Primeira Impressão 56

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| Dezembro de 2021 |

pi primeira impressão

LUGARES QUE CONTAM HISTÓRIAS


ÍNDICE

04 / QUILOMBO MANOEL BARBOSA 24 / BIBLIOTECA Depois que o asfalto acaba, uma comunidade negra resiste, liderada por mulheres

08 / SEDE DOS ALEMÃES

28 / SKATEPARK

12 / CASCATA x CACHOEIRA

32 / RESTAURANTE NATURAL

18 / ESTAÇÃO DE TREM

36 / ENSAIO FOTOGRÁFICO

Entre uma dança e outra, laços de família costuram as memórias de um salão de baile

Na mesma cidade, atrações naturais mantêm uma disputa de beleza, apesar dos riscos

Um prédio em decadência e caminhos desfeitos contam uma história que foi deixada para trás

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No lugar batizado por um imortal, a vida ainda gira em torno das letras

Quedas e recomeços revelam uma filosofia construída sobre obstáculos de concreto

Do prato ao pátio, o verde colore a rotina de quem busca alimentação saudável

Flagrantes de um patrimônio corroído pelo descaso


EDITORIAL

SOBRE REENCONTROS E DESCOBERTAS

38 / PRAÇA DAS ROSAS

Estrelas da primavera, as flores plantam um pouco de poesia no coração da cidade

C

42 / ESCADARIA DO ESTADUAL

omo escrever uma boa reportagem? O jornalista e professor colombiano Juan José Hoyos ensina que o primeiro passo é “ir ao lugar e conhecê-lo”. Parece óbvio: o trabalho do repórter, todos sabemos, começa bem antes e é muito maior do que sentar-se diante da tela de um computador. Ocorre que, nestes dois anos da trágica pandemia de Covid-19, “ir ao lugar” se tornou um risco e, muitas vezes, uma impossibilidade. Nesse período, aprendemos (ainda mais) a trabalhar por outros meios e tiramos como lição que fazer o possível, em determinadas circunstâncias, é fazer muito. Enquanto isso, restava ir se preparando para a hora de voltar. Voltar não a um “novo normal”, pois jamais se poderá normalizar a perda de mais de 600 mil brasileiros. Mas voltar, com as devidas precauções sanitárias, a fazer algumas coisas como antes, como elas precisam ser feitas. Foi assim que, neste semestre, os alunos de Jornalismo Literário decidiram que o “lugar” seria nada menos do que o tema desta Primeira Impressão. Munidos de máscaras e álcool em gel, puderam completar o caminho sugerido por Hoyos: ir ao lugar, achar a história, encontrar os personagens. Foi um reencontro do repórter com seu hábitat natural: a rua. A rua do repórter é o mundo, lembra a jornalista Eliane Brum. Um mundo cheio de histórias para se descobrir. No Jornalismo Literário, porém, a jornada da reportagem exige um passo a mais. É preciso descobrir também a si mesmo, sua forma de ver o mundo, de estar na rua e, finalmente, de contar as histórias do lugar. O espaço virtual, por fim, não ficou para trás. As páginas aqui materizalizadas ganharam, na internet, uma versão expandida, com áudios, vídeos, infográficos e criações artísticas especialmente produzidos pela turma de Projeto Experimental – também responsável pelas fotografias desta edição – e indicados em cada reportagem. Boa leitura!

Reflexões e paixões se acumulam ao longo de uma jornada de 156 degraus

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MORRO DO CHAPÉU

Uma trilha acidentada nos conduz a uma vista espetacular e a uma lembrança tortuosa

52 / PRAÇA DAS TRÊS FIGUEIRAS Vizinhos transformam a sombra de um local abandonado em um refúgio de lazer para famílias

56 / ENSAIO FOTOGRÁFICO

Registros de uma festa de outubro

MEDIUM

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FA C E B O O K

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I N S TA G R A M

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ANDRESSA MORAIS

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Felipe Boff Cybeli Moraes Flávio Dutra Professores

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GRAVATAÍ

TERRA DE

GUERREIRAS SOB O COMANDO DAS MULHERES, O QUILOMBO MANOEL BARBOSA SE MANTÉM ATIVO E CULTUANDO A HISTÓRIA DO POVO NEGRO TEXTO DE DOUGLAS GLIER SCHÜTZ FOTOS DE ANDRESSA MORAIS

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A

Estrada Lomba do Vadeco tem asfalto nos seus primeiros 1 mil metros. Sem surpresa, esse benefício acaba logo na entrada do condomínio fechado de casas milionárias Paragem dos Verdes Campos, que tem 36 anos. Depois de mais de quatro quilômetros de estrada de terra, que em dias de chuva fica intransitável, chegamos ao Quilombo Manoel Barbosa. O local foi recebido por meio de doação por Maria Luiza e outra porção comprada por Manoel Barbosa. Uma escritura das terras quilombolas remonta a 27 de agosto de 1896. A comunidade negra está há 125 anos no local e ainda luta para ter o documento que garante o direito sobre as suas terras. O “Mercadinho da Lu” indica a entrada para a história esquecida do município de Gravataí. Em pé, com um turbante verde, estampas de onça na saia e linhas pretas e brancas na blusa, dona Carmen Lúcia dos Santos aguarda o carro estacionar ao lado da sede da Associação dos Moradores do Quilombo, da qual é presidente. Uma construção quadrada, simples, com reboco por fazer e sem forro. Depois de alguns minutos de conversa, dona Carmen, com 51 anos, 7 filhos e 12 netos, mostra que é possível viajar no tempo por meio das palavras. “A vó fritava toda a carne de porco, que era para consumo, nas panelas de ferro. Ficava uma carne bem vermelha e ela botava nas latas. Daí colocava a banha, depois de derretida. A banha ficava bem branquinha, não era essas banhas de supermercado que a gente compra e fica dando estalo por causa da água que tem junto”, conta enquanto parece sentir o aroma dos tempos passados. Dona Carmen é uma mulher de expressões fortes. Seus pés, que conhecem as terras do Quilombo como ninguém, caminham de forma calma enquanto lembra que não precisavam sair das terras para quase nada. “A gente tinha vaca, tirava leite, fazia ‘mu-mu’ (doce de leite, assim chamado pelos gaúchos por conta de uma marca famosa) em casa. A manteiga também era feita em casa, a vó colocava nos vidros e passava de mão em mão, batendo, batendo, até ficar cansada”, explica, fazendo os gestos que suas mãos tanto conhecem e cansaram de fazer. A caminhada pela longa estrada de terra leva a uma casa pintada de cor-de-rosa, no alto de uma pequena subida. Lá dentro, Márcia Maria dos Santos está estudando o baralho cigano. Com a mesma simpatia e receptividade de dona Carmen, acolhe a todos, oferecendo cadeiras, e logo começa a contar a sua história. A ansiedade é visível com o balançar das pernas. As mãos abrem e fecham, mostrando um certo desconforto em estar na frente da câmera, mas as risadas mostram uma alegria em reviver as lembranças do passado. Das experiências de criança até a vida adulta, Márcia nunca deixa de falar do

trabalho, dos estudos e de como ser mulher é ser forte e guerreira. “A maioria dos homens tem vida boa. Os homens aqui do Quilombo têm essa vida boa, mas as mulheres não”, faz questão de dizer. O trabalho, os estudos e as tarefas domésticas não compartilhadas a fizeram perceber como ser mulher é algo muito maior. Mas, mesmo assim, junto com todas as atividades, ela não deixa a Cabinda, religião de matriz africana, de lado. Dando as boas-vindas, ao lado da porta da frente da casa, um altar mostra a devoção aos seus guias. Em outro ponto da casa, atrás de uma cortina branca, também está mais um sinal do trabalho que faz junto com seus filhos de religião. No entanto, as religiões de matriz africana não são as mais populares nas terras de Manoel Barbosa. Márcia, que a cada 15 dias recebe os filhos de fora do quilombo na sua casa, conta que aproximadamente 90% dos moradores do quilombo têm sua fé nas religiões evangélicas. Seguindo por caminhos de terra e com paisagens de morros, árvores e grandes gramados, chegamos até a casa de Elaine Maria dos Santos, de 44 anos. Mãe de quatro filhos e avó de três netos. Ela conta que o dia a dia no Quilombo é bem tranquilo. “Antigamente, Carmen lá por 2008 ou 2009, a gente tinha oficinas, atividades para as crianças, mas elas não acontecem mais. Antes da pandemia tinha os eventos na Associação, mas agora está tudo parado. Durante a semana é cada um no seu quadrado”, explica. Dentre seus principais passatempos estão assistir às novelas e ouvir o rádio, Antena 1 é a emissora favorita. No entanto, a vida das mulheres do Quilombo não é fácil. Elaine diz que ali é uma “terra de guerreiras”. Ela, que trabalha todos os dias limpando as casas do condomínio de luxo, aproveita a folga para fazer comida, limpar a Márcia casa e colocar os outros afazeres em ordem. Assim como as outras mulheres, vê muita diferença na divisão de tarefas do local. “O homem da minha casa sou eu”, afirma. Depois de conhecer mais uma guerreira do Quilombo, um caminho de terra ao lado da casa de Elaine leva até um recanto florido no Manoel Barbosa. A casa de Luciane Teresinha do Santos, de 48 anos, destaca-se por um pergolado de madeira que parece um santuário de flores. Orquídeas, rosas, cactos, suculentas, samambaias e outras espécies colorem o espaço e transformam o local quase em um cenário de filme. O local Elaine escolhido para a conversa com Lu, como é chamada pelas irmãs, é um jardim de inverno aconchegante com um sofá vermelho e muitas cores. Posicionada perto das suas flores, depois de trocar de roupa e arrumar os cabelos, para ficar ainda mais bonita na câmera, ela começa a contar a sua história. Universitária e uma das motoristas do Quilombo, ela tem o próprio carro e exala independência. No meio do seu jardim pessoal, lembra que “alegria é tudo”. Porém, longe dos centros urbanos da cidade, nem tudo são flores. Cursando Pedagogia, Lu explica que, como seu curso é a distância, a dependência Luciane da internet dificulta um pouco a conquista

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do diploma. “A conexão aqui não é muito boa. A internet é via rádio, se tiver um vento ela já cai. Eu já rodei em uma cadeira por falta de acesso. Cheguei a ficar mais de 15 dias sem internet”, relata. Além disso, a dificuldade de locomoção também é um grande ponto que incomoda Luciane. Mesmo com carro, ela tem reclamações sobre a falta de ônibus que cheguem ao Quilombo, as estradas que são ruins, sem asfalto, e a falta de infraestrutura. No entanto, apesar dessas adversidades, ela não deixa de repetir que alegria é tudo. Entre uma casa e outra, guiando a visita às terras quilombolas, dona Carmen Lúcia conta mais sobre a vivência do povo negro e o descaso com o Quilombo. “Nós não temos nenhum patrocínio. As pessoas que têm dinheiro não veem o quilombo com bons olhos”, diz, parada na soleira da porta da Associação de Moradores, olhando o horizonte. Em relação ao futuro, não enxerga uma melhora. “Esse

governo não ajuda os quilombos. Se ele pudesse, vendia as nossas terras, tirava a gente daqui e colocava uns produtores aí. O Incra não tem dinheiro nem pra vir aqui. Foram cortadas as verbas, eles não conseguem nem colocar gasolina nos carros e não estão visitando quilombo nenhum. Isso desde quando assumiu o governo Bolsonaro”, aponta a presidente da associação, com nítida tristeza na voz. Quanto o assunto é a luta do povo negro, também tem duras críticas ao atual governo e usa seu lugar de liderança para mandar uma mensagem. “Antes a gente tinha a Fundação Palmares aqui, que era muito diferente, até assumir o atual presidente. Eles ajudavam os povos indígenas e quilombos. Nos davam apoio, rancho e assistência. Depois que o Bolsonaro assumiu mudou tudo, não é a mesma coisa. Não temos nem a assistência do presidente da Fundação. Ele acha que as datas importantes são um favor que nos fizeram, como o 13 de maio (nesse dia, em 1888, foi assinada a Lei Áurea, decretando a abolição da escravatura no Brasil). Fica dizendo que nunca teve escravo. Ele é um negro que não defende seus irmãos de cor”, enfatiza, dando ainda mais significado ao turbante que cobre os cabelos e à sua luta pela comunidade que representa. No final da visita, depois de muitas histórias, o Quilombo Manoel Barbosa ganha ainda mais vida. A força das mulheres move o local, busca reconhecimento

e confirma a garra da mulher negra. Sejam Carmens, Lucianes, Elaines, Márcias ou Rosanes, elas carregam a história nos ombros. Abraçam o seu povo e fazem do quilombo um local de que sentem orgulho de pertencer. As casas simples, mas arrumadas. As flores plantadas. As roupas lavadas. O cheiro da comida no ar. A grama cortada. As paredes pintadas. “As mulheres estão na linha de frente”, encerra dona Carmen Lúcia. n

MAIS NA WEB YouTube: assista ao vídeo de Vitória Pimentel, que traz mais depoimentos das mulheres do Quilombo Manoel Barbosa. Spotify: ouça o podcast na Audiomagazine e confira a playlist Territórios da memória no perfil Revista Primeira Impressão.

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GLORINHA

Ontem e hoje, Nelso Corrêa e Diva Schönardie à frente da Sociedade de Canto Lírico Brasileira

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JÚLIA MÖLLER

ARQUIVO DE FAMÍLIA


SALÃO

VAZIO CHEIO DE

E

LEMBRANÇAS

ra nos embalos de sábado à noite que o trompete tocava até as 6h da manhã no palco que ficava ao fundo da sua sala principal. O sol já clareava as terras de campo que fazem divisa com o litoral. As pessoas celebravam a cultura alemã em mais um baile concedido pela Sociedade de Canto Lírico Brasileira e iam reunindo histórias das quais nunca mais esqueceriam. Foram encontros, desencontros, alegrias, tristezas, doses exageradas de chopp e muita dança. Quem começou a trilhar esses caminhos? Waldemar Schörnadie. Foi o agricultor que doou o terreno de cerca de 1.400 m², quando tudo ainda era cercado por árvores, campos, animais, e a idealização da sede era somente um sonho distante. Fundada no dia 17 de dezembro de 1961, a Sociedade de Canto Lírico Brasileira virou um importante símbolo para os moradores. Ela foi criada com um objetivo muito claro: celebrar a cultura alemã e reunir amigos e familiares. Com o passar dos tempos, o que aconteceu foi muito maior, o local conseguiu explorar muito mais que somente reuniões familiares. Sua terra é fruto de uma doação e sua história cresceu como as raízes e galhos da figueira que a cerca. Árvore essa que é ícone do município na qual foi construída: Glorinha. No brasão da cidade, o desenho de sua copa fica sobre a base superior de um escudo e representa a erva do chimarrão, que na ilustração fica transposta pelas torres da igreja do município. Seu verde representa a natureza preservada, seus campos e suas matas, misturadas ao branco que faz jus à tranquilidade local, bem como à fé e à esperança de seu povo, e ao amarelo que traz à tona a produtividade, a riqueza e a prosperidade conquistadas em seus campos. É entre

Recordações que jamais se apagam

NA SEDE DOS ALEMÃES, BAILES DE FAMÍLIA AINDA ECOAM NA MEMÓRIA TEXTO DE JÚLIA MÖLLER FOTOS DE ARQUIVO DE FAMÍLIA

as longas raízes da figueira que se desenvolvem acima do solo – com altura e diâmetro que podem atingir mais de metro – que o lugar carrega histórias que passam por diversas gerações, assim como as que estou prestes a contar. Só que, neste caso, a figueira é coadjuvante, e nosso personagem principal é a Sede dos Alemães, como ficou carinhosamente conhecida a sociedade.

As histórias que mais despertam carinho para Jordani Daitx são as dos bailes que eram desenvolvidos na grande pista oval da Sede dos Alemães. Presidente da Sociedade de 1996 a 1999, o aposentado de 77 anos, de estatura média, cabelos brancos, com uma coleção de linhas que expressam sua idade e com uma característica pessoal muito reconhecida, seu queixo dividido em dois, hoje relembra com carinho da época em que conheceu o local, em meados de 1980. Ele destaca que já naquele tempo a figueira que ficava dentro do pátio era antiga, formada, e chamava a atenção. Em uma conversa informal na cozinha de sua casa, relembra os momentos felizes que teve no Baile dos Alemães. A cada nova frase, uma olhada para a esposa é uma maneira de confirmar tudo que lembra – já que a mesma viverá todas essas lembranças com ele. Já são 56 anos de casados. Era em outubro que acontecia o Baile de Kerb. Pessoas da cidade vizinha entravam pela porta da bilheteria e a primeira coisa que observavam era a decoração típica

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Nos Bailes de Kerb, eram escolhidos o rei e a rainha; Lisinara Möller conheceu Leandro Silveira em uma festa na Sede; na comissão de fundação, apenas descendentes de alemães participavam

alemã que ocupava todo o espaço da entrada. Um balcão que se localizava ao fundo do salão reservava o mais esperado da noite: o chopp. Todos vestidos de alemão, era nesta festa que apresentavam seus reis de Kerb. A banda – tipicamente recordada por Jordani como “bandinha” – tocava à direita do grande salão, com instrumentos de sopro. E era assim que a música fazia a noite e madrugada de quem visitava a famosa atração de Glorinha. Em uma estrutura reservada, com uma janelinha para atendimento, chegava um cheiro delicioso. Eram as cucas e linguiças que estavam sendo preparadas para o evento, na grande cozinha do local. No teto, arcos de flores representavam a decoração alemã e ajudavam a deixar o momento mais especial para quem dançava embaixo delas. E já que chopp era a alma da comemoração, Jordani conta das vezes em que pagou caixas de bebida. Uma garrafa ficava pendurada ao teto e quem tivesse a intenção de puxá-la preparava o bolso para aumentar a alegria dos presentes. E falando em felicidade, essa era resgatada a cada vez que o baile começava com a dança da Polonese. Um

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casal era responsável por dar início à coreografia, que logo já contagiava a todos. Os sapatos tocavam o chão de madeira no ritmo que a banda tocava e assim estava feita a festa.

