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| Julho de 2022 |
pi primeira impressão
TRILHAS SONORAS
EDITORIAL
JORNALISMO EM OUTRO RITMO
“S
em a música a vida seria um erro”, escreveu o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. E talvez ela nunca tenha sido tão onipresente, disponível na maioria dos aparelhos que usamos no dia a dia. Prestemos ou não atenção a ela, a música oferece uma trilha sonora para nossas vidas – às vezes triste, às vezes alegre, mas sempre evocando memórias e provocando sensações. Foi a partir dessa ideia que nossos 20 repórteres desenvolveram as reportagens desta revista na cadência do Jornalismo Literário, marcado pela composição cuidadosa. Nas páginas a seguir, contamos como a música marca o ápice da cultura popular; faz viajar no tempo, mata a saudade, ameniza a dor; muda o rumo de algumas vidas; mescla-se a outras artes para criar espetáculos de sonho; provoca a juventude a pensar e a ir atrás de seus objetivos; promove a inclusão e a diversidade; embala uma religião, preserva uma tradição, delicia os saudosistas; anima as torcidas; ampara a luta pela vida; pontua a hiperconexão de nossos tempos. Histórias não faltaram. Afinal, todo mundo conhece uma canção que conta uma história. E todo mundo tem uma história com alguma canção. Mas isso não basta. Para escrever essas histórias, nossos repórteres precisaram se preparar tão dedicadamente quanto músicos. Foram semanas de estudo e prática, intermináveis ensaios para se chegar à versão desejada: um texto feito para ser apreciado em outro ritmo. A narrativa conduz a informação como se a tirasse para dançar em um baile. Há tempo para ver, ouvir, pensar e sentir. Como na literatura. Poderíamos parafrasear Nietzsche: “Sem a literatura a vida seria um erro”. E acrescentar: sem o jornalismo, saberíamos pouco da vida. É com esse repertório que apresentamos a edição 57 da revista Primeira Impressão. Vire a página, aperte o play. Boa leitura! Felipe Boff Professor
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ÍNDICE
GABRIEL M. FERRI
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CARNAVAL Música e letra de respeito na Imperatriz Dona Leopoldina
MUSICAL Vida de rainha é dançar, cantar e interpretar
DRAG BAR A noite acolhe LGBTs e aplaude a arte de resistir
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PROJETO SOCIAL Esthevam trocou as ruas pelos palcos, onde aprendeu a sonhar
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MUSICOTERAPIA Canções que ajudam a amenizar a dor
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HOSPITAL No lugar do silêncio, cada andar ressoa suas histórias
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SEARA Pontos de umbanda entoam paz e amor
TRADICIONALISMO A arte que preserva a cultura gauchesca
VINIL Saudosistas e entusiastas compartilham o culto do retorno ao LP
AUTISMO A sinfonia que se faz com o jeito de cada um se expressar
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MEMÓRIA Música para viajar no tempo e se emocionar
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SOM AO REDOR A audição como guia, a novela como paixão
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SAMBA Histórias de quem fez e faz o Carnaval de Porto Alegre
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FUTEBOL O coro dos estádios começa no trem
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TRABALHO Jovens entram no mercado em um país em descompasso
CELULAR O aparelho onipresente ganha assistência em ritmo de rock
HIP-HOP Uma parada na estação das rimas urbanas
ESPETÁCULO Encantos e desencantos compõem a cena do teatro musical
DESTINO A ópera do acaso trouxe um nordestino para o sul
SAUDADE O inesquecível Loni deixou ensinamentos à mesa
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A RAIZ DE UM SAMBA-ENREDO COM ME RESPEITA, A ESCOLA IMPERATRIZ LEOPOLDINA DESPERTA IDENTIFICAÇÃO DO PÚBLICO E MANTÉM VIVO O SIGNIFICADO DA COROA DE RAINHA QUE CARREGA NA BANDEIRA
TEXTO E FOTOS DE ANDRESSA MORAIS
n Casal de mestre-sala e porta-bandeira
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exibe o símbolo da escola de samba portoalegrense, inspirada na agremiação carioca
U
ma das principais marcas do Carnaval é o samba, que nasceu dentro das sociedades negras, com influência da cultura africana. Apesar de ter sido construído nas comunidades, pouco se fala das tradições, significados e conceitos por trás do samba-enredo, pois virou um evento glamuroso, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em Porto Alegre não é dada a devida atenção para esse contexto, já que não tem o mesmo destaque e retorno financeiro. Mas, para quem organiza e participa, tem um valor sentimental. É o caso de quem faz parte da Imperatriz Dona Leopoldina, escola localizada no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. O símbolo da Imperatriz, formado por uma coroa ornada com louros da vitória, pode ser visto logo na entrada da Estrada Martim Félix Berta, em uma das portas da sede da escola de samba. Em dia de ensaio, o acesso é livre para todos. No último, o fervor das vozes se misturava com o som dos instrumentos da bateria, que estava no centro do local com os demais componentes, enquanto os espectadores ficavam ao redor. Responsável por levar a música para todos que estavam assistindo, Vinicius Machado, de cavanhaque e sempre com boné ou chapéu, veio do Rio de Janeiro, onde reside atualmente, para cantar e desfilar com a sua escola do coração. Faz dois anos que está
como intérprete oficial, mas essa história começou há 20 anos. “Foi na Imperatriz que eu comecei a cantar no Carnaval, lá em 2002. Foi o meu primeiro ano como cantor de apoio”, conta ele, que hoje também faz parte da carioca Acadêmicos do Salgueiro, mas se sente em casa na quadra da Imperatriz. Durante o último ensaio, passou o microfone, foi até o meio da quadra e, timidamente, sambou por pouco mais de 30 segundos, então parou e deu risada da tentativa. Feito em homenagem às mulheres, principalmente as da comunidade, o samba-enredo deste ano traz diferentes mensagens importantes. Em um dos trechos somos sacudidos pela luta das mães solo, realidade presente em muitas casas do Brasil: “Mais uma mãe a lutar, forte, solteira, do lar, que acorda cedo e namora a liberdade”. As vozes femininas do local verbalizaram essas palavras com sentimento, como quem se identifica com algo. A música segue impactando ao longo da sua letra e relata outra luta, a das mulheres serem e se vestirem como quiserem. “De gala ou de minissaia, de toga, uniforme ou farda. Insisto, eu posso, eu quero, vencer, liderar e ser votada. Sujeito, abaixa esse dedo. Não precisa ter medo. ME RESPEITA.” Na última frase, a comissão de frente, composta apenas por mulheres, levantou o punho e gritou. As mulheres que assistiam fizeram o mesmo gesto exigindo respeito. Assim como Vinicius, Lucas Donato também mora no Rio de Janeiro. O carioca de cabelos enrolados e óculos começou sua história com a escola do Rubem
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Berta em 2019 e ajudou a construir a impactante letra de Me respeita, que para ele tem um significado pessoal. “Eu perdi o meu pai muito cedo, quando tinha 6 anos, e passei a ser criado pela minha mãe e pela minha avó. Eu também tenho uma filha. Para mim, compor um samba sobre mulheres é falar sobre as mulheres da minha vida”, comenta. Mesmo sem influência por parte da família, Vinícius Maroni, outro dos compositores, apaixonou-se pelo Carnaval aos 10 anos. Ainda na infância, desenhava carros alegóricos e trazia a alegria para as brincadeiras. A trajetória profissional começou em 2004, quando o samba criado por ele com colegas foi selecionado pela Imperatriz Dona Leopoldina. Maroni, que é relativamente baixo, careca e atua como cirurgião bucomaxilofacial, é o compositor que tem mais sambas na história da escola e ressalta a importância da mensagem contida na letra deste ano: “Espero que mais que um samba, seja um grito de liberdade, de resistência e de oposição a tudo isso que não deve estar acontecendo, esse preconceito velado, que a n A comissão de
frente mostra a força, a persistência e a luta das mulheres em todos os âmbitos sociais
