, complementa. gunda Guerra Mundial Otto Ernst Meyer. A pioneira, como ficou Ao longo dos anos, a escola, localizada no centro de Porto Alegre conhecida, foi reconhecida mundialmente pela qualidade de seus foi crescendo e formando novos comissários. Acompanhando as muserviços. Ao longo de sua história, que durou até 2006, ela acodanças na aviação, a Varig também mudava. No início dos anos 1990, lheu inúmeros funcionários entre comissários, pilotos e funcionáela ganharia uma nova identidade visual, similar a empresa aérea alerios que trabalhavam na manutenção das aeronaves e nos balcões mã Lufthansa. A fuselagem dos aviões recebeu uma nova pintura com de atendimento. as cores branca e azul e com a famosa estrela rosa-dos-ventos, implanO ex-comissário de bordo Marcos Ussanovich Filho é uma dessas tada nos anos 1960 e que teve seu design remodelado. pessoas que, como Ícaro, também tinha o sonho de conhecer o céu O luxo e qualidade, no entanto, começaram a ficar ameaçados mais de perto. De camisa e gravata, ele senta em por inúmeras crises, dívidas, demissões em massa, uma das classes azuis da escola de aviação em que que, aos poucos, iam se agravando e corroendo as é diretor. O andar é o 14º, bem próximo ao céu e fuselagens das imponentes aeronaves. Com isso, de onde se pode avistar Porto Alegre e o lago Guaa Varig teve que abdicar de linhas não rentáveis, íba, que brilha e implora para ser admirado. Com além de reestruturar a companhia, desfazendo46 anos, 22 foram dedicados à Varig. -se de algumas de suas aeronaves. Além disso, há Ussanovich não se refere à Varig como uma anos a empresa já apresentava balanços financeiempresa qualquer. “Muita gente tratava ela ros negativos com má administração, crise política como sendo uma pessoa”, lembra. Ele e muitos e desperdício. ex-funcionários ainda sentem orgulho de ter traApós diversas mudanças de comando, o colapbalhado naquela que, nas palavras de seu funso ocorreu. Mescla de disputas políticas internas, dador, Otto Meyer, “foi criada para servir”. “A relação instável com o Governo, mudanças no ceVarig era impecável, desde na manutenção das nário internacional, bem como decisões erradas e aeronaves até na qualidade dos tecidos dos unidesperdício foram os principais motivos apontaformes”, destaca Ussanovich. dos para crise da empresa. Diante deste cenário, O bairro Lindóia, em Porto Alegre, onde Ussomado ao reflexo do congelamento das tarifas sanovich morou praticamente a vida inteira, era aéreas nas décadas de 80 e 90, as dívidas da emMarcos Ussanovich, muito próximo do Aeroporto Salgado Filho, e por presa foram estimadas em mais de R$ 7 bilhões, Ex-comissário de bordo isso ele conseguia observar os aviões dia e noite. em 2006. Ele, no entanto, sempre sonhou ser engenheiro A estrela brasileira não cortaria mais o céu do civil, pois gostava de desenhar. “Aos 13 anos, Brasil, e Marcos, assim como milhões de funciopassei a me interessar por aviação. A partir daí, o nários que fizeram parte da empresa, sentiriam a avião virou um hobbie”, conta Marcos com certa perda significativamente. “Era uma grande relação nostalgia. A primeira vez que voou foi em 1981, para visitar alguns de amor com o Brasil”, lamenta. Cerca de 3.600 funcionários foram familiares em São Paulo. A sua primeira viagem, porém, não foi demitidos, entre eles Marcos, que mais tarde seria contratado por com a Varig. “Fui de Vasp, porque naquela época eu achava que uma nova empresa aérea. Entretanto, ele não permaneceria lá por tinha que voar com uma empresa que fosse de lá”, brinca. A partir muito tempo. Acreditava que já tinha contribuído o bastante e que desse momento, começou um longo processo que se encerraria a perda da Varig não poderia ser reparada. Preferiu dedicar-se a um em 2010, com a sua aposentadoria definitiva. novo objetivo de vida: ensinar novos comissários. A primeira experiência de Ussanovich em uma empresa de Olhando para a janela, como quem procura no céu uma lemaviação foi em terra, trabalhando como recepcionista da Vasp. brança, Marcos lembra do dia em que uma amiga o encontrou abaNão demorou muito para a oportunidade de conhecer o céu de tido. Era da Varig que ele se recordava. A amiga fez uma brincadeiperto aparecer. “A Varig havia aberto seleção para comissário e ra: “Marcos, você teve um relacionamento longo com uma mulher eu tentei”, relembra Marcos. Sua seleção na empresa deu início a chique, refinada, imponente. Depois você teve um relacionamento uma grande história de amor. com uma ruiva. E agora você tem uma filha de 15 anos para cuidar”. Ussanovich guarda muitas lembranças boas da época em que Ele levaria a metáfora da amiga para sempre, onde a mulher elegantrabalhava na Varig, embora reconheça as constantes crises pelas te seria a Varig, a ruiva a Gol, empresa na qual encerrou sua carreira, quais ela passou ao longo dos anos. “A Varig foi o divisor de águas e a filha, a Aerosul, na época com 15 anos. do Brasil com o mundo, pois projetou o país de uma maneira muito Diferente de Ícaro, Marcos não só conseguiu chegar ao céu, como positiva.” Os olhos de Marcos brilham quando fala do “catering”, também pôde ensinar tudo o que aprendeu para novos sonhadores. responsável por promover serviços alimentares em lugares remoA Varig, nas configurações originais, não existe mais. Aquele requintos ou de difícil alcance, como aviões. Na Varig, anualmente eram te, o serviço de qualidade, a elegância dos comissários, a união fadistribuídos 13,5 milhões de refeições, elaborados por chefes de miliar, tudo aquilo se perdeu. O que ficou foi a lembrança de ser a cozinha de padrão internacional. primeira e a melhor estrela que brilhou no céu do Brasil.