Infância com trilha sonora A infância de Nívea Corrêa, 54 anos, advogada, cabelos que misturam tons de castanho e loiro, com óculos marrons nos olhos, teve a presença forte da Sede dos Alemães. Seu avô, Waldemar, responsável por doar o terreno para construção da sede, tinha sua residência ao lado do salão. O suficiente para que a neta imaginasse, ainda criança, que o seu pátio era toda aquela imensidão. E, de fato, foi. Durante anos sua diversão, ao lado dos irmãos, era subir na figueira, esperar as excursões chegarem e espiar o baile na madrugada. As regras muito rígidas da época negavam a participação das crianças durante as celebrações. Nívea lembra que ficava em um quarto, ao lado da cozinha, recheado de colchões. Era onde os pequenos permaneciam, para os maiores continuarem a festa.

Uma fritura aqui e uma olhada nas crianças acolá, era como as cozinheiras passavam as noites. Com trilha sonora, os filhos dos presentes brincavam, dormiam e aproveitavam o baile à sua maneira. E mesmo não podendo participar ativamente da festa, o local ainda era divertido. Era difícil fazer algo diferente na cidade que tinha na sua maioria moradores agricultores, com casas muito longe umas das outras. O que foi decisivo para que Nívea visse o baile, com olhos da inocência de infância, como o evento mais esperado do mês. A comida era feita no fogão a lenha, famoso por fazer as mais deliciosas cucas. E a figueira? A querida árvore entrava com sua magnitude completa, “parecia que nos abraçava”. Ganhava lindos enfeites, luzes e era a árvore de Natal no último mês do ano. E como já não fora suficiente encantar a família que ali cresceu, também era uma atração para quem vinha de fora e se encantava com sua sombra.

Sua vida passa por aqui A professora de 43 anos Lisinara Möller, com cabelos loiros, olhos castanhos, 1,55m de altura, de pele jovem, teve passagens importantes da vida na Sede dos Alemães. Seus dois avós, seu pai e seu bisavô foram presidentes da sociedade. O bastante para que ela colecionasse momentos no local, começando pelo dia que conheceu Leandro, seu marido há mais de 24 anos. Foi em um baile de Kerb, em outubro de 1995, que a celebração escreveu mais uma história de amor. Ao som da bandinha, o jovem dançava com a mãe, pés batendo no chão, marchando na trilha da música, prestes a ser jogado aos braços de uma moça. Foi em um ato muito


FOTOS ARQUIVO DE FAMÍLIA

O que ocorre é que empresários paulistas marcam as reuniões na capital Porto Alegre de acordo com os finais de semana em que o Baile dos Alemães ocorre, e ainda no aeroporto ligam para reservar a sua mesa. Querido pela comunidade, Nelso fica acordado até madrugada, tirando foto com os presentes no baile e já combinando as novas atrações. É o que o mantém vivo. A tradição ainda bate no peito, só mudou a época. Com a pandemia, os bailes tiveram que parar, e em março de 2020 foi a última vez que a pista da Sede dos Alemães ganhou o sapateado de seus admiradores. Porém, engana-se quem acha que a história termina aqui. Com os olhos marejados, Nelso ainda tem esperança de que possa retornar com seus bailes, ganhar o carinho de seu público, reformar a estrutura do local e aproveitar a sombra da linda figueira.

O meu local de lembranças incríveis

bem pensado que a mãe de Leandro escolheu sua nora. Lisi nessa hora dançava com o rei do Kerb, o pai do seu futuro marido. Em uma troca rápida, os dois foram colocados para dançar juntos, um passo para lá e outro para cá, as flores ao teto, o barulho ao redor, os olhares atentos e curiosos dos familiares, e dois jovens se conhecendo sem a ideia do que aquele dia significaria em suas vidas. Após este momento? Namoro. E depois disso, casamento. A festa foi no mesmo local que os uniu: em 1997 celebraram seu amor debaixo da figueira. Certamente o maior casamento que a sede já recebeu. Cerca de 550 convidados foram colocados em mesas ao redor de todo o salão. A bandinha, com seu trompete e instrumentos de sopros, fez parte do momento e tocava no palco que ficava à frente da grande pista. E desse amor veio o primeiro filho, cuja festa de primeiro ano de idade foi celebrada no salão onde Leandro e Lisi uniram suas vidas. Outra festa grande, com a figueira enfeitada, crianças correndo ao redor de toda a estrutura. A única coisa que mudou foi o som, desta vez era um DJ que comandava as músicas. Mesmo assim, o pedido dos

familiares foi mais alto e um baile aconteceu de novo no chão de madeira da Sede dos Alemães.

A história continua Um senhor de 86 anos, Nelso Corrêa, é o atual presidente da Sede dos Alemães. Apesar da idade, esbanja jovialidade ao conversar, de olhos claros e fundos, cabelo ruivo, pois não deixa ficar branco. Relata que os sócios foram deixando de ser integrados ao local e hoje somente honorários contribuem com a sociedade. Com o enfraquecimento da tradição, o envelhecimento da estrutura, outro tipo de bailes e regras voltaram a movimentar a pista de dança. Foi abrindo o local para outras bandas tocarem que Nelso conseguiu reerguer a Sede dos Alemães. Os bailes com instrumentos de sopro deram lugar para as caixas amplificadoras e as músicas atuais de bandinha. Com isso, famílias e principalmente jovens, das mais diversas cidades, voltaram a ocupar a copa do chopp, a fila da cozinha, as mesas do salão e a figueira do pátio. É em meio a risos que o presidente conta que pessoas de São Paulo já vieram para o baile.

O encantamento por histórias veio desde cedo e foi no Jornalismo que encontrei a minha vocação. Eu, Júlia Möller, 21 anos, responsável por escrever estas palavras, vi neste material uma oportunidade de eternizar a minha família. Das fontes que contam as histórias, saíram aqueles que me deram a vida: Jordani Daitx é meu avô, Nívea Corrêa é minha dinda, Lisinara Möller é minha mãe e Nelso Corrêa é meu bisavô. Contar a história da Sede dos Alemães, como uma linha do tempo com início, meio e um fim que, espero, venha a ser diferente, foi o que fez com que eu sentisse mais vontade ainda de fazer algo por este local. É das lembranças embaixo da figueira, da bandinha no palco e das danças no salão que eu reúno o melhor de parte da minha infância e adolescência. Uma pena que essa história esteja ficando à mercê do tempo. Por isso, sigo no meu desejo de ainda ter mais capítulos e novas histórias para eternizar. Que a figueira ainda possa ganhar a presença dos meus filhos, pois vejo na árvore uma metáfora linda para marcar cada novo momento nosso naquele chão. n

MAIS NA WEB

Medium: confira a ilustração de Nadine Dilkin, inspirada na Sede dos Alemães. Spotify: ouça o podcast na Audiomagazine e confira a playlist Territórios da memória no perfil Revista Primeira Impressão.

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MARATÁ

A vista deslumbrante é um convite irresistível para o banho na Cascata Vitória, mas é preciso respeitar limites de segurança

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ATRAENTES E TRAIÇOEIRAS

A

natureza também pode ser competitiva. Dois lugares na região do Vale do Caí provam isso. Do alto de seus 30 metros de queda d’água, a Cascata Vitória mostra-se imponente e desafiadora. Com metade dessa altura, 15 metros, a Cachoeira Maratá – batizada com o mesmo nome da cidade onde refresca a população e atrai turistas – chama a atenção pela beleza com que movimenta suas águas e as oferece para banhar seus visitantes. Maratá é uma pequena cidade, de cerca de 2,5 mil habitantes, localizada no Rio Grande do Sul, que contou com a sorte de ter duas belas áreas para fomentar o turismo e oferecer lazer aos seus munícipes. No passado, enquanto a Cascata fazia surgir energia – através de uma usina hidrelétrica lá instalada – para abastecer poucas casas do ainda distrito de Maratá, a Cachoeira era uma espécie de clube social, no qual famílias se reuniam para promover distração às crianças. Já na década de 1990, Cascata e Cachoeira – diferentes por sua estrutura natural – passaram a ter a mesma finalidade: encantar seus visitantes. Com a usina há anos desativada, o maquinário foi retirado. No local foram deixadas apenas algumas peças, que remetem ao passado gerador de energia. Ambas as áreas foram alçadas ao status de parque, passando a serem chamadas de Parque da Cascata Vitória e Parque da Cachoeira Maratá. Ecônomos tomaram para si a responsabilidade de manter a ordem e promovem as melhorias necessárias para receber o público – não que seja preciso fazer muito, pois a “decoração” fica por conta da própria Mãe Natureza. Contudo, os gestores dos parques se dedicam a cuidar da área balneável como se fosse uma extensão de suas casas. Em ambas, o visitante é recebido em uma espécie de túnel verde. Na Cascata Vitória, as atrações são pensadas para adultos e crianças. Já na chegada, o playground e a pista de skate convidam os mais jovens a gastar energia. Alguns adolescentes reclamam que o sinal de telefonia não é 100% eficiente no local, mas aí eles deixam os jogos on-line para a volta pra casa e passam a experimentar sensações diferentes “no meio do mato”. A trilha até a parte de cima da Cascata é uma das grandes atrações. Mas o friozinho que dá na barriga na hora de passar pela pinguela também pode ser considerado algo muito especial do local. Os mais corajosos não abrem mão de passear de “caíco” – como são chamados os caiaques no local. Mesmo off-line, as selfies eternizam o momento. Mais tarde, já no perímetro urbano, elas são

publicadas para exibir o quanto foi prazeroso estar lá. Enquanto a garotada se diverte em segurança, os adultos aproveitam a sombra refrescante das árvores. Gotículas de água que emanam da Cascata fazem a sensação térmica se tornar algo extremamente relaxante. A temperatura agradável do parque permite que as famílias desfrutem de forma ainda mais intensa a estada no local. Alguns optam em formar a tradicional roda de chimarrão do povo gaúcho, sentam-se em suas cadeiras de praia e aproveitam para colocar em dia os assuntos da semana. Há quem prefira fazer uso dos espaços com mesas e cadeiras em cimento, ofertados pelo parque, para preparar um churrasquinho. É comum ver que, entre alguns casais, enquanto os homens espetam e salgam a carne, claro, degustando uma cerveja bem gelada, ou uma caipirinha de limão, as mulheres ficam de olho nas crianças e aproveitam para comentar sobre a apa-

QUEDAS D’ÁGUA EM PARQUES NATURAIS REVELAM BELEZAS, HISTÓRIAS E PERIGOS TEXTO DE CLARICE ALMEIDA FOTOS DE ÉRICA MORAES ARTE DE CAROLINA AMBROS

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CLARICE ALMEIDA

Professora aposentada, Neli ensinou muita gente a nadar nas águas de Maratá; no parque da Cascata, trilha permite acesso a refúgios da natureza rência e a forma como se vestem os demais frequentadores. Quem também fica atento aos visitantes é Sérgio Schneider, ecônomo da Cascata. Mas no caso dele a atenção redobrada é para evitar que algo saia da rotina no local. Ele cuida do Parque como se fosse sua própria casa e quer colocar em prática alguns projetos que sonha para a área. Atualmente, num ambiente rústico e encantador, está instalada a lancheria do Parque da Cascata. Nela são comercializados alimentos e bebidas. Porém, Schneider quer dar mais uma opção de escolha aos visitantes, e para isso ele pretende disponibilizar um restaurante. Quem quiser, também poderá ir até lá para se exercitar, pois também faz parte do plano dele instalar equipamentos de academia ao ar livre. Comer bem e fazer atividade física é fundamental para a saúde, mas o ecônomo quer

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ainda oferecer a oportunidade de os visitantes terem uma “aula” de história e aprender mais sobre a cultura dos imigrantes alemães que povoaram aquela região. “Quero levantar as ruínas da usina, vou fazer um deck e colocar bancos lá”, conta o administrador. Ao lado da igreja da localidade de Vitória, Sérgio possui cerca de sete hectares de terras. Lá existe um prédio que deverá ser reativado para visitação. A ideia também contempla a construção de outras estruturas, como uma casa atafona – local onde o trigo passava por vários processos até ser transformado em farinha – e uma serraria. A intenção é mostrar aos turistas como era realizado parte do trabalho do colono. Para que essa visita tenha ainda mais emoção, Sérgio planeja construir uma trilha ecológica para ligar a propriedade ao Parque da Cascata. O deslocamento deverá ser feito a pé sobre os trilhos do trem. A meta é transformar tudo isso em realidade até daqui a dois verões, e com isso aumentar o número de visitantes interessados em conhecer o Parque da Cascata. Todos os anos, turistas das mais variadas regiões do Estado visitam a Cachoeira e a Cascata

para conferir de perto tudo que se ouve, e lê, sobre esses espaços. O que poucos sabem é o motivo de uma ser classificada como cascata e outra como cachoeira. De uma forma singular, pode-se dizer que o que difere ambas é a altura e o volume de água, explica o técnico em meio ambiente André Venâncio Alves. A cachoeira, com seu volume menor e menos intenso de água, move-se em um ritmo calmo. A água serpenteia entre as pedras, que formam pequenos desníveis de solo, como se estivesse alternando passos de uma coreografia musical. As cachoeiras podem se estender por vários quilômetros, como é o caso da cachoeira Salto do Yucumã, no Parque Estadual do Turvo, na fronteira gaúcha com a Argentina. Ela tem quase dois quilômetros de extensão e quedas de 12 a 15 metros de altura. A cascata, por sua vez, é formada por maior volume de água e altura. Nela tudo é intenso. Quando “nervosa” – em consequência das chuvas que elevam ainda mais sua quantidade de água –, seu som estrondoso chega a assustar quem está por perto. Até mesmo longe dela é possível escutar e “mergulhar” na emoção que o ruído provoca. Misteriosa e atraente, é difícil resistir aos seus encantos. Em viagem pelo Vale do Caí, Maria Helena Gautério, moradora de São José do Norte, na região sul do estado, adorou o passeio pelos parques naturais de Maratá no início da primavera. “É muito lindo. Esse barulho da água caindo transmite uma paz pra gente”, diz Maria sobre o que sentiu ao estar na Cascata Vitória. A turista afirma que é difícil definir qual dos dois parques oferece mais beleza. Sombra e água fresca não faltam. Para ela, complicado é decidir onde passar mais tempo.


É difícil olhar a cachoeira e não associar a imagem da água branca, com textura similar à de uma renda, a um véu de noiva. Graciosa, a água cai, sutilmente, espalhando-se e formando uma piscina natural, como se fosse o formato circular do véu, visto por trás da noiva. Já a Cascata Vitória parece menos delicada. Rodeada por paredões rochosos, ela mostra que não está para brincadeira. Por todo o seu histórico de vidas perdidas, a impressão transmitida por ela é de haver algo em que se deve prestar muita atenção. É como se nas entrelinhas de sua história houvesse um recado para quem se arrisca a desafiá-la. Se fosse possível decifrar o som emitido pela queda d’água, talvez se ouviria: “Não me desafie. Sou mais profunda do que você pensa e posso te engolir”. Moradora da cidade desde a década de 1960, a professora aposentada Neli Gloria Plass, de 79 anos, admira e respeita a imponente Cascata Vitória. Ela até já perdeu as contas do número de vidas que lá foram deixadas por pessoas que acreditavam que saber nadar seria suficiente para passar pelos pontos mais fundos de Vitória.