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mulher parece estar inserida na sociedade, mas em diversas vezes não está da forma como deveria”. Apesar de falar sobre as mulheres, o samba foi escrito por cinco homens. Além de Maroni e Donato, Anderson Machado, conhecido como Andy Lee, Vinicius Brito e Victor Nascimento participaram da composição. A equipe criou a música da mesma maneira que boa parte da comunicação cotidiana é feita: on-line. No caso deles, via WhatsApp, pois os integrantes não conseguiam se ver presencialmente. Fundada em 5 de janeiro de 1981, a escola foi nomeada em homenagem à Imperatriz Leopoldinense do Rio de Janeiro e, portanto, em homenagem à Imperatriz do Brasil Dona Leopoldina von Habsburg, a primeira esposa de Dom Pedro I. Neste ano, o samba-enredo reforça o significado da coroa na bandeira para celebrar as rainhas da escola: as mulheres da periferia. Não é a primeira vez que a Imperatriz homenageia as mulheres. Em 1985, foi campeã com o samba-enredo Festa para uma Rainha Negra, e em 2010, também levou o
prêmio com Beth Carvalho - A Madrinha do Samba da Leopoldina. No ensaio, as mulheres eram maioria, assim como durante o desfile, que aconteceu em 7 de maio no Porto Seco. Na ala de passistas mirins, as meninas estavam em maior número e dançavam ao mesmo tempo que se divertiam, pois sentiam a força da representatividade das outras mulheres da escola, que vão desde jovens até as mais velhas da ala das baianas. Alto, com cabelo curto, barba levemente grisalha e formado em Jornalismo pela Unisinos, Vinicius Brito vem de um lar carnavalesco, aos 8 anos foi assistir ao Carnaval do Rio de Janeiro com os pais. Hoje, ele tem um programa na FM Cultura voltado para essa temática. A chegada de Brito à Imperatriz aconteceu em 2008. Ele se considera engajado e militante, mas acredita que todo homem tem um quê de machismo dentro de si: “A gente tentou pegar o discurso, o que a sinopse propõe e colocar como se fosse na primeira pessoa, uma mulher falando. Uma mulher que luta contra o preconceito, que faz questão de dizer que é feliz com o corpo dela da maneira que é, que namora quem quiser e que pode ser o que ela quiser”, explica. Enquanto a escola ensaiava pela última vez antes de desfilar no sambódromo, a fumaça do churrasco tomava conta do centro da sede. No entorno do local ficam as churrasqueiras, que se mantêm disponíveis para quem quiser levar a sua carne e assar. O sentimento era de estar em um almoço em família, com crianças correndo e pessoas sentadas em mesas. Para quem, assim como eu, cresceu em ambientes como esse, a sensação é de pertencimento, de comunidade.
n A porta-estandarte Gill Alves e o casal de passistas
Franciele Marques e Everton Machado encantam e animam quem assiste, pelo samba no pé e pela simpatia
Maroni, que não veio de uma família carnavalesca, desenvolveu um vínculo muito forte com a Imperatriz. “Ė uma escola que tem uma comunidade muito apaixonada, é muito familiar, enraizada naquele local. Ela é muito próxima ao sambódromo, então sempre faz um desfile quente, de muita participação e interação com o público”, conta. Andy Lee, de barba um pouco grisalha, dreads curtos e quase sempre de boné, ingressou cedo no Carnaval, em 1980, por influência da família, que já fazia parte do meio. Em 1987 entrou para a Imperatriz, depois saiu e retornou em 2018. “A Imperatriz foi fundada no ano do meu nascimento e tem uma história parecida com a minha, de luta, batalha e aguerrimento”, relata. Sob olhares de admiração, no último ensaio a porta-estandarte beijou o manto da Imperatriz e levou para duas senhoras que estavam assistindo para fazerem o mesmo. Elas não só aplaudiram, mas demonstraram amor e respeito pela coroa ornada com os louros da vitória. Esse sentimento se
espalhou pela quadra durante o ensaio e também estava presente no sorriso dos passistas adultos, que sambavam com maestria e não tiravam o sorriso do rosto, olhando para a plateia, que compartilhava da mesma energia. Mas não foi o ano todo assim. Infelizmente, o descaso com a cultura popular deixou a escola sem ensaiar durante 30 dias. Horas antes de acontecer o evento Encontro de Gigantes, no dia 19 de fevereiro, os organizadores foram surpreendidos pelo Corpo de Bombeiros. Enquanto as pessoas que compraram os ingressos e as escolas que se apresentariam esperavam do lado de fora da quadra apreensivas, dentro acontecia o processo de negociação para a abertura das portas. Para manter todos informados, Priscila Gomes, integrante da Imperatriz, pegou o celular e começou a transmitir o ocorrido ao vivo pelo Facebook. As autoridades alegaram que o local não contava com itens de segurança básica, como sinalização de emergência e brigadistas. Em sua segunda transmissão ao vivo, Priscila informou que o evento aconteceria, mas depois tiveram que comunicar a todos que o local tinha sido interditado e teriam que remarcar. Esse acontecimento causou indignação. André Santos, presidente da escola, criticou a ação ostensiva, que contou com a presença de motos, ônibus, viaturas e caminhões da Brigada Militar. Por ter investido, em média, R$ 10 mil para adequar a quadra às normas para o evento e por ficar sem os ensaios, a escola foi prejudicada. Brito diz que é importante atentar a isso, mas se questiona se o tratamento é o mesmo para outros segmentos culturais.
Espero que mais que um samba, seja um grito de liberdade, de resistência”, diz compositor
“A escola de samba, no geral, ainda mais a Imperatriz, que é em um bairro muito popular, com índice de criminalidade alto – e a escola está ali para reverter isso, para ser um forte instrumento de inclusão social –, não tenho a menor dúvida de que os olhares das autoridades para as escolas de samba são muito mais exigentes do que para outros segmentos”, complementa. Por ser transmitido na televisão uma vez no ano, muitas pessoas imaginam que o Carnaval aconteça em duas noites de desfile, na apuração e nas premiações, mas a construção é bem mais complexa, exige trabalho e gera empregos. “O Carnaval é sustento, é emprego. Interditar uma entidade como a Imperatriz é desempregar muita gente”, explica Donato. Além disso, as quadras são pontos de encontro para diferentes gerações, onde os moradores das comunidades têm o seu momento de lazer. O próprio samba-enredo descreve a resistência dos integrantes em manter a cultura popular viva, que se intersecciona com a luta das mulheres para ocupar cada vez mais espaços, de ser e fazer o que quiserem: “Imperatriz, tua sina é coragem”. Ainda assim, no meio da adversidade, todos os presentes na escola e no desfile sorriram ao cantar o samba, em um ato de força, bravura – e amor. n
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AO SOM DAS O
SEIS UMA HISTÓRIA SOBRE A SINCRONIA E A INDIVIDUALIDADE QUE SE PASSA ANTES DE SE ABRIREM AS CORTINAS DO ESPETÁCULO TEXTO E FOTOS DE DANIELA K. GONZATTO
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portãozinho ornamentado de ferro azul o separa da vida real. É um lugar de expressão e de desafio que, a cada semana, permite transformar um sonho em algo maior. Sabe quando questionam se a arte é um dom? Pergunto-me por onde anda quem disse isso uma vez. Se julgam que há apenas dom, certamente não conhecem o esmero e a doação que transpiram de cada detalhe da vida de um artista. A chuva, bem suave, caía naquele final de domingo outonal quando entrei lá pela primeira vez. Assim como as rainhas, fiz a procissão pelo corredor estreito e um tanto escuro até chegar ao pé da escada, que segue em direção ao Céu. Talvez não de glórias e anjos, mas um de arte que revela ao mundo quem tem a coragem de se expor. Alguns lances depois, eis o terceiro andar – o local em que o espetáculo começa. Não vamos pedir para abrirem as cortinas ou ligarem os holofotes. Ao menos, não ainda. A paciência é uma virtude que nos blinda do banal e o extraordinário é a construção de compasso por compasso. E a cada passo dado em direção ao salão principal dos ensaios, o som preenchia meus ouvidos e era amplificado pelo teto alto amadeirado que ecoava as vibrações daquelas notas. Não advindo de uma, mas das 12 meninas presentes na roda de canto.