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A Varig foi o divisor de águas do Brasil com o mundo, pois projetou o país de uma maneira muito positiva”
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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embro de que, quando criança, eu gostava de olhar para o céu e tentar adivinhar , pelas cores do estabilizador vertical dos aviões, qual era a empresa. Embora nunca tivesse voado pela Varig, sempre ouvia aquelas velhas histórias de sofisticação e serviços de qualidade impecáveis. Algumas pessoas da minha família até tiveram essa experiência, mas eu, infelizmente, nunca tive. Aliás, voei pela primeira vez de avião aos 16 anos, mas não pela Varig. Foi nesse período que alimentei o sonho de ser comissário de bordo. Sonho este que fui levando durante anos, mas sem chegar a concretizar. Paulatinamente fui despertando interesse pela aviação, ainda que tivesse frequentado o aeroporto pouquíssimas vezes. Conforme fui crescendo, outros planos foram surgindo, e aquela vontade de ser comissário foi desaparecendo. Hoje, estudando Jornalismo, tenho a oportunidade de relatar e resgatar fatos da aviação que, talvez, muitos desconheciam, inclusive eu. Escrever sobre isso é, portanto, uma imensa realização pessoal minha.”
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ESTEFÂNIA CAMARGO
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Na Lua o lado escuro é sempre igual No espaço a solidão é tão normal Desculpe estranho, eu voltei mais puro do céu” Nenhum de Nós
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O céu como vizinho
O homem que cumprimenta Deus pela manhã
LUCIANA BOHN
Paulo mora no último andar do edifício Santa Cruz, o arranha-céu de Porto Alegre
Texto de JULIANA DE BRITO Fotos de LUCIANA BOHN e RICARDO SANTOS
O
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final de tarde porto-alegrense apresenta no céu um momento sempre esperado por muitos cidadãos. Uma combinação de cores, entre o amarelo, o laranja, o vermelho, contrasta no azul e desenha formas nas nuvens brancas, então tingidas pelo efeito de tantas cores. Para alguns transeuntes atentos a seu próprio tempo, o momento do pôr-do-sol passa despercebido. Para outros, é um instante precioso do dia. Reconhecido – pelo menos entre os gaúchos – como um dos mais belos cartões postais da capital, o momento em que o sol se põe no horizonte do Guaíba é o preferido de Paulo Ricardo Levacov. Com andar lento, cabeça branca, mas com muitos cabelos, vive, aos seus 90 anos, no andar mais alto de Porto Alegre. Ao longo de 47 anos, viu o centro da cidade em mutação constante. Já no elevador que sobe leve e rápido pelos 34 andares, ele dispara: “Todos os dias quando acordo, abro a janela, estendo a mão e cumprimento Deus”. O Edifício Santa Cruz, localizado na Rua dos Andradas, número 1234, no centro da capital, foge à regra da fotografia da cidade. Em comparação com outros centros urbanos, é um nanico, mas em seu contexto dispara na altura em relação aos demais prédios dos arredores. Fincado entre prédios menores e antigos, mesmo quem mira seu topo lá do calçadão, dificilmente saberá de sua peculiaridade. Com planos diretores e restrições ao número de pavimentos, os andares mais altos de Porto Alegre foram todos construídos nos anos 50. O morador das alturas é formado em Engenharia Civil, Mecânica e Elétrica e, mesmo aposentado, trabalha todos os dias, pois gosta e acredita que a ocupação lhe mantém vivo. Afeiçoado por Porto Alegre, Levacov, nasceu no Rio de Janeiro, onde construiu suas memórias mais antigas. Ele repete a música que aos dois anos via na praia, junto com seu avô, os vendedores cantarolarem: “Sorvete, iá iá, é de coco é de coco da Bahia para a moça namorar”. Depois de passar por metrópoles do mundo inteiro, escolheu Porto Alegre para estabelecer sua vida, onde via as moças passearem com os chapéus que seu pai vendia em uma loja do centro. A história de Levacov mistura-se com a de Porto Alegre e com a do Edifício Santa Cruz. Na cidade que chegou em 1950, construiu cerca de 500 mil metros quadrados. “A coisa que mais me deu satisfação na vida foi ter construído cinco creches, cada uma com capacidade para cerca de 200 crianças”, diz com orgulho. Segundo Levacov, durante sua vida ergueu uma grande quantidade de fábricas e edifícios. Foi o engenheiro responsável pela edificação do Hospital Fêmina e da Garagem Gigante, na Rua Riachuelo, 981. Para contar suas histórias, o engenheiro
cita, fazendo um raro esforço, nome de logradouros e bairros de Porto Alegre em que deixou seu nome e suas histórias. “Fiz muitas obras. Adicionei melhorias às construções da cidade”, afirma, lembrando-se de uma casa que teve nos anos 50, em que implementou inovações na arquitetura. “No final de semana, recebíamos visitas da imprensa e de curiosos para ver nossa casa”.