Pequenos álbuns de fotografias antigas e um cigarro entre os dedos ajudam a professora a contar as memórias guardadas sobre os parques. “Dizem que dentro da cascata ainda existem restos da usina. Não fui lá olhar porque são 30 metros e meus ouvidos não aguentam altitude e o barulho”, diz Neli de uma forma que quem ouve não consegue distinguir se ela fala sério ou se está brincando. Prestes a completar oito décadas de vida, a bem-humorada senhorinha de cabelos grisalhos e sorriso fácil é testemunha de muitos acontecimentos que marcaram o que são hoje a Cascata Vitória e a Cachoeira de Maratá. Numa tarde de sexta-feira de outubro, Neli dedica um tempo a partilhar lembranças do próprio passado e de várias outras pessoas que por ele passaram. Além de alfabetizar e levar conhecimento religioso, através das aulas de Ensino Religioso, a professora treinou dezenas de pessoas da cidade a nadar. “Hoje tem muita gente, com mais de 60 anos, que diz que aprendeu a nadar comigo. Devo ter ensinado, pelo menos, umas 40 pessoas a nadar”, relata. Pequena no tamanho, com seu 1,50m de altura – ela garante que era mais alta, mas a idade a “encolheu” –, Neli se mostra grandiosa na generosidade que sempre teve para com seus alunos e por tantas outras pessoas que dela precisaram. Natural de São Sebastião do Caí e dona de uma memória de despertar inveja em muita gente, Neli lembra da primeira vez que foi até a Cachoeira de Maratá. O ano era 1969. Ela havia ido ao município para conhecer o local onde iria se instalar, com o marido, pelo período de seis meses. Logo, quis conhecer as belezas naturais do local onde passaria a residir. “O acesso era praticamente um trilho largo, não chegava a ser uma estrada. Mas sempre foi um

lugar bonito”, recorda-se. Quando se mudou para Maratá, ir à Cachoeira virou rotina. Duas horas depois do almoço, Neli – que ainda não tinha filhos – e um grupo de vizinhas e seus rebentos se deslocavam para refrescar o calor das crianças e relaxar suas próprias mentes no silêncio em meio à mata que abraça a queda d’água. “Todas as crianças que foram comigo aprenderam a nadar”, sublinha a professora aposentada. Ir à Cachoeira era considerado um evento. O momento mais esperado pela garotada era o da “merenda”. As mães preparavam lanches e sucos que, a uma certa hora da tarde, eram distribuídos aos pequenos. Todos saíam da água correndo para se alimentar. Depois de comer, eles tinham de esperar algum tempo até entrar na Cachoeira novamente. “Faz mal entrar na água de barriga cheia, todos sabem disso”, faz questão de dizer Neli. Na década de 1970, Emílio Gretchen, um mecânico da cidade, resolveu empreender. Aos finais de semana, ele levava refrigerante e gelo em seu carro para vender a quem estivesse na Cachoeira. Segundo a memória de Gloria,

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as crianças adoravam uma “gasosa”, como eram chamados os refrigerantes naquela época. Logo ela descobriu que também poderia ir à Cachoeira para se distrair de outra forma. “Íamos pra lá pra ver o trem que vinha de Caxias, às quatro e meia. A estrada era alta e a gente conseguia, através da vegetação rala, enxergar ele passando”, detalha. Apaixonada por ensinar, certa vez chamou a atenção da professora o lamento de dois jovens, filhos de agricultores, que já tinham ultrapassado os 15 anos de idade sem aprender a nadar. A dupla cresceu tendo como brinquedo de infância o cabo da enxada, usada para ajudar suas famílias no trabalho na roça. “Perguntei pra eles que horas colono começava a trabalhar, e eles me informaram que era depois que nasce o sol. Então, disse que poderiam ir para a Cachoeira depois do meu horário de trabalho, à tarde”, e assim foi. A dupla Inácio Roveder e Sérgio Vier ia para a Cachoeira de bicicleta cerca de duas horas depois do almoço. “Eles desciam a lomba correndo pra chegar logo e entrar na água”, lembra Neli. Tiveram aulas de natação com ela ao longo de uma semana. O método usado para orientá-los como se portar na água foi bastante simples, afirma a instrutora: “Eu segurava eles pela ‘bariga’, eram magrinhos”, conta com olhos vidrados – como se estivesse novamente vendo a cena – e sotaque puxando apenas o som de um “R” – típico da ascendência alemã. Quando penso que Neli vai dar mais detalhes sobre sua forma de ensinar a nadar, subitamente, ela levanta-se da cadeira e segue até a geladeira falando sobre suas recordações relacionadas à Cachoeira. Ao abrir a porta do eletrodoméstico, abaixa-se como se fosse pegar uma jarra d’água – o que seria natural para hidratar-se naquele calor –, mas nada disso. “Quer pudim?”, oferece cheia de entusiasmo. Pudim é um dos meus doces preferidos, respondo. A professora intercala informações sobre a receita do pudim, que segundo ela leva um ingrediente especial – do qual realmente pude sentir a presença já ao provar a primeira colherada das duas generosas porções que eu mesma pude servir. O elemento-surpresa do pudim é suco de laranja, constato. “Aqui em casa é assim, a visita se serve. Se ela servir pouco e ficar com vontade de comer mais, a culpa é dela. Se servir muito e não gostar, a culpa também é dela”, brinca a acolhedora vovó. Neli não se serve do doce. Pergunto o motivo e ela diz que, lamentavelmente, é diabética. Ela acende mais um cigarro e volta a contar sobre o passado. Mas, antes, revela que há 20 anos havia parado de fumar, só que a pandemia despertou a ansiedade que fez o vício retornar, junto a uma tosse de causar preocupação. Ela volta à cadeira e a conversa retorna ao foco inicial. Foram muitos os alunos de natação da professora Plass, mas alguns marcaram por motivos bastante pontuais. A máxima de que nunca é tarde para aprender faz parte dessas razões. “A pessoa que mais gostei de ter ensinado a nadar foi a Norma Viebeling. Ela aprendeu a nadar depois dos 42 anos de vida. Ensinei toda a família dela, os três filhos, menos o marido”, acrescenta. Neli não gosta de usar a palavra orgulho ao se referir sobre o que sente por ter ensinado tantas pessoas a ler, a escrever, a nadar e, de certo modo, a viverem mais felizes. “Fiz porque gostava”, afirma. Na Cachoeira Maratá, a própria natureza fornecia os equipamentos para as aulas de natação. Troncos de árvores caídos e pedras eram usados como trampolins. A

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Menor em tamanho, mas não em beleza, a Cachoeira de Maratá se exibe como um véu de noiva

criatividade de Neli foi fundamental para criar o “processo” de ensino de natação. “Assim que a criança aprendia a nadar com bastante desenvoltura, eu ensinava ela a mergulhar. A gente atirava uma latinha dessas de conserva, cheia de pedras, no fundo da cachoeira, e eles tinham que buscar. Na parte de cima ficavam os mais experientes. Faziam um círculo e desciam junto pra ver se estava tudo bem com o outro, era a segurança. Se acontecesse alguma coisa, ele era trazido pra cima pelos outros. Nunca aconteceu nada”, explica. Já sobre quem não foi seu aluno, Neli não pode dizer o mesmo.

“Vi um rapaz entrar na água achando que era raso, ele entrou e afundou. Não sabia nadar. Uma aluna minha, que estava perto, passou a mão nele e trouxe de volta pra cima, foi a sorte dele. Teve um outro que morreu e disseram que fui eu que ensinei ele a nadar, mas não foi. Aluno meu sabe o que pode e o que não pode fazer na água”, diz Neli. A corajosa professora aprendeu a nadar ainda menina. Nas águas do Rio Caí, na cidade de São Sebastião do Caí, uma amiga chamada Dalva a instruiu a desafiar as turvas águas do manancial, e desde então ela se apaixonou por nadar e por passar esse


MAIS NA WEB YouTube: assista ao vlog da viagem de Rodrigo Brum por Maratá. Medium: confira a aquarela de Carolina Ambros, inspirada na Cachoeira de Maratá. Spotify: ouça o podcast na Audiomagazine e confira a playlist Paisagens naturais no perfil Revista Primeira Impressão.

conhecimento adiante. Certa vez, Neli ousou ao tentar fazer a travessia do Rio Jacuí, no município de Triunfo, mas ao ouvir o som de um navio se aproximar desistiu, no meio do trajeto de quase um quilômetro. Para ela, bom mesmo é nadar na Cachoeira. Embora a queda d’água mais vultuosa de Maratá se localize no Parque da Cascata Vitória, Neli sempre preferiu frequentar a “concorrente”, ou seja, a Cachoeira. Quando os filhos Gustavo e Valéria Plass nasceram, começaram a ser levados à Cachoeira pelos pais. O filho aprendeu a nadar aos sete anos. A menina, Néca – como carinhosamente é chamada

até hoje –, deu suas primeiras braçadas na água aos quatro anos. “As crianças gostam mais de cachoeira, ela encanta. A outra é mais perigosa”, avalia. A professora está correta, o perigo é real devido à profundidade e à altura. Contudo, existe nos dois pontos turísticos da cidade, principalmente para aquelas pessoas que se arriscam e desobedecem aos limites estabelecidos para mergulho. Muitas vidas já foram perdidas, em ambos os locais. A última morte foi a de um jovem, de 28 anos, morador do Vale do Taquari. Numa quente tarde de janeiro, ele foi até o Parque da Cascata da Vitória aproveitar a folga com amigos. O afogamento foi registrado, involuntariamente, por Douglas Modzelan, de 29 anos, morador de Brochier, cidade vizinha a Maratá, que estava no local produzindo conteúdo para seu canal no YouTube. “A parte da filmagem eu já tinha feito. Estava tirando fotos e foi nesse momento

que a minha mãe gritou que ele não estava brincando, estava se afogando, atrás de mim. No que olhei, ele já tinha afundado”, recorda sobre aquele dia 6 de janeiro de 2021. “O cara afundou no meio daquela água e eu não pude fazer nada”, lamenta o youtuber. Douglas afirma que ouviu o ecônomo do local dizer várias vezes ao grupo que não deveria ultrapassar a boia que estabelecia o limite, mas os avisos foram ignorados. O local só tinha presença de salva-vidas aos finais de semana, banhos em dias de semana não eram recomendados. “Durante todo o tempo em que eu estive filmando, o ecônomo do parque, de tempo em tempo, orientava o pessoal, que estava bebendo lá, pra que não entrasse na água e, se entrasse, não passasse dos limites da boia”, conta. “Eu entrei na água, o limite da boia é suficiente para tomar um banho tranquilo. Eu tenho 1,80m e estava em pé no limite da corda com a água no pescoço. Já o limite da boia é muito fundo”, avalia Douglas. “Não seguir regras foi o que ocasionou a morte do cara, que tinha praticamente a minha idade. O povo precisa ter respeito às leis e regras. Foi uma imprudência”, opina. A tragédia interrompeu um período de sete anos sem registros de mortes por afogamentos na cidade. É como se a “disputa” entre Cachoeira e Cascata não ficasse só em qual é a mais bela. O último óbito havia sido registrado no dia 2 de fevereiro de 2014, no Parque da Cachoeira de Maratá. A vítima foi um citricultor da região. Ele saiu de casa sozinho e desapareceu. Começava a escurecer quando os familiares, sem conseguir falar por telefone com o rapaz, saíram à sua procura. Eles foram até o parque e, no local, encontraram a moto, com capacete, telefone, carteira, tênis e outros pertences trancados no baú. O corpo apareceu somente à noite, boiando nas águas da Cachoeira. O que se ouve sobre os afogamentos, em ambos os parques de Maratá, é que as águas foram desrespeitadas e cobraram seu preço por isso. Quem se deixou envolver pelas belezas sem perceber o risco que isso significa, acabou pagando com a própria vida. Já aqueles que sabem aproveitar o que os locais têm de melhor, sem desafiá-los, garantem que um dia irão voltar para viver novas histórias e gerar muitas lembranças, que ficarão registradas em fotografias e armazenadas na memória. n

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PORTÃO

A HISTÓRIA PERDID Entre os espaços remanescentes dos tempos do trem estão o prédio da estação, com seu letreiro apagado, e a velha caixa d’água

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O ANTIGA ESTAÇÃO DO TREM SE CAMUFLA NA PAISAGEM URBANA À ESPERA DE RECONHECIMENTO

“Ouço o apito do trem, tem fumaça no horizonte É o imigrante que chega de uma terra tão distante.”

s versos iniciais do hino de Portão contam uma história comum a diversos municípios do Rio Grande do Sul. Ferrovias, trens, imigrantes e sonhos povoam o imaginário e a história do início do século XX no sul do Brasil. No coração do pequeno município de 35 mil habitantes, um pedaço dessa história repousa sem chamar atenção. Nosso protagonista é um prédio modesto, de 176m² no total. Do lado de fora, o tempo deixa suas marcas sobre ele: um reboco inacabado, tijolos à mostra e portas e janelas azuis e marrons caracterizam um lugar que já foi central no início dos sonhos de uma população. Do começo da sua história, ainda paira o antigo letreiro com a palavra “Portão” no alto das laterais do prédio. Se antes o letreiro avisava aos imigrantes, religiosos, comerciantes e ex-escravos que eles estavam chegando na Estação Portão da linha do trem Porto Alegre-Caxias, 112 anos depois outro letreiro nos espera e situa: “Museu de Portão”. Na mesma plataforma em que imigrantes esperaram, Isaque Mattos, 45 anos, também espera. Aliás, existe uma inquietante sensação de espera em tudo o que ronda o prédio do Museu do Trem, como se o passado esperasse no presente e o futuro também estivesse em constante espera. É desse futuro que Isaque gosta de falar. “Quando o museu abriu, se restauraram duas salas e se usou uma terceira mesmo sem restauro. O novo projeto prevê o

DA NOS TRILHOS TEXTO DE EDUARDA BITENCOURT FOTOS DE GABRIEL M. FERRI

uso de todas as nove salas da estação”, explica enquanto se debate com o grande molho de chaves prateadas nas mãos. Antes de entrar no Museu, um problema: as pilhas do controle do alarme estão fracas. Será preciso abrir e desligar o alarme de dentro. Seria culpa do acaso ou do pouco uso? A porta se abre com o estrondoso barulho irritante de um alarme disparando. Tudo para. Crianças que brincavam na praça que circunda a estação, moradores que estavam no seu caminho diário para o mercado e senhores idosos interrompem seus afazeres para um rápido olhar atento ao que está acontecendo no Museu. Em cinco segundos o barulho cessa e todos voltam a sua vida normal. Provavelmente, aqueles segundos foram o espaço de tempo em que o Museu recebeu a maior atenção da população nos últimos meses. Isaque é alto, apressado e fala rápido. Como uma locomotiva em movimento, solta palavra atrás de palavra com empolgação. “Ganhamos dois vagões de trem, e a ideia é colocar esses vagões aqui em benefício ao uso da praça. Então o que se pensou foi em usar esses vagões para construir os banheiros. Fica pelo menos dentro de um contexto”, explica, enquanto aponta para uma das laterais do prédio. Os banheiros não foram a primeira opção de construção, segundo Isaque. “No início, pensou-se em um café, uma biblioteca ou algo assim, mas entendemos que o que a população precisa nesse momento são os banheiros”, comenta. O projeto, entretanto, ainda não teve seu início. Hoje, o Museu de Portão fica no bairro Estação Portão. O antigo prédio é cercado por uma praça arborizada e bem cuidada.

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São inúmeras árvores que crescem no ambiente e pintam o gramado de flores amarelas na primavera. Ainda dentro desse local, existe um complexo desportivo para uso da população. Quadras de basquete, futebol, areia, praça infantil e inúmeros aparelhos de academia popular dividem espaço com as clássicas mesinhas de xadrez e damas. A praça se localiza entre a Rua do Comércio, a Rua Vinte de Setembro, Rua Cristóvão Colombo e Rua 15 de Novembro. Nesse cruzamento de datas e personalidades históricas, estão as três salas que contam a história do município. “O funcionamento era de segunda a sexta, das 8h às 16h30. Com a pandemia, ele foi fechado e nós optamos – como secretaria nesta nova administração – por não abrir o museu enquanto não tivermos alguém responsável, um museólogo”, sinaliza Isaque enquanto abre a porta e liga as luzes. Hoje, ele é assessor de cultura e turismo do município e atua também como coordenador de turismo de 20 municípios que compõem o Vale da Felicidade. “Porque não adianta abrir o museu com uma pessoa que vai ficar ali somente para receber público. Nós queremos alguém que conte a história e que faça projetos para trazer recursos para o museu, que faça o museu ter vida. Porque o objetivo de um museu não é simplesmente um lugar para guardar velharias, eu acho que ele precisa ser um lugar que tenha vida, que possa chamar a atenção das pessoas.” Ao atravessar a porta, o som da rua é abafado pelas janelas permanentemente fechadas. Risadas infantis, barulhos de carro e som de uma cidade em movimento se perdem em um espaço em que a história repousa e não se deixa escapar por nenhuma fresta. A primeira sala é composta por itens domésticos. Xícaras, bules, ferros de passar roupa, máquinas de escrever e sapatos antigos são vistos dentro de cristaleiras e prateleiras em todas as paredes. Logo à frente uma porta pequena leva para uma sala ainda menor do que a primeira. Lá estão itens escolares, caixas registradoras, rádios e itens agrícolas que contam a história comercial e educacional de Portão. O que chama a atenção, entretanto, são as fotos. Congelando momentos no tempo, elas contam a história do passado. Estação Portão (anos 50), última passagem do trem (15 de novembro de 1964), delegacia e prisão (anos 70), fotos e legenda mostram a ascensão e queda de um espaço antes perdido no tempo e que agora retoma a vida nas fotos.

ministrativo do trem. Parada obrigatória para quem lidava com cargas pesadas, o prédio era responsável por parte da rotina dos trabalhadores ferroviários. Desde o ano passado, o prédio do armazém vem passando por reparos constantes. Se anteriormente o objetivo era guardar suprimentos para indústrias, o prédio agora conta com suprimentos de cultura. “Nós vamos ter o projeto Armazém Cultural no ano que vem, com dança, capoeira, orquestra e coral. A ideia é termos todo o conjunto ferroviário restaurado e interligado”, conta Isaque. “Lá na casa do guarda-chaves, vamos ter um espaço de exposições, um espaço de reuniões, como se fosse um auditório, uma sala de cinema, algo assim”, considera. A casa não é pequena e, diferentemente do armazém, não teve a sorte de passar por um restauro ainda. A vegetação toma conta do que sobrou da estrutura. As vigas de madeira não carregam mais nenhuma altivez, aliás, parecem estar prontas para desmoronar a qualquer momento. Onde a maioria vê ruínas, Isaque vê sonhos. “É um espaço que a gente quer fazer a restauração e deixar disponível para o uso da população. Inclusive hoje ele está fechado por um muro, a ideia é retirar todo o muro, deixar a casa aparente, talvez construir nos fundos um coreto e nos finais de semana deixar os livros à disposição das crianças e fazer algumas apresentações de música nesse espaço.” Tanto a casa do guarda-chaves quanto o armazém ficam próximos à Rua do Comércio. Lá as casas, prédios – assim como a estação – são mais antigas que o próprio município de Portão. Desde que surgiram os boatos de que uma estação iria ser construída no pequeno distrito de São Sebastião do Caí, famílias migraram para perto do local com o sonho de prosperar. Datam dessa época espaços como a Casa Comercial de Secos e Molhados Moog e os empreendimentos de Pedro Conrad. Os prédios com a típica estrutura alemã ainda podem ser vistos no local, embora com outros empreendimentos. A linha Porto Alegre-Caxias foi aberta no trecho entre a capital e São Leopoldo em 1874 como a primeira ferrovia do Estado. Em 1876, a linha foi prolongada até a estação de Novo Hamburgo, e em 1909, teve continuação partindo do Rio dos Sinos e chegando até Carlos Barbosa. Em Portão, ainda podemos percorrer cerca de 10km de estrada por onde os trilhos passavam.