Aqui não é São Paulo ou Rio de Janeiro. Muito menos Nova York ou outro centro urbano artístico tão famoso quanto. É em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, que o grupo de teatro Música e Cena prepara seu show com música, dança e interpretação. Seis – O Remix da História atribui créditos ao musical de palco britânico original, o Six, que também coleciona fãs pelas representações da Broadway. Ambas as versões modernas contam a narrativa das seis esposas do rei Henrique VIII com uma batida pop. Nelas, as protagonistas são parte de uma girl band (banda formada por garotas), que entoa as músicas ao longo do desenvolvimento desse relato.
função da pandemia do novo coronavírus. Pelo contrário, o som repercute por todo o ambiente. E se as amplas janelas libertam essa euforia das mulheres que sonham tão alto quanto a torre da igreja mais próxima, é possível, no silêncio da concentração, ouvir os sinos do santuário ressoando e o murmúrio do trem que passa a umas quadras de distância. Do outro lado, uma fachada verde esconde os passarinhos que, semana após semana, cantam junto com elas. Um equilíbrio ao som das vozes que ensaiam acompanhando o instrumental.
“Se liga na batida, o som vai aumentar” Descobri, na minha segunda ida ao local, que um dos diferenciais do musical se apresenta na maneira como ele é contado. E já que a trilha sonora atribui tanto peso à história, ela não poderia estar em língua estrangeira. Entre uma fala concentrada e uma risada solta, Anne Greif comenta o processo de criar as versões das músicas em português. O método basicamente consiste em fazer uma escuta contínua até absorver a letra e conseguir encaixar as palavras certas nos devidos espaços. Depois que fazia isso, Anne chegava à etapa de montar um refrão, passar para o computador e, lá, buscar as letras em inglês para marcar as rimas com cores: “Eu anoto do lado qual é o som da vogal da rima”, evidencia a produtora do grupo, de 28 anos, que também atua como Catherine Parr, uma das seis rainhas do elenco principal. Por mais que seja trabalhosa, essa técnica mantém uma costura bonita e que se encaixa na métrica. Eu sou a prova viva de que isso funciona muito bem. Torna-se impossível escutar as músicas mais de uma vez e, no play seguinte, não acompanhar o embalo de versos como “Se liga na batida, o som vai aumentar” ou “Bem-vindos ao show, ao remix da história”, que compartilham o mesmo andamento chiclete. Como nem tudo são flores, a estudante de Teatro e professora de inglês também lembra que, para algumas canções, precisou procurar novas referências, essas brasileiras, diferindo-se das menções feitas na obra original. Afinal, é preciso fazer sentido para quem as ouve. Mesmo assim, Anne não esconde o fato de que demorou apenas 16 dias para fazer todas as versões das músicas. Nessa visita, uma manhã fria de domingo que fazia o sol pedir licença para se acomodar no piso e nas paredes brancas do salão, acontecia algo diferente. Depois do aquecimento de corpos e vozes, e de as meninas contemplarem os novos microfones que chegaram para as apresentações, o ensaio se focou nos solos das rainhas. Enquanto uma se apresentava, as outras a observavam de uma plateia n Aline (vermelho) canta improvisada, de frente para o espelho sem moldura. seu solo e as outras meninas A agitação da companhia a acompanham. Érica (rosa), era grande. Tão grande que Mônica (amarelo) e Anne se notava a cumplicidade do (azul) compõem o elenco titular, Júlia (verde) é swing e time ouvindo os aplausos da sala ao lado. De janelas fechaCarol (branco) é alternante
“A rainha anda onde quiser”
n Aos domingos, as intérpretes das
rainhas e diretores se reúnem para os ensaios. Acima, as botas estão sendo customizadas para o show de Seis – O Remix da História
das. E essa harmonia calorosa se estende aos palcos da vida. “É um universo que as pessoas abraçam e dizem ‘Se não acertou agora, não tem problema, você não precisa ser perfeito. Precisa fazer o melhor que consegue’. E isso é uma coisa que se sente aqui dentro, que se pode experimentar muito”, assimila Fefa Bergonsi, de 18 anos. Ora estudante de Psicologia, ora a alternante da rainha Katherine Howard, ela vem de uma família que respira arte. Aqui, ela sente que formou outra família e um verdadeiro lar: “São pessoas muito diferentes, muitas vivências diferentes, mas que, no grupo, se encaixam tanto. Porque todas têm o mesmo objetivo, que é fazer arte por amor”. A sonoridade não se intimida com as máscaras utilizadas em
Cadeiras coloridas de assento fofo as acomodam durante as passagens de voz. A partir do teclado que Jéssica Fulcher toca, a interação de graves com agudos se anuncia. Mesmo estando atentas aos comandos e regência da diretora musical, elas são envolvidas por um clima que se abre a boas conversas nos momentos propícios. Naturais acompanhantes das cordas vocais, as garrafinhas d’água não só servem para a equipe, de fato, se hidratar. Ao se levantarem das cadeiras para organizar a formação inicial da dança, as intérpretes fazem desses objetos o instrumento vital de uma cantora: um microfone improvisado. Se olhar de longe, um compilado de pontinhos amarelos, verdes, brancos, vermelhos, rosas e azuis se espalha sobre o xadrez preto e branco que cobre o chão. Os coletes coloridos por cima de suas roupas esportivas identificam as atrizes que fazem a mesma rainha entre as seis titulares (o primeiro elenco formado) e seis alternantes (o que se configurou em 2022). Outras duas também encenam a peça, mas sem estarem fixas em um desses elencos. Estas carregam o título de swing, que não as prende a um único papel. Em cada sessão do musical, são sempre seis atrizes – sejam elas as titulares ou alternantes – que dividem o palco, permanecendo e brilhando juntas até o espetáculo acabar. Por aqui, a dança não se traduz somente nos passos marcados e poses inabaláveis. É algo muito fluído, mas é tão esquematizada que traz as inspirações e o drama de cada
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uma das personagens, do andar ao agir. Mônica Freitas, 36, é a coreógrafa. Além de rainha, por óbvio. Para criar a melhor versão para o musical, a intérprete de Catalina de Aragon conta que, além de se aprofundar na sua personagem, precisou entender as demais, a fim de ter a noção de quais nuances teria que revelar nas movimentações. Desde novembro de 2019, quando ficou decidido que o projeto seria feito, Mônica abraçou o desafio como algo que já gostava e tinha um conhecimento prévio sobre. Ela, que é formada em licenciatura em Dança, passou a pesquisar muito. Vendo as coreografias já feitas, notou o que podia encaixar de diferente na versão leopoldense. “Como é uma peça que tem artistas que não são brasileiras como inspiração para cada rainha, eu buscar uma referência brasileira ia ser bem importante”, ressalta, enquanto ajusta a armação escura de seus óculos. Botas entram em cena para intensificar a postura das rainhas na dança. Tive a chance de presenciar, naquele domingo à noite que fui ao ensaio, um momento único: era a primeira vez que as garotas do grupo alternante usavam os sapatos adquiridos para o show. Treinar é necessário, mas treinar em cima de um salto alto com plataforma é ainda mais preciso. “Quem está se sentindo poderosa de bota?”, perguntou o diretor geral e cênico, que também é o produtor e o responsável pelo marketing do grupo, Vinícius Kaiser, às meninas. E elas não calaram a alegria ao final da música. “A gente comprou as botas!”, disse Anne, com entusiasmo na voz, quando conversávamos sobre o musical, duas semanas depois. “Sim! No outro dia que vim, vocês estavam usando elas”, respondi, ao passo que ela informou que os pares foram adquiridos para já poderem se adaptar. “É 1h20min de espetáculo, vão ser duas sessões seguidas e são 17 centímetros de salto.” Anne passou a mão por seu cabelo lilás no que se levantou para abrir o armário e pegar um dos pares. “A gente vai colocar pedraria. Eu coloquei aqui para testar a cola, daí tenho que dançar com ela depois.” Os figurinos ainda estão em fase de construção.