gosto “ Particularmente, dessa altura. Tem uma
vista muito linda, que se modifica todos os dias” Paulo Levacov,
morador do andar mais alto de Porto Alegre
Atualmente, trabalha no escritório localizado dentro do próprio apartamento. Da janela em frente à escrivaninha, avista-se no horizonte o Guaíba. Ali, com duas mesas recheadas de papeis, rodeadas por fotos e lembranças, ele faz sozinho perícias e presta consultorias, inclusive para órgãos públicos. “Acredito que da minha turma eu sou o único que ainda está trabalhando”, suspeita rindo. Levacov também cogita ser o engenheiro mais velho em atividade na capital. Além de ter acompanhado a obra do Santa Cruz, é um dos primeiros moradores e o mais antigo do local. “Foi minha esposa que escolheu este apartamento, porque tem a frente mais bonita. Particularmente, gosto dessa altura. Tem uma vista muito linda, que se modifica todos os dias”. Levacov conheceu a sua esposa – a quem chama de “minha senhora” – no segundo ano de faculdade, quando ela era estudante de Direito. Apaixonaram-se e estão juntos até hoje. No entanto, há seis anos com Alzheimer, ela vive na cama e pouco se comunica. “O que amargurou a minha vida nos últimos anos um pouco – um pouco não, bastante – foi a doença da minha esposa”. Fruto do casamento, eles têm dois filhos, três netos e uma bisneta. Em cada história, não deixa de citar a esposa, principalmente quando recorda de suas viagens. Eles percorreram diversas cidades para conhecer onde viveram escritores que gostam, como Emily Dickinson, Robert Frost e William Shakespeare. Levacov é apaixonado pelos Estados Unidos e mostra com orgulho centenas de fotografias, recordando a história por trás de
RICARDO SANTOS
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LUCIANA BOHN
cada uma delas. Um álbum tem uma sequência das florestas coloridas do outubro e novembro dos Estados Unidos, quando as folhas mortas e a copa das árvores formam a típica imagem da paisagem norte-americana. O engenheiro demora a responder o que gosta de fazer além de trabalhar. “Boa pergunta”. Depois de alguns segundos, contrariando a lógica de sua geração, diz: “Gosto de navegar na internet. É possível viajar para qualquer lugar sem pedir licença”. No Google, ele pesquisa as notícias de outros países e os estudos sobre Alzheimer. Na parede rabiscada da sala, com uma frase de Cecília Meireles (“Quem falou de primavera sem ter visto seu sorriso, falou sem saber o que era”) e nas estantes com livros, também fica evidente o gosto pela poesia. “Escrevi três livros. Um é sobre minha vida. O de versos é metade em português e metade em espanhol, pois, como meus pais eram argentinos, minha primeira língua foi o espanhol. O terceiro é de contos. Gosto muito de poesia, acho que é uma arte muito linda. As minhas são mais ou menos, mesmo morando em lugar poético”, diverte-se.
O EDIFÍCIO
Construído em 1958 sob encomenda do Banco Agrícola Mercantil, o prédio leva o nome da cidade onde a empresa surgiu. Ubirajara Antônio Volpi, 76 anos, é o síndico responsável por
E um dia serei velho, sem o vigor de agora, O passo lento. E olhando para trás, tão atrás que o pensamento quase se desfaz em névoa de lembrança, verei teu rosto amado e, atrás, mais atrás, um riso de criança Do livro Verso e Pouca Prosa Paulo Ricardo Levacov, poema de 1970
administrar os 31 andares – sete residenciais e 24 comerciais, a maioria escritórios de advocacia. Segundo ele, o prédio tem movimento de, em média, 13 mil pessoas por dia. A movimentação é feita pelos 18 elevadores e com os cuidados de 35 funcionários que se dividem em manutenção, limpeza, recepção e segurança. Sem uma explicação evidente, o primeiro dia útil da semana é o mais movimentado, conforme o administrador, que mora no bairro Belo Vista e não trocaria sua residência pela agitação do Centro. Com 21 anos de experiência pelos corredores do Santa Cruz, Volpi diz que nunca houve uma ocorrência de grande prejuízo e que a segurança hoje permite controle integral da movimentação. “Temos duas portarias, uma é 24 horas. Ninguém passa pelo porteiro sem se identificar, e os elevadores residenciais são restritos”, explica. Para ele, atualmente o edifício mantém um status e a curiosidade da população. “O que mais chamava atenção era a estrutura metálica, pouco usada nas construções pelo alto custo”, analisa. Em sua sala no 9º andar, com a vista cercada pelos prédios antigos e decadentes, Volpi aponta que a curiosidade quando o prédio foi erguido era a tecnologia: “Tinha uma linha de telefone por sala! Para a época, isso era excelente”, conta. “Muitos jovens passam aqui na frente e nem sabem da história deste prédio”.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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m um dos pontos mais altos de Porto Alegre – pelo menos construído pelo homem –, encontrei uma das histórias mais intensas que já ouvi. Não é extraordinária, não envolve superação e, talvez, não seja nem inédita. A recomendação do próprio entrevistado, por telefone, era que chegássemos antes do pôr-do-sol. Junto com o fotógrafo Ricardo Santos, combinei o encontro para próximo das 17h. Mas Levacov não estava em casa. O porteiro nos deu as coordenadas (“Tem os cabelos brancos e caminha devagar”) para identificarmos o entrevistado assim que ele chegasse. Depois de quase uma hora, aproximou-se da recepção do Edifício Santa Cruz um homem que conferia com a descrição do porteiro. Foi simpático e, inclusive, voltou até a lotérica do térreo para nos comprar um chocolate (um dia depois da Páscoa). É impossível não se deixar contaminar com a forma que Levacov fala sobre sua existência, suas construções e sua morada. O “senhor das alturas” fez de tudo na vida, mas não cansou, vive intensamente até hoje, apesar de sua maior tristeza: ter “sua senhora” doente na cama. Lá do alto, perdemos o famoso entardecer da capital, mas nos deparamos com uma história bonita em sua simplicidade.”