Próxima parada: complexo ferroviário

Os trilhos perdidos

Embora o Museu seja o único espaço com acesso à população, o complexo ferroviário ainda resiste ao tempo. A obra da estação se concluiu em 1909. Logo em seguida, ganhou como companheira o prédio do armazém e a casa do guarda-chaves. Rota de comerciantes, religiosos e tropeiros, esse pequeno complexo foi responsável pelo desenvolvimento de uma cidade inteira. Hoje, tanto o armazém como a casa do guarda-chaves ficam dentro do terreno de uma associação desportiva. Nos tempos áureos, o armazém era responsável por guardar o transporte das cargas dos comerciantes da região e fazia parte do complexo ad-

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Os trilhos, assim como a história da época, se perderam em memórias dos moradores antigos. A terceira sala do Museu, ainda sem restauro, conta com um acervo da Câmara Municipal. Lá dentro, os sapatos não rangem mais no piso de madeira, a luz é parca e os materiais – expostos com tanto zelo nas salas anteriores – se acumulam pelos cantos. Entre quadros, bandeiras e classes escolares que escondem a memória política e educacional do município se esconde um dos maiores tesouros: dois pedaços de trilhos da antiga linha do trem. Deslocados, eles se encontram no canto esquerdo da porta de entrada. Entre um piso de cimento batido e uma parede sem reboco, ficam debaixo das cadeiras


No complexo ferroviário, a casa do guarda-chaves segue à espera de reparos, mas o armazém ganhou pintura recente

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A Rua João Luís de Moraes ainda tem os contornos do antigo trilho do trem, em torno do qual se formou uma comunidade

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antigas da Câmara de Vereadores. Nenhum destaque ou glória circunda o que é o único vestígio da história antiga da estação. De fato, os trilhos estavam perdidos até alguns anos antes e foram encontrados por mero acaso. “Esses trilhos estavam na Comunidade Evangélica da Paz, uma das primeiras igrejas evangélicas de Portão. Eles tinham um galpão antigo com uma churrasqueira, e esses trilhos seguravam a estrutura da churrasqueira. Quando eles construíram o pavilhão novo, encontraram o trilho, então perce-

beram que isso na verdade fazia parte do museu e devolveram”, conta Isaque. “Ligado ao trem no Museu, a única coisa que temos é o trilho. Não temos mais nenhum outro objeto”, sentencia. Com isso, hoje, sobram apenas histórias e estradas para serem percorridas.

No meio do caminho, tinha uma estrada O trem vinha de São Leopoldo, passava por Portão e ia até Barão. No caminho, ainda restam

algumas estações em municípios como Montenegro, Maratá e Salvador do Sul. Outras já deixaram de existir ou ainda resistem à espera de reparo, como é o caso da estação de Capela de Santana. A antiga estrada do trem hoje é ocupada por construções irregulares. Cruzando os bairros São Jorge, Estação e Boa Vista, as vilas que foram se construindo em torno do antigo caminho ganharam dois apelidos que recontam a sua história: “trilhos de baixo” e “trilhos de cima”. Enquanto os primeiros são parte de uma estrada larga, o


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ÉRICA MORAES (DRONE OPERADO POR LEONARDO BACHI)

segundo fica no topo de um morro. Em uma estrada estreita e sinuosa, percorremos o mesmo caminho que foi feito por tantas pessoas no passado. Ao nos guiar pela Rua João Luís de Moraes, Isaque repete uma tradição familiar. “Os irmãos do meu avô e meu próprio avô trabalhavam na linha do trem. O tio do meu pai ia na frente, abrindo a picada para depois o pessoal vir e fazer o caminho do trem”, comenta enquanto nos deslocamos lentamente pela estrada. “Todo esse caminho – daqui até Barão – foi esse tio do meu pai que foi na frente abrindo o mato pra ser feito. Então eu tenho um pouco desse envolvimento emocional com o trem pelo fato de que a família viveu isso”, complementa. Enquanto o carro acelera, os moradores param seus afazeres e seguem o veículo com olhares. De fato,

o bairro não é conhecido por sua tranquilidade. Nos anos 90, devido ao grande número de invasões feitas nos terrenos estaduais da antiga linha do trem, Portão recebeu o título de cidade com maior número de favelas em relação ao número de habitantes do Rio Grande do Sul. Embora a situação tenha se estabilizado em boa parte do município, a fama de perigosa ainda acompanha certas regiões que estão nas extremidades da antiga via. E é por esse motivo que decidimos seguir nossa exploração por fora do bairro. Para chegar ao final do que se conhece como a linha do trem é preciso coragem para enfrentar estradas de chão e determinação para avançar com o carro em meio à mata fechada. Desviando pela zona rural de Portão, encontramos um túnel verde e estreito. No chão, ainda é possível ver as pedras da antiga fundação que anteriormente recebeu os trilhos. Pequenas pontes se integram ao longo do caminho sinuoso e as lendas urbanas contam que existem muitas mais perdidas em meio ao mato cerrado. O trilho conta com espaço apenas para que as rodas do carro passem, espremido pela vegetação dos dois lados. Estacionados, o único som que nos acompanha é dos pássaros e da mata do entorno. No silêncio, parece que o apito do trem poderia ser ouvido mais uma vez a qualquer instante.

O esquecimento Em 1940, a rodovia RS-240 começava a ser construída dentro do município. Hoje uma das principais rotas para quem vai da Serra à Capital, a estrada trazia consigo os ares de progresso que se somavam com o sonho da indústria automobilística. Conforme os veículos se tornaram mais populares entre os moradores, a antiga Maria Fumaça

caiu no esquecimento. Em 1965, a estação foi desativada. Depois de ser abandonado como estação, o prédio ainda estava no centro comercial da cidade. Com a emancipação do município em 1963, a prefeitura também abandonou o bairro e o espaço se perdeu em novas utilidades. Nos anos 70, foi sede da prisão municipal e da delegacia de polícia da cidade. Segundo as histórias contadas pelos moradores, o delegado da época colocava os presos para arrancarem as ervas daninhas do terreno para que pudessem almoçar. Assim, quem passava pela rua via os presos trabalhando. Com isso, o prédio começou a ser menos procurado e visado pelos moradores dos arredores. Nos anos seguintes, foi associação de moradores, depósito e até mesmo um bar. Desde 2006, entretanto, é oficialmente o Museu de Portão.

A espera pelo trem (e por todas as suas melhorias) Um dos sentimentos que permeiam a estação é a espera. Pessoas esperavam pelo trem, moradores esperavam por malotes com cartas, as crianças esperavam o dia todo para escutar o apito da Maria Fumaça, namorados esperavam para ver os seus amados e os imigrantes esperavam por uma vida nova. Paradoxalmente, o local que causou tanta expectativa à população hoje espera pelas pessoas. A estação agora não está na posição dominante, mas sim na passividade da espera por ser notada, valorizada e apreciada. E é nessa espera que Isaque aguarda os projetos e a comunidade cria esperança pelo que há de vir. Novamente, Portão se vê esperando por um trem. Desta vez, ele virá sem apito e sem imigrante, mas ainda com a capacidade de conduzir sonhos. n

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SÃO LEOPOLDO

NA BIBLIOTECA MUNICIPAL VIANNA MOOG, HÁ HISTÓRIAS DE QUEM VIVE RODEADO DE LIVROS E DE QUEM NÃO VIVE SEM TER UM A TIRACOLO

ENTRE PREFÁCIOS E

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EPÍLOGOS

TEXTO DE AMANDA KROHN FOTOS DE LAURA GOULART


M

ario Quintana já dizia: “O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado”. Embora pouco frequentada durante a pandemia, a Biblioteca Municipal Vianna Moog – que leva o nome do escritor leopoldense que integrou a Academia Brasileira de Letras – é um lugar repleto de companhias para as pessoas que nela trabalham ou visitam. A auxiliar de biblioteca Maria Margarete Vitello tem 59 anos e trabalha nela há 39. Apesar da fraca memória, cada linha de seu rosto e cada fio de seus cabelos morenos e cacheados contam alguma história sobre sua rotina cercada por prefácios e epílogos. A auxiliar começou a trabalhar no local em 1981. “Foi meu primeiro emprego”, relembra, “Eu estava no final do Ensino Médio. Quando vi que tinha vaga de emprego aqui, fiz a entrevista e passei. Na época ainda não precisava prestar concurso público”, continua. Para Maria, a melhor parte do expediente é o contato com o público. Ela afirma que se recorda de poucas de suas experiências como auxiliar de biblioteca, mas demonstra guardar com carinho as lembranças que tem. “Tinha uma senhora que veio aqui por cinco ou seis anos e adorava os livros do Shakespeare. Ao pedir os livros, ela se referia ao autor como Chiquispirra, em tom de brincadeira. Era muito alegre”, conta. Não era a única frequentadora fiel da biblioteca. “Também tinha uma outra senhora que vinha aqui com frequência e, todos os anos, mandava uma torta para mim e minha família perto do Natal”, diz. Diferente das visitantes que relembra com estima, Maria tem preferência por livros espíritas e romances mais contemporâneos, além de algumas biografias. Seus olhos castanhos apreciaram as narrativas de Mônica de Castro, Zíbia Gasparetto, Francisco Cândido Xavier, Allan Kardec, Nicholas Sparks, Rosamunde Pilcher e Jojo Moyes. Suas biografias favoritas são as de Anne Frank e de Papillon. Para a estagiária de letras Érika Batista Nunes, de 22 anos, a biblioteca não apenas fez com que ela voltasse ao mundo dos livros como

também se permitisse explorar gêneros diferentes. “No meu dia a dia eu costumo ler e pesquisar sobre os livros para poder dar boas informações quando alguém está à procura de algo. Em uma dessas leituras, comecei a gostar de livros de poesia feminista, como A Princesa Salva a Si Mesma Nesse Livro e Jamais Peço Desculpas por Me Derramar”, conta.

A estagiária de cabelos castanhos, que trabalha na Vianna Moog há cinco meses, considera que o pouco tempo de contrato ainda não lhe rendeu muitas histórias para contar. O que traz fascínio aos seus olhos castanhos são as preferências literárias de cada leitor. “Tem dois meninos e uma menina que vêm bastante, os meninos parecem ter uns 20 anos e a menina uns 17. Ela gosta de livros de terror, e eles sempre buscam pelos livros de Dostoiévski”, relata. “Também tem um senhor que sempre busca livros escritos em alemão”, acrescenta. Organizar o vasto acervo de livros da biblioteca está entre as atividades favoritas dentre as que pertencem à sua rotina diária. Para Érika, limpá-los, folheá-los para oxigenar as páginas e colocá-los em seu devido lugar traz tanta paz quanto lê-los. Já para a estudante de ensino médio Bárbara Regina Koch, de 17 anos, nada pode proporcionar tanta paz quanto ler um bom livro. Como ela mesma brinca, Bárbara frequenta a biblioteca para “sustentar seu vício”. “É impossível viver sem ler. Aonde quer que eu vá, levo um livro comigo para aproveitar caso surja tempo livre”, expressa, com o brilho nos olhos de quem já viveu várias vidas enquanto folheava algumas páginas. Ela comenta que nem sempre consegue ter opor-

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Auxiliar de biblioteca há quase quatro décadas, Maria guarda, além dos livros, histórias dos frequentadores tunidade de ler, mas os carrega mesmo assim. “É mania de leitor, né?”, comenta, com um sorriso bem-humorado. “A gente leva o livro mesmo sabendo que não vai ter tempo”, acrescenta. Mesmo assim, a estudante garante que na maioria das vezes ela consegue “dar um jeitinho”, seja no ônibus, indo para algum compromisso, em alguma fila de espera ou até mesmo na cama, antes de dormir. Segundo Bárbara, sua história com a leitura começou ali mesmo, na biblioteca. “Eu era bem pequena ainda, mas tenho certeza de que foi amor à primeira vista”, afirma. A estudante conta que a mãe a levava para o projeto de contação de histórias. “Ela não tinha muito dinheiro para comprar livros pra mim, mas queria que eu desenvolvesse esse contato com a literatura, por isso me levava lá”, relembra a jovem. “Sempre que podia ela se informava a respeito dos horários em que a contação de histórias estava sendo realizada para que eu pudesse ir com uma certa frequência”, continua. Bárbara afirma que, mesmo sendo no início de sua infância, ela consegue se lembrar do quanto aqueles momentos eram mágicos para ela. A estudante os

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define como um “verdadeiro passaporte para o mundo da literatura”, pois cada narrativa fazia seus olhos azuis se encherem de entusiasmo. Seu conto favorito era o da Cachinhos Dourados, porque em sua infância, antes de seus cabelos escurecerem e atingirem um tom de loiro dourado com raízes quase castanhas, eram parecidos com os da protagonista. “Lembro que eu gostava de brincar de teatro e interpretar meus personagens favoritos das histórias que ouvia na biblioteca”, comenta. Enquanto o relacionamento de Bárbara com a literatura começou na infância, o da graduanda em Letras e Literatura Regina Ossani começou antes mesmo de ela nascer. Antes que sua mãe soubesse o gênero dela, a cor escura dos cabelos e o tom alvo de sua pele – semelhante à do pai –, ela tinha uma certeza: Regina cresceria amando ler. Quando seu lar ainda era o confortável útero de sua mãe, já tinha contato com obras como O Pequeno Príncipe e Meu Pé de Laranja Lima. “Minha mãe sempre me contava que, às vezes, eu só me acalmava quando ela começava a ler um desses livros”, comenta a estudante, que hoje vive para

estudar a literatura através dos séculos. “Desde pequena, minha frase favorita, apesar de simples, é ‘Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas’. Por coincidência, essas palavras me cativaram”, conta Regina, enquanto relembra nostalgicamente os caminhos que a fizeram chegar aonde está. “É muito bom remexer nessas lembranças. Adoro viajar para o passado e lembrar que, antes mesmo de nascer, eu já sabia exatamente o que eu queria fazer da minha vida: ler”, comenta. Durante toda a sua infância e adolescência, Regina frequentava a biblioteca não apenas para retirar obras, mas também para passear, olhar livro por livro e observar o ambiente e as pessoas ao seu redor. “Não era nem por falta de acesso a livros que eu ia lá, muitas vezes eu podia comprar se quisesse”, explica, “mas sempre gostei da sensação de estar num lugar repleto de livros que podem me levar para lugares inimagináveis. Também gosto de saber que qualquer pessoa, com dinheiro ou não, pode retirá-los quando desejar”. Para Regina, o melhor lugar para se frequentar na vida é uma biblioteca. “Queria que todos os municípios pudessem ter uma biblioteca tão rica quanto a nossa”, comenta. “E queria que as pessoas reconhecessem a preciosidade que elas têm aqui mesmo, bem perto delas. Mas nem todos sabem apreciar o valor que uma biblioteca tem”, desabafa. A universitária conta que todo o tempo que passou na biblioteca foi o que inspirou sua decisão de curso. “Se passei tanto tempo lendo livros, nada mais coerente do que ganhar a vida estudando-os”, argumenta. Além dos aspectos próprios de alguns visitantes e as vivências que a leitura pode proporcionar, as mudanças que ocorreram na biblioteca através


das décadas também são verdadeiros marca-páginas na mente de quem trabalhou lá por muitos anos. Maria Margarete relata que, antes da era tecnológica, a biblioteca recebia mais de 200 pessoas por dia, que a frequentavam tanto para pesquisas quanto para lazer. Hoje em dia – especialmente em tempos de pandemia –, menos de 30 pessoas por dia visitam o local, e a leitura é feita principalmente para lazer – levando em conta que as pesquisas geralmente são feitas on-line, na palma da mão. Um dos motivos para a baixa procura, de acordo com a auxiliar de biblioteca, é que algumas pessoas sequer sabem que o local reabriu, no dia 27 de julho. Maria fala que o espaço já foi reorganizado diversas vezes conforme a demanda mudava. Até o final dos anos 90, era preciso ter diversas mesas para que duas centenas de pessoas pudessem ler e pesquisar por lá todos os dias. Naquela época, também havia a assinatura dos principais jornais e revistas, que eram disputados pelos leitores. Porém, em meio a cortes de verba, as assinaturas deixaram de existir. À medida que o público diminuía, os recursos

para a biblioteca (e a quantidade de mesas) diminuíram também. Quem a visita, depara-se com, no máximo, cinco mesas grandes para quem desejar sentar e ler. A maior parte do espaço é ocupada por estantes repletas de livros de todos os tipos: didáticos, ficção, não-ficção, nacionais, internacionais, poesia, fantasia, romance, biografia… desde os best-sellers e clássicos até livros menos aclamados. Jornais e revistas não estão mais disponíveis, mas o espaço conta com um acervo diversificado de mais de 36 mil livros para escolher. Dentre as mudanças que já ocorreram na biblioteca está o seu nome. Fundada em 1941, era Olavo Bilac, em homenagem ao jornalista, contista, cronista e poeta brasileiro. Olavo Bilac foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras, ocupou a 15ª cadeira da instituição e é autor da letra do Hino à Bandeira. No ano de 2007, a biblioteca passou a homenagear um leopoldense: o nome mudou para Biblioteca Pública Municipal Vianna Moog, em homenagem a Clodomir Vianna Moog. Ele foi escritor, romancista, ensaísta, jornalista, advogado e ocupante da 4ª cadeira da Academia Brasileira de Letras. Em suas colunas no Jornal da Noite, na década de 1930, Vianna Moog combatia o tenentismo. Dois anos depois, foi preso ao participar da Revolução Constitucionalista e transferido para a capital do Amazonas. Durante o exílio, passou a ter participação ativa no universo literário – no qual se consagrou após o golpe de 1937. Escreveu os livros Heróis da decadência: Reflexões sobre o Humor, com estudos sobre Petrônio, Cervantes e Machado, O ciclo do Ouro Negro, ensaio sobre a realidade amazônica, Eça de Queirós e o Século