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“Quer uma rainha? Aqui tem meia dúzia” “Eu gosto muito de criar personagem, roteiro, história ou de ser outro personagem. Acho que isso desopila um pouco também”, conta Júlia Lucas, de 19 anos, que conheceu o grupo através de um workshop que participou. Desde pequena no meio da arte, com teatro e dança, ela se aventura em seu primeiro musical com o Seis. Durante a semana, Júlia estuda Nutrição e trabalha em uma rede de lojas. Já nos domingos, personifica até mais de uma rainha, porque é swing. Na estreia, vai ser Ana Bolena, uma das esposas que teve um casamento curto e terminou decapitada. “Eu tenho um apego na Bolena, mas eu gosto bastante da Cleves também. Elas têm um jeitinho parecido.” Enquanto fala, Júlia direciona seus olhos castanhos para os lados, um pouco tímida, mas com um sorriso que traduz que ali ela se sente bem: “Acho que todo mundo é muito dedicado. São pessoas muito compreensivas e acolhedoras”. Quem não as conhece, pode
até mesmo confundi-las pela baixa estatura parecida. E, assim como a alternante de Howard, Fefa, afirma que se sente em uma família quando está com o grupo, a titular, Érica Ribas, de 28 anos, declara que ali é um espaço muito seguro para se expressar e aprender coisas novas com a troca de experiências. Ela, que tem uma história de quase 10 anos com o Música e Cena, diz que uma das coisas que mais gosta ali é o fato de todo mundo ser amigo. Como membro mais antigo do grupo, Érica comenta que é inevitável comparar o trabalho da equipe com o de outros grupos de teatro musical. Mesmo que existam outros legais na região e no estado, ela continua achando que não há um como o Música e Cena. “Eu sinto que nessa área, principalmente do teatro musical, é muito showbiz. É uma pessoa pisoteando na outra para chegar onde quer, é uma competitividade grande, porque envolve muito a questão de audições para conseguir personagens. Envolve contatos.” Érica iniciou suas atividades artísticas quando tinha sete anos, em um coro infantil na escola em que estudava. Após, foi para um coro juvenil e nunca mais parou de trabalhar a parte vocal. Já o teatro e dança começou a treinar ali mesmo e seguiu com oficinas por fora do grupo. Foi aprendendo fazendo. “Tu deve ter visto que algumas pessoas têm mais experiência com dança, outras com teatro, outras com canto. É um espaço seguro para a gente aprender sem julgamentos”. Seu ponto forte com o canto se une às habilidades das colegas, como a de Aline Centeno,
É um espaço seguro para a gente aprender sem julgamentos”, diz Érica, intérprete de Howard
grande juntar essas três coisas. Não é uma apresentação de dança. Ah, eu vou cantar uma música. Não, é dança, canto e teatro. Tudo ao mesmo tempo, junto e misturado. É apavorante nesse sentido.”
“Bem-vindos ao show, ao remix da história”
que dança desde seus três anos. Com a pandemia, ela ficou ferida psicologicamente com a dança, já que passava muito tempo sozinha em seu apartamento e a única coisa que fazia era dançar. Por obrigação, na maioria das vezes. No mundo dos musicais, ela se redescobriu como a Aline artista. Começou com o Alexander: Hamilton Tributo, outro espetáculo que está sendo feito no mesmo local de ensaio, no segundo semestre de 2021. Pouco tempo depois, em novembro, foi chamada para compor o time de alternantes de Seis. A jovem de 23 anos, professora de balé, jazz e danças urbanas, interpreta Anna de Cleves. Ela recorda que sempre pensou em fazer teatro, já que é uma pessoa que se expressa através do corpo em função da dança. “Mas quando se tratava de falar, coisas assim, pânico total.” No início de 2021, uma mudança: em um período com mais tempo livre, fez um curso curto de teatro. Fã de Disney e de seus filmes musicais, Aline sempre gostou de cantar. Entretanto, não tinha experiência nem aulas de canto em seu currículo de vida. Na sua mente, não vinha a ideia de que poderia fazer aulas. Para sua surpresa, agora ela está aprendendo e está sendo algo legal. “O teatro musical veio dessa coisa de que eu queria, mas, em algum lugar
de mim, eu ficava ‘não tem como’. E tem como”, afirma Aline. Seu penteado trançado assente junto dela, em um gesto afirmativo radiante.
“Tudo só começa com a nossa presença” Domingo é sinônimo de ensaio. De uma intensa procura pelo melhor. Da lapidação da pedra até virar o diamante. Da contínua presença das meninas em sala de aula até chegarem ao palco, que deveria recebê-las em junho de 2022. Um contratempo as impedirá. Os figurinos não ficarão prontos para o dia previsto da apresentação, o que adiará a abertura das cortinas e a venda de ingressos por alguns meses. No Seis, os figurinos marcam presença no palco. Eles estão sendo produzidos por um figurinista, tal como os vistos nas apresentações da Broadway. “Cada guria tem o próprio collant e vai ser uma casca que se coloca por cima. Tem um para cada rainha, ele é todo ajustável”, revela Anne. “Quando eu ouvi que é a história das seis esposas de Henrique VIII, eu pensei ‘bah, é um musical histórico’. Pensei num negócio, tipo, umas roupas de época. Aí tu vai ver: isso é contado de um jeito muito legal, muito atual”, conta Micaela Zambon sobre a modernidade vista na história representada. Roupas de época? Aqui, não. Estudante de Psicologia e tech recruiter, a jovem de 20 anos é Jane Seymour aos finais de semana, desde janeiro de 2021. “Minha primeira experiência de teatro musical está sendo aqui.” Micaela afasta uma mecha de seu cabelo loiro, puxa a máscara e muda suas feições para uma careta, em brincadeira: “Tá muito legal”. “A expressão diz tudo”, comento, rindo com ela. “Tá muito legal, mas é complicado. Eu sempre gostei muito de teatro musical, mas é um desafio muito
“É muito diferente ou similar ao original?”, questiono Mônica sobre a maneira que ela conduz as coreografias. “É similar. Tem coisas que são muito parecidas, mas eu sempre quis dar muito o meu jeitinho. Então, vai ter coisas que, para mim, parece muito e outros vão dizer ‘ah, não, mas está diferente’”, explica a professora de dança. Ela ainda alerta para um diferencial que o espetáculo carrega: a peça não é feita naquele formato tradicional. “O Six tem a todo o momento uma quebra da quarta parede. É como se fosse um show. Existe uma história ali, mas é tudo contado como se fosse realmente um show.” As meninas são o foco. Não tem descanso ou saídas. Nada pode atrapalhá-las. Como Micaela diz, o Seis é um musical que tem seis personagens principais. Não há coro nem figurante. “Tu está ali, tu é protagonista”. “A gente nunca teve um espetáculo em que precisou dançar tanto e cantar tanto ao mesmo tempo. Não saímos de cena, ficamos uma hora e meia no palco”, fala Érica. Elas nem podem pensar em sair da personagem durante aquele momento. “Isso exige muito da gente.” Mas é um esforço que vale a pena. São os passinhos a cada ensaio que as guiarão pelos palcos mundo afora. São os constantes desafios que as tornarão mais experientes, mais profissionais e ainda mais rainhas. E nessas idas e vindas de toda semana, constrói-se algo grandioso – não apenas formado de botas, figurinos, cantos e danças. Faça chuva ou faça sol, elas estão lá, cultivando, talvez, um dos melhores momentos de suas vidas e fazendo história com a arte e como parte do espetáculo. Eu me despeço com um aceno geral ao grupo. Desço pelos degraus de volta para a Terra, passo pelo corredor estreito, agora mais iluminado, e saio pelo portãozinho ornamentado de ferro azul. Domingo que vem tem outro ensaio. n
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PALCO DE RES UMA NOITE NA WORKROOM, O FAMOSO BAR DRAG DA CAPITAL GAÚCHA
TEXTO DE KAROLINA BLEY FOTOS DE PATRÍCIA WISNIESKI
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C