O céu como meta
Desbravando o ponto mais alto das Américas Por mais de uma vez o gaúcho Leonardo foi até o Aconcágua, entre a Argentina e o Chile, para chegar ao ponto mais alto das Américas. O sonho ainda não se realizou
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Texto de ROBERTO FERRARI Fotos de ARQUIVO PESSOAL
icar próximo ao céu é um sonho de muitos, mas são poucas as pessoas que se arriscam a desafiar o próprio corpo em uma caminhada para alcançar esse objetivo. Afinal, alcançar o céu apenas caminhando? No entanto, os rústicos vales que cortam a Cordilheira dos Andes, no oeste da Argentina, e o fascínio pela superação física e mental motivaram o enólogo Leonardo de Aranha Haupt, de 44 anos, a desbravar o ponto mais alto das Américas: o Cerro Aconcágua – também conhecido como a “Sentinela de Pedra” –, que tem 6.962 metros de altitude. Para se ter uma ideia, o ponto mais alto do Rio Grande do Sul é o Pico do Monte Negro, que fica a 1.403m de altitude e se localiza em São José dos Ausentes, no Nordeste Gaúcho. Também é nessa região que está Farroupilha, município onde Leonardo reside. O enólogo mora na zona rural, na localidade de Desvio Blauth, local com forte influência da imigração alemã – isso num município que abriga o berço da imigração italiana – e que foi ícone durante décadas como um pólo turístico. Numa casa simples, que muito se assemelha com um chalé, Leonardo divide sua residência com sua esposa Jaqueline e os filhos Gabriela, de 18 anos, e João Pedro, de 10. Nesse local, guarda os equipamentos que juntou durante anos para tornar um sonho realidade. O sonho começou a se moldar em 2004, quando junto de amigos decidiu percorrer, em caminhada, toda a costa da Praia do Cassino, considerada a praia mais extensa do mundo, com 254 km de orla contínua. Conforme conta, essa aventura foi maior ainda porque foi realizada durante o inverno, época em que o local fica praticamente inóspito. Mas, mesmo com algumas dificuldades, o grupo se deu bem, e o fascínio pela aventura tomou conta do enólogo. A vontade de fazer algo desafiador, em todos os sentidos, resultou no desejo de chegar até o ponto mais alto das Américas: o Aconcágua. “É a montanha mais alta do plane-
Superação: esgotado fisicamente, Leonardo conseguiu chegar a 5.700 metros
ta situada fora do Himalaia e exerce fascínio em muita gente por sua altura e por suas histórias”, conta Leonardo, num tom de voz firme, mostrando que o sonho se tornou algo muito sério.
PREPARATIVOS PARA A PRIMEIRA VIAGEM
Quando decidiu ir ao Aconcágua, o enólogo iniciou imediatamente os preparativos para a jornada. “Busquei o máximo de informações possíveis através de livros e da internet e comecei uma rotina intensa de exercícios físicos para estar em condições de enfrentar os desafios da caminhada.” O enólogo lembra que contratou um profissional especializado para o treinamento e buscou planejar todas as ações que seriam realizadas. “Soube que existem riscos para aqueles que não têm o preparo necessário, como edema pulmonar. É preciso ter um plano e cuidados com a alimentação. Quando se chega a localidade do Parque Provincial Aconcágua, são sete dias de aclimatação para o corpo se acostumar com o ambiente, e só depois inicia o ataque ao cume”, destaca. Quando a data marcada para a viagem chegou, em fevereiro de 2009, Leonardo considerava-se preparado. Nos primeiros dias, acreditou que a jornada até o pico seria tranquila. Rumou, então, ao oeste argentino. Porém, muitas dificuldades só se materializaram quando ele já estava subindo o trecho montanhoso. Ao seu lado estava um grupo formado por quatro escaladores de nacionalidades diferentes, dois guias e mais um “carona”, um artista que encontraram pelo caminho. Após passar pela aclimatação e iniciar o primeiro trajeto de caminhada, o qual é considerado o mais difícil, Leonardo se deparou com algumas dificuldades. Para o percurso, o enólogo precisou se manter bem alimentado e hidratado (cerca de seis litros de líquidos por dia). Também se manteve bem agasalhado para enfrentar as baixas temperaturas que chegaram a até 15 graus negativos durante a noite. Mas ainda assim isso não foi o suficiente. O problema em si, segundo ele, foi o ritmo avançado dos guias, que o fizeram exigir mais do que havia se preparado, fora o peso extra que tinha nas costas. “Levei roupa a mais do necessário, e isso pesou muito na mochila. Também usei de muito esforço para acompanhar o ritmo dos guias e acabei
que “porTudoventura
aparecer e que envolva natureza, eu topo” Leonardo Haupt,
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enólogo
perdendo o fôlego. Quando se está há milhares de metros do nível do mar, recuperar o oxigênio perdido não é fácil. Por isso me dei conta que não conseguiria chegar até o pico”, recorda. Ao perceber que estava esgotado fisicamente, Leonardo decidiu que seria irracional continuar o percurso, pois comprometeria a sua saúde e talvez até a sua vida. Diante disso, parou a subida quando alcançou os 5.700m. “Eu não tinha conhecimento de todos os problemas que enfrentaria, pois as informações que encontrei não eram tão específicas. Dores de cabeça, por exemplo, são normais”, enfatiza.
PROJETANDO O TOPO
Com a experiência adquirida, Leonardo pôde se preparar de maneira mais efetiva, investindo até menos financeiramente. Dessa forma, em fevereiro de 2010, o grupo rumou novamente ao Aconcágua. O resultado, infelizmente, não foi o que o enólogo esperava. Porém, avaliou a segunda experiência de maneira positiva. “Conseguimos colocar um membro da nossa equipe no cume, o que para mim tem um grande significado”, diz. Mesmo com a frustração de ainda não ter realizado este sonho, Leonardo conta que persiste a ideia de voltar ao oeste argentino, mas não sabe quando será a nova data. “Mas faremos sem guia e levaremos uma equipe maior.” Enquanto a tão sonhada data não chega, o enólogo se dedica a outros esportes, como trekking, rústicas e corrida de aventura. “Tudo que por ventura aparecer e que envolva natureza, eu topo”, garante.
A SENTINELA DE PEDRA
O Cerro Aconcágua está localizado em território argentino, na província de Mendoza e departamento de Lãs Heras. Com altitude de 6.962 metros acima do nível médio do mar é a maior montanha das Américas e também de todo o hemisfério sul, sendo somente superada pelos gigantes do Himalaia na Ásia central. A palavra aconcágua na língua quíchua significa “A sentinela branca” e é uma montanha que oferece uma grande diversidade de rotas e desafios interessantes para qualquer montanhista.
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e caminhar alguns quilômetros, seja numa estrada plana ou com alguns morros já é difícil, imagine o que deve ser trilhar uma caminhada cujo trajeto é quase todo formado por subidas. E não um trajeto qualquer. No sentido vertical, o maior trajeto que pode ser feito nas Américas. Leonardo Haupt tentou por duas vezes alcançar o topo do Aconcágua, mas não conseguiu. O que para alguns poderia resultar em apenas frustração, para ele é o estímulo para seguir tentando. É uma história de determinação que deveria ser aplicada para todas as pessoas em suas vidas. Quantos não desistem em uma jornada após o primeiro tropeço? É preciso ser perseverante, sempre. Ao escrever esta reportagem, refleti como é complexo o ato de conquistar um sonho. No caso do topo da Aconcágua, se fosse algo fácil chegar até lá, qualquer um faria. Mas não é. E Leonardo Haupt não é qualquer um. Aguardo a notícia do seu sucesso o mais breve possível. Boa sorte!”