XIX, entre outros. Como se vê, dedicava parte importante da vida à literatura – assim como Maria, Érika, Bárbara e Regina. Repleta de histórias como estas (entre várias outras) e cercada pela paisagem verde da praça 20 de Setembro, a Biblioteca Municipal – que integra o Centro Cultural José Pedro Boéssio – é um verdadeiro paraíso para quem não vive sem a acolhedora presença de um livro. Graças a ela, as narrativas são lidas pelos olhos curiosos de qualquer pessoa, e estão sempre à espera de novos leitores. Afinal, já diz o escritor Caio Rossan: “Livro bom é livro que a gente passa adiante. O prazer da leitura não deve ser restrito”. n

MAIS NA WEB Medium: confira o mapa interativo produzido por Vitória Pimentel, com uma lista de outras bibliotecas para visitar. Spotify: ouça o podcast na Audiomagazine e confira a playlist Paisagens urbanas no perfil Revista Primeira Impressão.

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SÃO LEOPOLDO

F

inal de tarde de domingo, cá estou eu andando de skate na pista de São Leopoldo. Em certos momentos não sabia se admirava mais o pôr-do-sol ou a chuva de manobras que acontecia naquele lugar. Em meio a essa tempestade de talentos lá estava eu, um admirador das pranchas de quatro rodas, mas ainda novato no esporte, produzindo um turbilhão de quedas, tão natural que parecia um fenômeno da natureza. Os olhares veteranos se projetam sobre mim com um ar de julgamento tão agudo quanto as mais profundas filosofias de vida. Quedas, sensações de constrangimento e ímpeto de desistência. Ainda que o skateboarding seja um esporte e um estilo de vida com que eu me identifique, não significa que seja pra mim, talvez. Diante de ollies e flips profissionais, o ato de simplesmente ficar em cima do skate parecia coisa de especialista. Não sei se era o Sol, ou os olhares mais intensos que raios ultravioleta presentes naquele lugar, mas me senti desconectado daquele espaço público de entretenimento, o skatepark. Eis que antes da chegada da Lua, decidi ir de quatro rodas nas esbucaradas ruas da cidade em direção a minha casa com uma total sensação de despertencimento. Manhã de sábado do final de semana seguinte, lá estava eu novamente naquela planície com barras e rampas, reparando no talento e nas risadas de crianças incomparavelmente mais talentosas que eu. Uma delas, ao fazer uma impressionante manobra em uma das barras, facilmente reconhecível pela camiseta do mangá Naruto, me chamou a atenção. De fato vi algo especial, parecia alguém capaz de realizar movimentos tão surpreendentes quanto o dos personagens do mangá que ele gosta. Me aproximei e decidi puxar assunto. Em meio à conversa, fiquei sabendo que se tratava de um bicampeão gaúcho de skate na categoria mirim, e tudo se tornou autoexplicativo. Seu nome é Davi Alves Nigro Winter. Davi, no auge dos seus 12 aninhos, consciente da minha fascinação pelas suas habilidades, deu uma pausa nos movimentos e decidiu conversar comigo sobre sua vida e sua relação com o skate. Mal esperava eu que estava prestes a me deparar com uma das histórias que me introduziram ao conhecimento da filosofia em movimento. Davi conta que ganhou da mãe seu primeiro skate aos 4 anos, sendo esse de plástico, um brinquedo. De início o pai dele

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TO FIAEN SOVIM ILOMO

F EM

TOMBOS E PERSISTÊNCIA SÃO ALGUMAS DAS LIÇÕES DO SKATEPARK, UMA SALA DE AULA ONDE SE APRENDE UM MODO DE ENCARAR A VIDA TEXTO DE GABRIEL REIS FOTOS DE LAURA GOULART

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encarou com temor o presente, mas ao perceber o talento e a dedicação do garoto passou a incentivá-lo no esporte, dando para ele um skate profissional dois anos depois. Desde então, Davi e seu pai, Eduardo Alves Winter, de 41 anos, mais conhecido como Duda, passaram a treinar semanalmente no skatepark dos belos pôr-do-sol e olhares intensos, até Davi se tornar campeão gaúcho na categoria mirim, em 2017, e, dois anos depois, bicampeão. Naquela manhã de sábado, Duda, o pai, estava presente e sorridente como qualquer pai orgulhoso de seu filho, similar à euforia de Davi. A fim de compreender mais sobre o histórico familiar de ambos com skate e saciar minhas curiosidades de repórter, pedi licença para conversar com Duda enquanto o garoto tornava a brilhar nas rampas do skatepark de forma tão reluzente quanto aquele sol de manhã de primavera.

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Para contextualizar o processo de profissionalização de Davi, Duda iniciou nossa a conversa falando da própria trajetória com o skate. As remadas iniciais de Duda são datadas de 1989, quando andava com o skate emprestado de um vizinho. Ao longo dos anos 90 conseguiu um skate próprio, se profissionalizou no esporte e próximo à virada do milênio começou a participar de competições. Contudo, em 2002, o maior medo de qualquer skatista se transformou em uma fatalidade para Duda. Durante uma competição, se acidentou: bateu cabeça e ficou inconsciente por um tempo. A paixão deu lugar a um trauma transcendental que fez Duda se afastar do skate até tornar a andar com Davi, para encorajar o filho a aperfeiçoar suas habilidades. Duda relembra o temor que sentiu ao ver Davi ganhando seu skate de brinquedo aos 4 anos, e realmente era algo inevitável. Porém, mal sabia ele

que esse presente ganho pelo filho seria a mais nova porta de entrada para a filosofia em movimento: o temor pela queda, o ímpeto de desistência e o anseio pela melhora e persistência. Como bem afirma Duda, “o skate é um estilo de vida”. Ainda muito admirado pela grande história de vida que tive a honra de conhecer, me despedi de ambos e do skatepark com uma sensação de inspiração que me fez retornar àquele lugar na tarde do mesmo dia. Às 16h, os rostos presentes eram joviais, as quedas mais bruscas, as manobras mais arriscadas, e algumas conversas incabíveis de serem transportadas para cá. Ficou claro que de manhã o skatepark é das crianças, à tarde dos mais jovens, e à noite dele mesmo, podendo se contentar com a beleza de seus grafites. Naquele momento, próximo às barras, um jovem parecia ter encarnado no skate, parecia respirar o que estava fazendo. Junto de um grupo de amigos e com alguns gravando manobras e remadas, decidi chamá-lo de canto para conversar e descobri que se tratava de um amigo de Duda, Vinicius Denicol. A conexão voraz de Vinicius com o skate me pôs a refletir que mais uma vez poderia estar me deparando com uma filosofia sendo posta em prática de corpo e alma. Ao longo da conversa, não tardou muito para eu perceber que minhas intuições não haviam me traído. Conta ele que teve relações de


FOTOS GABRIEL REIS

De pai para filho, de filho para pai: Eduardo voltou ao skate para acompanhar Davi

idas e vindas com o skate, soando como relações amorosas imaturas de tempos de escola. Quando recém adolescente, Vinicius, assim como Duda, começou a andar com o skate de um amigo, porém ao longo de sua adolescência se mudou múltiplas vezes, fazendo-o desapegar do skate múltiplas vezes também. Porém, próximo aos 18 anos, Vinicius se mudou mais uma vez, desta vez para São Leopoldo. Juntou um dinheiro e investiu em equipamentos profissionais para montar o próprio skate. Vinicius afirma que a partir daquele momento “encarnou” no esporte e gradativamente foi fazendo amizades com outros jovens que compartilhavam do mesmo vínculo com a prancha de quatro rodas. Passou a frequentar junto de seus amigos a pista de skate localizada abaixo da linha da Trensurb e também o skatepark em que estávamos naquele momento. Com o passar do tempo, Vinicius e seus amigos mais pró-

ximos começaram a frequentar pistas de skate de outras cidades, como Canoas e Porto Alegre, e até a conhecer profissionais do esporte que serviram de motivação para fortalecer seu laço com o skate, que inevitavelmente se transformou em uma conexão intensa. Vinicius e sua turma chegaram a criar uma conta no Instagram, em que publicam fotos e vídeos da filosofia sobre a prancha de quatro rodas que seguem. Algumas postagens contam com quedas, mas, de forma unânime, após todas as quedas sucede a persistência. Ao fim daquele sábado, já me sentindo cansado, me despedi de Vinicius com o meu skate sustentado pelos braços e fui para minha casa me pondo na função de refletir sobre a minha relação com o skate e o que me levou às más sensações que tivera no domingo anterior. Me recordei que desde pequeMAIS NA WEB no, com o boom do skateboarding nos YouTube: assista ao vídeo de João anos 2000, semVíctor Teixeira, que detalha a anapre sonhava com tomia de uma pista de skate. a possibilidade de Spotify: ouça o podcast na Audioaprender a andar magazine e confira a playlist Paide skate, porém, sagens urbanas no perfil Revista este era um sonho Primeira Impressão. que nunca se con-

cretizava. Anos depois, por volta dos 21 anos, passei a assistir competições e a frequentar pistas até comprar o meu próprio equipamento. Ainda sou um skatista amador e tive múltiplos momentos de descolamento com o skate por não sentir a evolução que gostaria – aquele último domingo foi mais um desses momentos e poderia ter sido definitivo. Mas o sábado seguinte foi pedagógico: Davi, Duda e Vinicius foram meus tutores, minha atenção foi minha caneta invisível e o skatepark, minha sala de aula. Percebi que a queda, os machucados, o processo demorado fazem parte de uma filosofia de vida, a filosofia em movimento. Uma filosofia que não consiste na capacidade de fazer grandes manobras e vencer campeonatos, mas sim na persistência de cair, se levantar e tentar novamente. Uma filosofia que se estende do skate, sai da sala de aula do skatepark e se torna uma forma de encarar a vida. n

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SÃO LEOPOLDO

TRANSCENDÊNCIA

U

NATURAL

m pé para dentro, depois o outro. O tempo congela enquanto durar a visita. Algumas pessoas passam, fazem compras e vão embora. Outras apreciam a própria companhia, ao degustarem com calma a refeição no prato a sua frente. As prateleiras enchem os olhos de quem circula e desafiam a seguir adiante, como se soubessem que é quase impossível passar sem explorar a variedade de produtos dispostos ao longo delas. São vinhos coloniais, molhos de tomate orgânico, frutas, grãos de todos os tipos, opções sem glúten e sem lactose, sucos naturais, biscoitos e tantas outras categorias alimentícias. Tudo começou com um restaurante chamado Vis Vitalis, que entre 1990 e 1996 manteve suas portas abertas no início da Rua Independência, em São Leopoldo. Um dos sócios, no fim, levou consigo o nome do estabelecimento, quando a parceria acabou.

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NO CENTRO DA CIDADE, UMA FILOSOFIA DE VIDA SE CONVERTE EM COMIDA SAUDÁVEL TEXTO DE MARÍLIA PORT FOTOS DE LAURA GOULART

Assim, naquele mesmo endereço, em 1999 surgiu a Natur Haus, administrada pelo sócio da Vis Vitalis que ficou, Peter Fourier, 74 anos, e sua parceira e sócia, Jaqueline Escopel da Silva, 55. Juntos, puseram em prática o plano de um restaurante natural vegetariano, que também oferece café da tarde e comércio de produtos naturais, em varejo e atacado. Peter é alemão. Aos quatro anos de idade, veio ao Brasil com a família, que partia da terra natal devido à guerra. Depois de concluir o ensino médio, Peter retornou ao país de origem para cursar o ensino superior. É engenheiro mecânico formado. Depois disso, deixou a

Os caminhos alternativos de Peter e Jaque se cruzaram e deram origem ao restaurante Natur Haus, onde aplicam seu estilo de vida em cada detalhe


Alemanha. Segue em solo brasileiro até hoje. Foi aos 30 anos que descobriu o caminho da alimentação natural vegetariana. Frequentava a Brahma Kumaris, uma entidade indiana que agora já existe em mais de 100 países, dedicada à promoção de valores espirituais e renovação do mundo. Em uma terapia, Peter conheceu Jaque, desde sempre entusiasta de uma vida alternativa. Os dois parecem se completar. De óculos e cabelos de um branco brilhante, Peter tem uma expressão simpática, ao cumprimentar os clientes, entre as idas e vindas da cozinha. Ele circula o tempo todo resolvendo as demandas que surgem. A exceção acontece por volta das 15h, quando se senta à frente de Jaque para almoçar, logo antes do buffet ser recolhido. Com 18 anos, Jaque foi morar em uma comunidade na cidade de Pirenópolis (Goiás). De volta ao Rio Grande do Sul, residiu na cooperativa Sítio Pé na Terra, em Lomba Grande, cujo propósito principal era a agricultura orgânica. Também estudou macrobiótica,

medicina ayurveda e passou três meses meditando na Índia. Por toda a sua história, a filosofia zen guia a jornada de Jaque, tão energizada que atribui uma espécie de aura dourada à sua volta, enquanto fala com tranquilidade sobre a vida, sempre olhando nos olhos. Os cabelos lisos escuros de pontas claras, combinados à rotina intensa, expressam um quê de vitalidade. A franja moderna costuma ser mais visível que o resto dos fios, que são mantidos presos, durante o manejo da comida. Espiritualizados, Peter e Jaque são simpatizantes do budismo. Meditam e fazem yoga sempre que possível, mas o ritmo agitado da Natur Haus, tão bem-sucedida, mantém os dois ocupados durante quase o tempo inteiro. Fica difícil seguir à risca todas as práticas tradicionais. No entanto, a filosofia de vida que professaram reflete nos detalhes, desde as bandeirinhas budistas penduradas na Natur Haus até a estátua dourada do próprio Buda, que sorri pacífica a todos que se dirigem ao buffet, repousando ao lado da bancada dos chás. O nome Natur Haus pode ser livremente traduzido do alemão como “casa da natureza”, termo que não poderia fazer jus de maneira mais literal ao espaço. Com dois jardins abertos ao público, o recanto dos fundos é o mais verde, cercado por plantas cheias de vida que formam um verdadeiro refúgio no meio da cidade. Dizem que aspirando fundo é possível sentir os pulmões purificados. A filosofia humanista e um tanto alternativa da Natur Haus parece refletir a personalidade da fiel clientela, ao observar

o entra e sai dos amantes de alimentos orgânicos que carregam consigo sacolas ecológicas. “Eu gosto de tudo, gosto do cuidado com o fazer do alimento, do atendimento, das pessoas, dos produtos, da localização... O ambiente é super agradável e espaçoso, eu me sinto em casa”, elogia Vera Schuster, 62, que quatro décadas atrás teve os primeiros contatos com a alimentação natural, integral e sem veneno, conforme defendida por ela. Uma das clientes mais antigas da casa, Vera pontua que a sua descoberta de restaurantes com essa proposta foi um caminho natural, e tem a Natur Haus como referência nesse segmento. Adepta ocasional do consumo de carne, Vera aproveita “os mais diversos nutrientes dos mais diversos alimentos”. Óculos grandes se posicionam sobre um nariz pequenino em um rosto gracioso. Cabelos cor de pôr-do-sol são permeados por alguns fios prateados. A fisionamia delicada e a baixa estatura de Vera guardam uma alma cheia de personalidade. É uma figura de luz e sabedoria. Pro-

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fessora aposentada, ela conversa pelos cotovelos. É cheia de assuntos e histórias. Reunidas, Vera e Jaque paralisam o tempo. Percorrem horas em lembranças, opiniões e amigos em comum. Durante os seis primeiros anos de existência, a Natur Haus permaneceu na rua principal da cidade, com os moradores do centro compondo grande parte da clientela. Decorrido esse período, o casal precisou enfrentar uma despedida um tanto traumática do espaço que alugava. O proprietário da casa queria o imóvel de volta e, apesar de garantir que teriam tempo para realocar o restaurante, surpreendeu-os judicialmente. Com a ajuda do advogado, reverteram a situação traumática: o juiz concedeu um ano para que realizassem a mudança, em vez dos dois meses que o proprietário propôs. Foi assim que a Natur Haus chegou ao local em que permaneceu por mais tempo até hoje. Na Avenida João Corrêa, próximo ao Corpo de Bombeiros, a nova acomodação era uma casa antiga, longe de muitos dos clientes habituais. O espaço também era alugado, desta vez por um homem que tinha planos de desmanchá-lo,

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mas no tempo que fosse necessário, até o restaurante se restabelecer em um novo endereço ideal. Finalmente, em 2016, a Natur Haus encontrou seu lar atual, de volta ao Centro, em uma casa ampla e um tanto retrô na Rua Marquês do Herval. Foram quatro longos anos de busca, durante os quais Peter e Jaque tiveram a companhia de uma amiga que ajudava a sentirem a energia de cada alternativa de locação que visitavam. Essa, na verdade, sempre foi uma questão importante: a boa atmosfera do lugar. Não é à toa que deu tão certo: a porta de madeira e vidro que separa o mundo exterior da parte interna da casa parece um portal, por onde as pessoas passam e deixam seus problemas do lado de fora. Dividido em dois andares, o novo ambiente costumava ser um armarinho. Quando a dona faleceu, o imóvel passou a ser administrado pelo filho e pela nora, que decidiram alugar. Bem localizado, o endereço fica em uma área movimentada, mas protegida do barulho e afastada das muitas lojas da rua principal. O lugar é ao alcance perfeito de muitos dos antigos clientes, que retornaram junto com a volta do restaurante para o Centro.