idade Baixa, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Um local conhecido como ponto de festas, bares e destino de jovens e boêmios durante a noite. São 18h30min de um sábado quando eu e minha amiga pisamos na famosa “CB”. Nosso rumo seria a Rua Lopo Gonçalves, mas decidimos parar uma rua antes e caminhar pelo famoso bairro para entender o motivo de sua fama. Por ainda ser cedo, as ruas não estão cheias como de costume para as noites de final de semana. Muitos bares sequer abriram suas portas. Porém, os que já estão abertos formam filas em suas entradas ou estão com suas pequenas mesas na calçada ocupadas por clientes. É o caso de um lugar chamado Caldeirão Furado. Quando passamos pelas pessoas que estão ao lado de fora do estabelecimento, usando roupas que remetem ao universo dos livros e filmes de Harry Potter, entendemos o significado do nome do local. Mais para frente, um bar comum, como de muitas cidades, com senhores bebendo e comendo cachorro-quente. A Cidade Baixa é isto: uma mistura de públicos que sentem-se acolhidos pela diversidade de bebidas, comidas e músicas. São 19h e nosso destino já está abrindo as portas. Caminhamos até um local de fachada colorida, talvez
SISTÊNCIA
a mais colorida da Rua Lopo Gonçalves. É o drag bar Workroom. Quando fiquei sabendo da existência desse lugar, logo me veio à cabeça o reality show de drag queens RuPaul’s Drag Race, afinal, um dos cenários do programa é chamado de workroom. E, entrando no bar, percebemos que é exatamente isso. Nas paredes do local, estão espelhos de estilo camarim, e um deles é totalmente assinado por drag queens que participaram do reality norte-americano e já passaram pelo bar gaúcho. Algumas assinaturas são de Shangela, Peppermint, Aquaria… e a mais recente, Bianca Del Rio, que passou por lá uma semana antes de nossa ida. Essas assinaturas são referência ao momento que a drag eliminada do reality assina um espelho e se despede das concorrentes. Da entrada é possível enxergar, mais ao fundo, um palco com microfone posicionado ao meio e um led na cor rosa com o nome do bar no cenário de cortinas pretas. O local não é muito amplo, mas consegue incluir uma variedade grande de decorações voltadas ao público LGBTQIA+. Duas televisões passando videoclipes de drag queens, bandeiras do Orgulho
LGBT e Orgulho Trans penduradas e um quadro de uma das principais inspirações do lugar, RuPaul, são alguns dos objetos que preenchem o ambiente. O som do lugar, durante a noite inteira, é composto de uma playlist de divas da música pop. Toca Whitney Houston, Beyoncé, Britney Spears, Taylor Swift, Anitta, Pabllo Vittar… E, sem surpresa, as músicas combinam com a vibe do bar. Somos recepcionadas pelo idealizador e dono da Workroom, Rodrigo Krás Borges. Um rapaz de estatura média, barba curta, voz calma e que faz uso de óculos de aros arredondados. Ele, que hoje tem 33 anos, desde que formou-se em Administração sonhava em abrir seu próprio empreendimento, mas precisava ser um local com propósito e que lutasse por uma causa. Numa conversa de bar, pensando no boom de drag queens na mídia brasileira na época e unindo isso ao seu sonho, surgiu a ideia de um bar com a temática drag. Foi então que, em abril de 2017, em meio a uma carência de espaços LGBT’s em Porto Alegre, Rodrigo e mais dois sócios inauguraram a Workroom (que prefere ser chamada pelo pronome feminino).
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Eu e minha amiga somos direcionadas a uma mesa perto do caixa. Na parede ao nosso lado, o quadro de RuPaul. Somos as primeiras clientes da noite, e, de cara, recebemos as boas-vindas da garçonete simpática e de cabelos negros raspados, Alice Silva. Ela nos apresenta o cardápio de comidas e bebidas do bar. Entre as opções de alimentação tem pizzas e hambúrgueres – com opções veganas e vegetarianas –, e, para beber, além do básico, como refrigerante e água, a Workroom oferece seu carro-chefe, que são os drinks. Eles são preparados em um bar à vista da clientela, no mesmo espaço em que fica o caixa. O barman prepara bebidas que podem incluir rum, gin ou vodca. O diferencial das bebidas são seus nomes. Todos são batizados em homenagem a drag queens que participaram de RuPaul’s Drag Race: Aquaria, Jujubee, Laganja, Shea, Miz Cracker e Yvie. Durante a pandemia de Covid-19, iniciada em março de 2020 no Brasil, o cardápio do bar foi um dos responsáveis por manter o local aberto, sem fechar suas portas como muitos outros precisaram fazer no período. A Workroom não trabalhava com serviços de delivery, e precisou adaptar-se
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ao momento. A co- n A drag queen zinha era pequena Mona Vipère, 31 e toda a experiência anos, se apresenta do bar era presen- na casa desde 2017 cial, com ambiente personalizado e shows ao vivo. Porém, o principal dilema enfrentado por Rodrigo, que na pandemia tornou-se o único dono do bar, era: como poderia destacar-se no meio de tantas opções de lanches e bebidas que POA possui? “A nossa grande sacada na pandemia foi o Draglivery. Esse serviço foi bem inovador pro sul do país, e consistia na drag queen levar o pedido do bar para a casa das pessoas. A drag chegava montada na casa do cliente, colocava um som, fazia uma pequena performance, interagia, tirava foto… E isso foi um sucesso”, explica Rodrigo, que acredita fielmente que a maioria de suas vendas por delivery ocorreu pelo carinho das pessoas com o bar. Os clientes queriam apoiar a Workroom e impedir que o espaço que os representava fechasse as portas. Enquanto outros clientes começam a chegar, uma segunda garçonete, de cabelos longos e platinados, presos em um rabo de cavalo, passa pela pista, dançando e cantando ao som da música pop que tocava. É a
Evelyn Dantas. Ela parece se divertir enquanto trabalha, entregando lanches e bebidas nas mesas. Falando nisso, a maioria dos funcionários da Workroom faz parte da sigla LGBTQIA+. Não é requisito, mas são as pessoas que recebem prioridade na hora da contratação. Alguns são heterossexuais, como o segurança, que Rodrigo descreve como uma pessoa querida e mente aberta. “Acho que hoje o requisito para trabalhar aqui não é nem ser LGBT, é ser livre de preconceitos e entender onde está trabalhando”, coloca. “Entender onde está trabalhando.” O que a pessoa que for trabalhar na Workroom precisa entender é que ali é um local político. Rodrigo sabe que durante as eleições presidenciais de 2022 o bar vai ser um lugar de acolhimento. O objetivo dele não é nem levantar bandeiras partidárias para políticos específicos, mas sim tirar o presidente Jair Bolsonaro do poder. Diversos adesivos escritos “Fora Bolsonaro” estão colados no balcão do caixa da Workroom, não escondendo nem um pouco o posicionamento do bar. O presidente do Brasil, eleito em 2018, é um dos principais inimigos de pessoas LGBTQIA+, afinal, ele não faz questão de esconder a homofobia que carrega em si. Ser um local acolhedor em sua posição política não é o único atrativo da Workroom para aqueles que a frequentam. Vejo em outra mesa um homem fotografando com seu celular cada canto do bar. O nome dele é Rodrigo Stocker, de 42 anos. Homem cisgênero, gay, de Porto Alegre, retornando pela segunda vez. “É um local acolhedor e gostoso. Um local para trazer amigos. Um local que eu recomendo aos meus conhecidos e para todos os LGBTQIA+”, fala Stocker com um ar de admiração pelo bar. Assim como ele – que logo após falar comigo recebeu amigos em sua
mesa –, muitos ali estavam em grupos de três ou mais pessoas. Os frequentadores chegam, permanecem por horas, rindo, falando alto e, talvez, expressando lá dentro o que muitos não podem expressar do lado de fora. É esta a sensação que eu tenho estando lá dentro: acolhimento. Não apenas pela música pop, que fica tocando a noite toda e é meu estilo musical favorito. Existem outros motivos, mesmo eu sendo uma mulher cisgênero e heterossexual. “No geral, a maioria do público é LGBT. Porém, a maioria são mulheres, e aí entram mulheres LGBTs ou heterossexuais”, responde o proprietário da Workroom ao refletir sobre seus clientes. Qual seria uma possível explicação para isso? Talvez, seja bem óbvia. “Elas se sentem muito seguras no bar, com as amigas, fazendo, por exemplo, uma despedida de solteira. Até dividindo o banheiro, porque nosso banheiro é sem gênero”, explica Rodrigo. O que eu senti não foi apenas acolhimento, mas também segurança. Duas drag queens chegam e passam sorridentes por todo mundo até os fundos da Workroom. Pergunto à garçonete Alice qual será o horário do primeiro show da noite. 