Planejamento: para escalar montanhas, é necessário um preparo físico e um plano de alimentação adequado
O céu como estudo | 122 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2012
A pesquisadora do espaço
Thais é a única cientista com PhD em medicina aeroespacial na América Latina. Sua paixão pelas estrelas vem desde a infância
BRUNO SERSOCIMA (STOCK.XCHNG)
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Texto de RITA TRINDADE Fotos de FERNANDA ESTRELLA
hais Russomano nasceu em Porto Alegre, mas ainda muito pequena foi morar em Pelotas com sua família, onde passou toda a sua juventude. Com cinco anos, teve seu primeiro contato com o céu. Ela estava em uma viagem de férias no Rio de Janeiro e foi levada por sua mãe para conhecer o Planetário da Gávea. Pronto, daquele momento em diante, nascia a sua paixão pelo espaço. Hoje Thais é o maior nome da América Latina em Medicina Espacial. Única pesquisadora com PhD em medicina aeroespacial na América Latina, ela divide-se entre a coordenação do Centro de Microgravidade da PUC-RS, as aulas como professora convidada da King’s College - uma das mais prestigiadas universidades inglesas - e os estudos sobre os próximos passos do homem no espaço. Vencedora de diversos prêmios internacionais e com mais de 200 artigos publicados, Thais acredita que, nos próximos anos, ocorrerá uma grande mudança na relação do homem com o céu. Ela garante que o turismo espacial vai crescer, e o espaço sairá do domínio das agências governamentais. “Está em curso uma nova era espacial. Daqui a pouco, crianças estarão brincando em voos espaciais”, projeta. A previsão da pesquisadora de hoje era o sonho da criança de oito anos, que fundou e liderou o Clube das Crianças Astronômicas. Foi naquela época, também, que ela conseguiu juntar dinheiro para comprar sua primeira luneta, na tradicional Casa Masson, em uma das viagens que fez com a mãe a Porto Alegre. Mas sua maior paixão na infância era assistir ao seriado americano Perdidos no Espaço. Thais chegou a mudar de turno na escola para não perder as incríveis aventuras da família Robinson. Com 10 anos, a menina prodígio já escrevia seu primeiro livro: Três crianças falam de astronomia. O fascínio pelo tema ultrapassou a infância, e aos 15 anos Thais teve que tomar uma decisão: optou por estudar medicina, em Pelotas, já que era muito jovem para ir morar sozinha no Rio de Janeiro, onde, na época, existia o único curso de Astronomia do Brasil. Com 15 anos, então, entrou na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), onde cursou Medicina, curso que concluiu em Porto Alegre.
Após se formar médica, fez mestrado nos Estados Unidos e doutorado na Inglaterra, ambos na área de medicina aeroespacial. Foi em 1999 que Thais criou o Centro de Microgravidade, que hoje possui oito laboratórios que atuam em diferentes áreas. Ela coordena uma equipe de 70 pesquisadores, sendo alguns estrangeiros, a partir de convênios firmados com outras instituições de ensino. O Centro analisa os efeitos que o espaço causa no corpo humano, como no coração, pulmão, ossos e músculos. São realizadas diversas pesquisas com voluntários, que contribuem com os estudos sobre a fisiologia espacial. Os pesquisadores buscam também entender o que se passa com a adaptação de pessoas que ficam muito tempo no espaço.
INESQUECÍVEIS AVENTURAS
Filha única do casal de advogados Nailê e Gilberto, aos 48 anos, ela mantém fortes raízes com a cidade da região sul do estado onde cresceu, inclusive por meio da sua coluna dominical
Está em curso uma nova era “espacial. Daqui a pouco, crianças
estarão brincando em voos espaciais” Thais Russomano,
pesquisadora em medicina aeroespacial
que é publicada, há 12 anos, no Diário Popular, jornal de grande circulação em Pelotas. Thais conta que começou falando apenas sobre o espaço e, hoje, escreve sobre tudo. O conhecimento de Thais a ligou à Agência Espacial Norte-Americana (Nasa), onde ocorriam algumas das aulas do seu mestrado. “Para mim, foi o máximo. Achava tudo espetacular. Hoje, a visão é mais real e menos fantasiosa. E cada vez mais produtiva”, assegura.
Apesar do cosmos ser a sua maior paixão, a pesquisadora nunca viajou para o espaço, mas não vê isso como algo impossível. A cientista teve duas grandes e inesquecíveis aventuras, como passageira, por dois voos parabólicos realizados pela Agência Espacial Europeia. Em cada voo, a aeronave realiza 31 curvas parabólicas de um minuto cada, criando uma sensação de microgravidade semelhante à existente em naves espaciais. A viagem dura três horas e 30 minutos e é
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FOTOS FERNANDA ESTRELLA
feita sobre o Atlântico, a 20 mil pés de altura, um pouco mais baixo que voos comerciais. A experiência e os estudos de Thais renderam, além de fortes emoções, dois trabalhos científicos de referência. Por sua orientação, foi instituída na Nasa uma dieta para os astronautas. Ela é simples: café, fatia de pão com queijo e suco de laranja, acompanhados de uma leve medicação contra náuseas. O segundo estudo é sobre reanimação cardiorrespiratória em microgravidade. Além da relação que Thais mantém com o espaço, ela também sustenta outra grande paixão: a escrita. A cientista tem sete livros publicados e já prepara o lançamento do próximo, que será intitulado Culpa, segundo romance da trilogia Eternidade, iniciada com Traição, lançado no final de 2010. O livro que encerrará a trilogia já tem nome, se chamará Paixão. Para Thais, a arte de escrever é simples, basta dedicação: “Adoro escrever, criar histórias. Os meus livros são dinâmicos, enxutos, com frases certeiras, assim como eu”, brinca.