Com a mudança, também, os sócios resolveram abandonar o peixe. O vegetarianismo foi uma opção relativamente recente na história da Natur Haus. Antes do retorno para o Centro, o peixe oferecido pela casa era um dos pratos queridos pelos clientes. Muito bem temperada, a única opção carnívora do buffet foi uma escolha feita para cultivar o público, pelo menos até o restaurante se estabelecer. No menu agora consolidado entre os fregueses diários, as opções são todas vegetarianas. O que chateou alguns clientes animou tantos outros, conforme mais e mais simpatizantes de dietas plant based passaram a compor o movimento diário. É o caso de José AlberMAIS NA WEB to Berti, o Zeca, 58, Spotify: ouça o podcast na Audioque já é conhecido magazine e confira a playlist Paina casa e possui uma sagens urbanas no perfil Revista alimentação livre de Primeira Impressão. carne. “Desde 1998”, conta ele, orgulhoso. Zeca é feirante na Feira Livre Leopoldense, nas quartas-feiras. Além da qualidade da comida, ele destaca os preços acessíveis da Natur Haus, que são unanimidade no agrado aos clientes. Assíduo, Zeca é um dos fregueses que acompanham o restaurante desde a época do Vis Vitalis. A Natur Haus existe através do trabalho de pessoas que se preocupam com a causa animal e ecológica. Talvez um dia o restaurante ainda evolua ao veganismo. Por enquanto, derivados de leite e ovos caipiras ainda são utilizados na produção dos alimentos. Para amenizar os danos ao meio ambiente e aos bichi-


Variedade de produtos e harmonia do lugar conquistam fregueses como Vera, que começou com a alimentação natural ainda na juventude

nhos, os produtos são comprados de pequenas fazendas locais. Em ambas as refeições oferecidas, o chá é livre. Gratuito, está sempre quente e saboroso para acompanhar o alimento. As bebidas quentes são as melhores alternativas para o consumo de líquidos junto com a comida, já que ajudam na digestão, além de todas as propriedades medicinais de cada planta utilizada nos preparos. Aliás, o comércio de ervas de chá e temperos faz bastante sucesso na Natur Haus. O cuidado com a saúde está em tudo. “As pessoas acham que vamos curá-las”, brinca Jaque, bem-humorada, que já respondeu um sem-número de perguntas sobre produtos com intenções curativas na loja, para os mais diversos sintomas. Na equipe, além do casal de sócios, existem mais oito pessoas comprometidas diariamente com os vários processos em torno dos produtos naturais. As dependências do ambiente acomodam a loja, o restaurante, o escritório, uma cozinha quente e uma fria, dois jardins, estoque e atacado. É a própria Jaque quem cozinha, acompanhada por uma saladeira, uma confeiteira e uma auxi-

liar de cozinha, além das pessoas envolvidas com a loja e demais funções. No total, são 10 pessoas fazendo a mágica da vida real acontecer. Alguns minutos no jardim ofertam o efeito purificante do oásis no deserto da cidade. As árvores que contornam o espaço abrigam ninhos de pássaros mansos, que se arriscam a caminhar no entorno das mesas. Recortes de céu azul celeste se exibem entre as copas da vegetação, cuja sombra alivia o calor escaldante do sol no verão. Durante as tardes, senhoras com rostos gentis emoldurados por cabelos grisalhos marcam presença no ambiente. À flor dos seus 70 anos, reúnem-se com as amigas, conversam e bebem chá por longas horas. Comemoram aniversários ou simples tardes de semana. Os olhos brilhantes anunciam o prazer da partilha daquele instante com quem junto sustenta muito tempo de vida e, especialmente, de história. Entre tortas e salgados, a casa também oferece açaí na tigela, de um púrpura vivo com textura cremosa, coberto com granola, mel e outros acompanhamentos saudáveis. As pessoas e o espaço, juntos, parecem tão sintonizados que se transformam em uma coisa só. A iluminação combina paredes claras com a luz natural que entra pelas janelas de vidro, tornando aconchegantes mesmo os dias frios. Nas paredes, a decoração é simples e colorida. Quadros e mandalas parecem potencializar a paz de cada canto enfeitado. O som das flautas de bambu da música ambiente é relaxante, como se embalasse um momento de meditação. Cristais reforçam a atmosfera energética do espaço, como um lembrete constante de que, naquele momento, tudo que importa é estar lá, de corpo

e alma, contemplando a leveza de uma vida mais natural. Mesinhas quadradas espalhadas por toda a extensão do espaço permeiam o caminho até o buffet, perto dos fundos. Durante o almoço, um cardápio variado, com ingredientes integrais e, sempre que possível, orgânicos. Mais tarde, as panelas cedem lugar para os mais diversos tipos de tortas, doces e salgadas, em versões mini e grande, além de empadinhas, pães de queijo, pastéis integrais, panquecas e tantas outras opções. O perfume do restaurante pode ser sentido por quem passa na calçada. Nos primeiros tempos de volta ao Centro, não foram raros os relatos de visitantes que diziam “Entrei porque senti o cheiro de um restaurante que eu frequentava lá na João Corrêa”. É uma lástima que o aroma dos sabores no lugar não possa transpor este texto. A hora de ir embora chega. O fim da visita lembra que a vida segue lá fora, e é preciso retomá-la. Cada compra ou alimento consumido revela que uma parte da experiência vai junto, com a promessa de fazer o público retornar. Um pé para fora, depois o outro. n

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ENSAIO

FERRUGEM DA MEMÓRIA

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osteando o Rio das Antas, logo depois de Bento Gonçalves, existem os resquícios da Ferrovia do Vinho e sua ligação com o Tronco Principal Sul (TPS), responsável pelo trânsito de trens que ainda realizam o transporte de carga pelo Rio Grande do Sul. Esses trilhos, que um dia contribuíram para o desenvolvimento da região, foram desativados na década de 90, e a estação Jaboticaba, um pouco mais tarde, em 2005. Hoje, trilhos e vagões estão lentamente sendo tomados pela natureza. Estações abandonadas foram ocupadas por pessoas e se tornaram o lar de alguém, assim como os vagões são lares para a natureza ao redor. Na entrada do túnel em Y, responsável por cortar um dos morros da Serra Gaúcha, os vagões foram abandonados e agora lentamente enferrujam. O silêncio é quebrado pelo canto dos pássaros, pelo barulho dos insetos e do rio que corre ao lado. Uma suave brisa vem do túnel, este que exige uma lanterna para que se possa ver mais do que alguns palmos à frente. O cheiro é de uma mistura de árvores com o metal que lentamente corrói. A pergunta “por que esses trens foram deixados aqui?” fica constantemente na sua cabeça, enquanto caminha os mais ou menos 2 km de vagões abandonados. A tranquilidade em estar cercado pela natureza e a vista de tirar o fôlego entram em conflito com a sensação de vazio e desconforto pela história que existiu e que pouco a pouco cai no esquecimento. FOTOS E TEXTO DE GABRIEL M. FERRI

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SAPIRANGA

TÃO BELA QUANTO A

IMAGINAÇÃO

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L

ocalizada luminárias, que fionde, anos zeram da praça um atrás, ferros ponto de interesse formando para fotografias de trilhos de noivos apaixonatrem passados e debutantes vam, a Praça das Rosas é sorridentes. um marco na construção Atualmente, do imaginário sapirannão mais tão bem guense sobre a própria cuidada e sofrenTEXTO DE cidade. Chamada de “Cido com as ações de LAURA BLOS FOTOS DE dade das Rosas”, insígnia vândalos, a praça GABRIEL M. FERRI dada pelo diretor do Sertestemunhou a reARTE DE viço Estadual de Turismo tirada de seus banCAROLINA AMBROS do Rio Grande do Sul, Oscos e quebra das valdo Goidanich, em 1964, suas luzes. ResisSapiranga está aos pés do Morro tentes a tudo isso seguem as rosas, Ferrabraz, no Vale do Sinos, a cerca que em 2021 apresentaram, talvez, de 60 quilômetros da capital, Porto o mais belo de seus espetáculos Alegre. A praça é um local repleto anuais. Rosas de todas as cores, de canteiros coloridos, belos e pro- tamanhos e espécies desabrochategidos pelos delicados e eficientes ram em meio à adversidade de espinhos das rosas que os preen- uma volta inconstante pós-duranchem. Ao lado da antiga estação te-pandemia, tornando a passagem de trem da cidade, desativada na por ali ainda mais especial. década de 1960 e que atualmente Observando-a em seu conforto, abriga o Museu Municipal Adolfo o som é o do barulho dos carros, no Evaldo Lindenmeyer, a Praça das movimento da tarde, das 18 horas. Rosas abriga as primeiras mudas Todos os veículos parados em fila, a concederem o título a Sapiran- aguardando a contagem regressiga. Revitalizada nos anos 1990, va do sinal vermelho igualar-se a passou a contar com caminhos e zero, liberando-os para a partida. espaços entre os canteiros, arcos e Junto a isso, escuta-se o canto dos

A PRAÇA DAS ROSAS E O MUNDO QUE ELA É CAPAZ DE PROPORCIONAR

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LAURA BLOS

pássaros e, muito próximo, de um pequeno alado recém-nascido, que chama sua mãe insistentemente, a fim do jantar. Enquanto isso, a prosa de final de tarde dos musicais passarinhos lembra a da roda de chimarrão entre a família de gaúchos que se reúne para falar sobre como foi o dia. A brisa é aquela característica, leve após um dia quente do início da primavera, lembrando e preparando para o que será o verão de altas temperaturas, comum às cidades localizadas no Vale do Rio dos Sinos, protegidas dos ventos pelo imponente Ferrabraz, monstro das histórias medievais que se rendeu ao cristianismo e que, em Sapiranga, foi abrigo e campo de batalha para Jacobina e seus seguidores na guerra messiânica que marcou o vale nos distantes anos 1870. Faz um dia bonito, de céu azul e limpo que dá destaque às grandes copas das árvores que percorrem a lateral da praça, proporcionando sombra às rosas, aos carros e aos pedestres que por ali passam. Um local tão formoso, muitas vezes esquecido pela população da cidade, que registra seus 80 e poucos mil habitantes, é usado basicamente como passagem entre os dois sentidos da avenida mais antiga do município, por onde passavam os trens que seguiam pela rota Porto Alegre-Taquara. Um lugar de transição, por onde muitos caminham, atravessam, reparam, aguardam, vislumbram e seguem sua rotina. Um lugar que, ao me fazer observá-lo, fez, também, observar-me. Quanta dificuldade em falar, quanta facilidade ao imaginar. Percebo um casal sentado em suas cadeiras de praia, em uma das pontas da praça, que aparentemente observa as rosas e o movimento. Fazem, em dois, sua roda de chimarrão. Confesso que seriam ótimas fontes para esta reportagem, porém algo dentro de mim me impede de ir falar com eles, talvez a timidez, ou o medo de perturbá-los, quem sabe o simples fato de atrapalhar o seu momento de contemplação, ou a dificuldade de voltar a fazer Jornalismo após a loucura imposta à profissão durante a pandemia. Não sei o porquê de não procurar o diálogo, então, apenas, como eles, constato a beleza das rosas do local.

Vizinho da praça por 35 anos, o barbeiro Adelino Carvalho é pai de uma Princesa das Rosas

Um lugar como este, uma situação como esta, me faz olhar para dentro e buscar em mim um lugar de tal beleza, conforto e tranquilidade; de tal movimento, agito e passagem; um lugar que me leva a entender e buscar o meu lugar. Que me faz questionar e não entender; procurar e não saber.

Não conseguindo falar com o casal, vou para as redondezas e encontro com Adelino Carvalho, 70 anos, que chegou em Sapiranga em 1972, já percebendo a beleza dos canteiros da praça, que na época ainda tinham outra cara. Natural de Mata, a 400 quilômetros de Sapiranga, no centro do Rio Grande do Sul, Adelino chegou à Cidade das Rosas para trabalhar nas indústrias. Foi metalúrgico, calçadista, até decidir seguir a carreira de sangue, herdada do pai e também pelos irmãos: barbeiro. Em 1986, abriu sua própria


barbearia, de paredes laranja, no encontro entre as ruas Duque de Caxias e 20 de Setembro, em um prédio que fica na esquina da Praça das Rosas. Ali viu seus filhos crescerem; viu a filha Daiana tornar-se Princesa das Rosas – título concedido à corte eleita para representar a cidade e a Festa das Rosas, comemoração anual realizada no município – e representar Sapiranga no Miss Rio Grande do Sul; viu a praça ser reformada; viu o filho mais novo, Danrlei, tornar-se artista, pintando belos quadros; viu diversas pessoas virem à praça para tirar foto de seus canteiros; viu a filha formar-se em Estética e lhe dar um neto; viu o tempo passar pelas flores e rosas da praça, pelos arcos e luminárias, pelos vandalismos e retiradas. Perguntado se a localização era boa de clientela, Adelino, com seus sempre bem arranjados cachos, responde fazendo graça, enquanto atende a um cliente: “O ponto é bom, e o cabeleireiro também”. O barbeiro tem clientes que há anos frequentam seu estabelecimento. Ele conta que um deles vinha desde muito pequeno, que era preciso colocar uma “tabuinha” na cadeira para ficar na altura ideal, e que hoje esse mesmo cliente segue com ele, já levando o filho para cortar os cabelos. Outros, um casal de alemães, vieram trazidos por um amigo freguês, e sempre que estão pela cidade passam na barbearia para acertar seus penteados. Adelino conta, rindo, que a mulher já lhe disse que ele era o melhor cabeleireiro do mundo, elogio que recorrentemente escuta. Depois de 35 anos trabalhando no local, à vista das rosas, Adelino precisará mudar de endereço, pois o prédio onde fica sua barbearia foi vendido para novos donos. Ele já tem um novo espaço, e aguarda um por um de seus clientes para lhes contar onde passará a atuar. Mas será longe das rosas. Ainda assim, pergunto a Adelino qual cor da flor mais lhe chama a atenção, se seria a laranja, por combinar com as paredes do seu salão, e ele me responde que admira a natureza em toda sua beleza, não sendo capaz de escolher somente uma. Compartilho da opinião de Adelino. A Praça das Rosas é um lugar que alimenta a imaginação e me leva a esse outro lugar tão especial e incrível quanto qualquer outro tangível MAIS NA WEB e perceptível aos olhos. Poderia a praça fazer parte do reino da maldosa Medium: confira a aquarela de CaRainha de Copas, ou dos belíssimos rolina Ambros, inspirada nas flores palácios dos contos de fada. Poderia da Praça das Rosas. ser palco para uma grandiosa pintuSpotify: ouça o podcast na Audiora de Danrlei, ou o jardim da Corte magazine e confira a playlist Paidas Rosas, da qual Daiana fez parte. sagens urbanas no perfil Revista A imaginação é suposição. A Primeira Impressão. Praça das Rosas é certeza. Um lugar simples, sem grandes atrativos que não seja a beleza de seus canteiros floridos e de seus arcos e pilares brancos. Não lhe entrega bancos, mas lhe proporciona paz. Não garante silêncio, mas lhe permite uma bela sinfonia de pássaros e arranques de carros. Não lhe oferece diversidade de lazer, mas lhe proporciona calmaria, contemplação e reflexão. Um lugar tão simples e tão interessante quanto a imaginação pode ser. n

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SAPIRANGA

DEGRAUS QUE

MUDARAM VIDAS PALCO DE AMOR, VIDA E MORTE, A ESCADARIA DO ESTADUAL É UM LUGAR HISTÓRICO E POUCO EXPLORADO TEXTO E FOTOS DE LEONARDO OBERHERR

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H

á muitos anos, uma escadaria aos pés da primeira escola pública de Sapiranga, pacata cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, foi construída com um intuito muito simples: ligar a Rua Vieira de Castro à Rua Padre Antônio Vieira. O motivo? Facilitar o acesso ao Instituto Estadual de Educação Sapiranga. São 156 degraus que separam as vias. Mas uma escadaria sempre guarda seus segredos. Quando imaginamos o paraíso espiritual, o céu, também acreditamos que seu acesso seja dado através de uma longa escadaria. Aos pés da Escadaria do Estadual, a visão é a mesma. Parado, antes do primeiro degrau de concreto, rodeado de mato e sujeira, com algumas casas de altos muros na vizinhança e muitos sons quase imperceptíveis de insetos e alguns outros animais que vivem por ali, olho para os lados e percebo que a metáfora da escadaria nos levar ao céu faz total sentido. Não é fácil subir uma escadaria tão grande. É um desafio e tanto. Exige certo preparo que, para os espiritualistas, nesta metáfora, pode representar provações em vida. Cada degrau é um passo a mais ou a menos em direção do nirvana. Subo alguns degraus e repito o processo de observação. Já é possível ver mais coisas, sobretudo o que havia atrás. Mas, como dito, a escadaria não existe somente para fins de locomoção. Ela é um palco. E é incrível o quanto este local já recebeu de atores e atrizes. Todos são alunos, aprendizes. Se não da escola, da vida. A Escadaria do Estadual é palco de diversas cenas. Vidas foram interrompidas lá, outras foram iniciadas. Neste céu pintado e bordado pelo processo de subida, o que esperamos no topo? Talvez, a paz e a tranquilidade que um casamento nutrido por amor e carinho podem dar. Paulo César Santos e Solange Rosa devem concordar comigo.