21h30min. Faltam poucos minutos, então dou uma rápida passada no banheiro. Como havia sido informada, o banheiro, pequeno e com duas cabines, é sem gênero. As duas portas possuem dizeres em inglês: “tanto faz” e “apenas lave as mãos”. Atrás de mim, entra um homem. Ocupamos cada um uma cabine. Saímos, paramos em frente à pia, e quase ao mesmo tempo começamos a cantar a música que está tocando, do grupo feminino Little Mix. Damos uma leve risada e lavamos as mãos, como ordena a porta do banheiro. Rodrigo estava certo. Ali, mulheres conseguem sentir segurança até em um banheiro pequeno, dividido com pessoas de outros gêneros. Chegou a hora. As luzes do ambiente mudam, fica levemente mais escuro, com holofotes para o palco. As artistas da noite são Mona Vipère n Formado em e Elektra. A primeira sobe ao palco e retira o microfone do caminho. A Administração, Rodrigo segunda posiciona-se ao meu lado, Krás Borges, 33 anos, apenas para assistir à amiga, já que realizou com o bar o sua performance será mais tarde. sonho de ter uma empresa Rodrigo, que acumula funções desde que se tornou o único proprietário do bar, é quem regula as luzes e o som. Ele sorri com os gritinhos do público no momento em que abaixa o volume da música que tocava. Assim, a Workroom, pela primeira vez na noite, não tem música pop tocando por alguns segundos. Os gritos do público, mesmo no silêncio, eram de expectativa, por saberem que um show de uma pessoa só estava por vir. I Have Nothing, da Whitney Houston, começa a tocar. Mona Vipère, de 31 anos, respira fundo e fecha os olhos. Com seu vestido longo, preto, cheio de pedras brilhantes, e uma peruca loira, presa em um belo penteado, começa a dublar. Ela pega uma música gigante, de uma cantora gigante, e a transforma em algo dela mesma. Capta as emoções da canção e demonstra isso para o público, olhando nos olhos dos presentes, que a filmam e admiram. Ela não dança, não se joga no chão e nem
desce do pequeno palco. Apenas com sua dublagem, seu olhar e poucos movimentos, conecta-se com as pessoas e prende a atenção. Ao final da apresentação, eu e todos lá presentes aplaudimos efusivamente. Mona não é nenhuma novata na Workroom. Apresenta-se lá desde 2017, ano da inauguração do espaço. Esse também é o ano que marca o início de sua carreira como drag queen. A inspiração não foi alguém, mas algo. Trabalhando há mais de 10 anos com figurinos, Vipère sentiu o mesmo que muitas pessoas antes de entrarem no mundo drag: admiração pela figura feminina e seus estereótipos. Sentia-se realizada nos figurinos que fazia para outras pessoas, principalmente mulheres. Um dia, Mona resolveu vestir ela mesma, e, depois de experimentar a vida de drag queen pela primeira vez, não parou mais. Ela comenta comigo, em meio ao assédio de pessoas querendo tirar fotos: “Aqui tem um palco, e é importante para nós, drags, ter um palco e uma oportunidade de estar apresentando nossa arte aqui”. Aquele palco baixo e não muito longo é uma conquista. É um espaço que a Workroom disponibiliza para drag queens expressarem sua arte, sem julgamentos, em um dos estados mais conservadores do Brasil.
O que a pessoa que for trabalhar na Workroom precisa entender é que ali é um local político
Depois da performance de Mona, a música pop agitada voltou a tocar. Definitivamente, o pop é a trilha sonora do local. Rodrigo explica que não sai disso. Permeia entre o pop mais antigo, com Whitney Houston e Madonna, e o pop mais atual, com Rihanna e Katy Perry. E, claro, o pop das drag queens brasileiras, que estão cada vez mais abrindo espaços na mídia para mostrarem seus talentos, e não apenas para serem tratadas de forma pejorativa. Toca Gloria Groove, Lia Clark, Pabllo Vittar… Essa última, inclusive, já visitou a Workroom, em 2017, depois de um show. Após eu e minha amiga finalizarmos a pizza de calabresa que tínhamos pedido – muito gostosa, por sinal –, pagamos a conta e fomos até a saída aguardar o carro de aplicativo para irmos embora. No mural perto da porta, havia um panfleto, com, talvez, as regras mais rígidas e claras da Workroom. Nele dizia: “Neste local não é permitido transfobia, homofobia, lesbofobia, bifobia, racismo, gordofobia e nenhum outro tipo de discriminação”. Ali dentro, na maior parte do tempo, todos batem de frente com esses preconceitos por meio da arte, da alegria e do carinho por aqueles que acabaram de conhecer, naquele lugar. A Workroom ocupa, fisicamente, um espaço bem pequeno da Cidade Baixa. Porém, ocupa um espaço enorme na vida daqueles que encontram ali acolhimento e oportunidade de se expressar, trabalhar e amar, em um mundo que ainda insiste no ódio. n
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O MENINO QUE NASCEU CANTANDO S ua mãe se desdobra entre três empregos diferentes desde que ele consegue lembrar. Mãe solo, precisava criar dois filhos e pagar as contas da casa sozinha. Entre os múltiplos trabalhos que exercia, um em especial despertava sua admiração. Conhecida como a “dama do samba” na Porto Alegre dos anos 90, Claudia Quadros tinha a voz mais bonita que ele já ouviu. Mas nem só de momentos bons a infância foi marcada. A dificuldade financeira batia constantemente à porta - e a fome também. A mulher negra, de cabelos cacheados e olhar doce, usava sua música para distrair Esthevam Quadros e a irmã mais velha da escassez dentro de casa. Diferentemente do dinheiro, o amor sempre foi abundante naquela casinha do Campo da Tuca, um bairro não oficial de Porto Alegre que nasceu como quilombo. O crescimento de Esthevam, um menino negro e gorducho, contou com muitas mudanças. Como a família nunca teve uma casa própria, era comum que eles tivessem que se mudar constantemente. Os bairros Restinga, Centro Histórico e Partenon são alguns dos endereços pelos quais já estiveram. Criado pela mãe com a ajuda da irmã, ele era um menino encrenqueiro. Até os 14 anos, as brigas na rua eram constantes. A infância que levou não ajudava: como a mãe se dividia em mais turnos do que conseguia dar conta, ele achava na rua uma distração. Uma vez, brigado com a mãe e o padrasto, resolveu passar um tempo na casa de um amigo. Nos quatro dias em que esteve lá, percebeu uma movimentação estranha: nas segundas e quartas-feiras, o amigo saía de casa com o pai e voltava horas depois. Descobriu que ele ia para a aula de música. Meses depois, na tentativa de achar uma atividade que o tirasse das ruas, ligou para a mãe, que estava no trabalho. Queria uma passagem de ônibus para ir até o Centro Histórico. “E o que tu quer lá?”, perguntou ela do outro lado da linha. Ele precisava ir até a Rua General Câmara para conhecer a escola de música que o amigo frequentava. Sozinho no ônibus, olhava pela janela enquanto imaginava o que poderia estar lhe esperando. Era a primeira vez que veria o Multipalco Eva Sopher de perto. O prédio, que por fora parece ter apenas um piso, conta com uma estrutura de quatro andares no subsolo. Suas portas de vidro são tomadas por arbustos de Primavera que parecem ter sido colocados ali há poucos anos. A construção fica ao lado do imponente Theatro São Pedro, no centro da capital gaúcha. Lado a lado, os prédios fazem uma contraposição entre a arquitetura clássica de
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DAS RUAS PARA O PALCO, ESTHEVAM QUADROS TEVE SUA VIDA TRANSFORMADA PELA MÚSICA – E NÃO PAROU DE SONHAR TEXTO E FOTOS DE VITÓRIA PIMENTEL
1858 e a modernidade dos anos 2000. As diferenças são de se esperar, afinal, 145 anos separam as duas obras. Mas, para chegar até lá, é preciso fôlego. A rua Riachuelo é o primeiro obstáculo para quem vem do Centro a pé. A ladeira íngreme exige joelhos resistentes para chegar ao seu topo. Antes de entrar no Multipalco e descobrir os 1.880 metros quadrados abrigados pelo subsolo, é possível apreciar o pequeno jardim de flores do pátio. Idealizado pela empreendedora cultural Eva Sopher em 1986, o Multipalco teve o início de suas obras apenas em 2003. Apesar de ainda não estar completo 19 anos depois, o espaço já é preenchido por projetos sociais voltados para a arte. É no segundo andar, atrás de dezenas de portas e paredes, que o assoalho de madeira vibra. Do corredor é possível ouvir as doces risadas infantis se misturando com os acordes dos instrumentos. Os espaços silenciosos e sérios do prédio são invadidos pelas músicas animadas da ONG Sol Maior. No mesmo lugar onde pisaram grandes nomes da dramaturgia e da música brasileira, crianças vindas de mais de 20 bairros de Porto Alegre têm acesso à cultura.