Inovação: por orientação de Thais, foi instituída na Nasa uma dieta leve para os astronautas
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Equipe: o Centro de Microgravidade possui 70 pesquisadores que trabalham em oito laboratórios
pauta sobre a cientista Thais Russomano foi uma sugestão da professora Thaís Furtado, no início eu fiquei meio apreensiva, confesso que achei o assunto pouco interessante. Mas quando conheci Thais (a cientista) tive certeza que ela seria a personagem da minha matéria. O que mais me impressionou na entrevistada, foi o fato de que ela tem extrema facilidade em transformar o intrincado conhecimento científico em uma linguagem simples. De maneira que até uma criança entenda o porquê da sua paixão pelo espaço. Embora Thais tenha um conhecimento cientifico enorme sobre este assunto, tenha passado por experiências incríveis e inesquecíveis, ela não perdeu seu deslumbramento pelo espaço. O encantamento que ela descobriu ainda com cinco anos de idade permanece puro em seu olhar, ao falar sobre a última fronteira. Eu gostei muito de fazer esta matéria, aprendi bastante sobre medicina aeroespacial, vida de astronauta, espaço, efeitos que o espaço causa no organismo. Sinceramente, depois de tudo que li e ouvi ser astronauta não é tão divertido quanto eu imaginava. E muito mais difícil do que a gente pensa.”
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O céu como responsabilidade
EDISON VARA/PRESSPHOTO
Anjos da guarda dos pilotos
Em situações estressantes, coordenadores de voo, como Marcelo, conseguem agir com agilidade na remoção de pacientes Texto de RENATA MANDICAJÚ Fotos de ÂNGELO DE ZORZI E EDISON VARA/PRESSPHOTO
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e alguns anos atrás alguém perguntasse o que é um controlador de voo, poucos saberiam responder. Porém, de uns tempos para cá, devido a acidentes aéreos que ocorreram envolvendo brasileiros, essa profissão passou a ser mais conhecida. Hoje, muitos sabem da importância dessa profissão. Mas existe uma função também de alta responsabilidade que continua desconhecida: a do coordenador de voo. Segundo Geraldo Frederico Duster, chefe de operações aéreas da Uniair, o controlador de voo é formado pela Força Aérea Brasileira e controla o espaço aéreo, atendendo diversos segmentos. Já o coordenador de voo controla e acompanha as aeronaves da empresa em que trabalha, desde sua saída até seu retorno. É o caso de Marcelo Selaimen Medvedoviski, que trabalha há cinco anos na Uniair, empresa que tem por objetivo o transporte aeromédico e voos executivos. Além disso, a Uniair faz serviços de aeropublicidade, aerofotografia e aerocinematografia, mas o foco é o serviço aeromédico, utilizado principalmente por usuários do sistema Unimed. A rotina de Marcelo inicia-se às 19h, quando chega ao Aeroporto Salgado Filho, no Hangar Uniair. Sua jornada vai até às 7h da manhã do outro dia. A carga horária é de 12 horas trabalhadas e 36 horas de descanso, sendo que uma vez ao mês ele usufrui de três dias de folga. Uma de suas atividades é auxiliar os pilotos que estão realizando o transporte de pacientes. Mas suas tarefas vão além de só ajudar os pilotos por rádio e telefone. O coordenador também realiza trabalhos nas áreas administrativa, logística e financeira da empresa. Além de verificar o cadastro dos pacientes que serão removidos pela empresa, Marcelo também tem que preparar a chegada do avião no aeroporto de destino e verificar se o avião poderá pousar naquele aeroporto. Caso contrário, é dever do coordenador procurar o lugar mais próximo para aterrisagem. Para isso, ainda é preciso identificar o tamanho e que tipo é a pista, e, se o transporte for à noite, averiguar se
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Atenção constante: Marcelo é responsável por cuidar de todos os detalhes que envolvem a remoção de pacientes pelas aeronaves de sua empresa
há iluminação para o pouso noturno. É ele também que apura se o hospital de destino tem confirmação para receber o paciente, além de contatar uma ambulância que conduza o paciente até o hospital. Logo após a confirmação, a equipe de médico, piloto, copiloto e mecânico é acionada para estar na empresa, pois todos são necessários para à remoção que irá ocorrer. Marcelo não planejou ser coordenador de voo. Sua formação é em Administração. Natural de Pelotas, trabalhou em várias empresas da região. Quando entrou na Uniair, passou por um treinamento durante duas semanas, já que para ser coordenador de voo não é necessário ter formação específica. No treinamento, são repassadas informações sobre regulamento de tráfego aéreo, meteorologia,
planejamento e condução de voo. O conhecimento deste profissional não chega ser o mesmo de um controlador de voo, porque ele não realiza o controle do espaço aéreo como um todo, somente controla as aeronaves de sua empresa.
SITUAÇÕES ESTRESSANTES
Quem pensa que o estresse é o único fator que atinge esses profissionais está enganado. Os problemas de coluna são o maior incômodo dos coordenadores. Conforme Marcelo, todos os seus colegas já foram operados. Em dezembro, ele foi submetido a uma cirurgia na coluna cervical. O que mais favorece para que os coordenadores de voo sofram este tipo de lesão é a jornada de trabalho longa. Dores na coluna e o estresse têm contribuído para que muitos sofram afastaÂNGELO DE ZORZI
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Tem casos em que a gente vê pessoas queimadas, ou bebezinhos com problemas de saúde. Eu nem saio da sala para não me envolver, simplesmente não quero ver, deixo essa parte para o médico” Marcelo Medvedoviski, coordenador de voo
mento do trabalho. As situações tensas são provocadas principalmente pelo fato do profissional trabalhar com pacientes e seus familiares. Tudo tem que estar pronto desde a saída do avião. A ambulância precisa receber o paciente, e o hospital deve estar esperando, uma vez que a aeronave tem um tempo limite de 30 minutos para ficar com os aparelhos ligados quando está em terra. Todo o controle passa por este profissional, como o horário em que o avião vai aterrisar. Caso passe o horário previsto para a chegada, o coordenador tem que entrar em contato com o piloto e verificar o que pode ter ocorrido, ou com os controladores de voo e indagar qual a previsão do avião no radar. Para Marcelo, quem trabalha nessa área não pode se envolver com a situação. É preciso manter a calma, pois lidar com pessoas que já estão vulneráveis, em se tratando de estado de saúde, é bem complicado. Os familiares sempre estão tensos. Algumas pessoas não conseguem lidar com esse tipo de situação, tanto que Marcelo teve uma colega que não conseguiu continuar na profissão pelo fato de ficar muito nervosa diante das situações de pressão que sofria. “Tem casos em que a gente vê pessoas queimadas, ou bebezinhos com problemas de saúde. Eu nem saio da sala para não me envolver,
simplesmente não quero ver, deixo essa parte para o médico, pois ele está mais acostumado com esse tipo de situação”, afirma Marcelo.