O ápice da jornada amorosa Quando subiu pela primeira vez, Paulo César Santos, 42 anos, professor, músico, de rosto simpá-

tico e sorriso largo, não pensava que seria naquela escadaria que aconteceria o beijo que mudou a sua vida. Há 20 anos, o então músico da Banda Marcial conhecia a estudante de Magistério com quem hoje forma o casal que deu vida à jovem Jullie, de 11 anos. PC Santos, como é conhecido agora, conta que esse beijo foi conquistado aos poucos. Primeiro, com uma amizade constituída através do Correio da Amizade. Era muito simples: uma troca de cartinhas entre alunos de turnos opostos, entregues por pessoas em comum. Talvez tenha sido a persistência que tenha conquistado um ao outro. Ao abrirem as cartinhas – guardadas com carinho –, percebemos uma coisa: os opostos se atraíram. “Nem as rebarbas ele tirava!”, relembra, rindo, Solange, de 37 anos. “Eu até fazia desenhos, colocava em envelopinhos, nesta [segurando uma das dezenas de cartinhas na mão] eu até deixei meu beijo [e mostra a marca de batom de quase 20 anos atrás]”. Hoje em dia as coisas parecem diferentes. Sol vestiu-se com estilo, passou batom, brincos de argolas grandes, tudo para revisitar aquele mágico lugar. Paulo também não deixou por menos. Barba feita, barra da calça ajeitada e a boa e velha combinação camiseta-calça. Foi num dia frio, 21 de junho de 2001, que aconteceu o tão sonhado primeiro beijo do casal PC e Sol. No topo daquela escadaria que, como na metáfora religiosa, guarda o caminho daquilo que é bom, da paz e do amor. Nosso herói apaixonado recorda que a subida não foi fácil. Pelo contrário: com 30 quilos a menos, mas com muita apreensão, aquela subida foi ditada pelas batidas do acelerado coração. Ele sabia que tentaria o “algo a mais” que as histórias hollywoodianas sempre prometeram aos jovens apaixonados. “Ali foi o início do meu final feliz. E o coração? Este bate diferente até hoje, sempre que eu vejo a Sol”. Sim, do nome Solange, há o apelido carinhoso com que todos chamam aquela “morena de olhos castanhos e de inteligência sem igual” - palavras do apaixonado Paulo César. A Sol foi conquistada de vez num local propício: o alto daquela mágica escadaria. Símbolo do casamento dos dois, a Escadaria do Estadual ainda é frequentemente visitada pelo casal

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Caminho para o Instituto Estadual de Educação Sapiranga, local é ponto de encontro de adolescentes

apaixonado. “Sempre que possível, tiramos um tempo do nosso cotidiano para subi-la e observar nossa cidade. Do alto da escadaria relembramos a beleza da vida”, comemora Paulo César. “Daquele momento único de 20 anos atrás, criamos uma família. Através da nossa filha, concluímos a certeza de que cada degrau da velha escadaria se assemelha ao nosso caminhar na vida. Tendo a certeza que cada passo de nossas vidas nos direciona ao conhecimento que adquirimos no nosso amado Estadual, de quando jovens, a euforia tomava conta de tudo à nossa volta. Chegando ao topo: o objetivo final. Agora adultos, começamos a perceber como é difícil chegar ao topo.” Se para alguns a Escadaria é a representação cenográfica do amor, para outros serve como removedor de memórias ruins e construtora de novas e melhores histórias. Para a profissional de beleza Lara Bortoli, o lugar tem outro sentido. Ela conta que aos 18 anos entrou em um relacionamento amoroso deprimente – adjetivo usado por ela – e que a partir

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daquele ponto, parou de realizar exercícios físicos. Sim, a escadaria tem diversas funcionalidades, e subi-la, sem dúvida, é um belo exercício! Agora, aos 24 anos, após começar a morar sozinha, e alimentar sua fé, decidiu voltar com a prática das atividades físicas. Parou com o cigarro porque gostaria de ter fôlego para correr e passou a realizar treinamentos físicos constantemente. “Sentia fome de endorfina”, comenta Lara.

Por uma vida mais saudável

A Escadaria que já foi palco de vidas sendo perdidas – como em 2015, quando um ciclista tentou descer as escadas andando e acabou caindo escada abaixo – recebe de braços abertos aqueles que buscam mais saúde. É o caso da Lara, praticante de crossfit, que encontrou na escadaria do Estadual um palco perfeito para um dos exercícios mais completos para quem realiza estas atividades: a subida de escada. Embora haja simuladores, nada substitui o contato com a natureza, muito

presente naquele ambiente. Mais direto do que isso: o vento no rosto, o cantar dos pássaros... são muitos os atrativos para se exercitar ali. Lara conta que não é sempre que frequenta a Escadaria, muitas vezes por receio do que pode estar à espreita. Como disse, nem só de flores o mundo – e o local – vivem. É perigoso. Mas assim como outras tantas pessoas, ela usufrui daquele espaço para seu exercício cardiovascular. A subida de escada, além de fortalecer o coração, claro, tonifica as pernas. Para subir os degraus da vida, como dizem por aí, é preciso estar preparado. Ninguém disse que seria fácil subir 156 degraus de uma vez, várias e várias vezes. Tudo começa aos poucos, e foi assim que a crossfiteira hoje consegue realizar treinos e mais treinos, que só de assistir me fazem ficar com os joelhos cansados. “Desde cedo amei muito caminhar. O início, como em tudo na vida, foi de muita caminhada. Ninguém começa correndo, não é?”, relembra. Antes do relacionamento frustrado, Lara frequentava a Escadaria com ainda mais frequência, inclusive à noite. Embora esteja voltando aos poucos àquela velha rotina de exercícios, a profissional de beleza conta que aproveita o momento no topo para agradecer. “Em um dos pontos mais altos da minha cidade, consigo refletir sobre a beleza da vida, e o quanto eu me supero todos os dias, sempre com muita gratidão. Dali, ouço os sons naturais, vejo o céu sempre lindo – até em dias nublados – e sinto uma energia incrível. Lá de cima, parece que Deus está do meu lado, e através da brisa, me condecora por ter mudado para melhor.”


Entre o céu e o inferno O espaço recebe pessoas o dia inteiro, em todos os turnos e para diferentes necessidades. Além dos alunos e professores que a usam para chegar ao Estadual, mesmo em dias chuvosos, ela ainda é alternativa para quem deseja apenas cortar caminho entre as vias. Corrimões centrais ajudam no equilíbrio daqueles que escorregam nos degraus. Estão ali nos locais que mais precisam, sempre para auxiliar os transeuntes. Sobre aquela metáfora de subida aos céus… eu poderia dizer que os apoios servem tal qual a mão de Deus dando suporte às provações. Até porque os degraus são curtos, cheios de limo e sujeira. Qualquer pessoa com o pé maior que 40 com certeza tem dificuldades de apoiar corretamente toda sola do tênis nos degraus. Ao trafegar pela escadaria, percebemos outros ambientes: ao fundo, é possível notar o fórum de Sapiranga. Um prédio bonito, bem localizado, que fica aos pés da escadaria. Ali atrás muitas

vidas são julgadas e condenadas. Parece que foi colocado ali YouTube: assista ao videopoema de para lembrar daquilo João Víctor Teixeira, inspirado em uma que não queremos: escadaria de Farroupilha. o que há de ruim no Spotify: ouça o podcast na Audiomundo. Neste devamagazine e confira a playlist Paineio religioso, podesagens urbanas no perfil Revista ria ainda dizer que o Primeira Impressão. fórum é o purgatório. Quem sai de lá livre, está obstinado a ascender aos mais altos lugares que a Escadaria oportuniza chegar. O foco está no topo, pois é no último degrau que “tem uma brisa que vem lá da montanha”, como diz no hino da cidade. A subida continua, e a visão do paraíso começa a ser concebida. Nem tanto por sua beleza natural, mas o que espera ao topo da escadaria é nada menos que o local do Saber. O pleno conhecimento. Onde se aprende, se entende e se autoconhece. Falo do afamado “Estadual”. A escola, que é conhecida de todos os sapiranguenses, é um templo sagrado do conhecimento da cidade. Para quem sobe, à esquerda, diversas pichações e grafites fazem parte da visão. Se estão ali de forma legal, é difícil dizer. Eles dão, bem ou mal, um ar mais metropolitano àquele local que, do outro lado da vista, o direito, encontra um terreno gramado, com algumas folhagens e plantas daninhas. Tudo por ali parece resumir a vida cotidiana. As dificuldades de acessar a

MAIS NA WEB

educação que muitos possuem. A falta de acessibilidade, o descuido com a natureza, ou ainda a presença da arte urbana.

Os últimos degraus Não existem últimos degraus. Essa é a magia. Sempre podemos crescer, melhorar e subir ainda mais. Quando chegamos ao tão sonhado último degrau daquela escada, puxamos fôlego e imaginamos que agora vem a calmaria. Que nada! Aí olhamos para frente, logo ao atravessar a rua, e notamos que para chegar ao fim ainda falta mais um lance de escada. É que, após subir toda a escadaria, antes de acessar o portão da escola, do outro lado da rua, ainda há mais um lance de escada. Ou seja, mesmo depois de muito sofrer, e de alcançar nosso objetivo primário – subir toda escadaria para chegar à escola –, ainda é necessário um pequeno esforço. Sempre teremos um pequeno lance de escada em nossa frente, um desafio que exige novo empenho, mesmo depois de cansativos 156 degraus. n

Escadaria foi palco do primeiro beijo de Sol e PC, que estão juntos há 20 anos

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SAPUCAIA DO SUL

BELEZA

NO LUGAR DA TRAGÉDIA UMA PEDRA LÁ NO ALTO, EM MEIO À NATUREZA ENCANTADORA, É O MARCO DE UMA HISTÓRIA SOMBRIA OCORRIDA 70 ANOS ATRÁS TEXTO DE JULIANA PERUCHINI FOTOS DE GABRIEL M. FERRI

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F

inalmente chegou o tão esperado dia de ir até o Morro do Chapéu, em Sapucaia do Sul. Apesar de morar sempre na mesma cidade, nunca fui ao local. Estávamos à procura da famosa pedra que existe no morro. Era um sábado nublado. Saí de casa com meu irmão e a minha mãe. Meu irmão Lucas sabia ir até o local onde fica o Morro do Chapéu. Entramos no carro por volta das duas e meia da tarde, e o trajeto até o morro levou em torno de 30 minutos. Meu irmão tem quase 1,80m de altura, está sempre usando roupas pretas e discutindo política. Minha mãe é mais baixinha, com 1,55m de altura, sempre está falando de flor e cantando para o seu cachorro Baby. Eu tenho 1,60m de altura, converso sem parar e tenho pavor de bichos que voam. No caminho, meu irmão colocou suas músicas em espanhol para tocar, enquanto eu e a minha mãe fomos comentando sobre a estrada e como lembrava a cidade de Garibaldi, principalmente a estrada onde tem a casa em que a minha nona Iracema nasceu. Voltando para a rua apertada em que estávamos passando de carro, deparamos com a zona rural da cidade e poucas moradias. O barro vermelho molhado por conta da chuva na noite passada, com poças d’água, marcava o local. Passamos tocando barro para todo o lado. Na chegada ao morro, estacionamos o carro e descemos. Peguei meu bloco de anotações, meu telefone e minha garrafa de água. Levei meus itens mais necessários comigo. Encontramos o nosso guia para a trilha e para chegarmos ao ponto mais alto do Morro do Chapéu: Matheus Vicente, 1,70m de altura, fala muito de política, sabe histórias infinitas sobre Sapucaia do Sul, está sempre usando camisetas de protesto pelo Brasil em que estamos vivendo, como “Fora Bolsonaro”, e ama a natureza. Meu irmão tomou a frente na trilha, enquanto Matheus o guiava e ajudava minha mãe a escalar as pedras. A subida leva em torno de 10 minutos. Não é uma trilha tranquila para fazer, depende de ir com

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um tênis nos pés, levar poucos objetos nas mãos, pois o uso de corda é necessário em diversos pontos. Em alguns momentos apoiamos as mãos nas pedras. Durante a subida, Matheus lembra da primeira vez que levou meu irmão ali, e eles foram em outra trilha. Matheus comentou que estavam com mais amigos e tinham levado coisas para comer: “A gente levou salada de fruta e virou uma bagunça”. Meu irmão Lucas completou: “O Matheus ainda estava usando chinelo nos pés, parecia que tinha andado no barro embaixo de chuva o dia todo”. Todos nós rimos. Coincidência: na noite anterior à nossa saída para o Morro do Chapéu estava chovendo também. O local é cercado por árvores e pequenas flores, sem contar os urubus que, logo na chegada, foi uma das primeiras coisas que eu me deparei, e minha mãe comentou: “A Juliana morre de medo”. Quando chegamos no topo do Morro do Chapéu, a vista era linda. O medo de altura bateu e precisamos tomar coragem para caminhar até a famosa pedra que guardava uma história que ficará marcada para sempre. Decidi pedir ajuda ao Matheus para fotografar próximo ao local onde estava a pedra, que tem a forma parecida à de um surfista em cima de uma prancha e tamanho difícil de estimar, devido ao fato de estar coberta pela mata ao redor. O medo de chegar para tirar foto era bem grande, eu aconselho ir ajoelhado. Matheus disse: “Chegue até o meio da pedra, pode sentar e segurar o telefone bem firme, pois o vento está bem forte”. Tirei a foto e logo pedi ajuda para sair de lá. Meu irmão foi para a pedra que estava ao lado da trilha. Os urubus ficaram furiosos, pois era perto do buraco onde eles habitam. Três urubus furiosos e querendo atacar meu irmão. Mas qual é a história daquela pedra? Ela está toda relatada no livro Acidente no Morro do Chapéu, escrito por Abrão Aspis. Em 28 de julho de 1950, o avião da Panair 099 saiu do Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro. O dia estava chuvoso, e o avião, que deveria pousar na Base Aérea de Gravataí (atual Base Aérea de Canoas), colidiu contra o Morro


Trilha para se chegar ao cume do Morro do Chapéu exige um pouco de destreza para subir e, sobretudo, cuidado para não cair das pedras

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do Chapéu, entre Sapucaia do Sul e Gravataí. Naquela pedra. O voo PP-PCG L-049 partira do Rio trazendo passageiros que pretendiam assistir aos jogos da Copa do Mundo que ocorreriam em Porto Alegre, uma das cidades-sede, no Estádio dos Eucaliptos, que então era a casa do Internacional. Antes mesmo do avião sair do chão, o problema de um motor aparecera, o que já causou atraso de seis horas para partir.