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A segunda sede da ONG fica na Associação das Creches Beneficentes do Rio Grande do Sul, no bairro Humaitá. Lá, outras 200 crianças em vulnerabilidade social participam das oficinas de música. A imponência do Multipalco Eva Sopher não intimidou Esthevam, então um menino de 15 anos. A timidez não impediu que ele fosse em busca das aulas de música que seu amigo fazia. O que ele não esperava era encontrar um mentor que tomasse a figura de um pai ao longo dos anos que viriam. Daniel Portilho, coordenador pedagógico da ONG Sol Maior, recebeu Esthevam e apresentou as oficinas de canto, dança e instrumentos. Esthevam, então, percebeu. Ele queria ser artista. A alegria foi compartilhada. Claudia fez questão de pedir folga no trabalho para conhecer pessoalmente a Sol Maior. Mesmo lá, vendo dezenas de crianças aprendendo a dançar e cantar, ela mal podia acreditar que o filho caçula seguiria seus passos. Mas, mais do que isso, o interesse dele pela música significava também menos tempo na rua - e menos tempo para ter ideias ruins. Como as atividades aconteciam no turno inverso ao escolar, ele passava o dia em função das aulas. Para uma criança da Zona Leste, isso significa também menos tempo suscetível aos perigos de Porto Alegre, uma das quatro cidades mais violentas do Rio Grande do Sul, segundo o Atlas da Violência de 2019. A música transformou a vida do jovem Esthevam, que agora substituía as tretas na rua pelo aprendizado das partituras. Dentro da Sol Maior, ele era acolhido
n Desde 2013 Esthevam participa
de apresentações na Sol Maior. Entre os papéis que desempenhou, foi estudante, monitor e, atualmente, é professor de dança
Hoje, desenhos pintados a tinta guache cobrem as paredes da ONG. São autorretratos apresentados no espetáculo Janelas, de 2021. As imagens remetem ao isolamento social, quando as crianças ficaram em casa durante a pandemia e observavam, através de suas janelas, a vida passar. No corredor que leva para as três salas de aula, dezenas de fotografias mostram os rostos que se apresentaram nos espetáculos de fim de ano, realizados no Thea-
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tro São Pedro ao longo dos 15 anos de existência da entidade. Criada em 2007 e atendendo apenas 50 crianças, inicialmente a Sol Maior funcionava na Fundação Pão dos Pobres, no bairro Cidade Baixa. Foi a convite de Eva Sopher que uma das sedes da organização passou a ocupar as salas do Multipalco em 2012. Hoje, cerca de 200 crianças e adolescentes entre seis e 17 anos ocupam o espaço e descobrem novas facetas de si mesmas.
como um filho pelos professores. Lanches, passagens de ônibus, uniforme e materiais faziam – e ainda fazem - parte do pacote. Em troca, os alunos precisam manter a frequência escolar e as notas altas. Isso se reflete nos resultados que a ONG se orgulha em mostrar: até hoje, 98,5% dos estudantes não foram reprovados na escola. Os resultados atravessam a infância e influenciam no futuro de quem passa pela Sol Maior.
Do sonho, o sustento Mais de 84% alunos da Sol Maior atuam no mercado de trabalho através do Projeto Vida Pós-Sol Maior, que faz parceria com instituições e oferece orientação profissional. Para Esthevam, entretanto, o acesso ao mercado de trabalho aconteceu de forma diferente. Apesar de ter nascido cantando, como ele diz, e ter feito aulas de canto, seu destaque mesmo foi na dança. Dois anos depois de ingressar na ONG, em 2015,
ele foi convidado a assumir o posto de jovem monitor. Nos momentos que tinha livre com as outras crianças, aproveitava para colocar em prática as dinâmicas e brincadeiras que tinha aprendido quando estava no papel de aluno. Aos poucos ele ia conquistando seu espaço. Três anos depois, quando concluiu o ensino médio, foi promovido a monitor 1. Apesar do reconhecimento, a remuneração não era suficiente. Já com 20 anos, ele precisava ajudar a mãe com o aluguel da casa e dar suporte à irmã, com dois filhos pequenos. “O pai dos meus sobrinhos fez a mesma coisa que os nossos pais fizeram: sumiu.” O tio zeloso entendeu, desde cedo, que precisaria garantir a proteção
e o carinho que a ausência de um pai traria para a vida de seus sobrinhos. Começaram então as fases dos bicos. Entre as profissões que já exerceu, foi garçom, vendedor, motoboy, gerente de loja e quantas outras oportunidades de ganhar dinheiro aparecessem. “Gostar de trabalhar já é parte de mim”, explica. Ver a mãe na labuta dia e noite mostrou a ele, desde jovem, o que precisava fazer. Foram dois anos se deslocando entre a Sol Maior e os outros empregos até seu corpo não aguentar mais. Esthevam focou na área de vendas e, meses antes da pandemia de Covid-19, abandonou seu posto de monitor. “Eu me senti sozinho no mundo”, conta. Mesmo tendo que deixar a paixão de lado, ele nunca deixou de acompanhar o trabalho da Sol Maior. Durante a pandemia, assistia às aulas em vídeo pela internet. Em seu coração, permanecia o orgulho de ver as crianças se desenvolverem aos poucos, conquistando espaço e construindo um futuro promissor. O caminho que começara a trilhar não o deixou esquecer do projeto que transformou a sua vida: ele sempre levaria a música e a Sol Maior em seu coração. Alguns meses depois, Esthevam perdeu o emprego como vendedor. Sua renda começou a vir apenas dos trabalhos como motoboy, mas as coisas não iam bem. O medo de sofrer acidentes – assim como vários colegas de profissão – permeava os angustiantes dias de trabalho. Em abril de 2021, chamaram-no de volta à Sol Maior. Desta vez, como educador social. A vida começava a se ajeitar. Estar de volta às salas de aula que transformaram a sua vida era um sonho sendo realizado. Agora, ele poderia dar a outras crianças a mesma oportunidade que teve quando era só um menino pedindo o dinheiro da passagem para ir ao centro. n Com uma das sedes no Hoje, aos 24 anos, o sorriso e o brilho no olhar Multipalco Eva Sopher, a ONG Sol o acompanham durante as Maior oferece aulas gratuitas de dança, canto e música para jovens aulas. “Vamos lá, minhas crianças”, ele estimula enem vulnerabilidade social quanto começa os primeiros passos de Love On Top, música da cantora Beyoncé. A volta à Sol Maior coincidiu também com a aposentadoria da mãe, que depois de 20 anos esperando, conseguiu uma resposta do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O benefício só foi liberado depois que Claudia teve complicações de saúde causadas pela diabetes. Agora, o salário de Esthevam é suficiente para ajudar nas despesas da casa e na criação dos sobrinhos. Sem a necessidade de procurar outros trabalhos para complementar a renda, sobra tempo para organizar as aulas e criar planos para seu futuro. Ele quer ser um fenômeno na música. “Toda vez que eu rezo, eu peço uma oportunidade de estourar como cantor e levar todas essas famílias comigo”, conta, com os olhos brilhando. Uma mansão, milhões de reais e a graduação em Dança fazem parte do objetivo. O menino que nasceu cantando seguirá ensinando crianças, adolescentes e adultos - e espera que muitas vidas sejam transformadas no caminho. n