VIDA PESSOAL
Um dos problemas enfrentados pelo coordenador de voo é o sono, devido à jornada de trabalho desgastante durante a noite. “Quando todo mundo está indo trabalhar, eu estou indo para casa dormir. Todo mundo está tendo seu domingo, e eu, trabalhando.” Segundo Marcelo, a sua noite de sono fica comprometida porque ele dorme das 9h ao meio-dia. “Ainda não está atrapalhando minha vida pessoal, porque hoje não sou casado, mas, quando eu for esse horário vai atrapalhar. Hoje eu tenho namorada, consigo equilibrar, mas, para o futuro, vou querer ter um horário normal, só não sei se aqui ou em outro lugar”, afirma Marcelo. A jornada de trabalho de 12 horas trabalhadas com 36 de folga faz com que muitos tenham que trabalhar no Natal ou Ano Novo, portanto é necessário saber administrar a questão referente a horários em relação à família. A namorada de Marcelo, Gabriela Donicht, mora Pelotas, mas, quando está em Porto Alegre, sente dificuldade de acompanhar a rotina de horários de Marcelo. “Muitas vezes eu gostaria de sair à noite, e, devido aos seus horários, ele não pode me acompanhar. Gostaria de desfrutar um pouco mais do tempo ao seu lado e muitas vezes isto não é possível”, afirma Gabriele. Segundo Marcelo, quando ele não está no trabalho, tenta esquecer um pouco suas atividades profissionais, se desligar de tudo o que acontece durante sua estadia na empresa. Afirma gostar muito de esportes, pratica kitesurfe, tênis e frequenta academia. Apesar de todas as preocupações, desgastes e horários diferenciados, o coordenador gosta do que faz. A sensação, quando um avião sai com destino a um hospital e o paciente é removido com todos os cuidados que necessita, é gratificante. Para o chefe de operações aéreas Geraldo Frederico Duster, os coordenadores de voo são como anjos da guarda dos pilotos. Diante de qualquer dificuldade que a aeronave possa ter, o primeiro que deve saber é o coordenador, que dará todo o apoio terrestre. “Eu vejo como é importante o trabalho de apoio aos pilotos e também na logística. Tenho que deixar tudo pronto para que meus colegas venham aqui e consigam realizar seu trabalho. Essa é a melhor parte, o avião chegou, a ambulância está lá e deu tudo certo. Tudo está pronto para a remoção do paciente”, enfatiza Marcelo.
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ol!!!!!! Aos 47 minutos do segundo tempo! É assim que posso resumir a finalização desta reportagem. A princípio ficou decidido que a matéria seria sobre controladores de voo, mas devido às dificuldades por todos serem militares, precisava de autorização para entrevistá-los, isto duraria alguns dias. Dias estes que eu não podia esperar. Troquei de pauta e mais uma vez tinha empecilhos, até que fiquei sabendo sobre o Marcelo, coordenador de voo. Resolvi fazer a entrevista com ele. Foi bem interessante abordar as questões que envolvem a profissão de coordenador de voo. O trabalho não se resume somente no tráfego aéreo, mas também em lidar com pessoas extremamente vulneráveis e sensíveis devido aos problemas de saúde. Lidar com o público geralmente é muito complicado, ainda mais envolvendo doenças. Quando crianças estão envolvidas, a situação complica mais ainda. Creio que consegui relatar a rotina de trabalho e os sentimentos que envolvem essa profissão.”