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O comandante Eduardo Martins de Oliveira fez a decolagem às 15h47min, e a previsão de chegada na Base Aérea de Gravataí era por volta das 18h50min. Com o clima ruim na Região Metropolitana de Porto Alegre, o avião tentou o primeiro pouso, mas recuou. Na segunda tentativa, não obteve sucesso e ainda perdeu o contato com a torre. Na terceira, o piloto tentou fazer o pouso na Base Aérea de Canoas e, por volta das 19h25min, enquanto sobre-

voava entre Gravataí e Sapucaia do Sul, o avião bateu contra o Morro do Chapéu. O barulho foi alto, pela explosão, e a fumaça se espalhou pelo local. Havia 44 passageiros e seis tripulantes. Todos acabaram falecendo. Pessoas da elite estavam nesse voo, aguardadas por familiares ansiosos no aeroporto. Uma tragédia. Se a subida no local atualmente já não é a mais tranquila, imagine na época em que o acidente ocorreu, em 1950. Foi necessária a ajuda dos moradores, com bois, para retirar os corpos dos falecidos do local. Enquanto a torre estava sem contato com o avião, os familiares aguardavam por notícias sobre


o que estava acontecendo. Um dos primeiros a saber sobre o acontecimento foi o candidato a governador do Rio Grande do Sul Joaquim Pedro Salgado Filho, que por muito pouco não havia embarcado naquele voo, pois todos os assentos já estavam ocupados. Dois dias depois, por ironia do destino, Salgado Filho morreria em outro acidente aéreo, quando o bimotor em que estava também se chocou contra um morro, na região das Missões.

Dias antes da minha ida ao Morro do Chapéu, conversei com algumas pessoas sobre aquela história, e muitos não sabiam do ocorrido. Um dos poucos a lembrar era Elvio Walter, 62 anos, professor aposentado de cabelos claros e muito sorridente, nascido 12 anos depois do acontecimento: “Ouvia meus avós e meus pais comentarem sobre o acidente”. No alto do Morro do Chapéu, Matheus aponta para o outro morro de Sapucaia, em frente: “Costumava soltar pipa ali perto durante a minha infância”. Então um grupo de ciclistas chega ao morro, todos estavam sem máscara, em plena pandemia. Eram umas 12 pessoas. Analisaram a paisagem do local e foram embora com as crianças. Questiono Matheus sobre por que ele gosta tanto de frequentar o local, e ele diz que faz ele ver o mundo com outros olhos. “Faz me sentir um ser humano, me sentir vivo. Não me vejo apenas como um robô que produz o dia inteiro. Apenas trabalhar, trabalhar, isso não é vida”, filosofa. Admirada com o lugar, minha mãe diz para o nosso grupo: “Por que não transformamos este lugar num ponto turístico para a cidade? Poderíamos colocar um teleférico igual ao do Rio de Janeiro, depois uma tirolesa, eu acho que ficaria bem bonito”. Eu apenas respondi: “Daqui a pouco este lugar está igual à Disney”. Todos nós rimos, porém, consideraram boa a ideia da minha mãe. Entretanto, ela me fez pensar que quanto mais visitas o local recebesse, mais cuidado exigiria para que se mantivesse intacto. Hoje o local é bem limpo, as pessoas que o visitam levam o lixo embora, não deixam nenhum pertence por ali. Sempre tem que prestar atenção sobre onde vamos deixar os objetos, pois o vento é forte e os nossos itens podem voar longe. Apesar dos cuidados, a ida até o lugar vale a pena, pois a vista é impecável, podemos ver até Porto Alegre e São Leopoldo, entre outras cidades próMAIS NA WEB ximas. O Morro do ChaSpotify: ouça o podcast na Audiopéu não costuma ser magazine e confira a playlist Paimuito movimentado, sagens naturais no perfil Revista a não ser que seja vePrimeira Impressão. rão. “Aqui, nos dias de verão, tem muita gente. O bom é vir em dias que não estão muito quentes, como hoje, e trazer água. Tem bastante espaço para sentar-se nas pedras e fora das pedras também. Não precisa todo mundo sentar-se aglomerado”, diz nosso guia. “Usar a máscara é importante, mas nem todo mundo respeita. É bom ficar distante”, completa Matheus. Por volta das quatro e meia da tarde, estávamos indo embora quando uma moça se aproximou para que a gente fotografasse o grupo dela. Um dos ciclistas que estavam com ela decidiu se aproximar de uma pedra com pouco espaço de equilíbrio e quase caiu morro abaixo junto da sua bicicleta. Levamos um susto na hora. No morro e nas proximidades, podemos perceber que é um lugar tranquilo e silencioso. O professor Elvio relata que o local, na sua infância,

era apenas mais uma zona rural e afastada da cidade. Desde aquela época, as pessoas costumam ir lá para colher macela, na quinta e na sexta-feira santa, como é tradição na região sul, e fazer piqueniques. Elvio lembra que a primeira vez que viu um sabiá de perto foi no Morro, pois não era acostumado a ver pelas áreas do centro da cidade. Enfim, começamos a descer o morro e apanhar algumas flores no caminho, para levar de lembrança para casa. Ainda conversávamos sobre quem deveríamos levar, depois da pandemia, para conhecer o lugar. Citei minhas amigas: a Ingrid iria amar estar ali, queria levar a Bru só para ver o quanto a gente iria reclamar para subir até o topo e a Belle estaria rindo da gente e se mantendo a musa fitness. A descida não foi muito tranquila, pois já estava ficando bem escuro e com muito vento. Ninguém mais estava subindo e descendo pela trilha. Começamos a descer pelas pedras, pisando de lado para manter o equilíbrio. Quem estava na frente tinha a obrigação de ajudar quem estava vindo depois. Na primeira rampa tinha a corda suja de barro para se segurar. Quase caí. Chegou a vez da minha mãe descer e estávamos em pânico, mas ela se saiu melhor do que o esperado por nós. Meu irmão decidiu colocar as garrafas de água no bolso dele. Continuamos a descer nos segurando em pedras e em galhos de árvore. Do nada, ouvimos um barulho, como se alguém estive sse nos se g u indo. Tod os paramos e ficamos nos olhando. Eu gritei: “Vamos descer correndo!”. Impossível descer correndo até onde estava o carro, pois a gente iria chegar mais rápido no cemitério do que no estacionamento. O barulho sumiu e continuamos a descer. Os urubus estavam voando baixo, e alguns conhecidos me falaram para cuidar com as cobras no local. Na hora que chegamos na parte do estacionamento notamos o quanto estávamos alto. A experiência foi incrível. É certo que voltaremos lá em breve, e levaremos mais amigos para conhecer. n

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S

apucaia do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, é lembrada pelo Parque Zoológico, seu principal ponto turístico. A falta de outras opções de lazer, segundo parte dos sapucaienses, contribui para que seja chamada de “cidade-dormitório”, ou seja, um lugar ao qual as pessoas retornam apenas para dormir. Alguns moradores, porém, não pensam dessa forma e contribuem para que o município seja mais bonito e atrativo. No bairro Jardim América, a comunidade resolveu tomar a frente e criar um espaço agradável e conservado, chamado de Praça das Três Figueiras. “Esse lugar era tomado por um grupo de ciganos, ninguém cuidava ou limpava a área”, conta Teresinha Nascimento, 61 anos, moradora do bairro e idealizadora do projeto. O local era chamativo, mas não por beleza, e sim por abandonado, sem assistência e que não ganhava atenção da prefeitura. Quando o grupo que ocupava aquele terreno baldio se mudou, os moradores resolveram assumir e administrar aquela zona. Em um primeiro momento a intenção era de deixar a área bem cuidada e bonita, para que eles, residentes, pudessem abrir as portas das suas casas e se deparar com um ambiente agradável e limpo. A prefeitura não se manifestou sobre a intenção dos moradores. O projeto começou com uma boa limpeza e com os plantios de grama, árvores e flores. “Nós trouxemos desde a grama para a praça. Antes era tudo chão batido, hoje é bonito e com o espaço todo gramado”, relata Teresinha. Com a falta de pontos de lazer na cidade, a Três Figueiras passou a chamar a atenção de moradores do bairro, pois se tratava de um lugar tranquilo e limpo. Com a movimentação de visitantes, a vizinhança notou que o ambiente estava agradando famílias e, a partir disso, a ideia começou a ganhar forma e nome. Algo que chama muito a atenção de quem passa por lá é uma grande figueira. Ela tem a companhia de mais duas árvores da mesma espécie – o que resultou no nome da praça –, além de outras plantas. Com o espaço tratado, limpo e com muita sombra, os finais de semanas, feriados e fins de tardes de quem reside ao redor passaram a ter um novo atrativo. Percebendo a satisfação dos moradores com a projeto, Teresinha e seus vizinhos pensaram em ampliar o vistoso ambiente. Em uma conversa com um amigo de Canoas, a idealizadora do projeto descobriu alguns brinquedos que não estavam sendo usados naquele município e nem seriam mais. Logo, Teresinha pediu que fossem

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RAÍZES

DA VIZINH

ÉRICA MORAES (DRONE OPERADO POR LEONARDO BACHI)

SAPUCAIA DO SUL


HANÇA

MORADORES SE UNEM E TRANSFORMAM LUGAR ABANDONADO EM ESPAÇO ESPECIAL PARA FAMÍLIAS TEXTO DE BÁBITON LEÃO FOTOS DE ÉRICA MORAES

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doados, para colocá-los na Três Figueiras. Então o lugar passou a contar com um grande balanço com três assentos, dois escorregadores, casinhas infantis e uma grande área para as crianças correrem e se divertirem. Quem visita o espaço repleto de sombra das figueiras pode observar as casas que ficam ao redor. Mesmo que os residentes não estejam sentados na praça, é possível ver que eles também estão aproveitando o ambiente. Descansando na frente de seus pátios, tomando chimarrão, todos demonstram satisfação de ter aquela visão bem diante dos olhos. É um clima agradável e aconchegante em todo entorno. Sem ajuda alguma da prefeitura desde a criação do projeto, em 2014, os moradores fazem tudo no local: limpeza, manutenção dos brinquedos e acomodações, que por vezes são destruídos nas noites e madrugadas – como o espaço é aberto, não há maneira para prevenir esse tipo de depredação. Até a gasolina para a roçadeira é disponibilizada pelos moradores. Teresinha conta que ela e seus vizinhos adotaram o lugar e que a prefeitura sabe disso, mas ninguém se intromete no trabalho do outro. No mesmo bairro, a algumas quadras dali, existe outra praça, chamada Diopan, mas que tem uma movimentação completamente diferente. Lá é possível encontrar carros com som alto, bebidas alcoólicas e uma grande presença de jovens. Isso dá mais destaque para a Três Figueiras, pois nela o ambiente é sempre o mesmo: famílias com cadeiras, chimarrão, toalhas no chão, piqueniques e um respeito ao local. Com toda essa dedicação para manter o lugar limpo, organizado, bonito e aprazível, a comunidade reservou um cantinho para poder preservar a natureza de outra forma, plantando. Quem chega ali pela entrada principal pode ver à sua direita um espaço cercado com plantação de frutas e verduras. Aproximando-se do cercado é possível ver uma grande quantidade de pássaros. Tudo isso é um atrativo para criançada que frequenta o local. A cerca de 150 metros dali existem dois

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BÁBITON LEÃO

condomínios de apartamentos, portanto o gramado e a sombra das figueiras acabam disponibilizando um ótimo descanso para os moradores e o contato das crianças com a natureza. João Batista Alves da Silva, 36 anos, mora em um dos condomínios próximos, e é pai de Luiza, 4, e Davi, 1. João adora ir até a praça com os filhos devido ao ambiente que encontra. São muitas crianças de diversas idades, e isso faz com que seus filhos possam brincar sem que ele se preocupe. “O brinquedo preferido da Luiza é a casinha com escorregador, ela passa horas entretida naquele brinquedo”, conta João. Davi, por ser ainda muito pequeno, não consegue aproveitar muito os brinquedos, mas isso não faz com que ele não aproveite o espaço. “Nós levamos cadeiras de casa, existem bancos lá, mas preferimos levar cadeiras. Sentamos e colocamos o Davi no chão em um pano, ali ele se diverte”, completa João. Naquele pano, que depois vai servir de toalha de piquenique, o pequeno MAIS NA WEB Davi engatinha, dá risada, aponta para YouTube: saiba como transformar o os brinquedos, cuiseu bairro a partir das dicas no vídeo da os passarinhos e de Laura Rolim. até observa quanSpotify: ouça o podcast na Audiodo lá no alto passa magazine e confira a playlist Paium avião e seu pai sagens urbanas no perfil Revista aponta e lhe mosPrimeira Impressão. tra. Deitado naquele pano, o pequeno menino descobre as maravilhas do mundo aos poucos. Luiza já está em outra sintonia. Aproveita todos os minutos fazendo brincadeiras e usando os brinquedos disponíveis. Entre um e outro, ela volta até seu pai para pedir algo para comer e beber, pois é como diz o ditado, “saco vazio não para em pé”. Depois de carregadas as baterias, Luiza volta para os brinquedos com seus novos e velhos amigos, não perdendo um minuto enquanto estiver ali. Durante as brincadeiras dos pequenos, João descansa em sua cadeira, recuperando as energias para a semana que está para chegar. Em um sábado ensolarado na praça, fiquei observando toda a movimentação do espaço, desde a primeira hora da tarde. Ao conversar com algumas famílias foi possível notar que não são apenas residentes do bairro que frequentam o ambiente, se faziam presentes moradores de diversos outros bairros do município, inclusive do outro lado da cidade. A justificativa de se deslocar até lá é sempre semelhante: a beleza, a preservação e as características dos frequentadores do lugar. Alguns bairros de Sapucaia do Sul estão adotando o exemplo da comunidade do bairro Jardim América e iniciando projetos semelhantes. Logo cedo, uma família fazia um book de fotos da mais nova integrante familiar. Depois, nos bancos localizados no pórtico com o nome da praça, pessoas de mais idade procuravam abrigo para ler um livro. Entre entradas, saídas e passagens por dentro do local, um casal jovem em um início de namoro buscava guarida entre os bancos nas sombras das figueiras. Sorrisos, olhares, cari-

nhos e uma certa inocência era demonstrado pelo casal. Uma cena muito comum é ver avós acompanhado seus netos. Alguns bastante preocupados com os tipos de brinquedos, alegando estarem mal cuidados e apresentando perigos às crianças. Essa reação foi destacada por Teresinha, pois muitos usam, querem o ambiente limpo e em perfeitas condições, mas não fazem ideia de quem mantém a praça em bom estado, ou do que precisam para mantê-la assim. Ela ainda relata que é difícil manter a praça limpa e organizada, pois é triste batalhar tanto para deixar tudo bonito e, por vezes, ver gente que vai até lá quando ninguém está vendo e depreda. Mesmo assim, ela e seus vizinhos seguem fazendo com que o local continue incrível para famílias que frequentam o ambiente. “É revigorante ver a praça cheia de gente do bem, com crianças brincando em segurança”, declara Teresinha. O passeio entre avós e netos fez com que eu pudesse acompanhar aqueles momentos em que costumamos dizer que os avós são “corujas”. As crianças querem aproveitar todos as possibilidades que a praça oferece, e a cada movimento são paradas para que seus avós possam registrar aqueles instantes em fotos. Sentou-se no balanço, subiu no escorregador, desceu do escorregador, deitou-se na grama, está fazendo piquenique, olhando os pássaros, as árvores, ou brincando com os amigos que fez, tudo é motivo para uma foto. A felicidade nos rostos de ambos é escancarada. Nesta mesma tarde, um grupo de caturritas resolveu pousar nos galhos das grandes figueiras, fazendo uma barulheira enorme, para a alegria de todos. Neste momento, os adultos mostravam às crianças as aves verdes conversando entre elas, em um alarde lindo de ver e ouvir. Enquanto tudo isso acontecia, no outro lado da rua, na residência de Teresinha, pude vê-la sair da casa e caminhar até o portão. Ali ela ficou parada, observando a movimentação, como se fosse a guardiã do local. Por alguns instantes permaneceu assim, olhando para o horizonte à sua frente, repleto de pessoas felizes e desfrutando do espaço que ela idealizou em transformar na Praça das Três Figueiras. n

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ENSAIO

MARATÁ EM OUTUBRO

D

urante uma ida à cidade de Maratá-RS para cobrir uma pauta sobre o Parque da Cascata Vitória para a revista Primeira Impressão, meu colega Rodrigo Brum e eu fomos surpreendidos pelo rumo que a visita tomou. Depois de passar o dia em meio à natureza captando imagens, paramos no restaurante que fica dentro do próprio parque. Conversando com uma das atendentes, descobrimos que naquele dia estava acontecendo a Oktoberfest na cidade. Decidimos, então, conferir o evento com os próprios olhos. Já no caminho até lá, ainda em meio à natureza, começamos a ouvir uma música vindo de longe. Depois de passar horas ouvindo o som da queda d’água e dos pássaros, cruzando com pouquíssimas pessoas, foi um grande contraste chegar à festa da cerveja, nos deparando com caixas de som no volume máximo e uma considerável aglomeração de pessoas em torno de uma festa. Outro contraste éra-

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mos nós em meio à população de Maratá; apesar da multidão, conseguíamos nos identificar facilmente a distância. Enquanto as pessoas viviam aquele evento como parte de sua realidade, nós assumimos o papel de espectadores, mesmo que completamente envolvidos pela energia do ambiente, que era composta pela música, pela dança e pela cerveja. Depois de processarmos o que estávamos testemunhando, percebemos que esta experiência também merecia ser registrada. Pegamos novamente o equipamento que já tinha sido guardado e fomos para o meio da pista de dança. Surpresos com o desfecho inesperado da visita, voltamos para casa com as expectativas superadas e felizes por ter tido a oportunidade de vivenciar dois lados tão diferentes do pequeno município de Maratá. FOTOS E TEXTO DE ÉRICA MORAES


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