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O céu como mistério
BEATRIZ CHAIM (STOCK.XCHNG)
À procura de respostas Estudar o céu e os elementos que dele fazem parte é a tarefa diária da astróloga Elisabeth Texto de VIVANE BUENO. Fotos de RENATA STRAPAZZON E BEATRIZ CHAIM (STOCK.XCHNG)
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caminho do autoconhecimento. É assim que Elisabeth Leal, 59 anos, define o céu. A astróloga e numeróloga de Guaíba, região Metropolitana de Porto Alegre, encontra no espaço celestial respostas para seus próprios questionamentos e para as angústias de quem deseja saber previsões sobre o futuro. Com um ar que passa tranquilidade e leveza, tanto na voz quanto nos gestos, Elisabeth conta a sua relação de amor com o universo e com os elementos que dele fazem parte. Era uma sexta-feira, e, da frente do espaço terapêutico Bioequilíbrio, o sol do início da tarde e o vento que fazia cair as folhas das árvores deixavam ainda mais verdes as
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Só podemos encontrar respostas dentro de nós mesmos” Elisabeth Leal, astróloga
águas do lago Guaíba. O tom esverdeado não era comum, devia-se à grande proliferação de algas, deixando o lago, com as ondas, com cara de mar. Não era um dia
comum, afinal de contas, era o dia da energia da chama rubi dourada. “Hoje temos a energia do arcanjo Uriel e do mestre Jesus. Isso representa uma força maravilhosa. Cada dia da semana tem uma cor diferente e um anjo ou arcanjo”, explica Elisabeth. Na sala com dois grandes espelhos e com uma música suave de fundo, uma espécie de mantra, Elisabeth, cabelos louros, olhar afável, fala que, na astrologia, todas as coisas existentes no universo estão interrelaciondas. “Tudo está conectado”, acredita. A paixão pelos mistérios dos planetas e astros iniciou-se há 12 anos, mais precisamente com o curso de Reike, que é uma prática espiritual baseada na canalização da energia universal através da imposição de mãos,
com o objetivo de restabelecer o equilíbrio energético vital de quem a recebe. “Depois que fiz o Reike, surgiu o interesse em conhecer a astrologia e a numerologia, pois todos esses conhecimentos estão interrelacionados. Cada um deles contribui com nossas vidas sob um determinado aspecto”, destaca. Elisabeth apaixonou-se de tal maneira pelo misticismo que não parou mais de estudar. Além da astrologia e da numerologia, aprendeu reflexologia, aromaterapia, cromoterapia, energia dos cristais, terapia através cartas do tarô, angeologia, florias de bach, yoga e dança do ventre. Segundo Elisabeth, engana-se quem pensa encontrar respostas para tudo na astrologia e na numerologia. Através delas, descobre-se o lado negativo e
RENATA STRAPAZZON
positivo das pessoas, ajuda na solução de um problema. “Temos o livre arbítrio para fazer nossas escolhas. A astrologia e a numerologia, assim como o tarô, são caminhos que nos dizem como agir e potencializar nossos talentos. Mas as respostas só podemos encontrar dentro de nós mesmos”, pontua. Elisabeth conta que a astrologia é um estudo de autoconhecimento que nasceu da associação entre a movimentação dos planetas e o comportamento humano. Há milhares de anos, acreditava-se que as estrelas, que “caminhavam” pelo céu, conforme as noites iam passando, poderiam refletir os acontecimentos na Terra. Essas estrelas, hoje conhecidas como planetas, foram nomeadas de acordo com os deuses da mitologia romana, aos quais suas influências correspondiam: Mercúrio, o deus mensageiro; Vênus, a deusa do amor; Marte, o deus da guerra; Júpiter, o deus dos deuses; Saturno, do tempo; Netuno, dos mares; e Plutão, do submundo. Mais do que signos, a astrologia é um conjunto de cálculos que determinam um sistema onde você é o centro e está interligado a astros que nos cercam. Esse sistema é gerado a partir da data, hora e local do nascimento de uma pessoa. “Quanto mais aproximadas essas informações do momento exato em que a pessoa veio ao mundo, mais precisas serão as análises”, afirma. Fazer essa espécie de “leitura” do céu, como Elisabeth explica, é um trabalho complexo. É preciso muito estudo e dedicação. Não é uma tarefa para qualquer pessoa.“A interpretação acontece através de vários fatores, com elementos da astrologia, numerologia, tarô e do estudo das posições dos planetas, que são energias diferenciadas que representam funções da personalidade ou algum tipo de força atuante. Os dados se cruzam e se complementam. É necessário dom e habilidade para interpretá-los. É preciso somar as letras dos nomes, analisar
os signos, seus ascendentes, ver a posição do Sol, entre outros”, diz. A astrologia está entre os primeiros aprendizados humanos. Registros de seus estudos podem ser encontrados em ruínas de quase todas as civilizações antigas, da Grécia à Babilônia, da China até Roma. Há mais de dois mil anos esses estudos relacionando as modificações do céu e seus efeitos na vida humana foram se desenvolvendo, permitindo, inclusive, a determinação das estações do ano. Elisabeth conta que é bastante procurada por empresários que desejam acertar no nome da empresa para terem sucessos nos negócios. “A combinação dos nomes é essencial. Fazer um estudo é potencializar os aspectos positivos e trabalhar para amenizar os negativos. Não existe uma resposta pronta e, sim, um caminho para ser trilhado”, enfatiza. Elisabeth, que está sob a regência do signo de Leão, fez seu próprio mapa astral na busca de respostas sobre si mesma. A leonina, que tem como elemento o fogo, transmite calor humano. “Os nascidos sob esse signo têm um excelente senso de oportunidade, sabem aproveitar a vida de uma forma grandiosa. O potencial criativo também é elevado, assim como a autoconfiança e a generosidade são marcas características”, revela. Ela, ao realizar sua própria análise numerológica, encontrou no seu mapa astral a Elisabeth que as pessoas conhecem: tendência para trabalhar com magia, ocultismo, magnetismo, drogas curativas, astrologia e com a compreensão das leis da natureza. Sua relação com o céu é estreita. É dele que vêm as respostas que ela busca para si e para quem a procura. Elisabeth, que tenta ser uma pessoa melhor a cada dia, encontra nos astros um sentimento muito forte: o amor. Com um sorriso terno, ela deixa-se levar na energia da “chama rubi dourada” e faz do céu, sua inspiração para viver.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
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Energia: Elisabeth acredita que a astrologia é um estudo de autoconhecimento
onhecer a Elisabeth, ou melhor, a Beth, foi uma experiência singular. Enquanto aguardava para entrevistá-la, acompanhei uma sessão de Reike, e, de quebra, “ganhei” uma consulta. Em um ambiente tranquilo, com o rádio tocando uma espécie de mantra, Beth dizia para seu cliente imaginar um lugar distante, repleto de natureza por todos os lados. Eu também entrei no clima. Comecei a pensar em um local bonito, com riachos e flores. E funcionou. Apesar de nunca ter feito uma sessão de Reike, senti-me mais calma e segura para conversar com a Beth. Além de descobrir mais informações sobre a Astrologia e Numerologia, tive o prazer de conhecer um ser humano cheio de qualidades. E essa é melhor parte do jornalismo: conhecer pessoas e ouvir suas histórias. Daquele dia, guardarei recordações, como o cheirinho do chá de canela que bebi com a Beth e o tom esverdeado do lago Guaíba, que fiz questão de destacar no texto, porque deu um toque especial naquela tarde de sexta-feira. E claro, não poderia esquecer do céu azul daquele dia, personagem que nos inspirou neste trabalho. ”
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