Toda vez que eu rezo, eu peço uma oportunidade de estourar como cantor e levar todas essas famílias comigo”, conta Esthevam
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NOTAS ATENUANTES G A CONTRIBUIÇÃO DA MÚSICA NO TRATAMENTO E BEM-ESTAR DAS PESSOAS
TEXTO DE HENRIQUE ABRAHÃO
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eralmente é no início da tarde que Miss Leda de Carvalho Magalhães acorda. As suas parceiras do dia a dia, cuidadoras e técnicas de enfermagem, fazem questão de respeitar seu tempo de descanso, sem definir horário certo para dormir e começar o dia. Aos 95 anos, Leda, ou Ledinha, como é chamada, já precisa de ajuda durante as 24 horas para comer, se locomover e, como já não consegue se comunicar através de palavras,
ARQUIVO PESSOAL/CRISTINA ARIOLI
n Terapeuta ocupacional
Cristina Arioli, André Meneguzzi e Marcos Pehl, no Hospital Mãe de Deus é a partir de gestos e expressões que as profissionais sabem a hora que precisam colocar Cauby Peixoto ou música gauchesca nos seus rituais diários. Carioca, Leda se mudou para o Rio Grande do Sul há seis décadas com o marido, Hélio Magalhães (19282011), e os dois filhos, Mauro e Marisa, por necessidade profissional. No sul, teve o terceiro, Marcelo, e um dos seus desejos era que um filho fosse adepto da cultura gaúcha. No entanto, de acordo com a filha do meio, a nutricionista aposentada de 64 anos que a visita semanalmente, Marisa Magalhães, isso não aconteceu. “O pai era mais tranquilão e a mãe mais festeira, firme. A vó dela também era, e eu tenho certeza que estou indo para o mesmo caminho”, conta Marisa. “Independente, carinhosa e com um coração gi-
gante”, é assim que a filha descreve sua mãe, Leda, que teve o “Miss” acrescentado pelo pai após a visita da Miss Portugal em 1927 no Brasil. Além desses nomes, a técnica de enfermagem Fabiane Paranhos e a cuidadora Elisandra Nascimento deram para “Ledinha” o apelido de “mãe com açúcar”. Elas revezam com outras especialistas em turnos para prestar assistência integral e conforto. “Trabalhar com a Ledinha é uma terapia, me fez desacelerar”, declara Fabiane, que está há dois meses trabalhando com Leda.
Há cinco anos sendo uma de suas cuidadoras, Elisandra relembra como eram os dias antes de Leda perder sua independência. “Ela tomava banho sozinha, eu alcançava as coisas para ela. Foi uma mudança bem radical”, afirma. Durante cada etapa do dia, Elisandra explica que sempre é escolhida uma trilha tranquila ou uma música mais atual, como sertanejo universitário. “Geralmente é Cauby Peixoto, música gaúcha, não varia muito. Quando colocamos algo diferente, aí é um Daniel ou Gusttavo Lima”, diz Elisandra. Claro, todas
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ARQUIVO PESSOAL/PAULA DUTRA
as escolhas musicais são feitas com sua aprovação. “Perguntamos para ela se a música tá legal, se ela quer algo mais animado”, explica. O quadro de saúde de Leda tornou-se mais frágil após o terceiro Acidente Vascular Cerebral (AVC), em fevereiro de 2019. Naquela noite, Marisa estava com a mãe e, na hora de se despedir, notou que sua boca estava torta. Como já havia ocorrido outras duas vezes, decidiram ligar para a equipe de saúde do Hospital Mãe de Deus e, de forma rápida, Leda foi levada ao hospital. Nos oito meses em que esteve internada, cinco foram na Unidade de Terapia (UTI) e, nesse tempo, a música se tornou onipresente. De quarto em quarto pelos corredores do Hospital Mãe de Deus n Paula Dutra, médica que coordena
o setor paliativo do hospital Mãe de Deus desde 2018. Abaixo, equipe de medicina paliativa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com Roman Orzechowske (à frente) e Wolnei Caumo (atrás, 3º da esquerda para direita)
em Porto Alegre, os profissionais André Meneguzzi e Marcos Pehl tocavam canções inspiradas em cada paciente em tratamento paliativo. Leda recebia os musicoterapeutas com batidas ritmadas e acenos. O projeto musical idealizado em 2015 pela terapeuta ocupacional Cristina Arioli seguiu até 2019 proporcionando momentos de bem-estar e conforto. Para Leda, a família fazia questão de combinar “visitas” frequentes de Roberto Carlos, Antonio Carlos Jobim e artistas gaudérios. “Garota de Ipanema era uma música que ela reagia bastante”, pontua a filha Marisa. Servindo como uma estratégia de distração, a médica que coordena o setor paliativo do hospital Mãe de Deus desde 2018, Paula Dutra, destaca o papel da música para a descontração e mudança do clima dos quartos onde os pacientes paliativos ficam. “As músicas mais pedidas eram do Roberto Carlos”, relata a médica. Entre os casos em que a musicoterapia se fez presente, a médica cita um em especial: “Uma vez usamos da música para explicar para ARQUIVO PESSOAL/ROMAN ORZETHOWSKE
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HENRIQUE ABRAHÃO
uma menina a situação delicada que sua mãe estava passando. A mulher estava internada em tratamento paliativo com câncer terminal”. Quem estava fazendo o acompanhamento da menina de cinco anos era a terapeuta Cristina Arioli. Ela conta que a menina era fã do grupo Balão Mágico e ensaiou uma apresentação para a mãe. O trabalho continuou mesmo depois do falecimento da mulher, já que eles perceberam que a música tinha um efeito na prática e poderia ajudar no processo de luto. No caso de Leda, os médicos conseguiram reverter o quadro e ela recebe, desde setembro de 2019, a atenção em casa, com cuidadoras e técnicas de enfermagem em tempo integral. “Os pilares fundamentais para a recuperação da minha mãe foram: primeiro, Deus e Santa Rita; segundo, sua vontade de vencer; terceiro, os médicos; e quarto, tudo aquilo que trazia felicidade,
como a música. Ela conheceu meu pai em n Marisa Magalhães, Porto Alegre (HCPA), baile, então a música e dança sempre estiveram a cuidadora Elisandra Wolnei Caumo, exemplipresentes na vida dela”, conta a filha Marisa. Nascimento e a técnica fica como a música atua O trabalho continuou em casa e com os Fabiane Paranhos junto nos trabalhos paliativos: mesmos profissionais da musicoterapia, que a com Miss Leda “Se você, por exemplo, visitavam duas vezes por semana. Foi aí que coestiver triste e ouvir uma meçaram a incluir Cauby Peixoto na playlist. Depois que música que goste, terá uma sensanão estavam mais lá, a música continuou fazendo parte da ção de bem-estar e de que aquilo rotina, desde a hora de acordar até a hora de dormir. te ajudou a levantar. Esse é o efeito Após a terceira internação, as dificuldades para da música. Coloque uma música ingerir alimentos sólidos e uma infecção pulmonar alta que seja do gosto específico do resultaram na necessidade da colocação de um tubo tra- paciente e você verá que terá um queal e outro tubo para efeito positivo”, conclui. alimentação. A partir disUm dos profissionais que atuam so, Leda não conseguiu no setor paliativo do HCPA, o médimais falar, mas ainda co Roman Orzechowske relembra assim, participa ativa- um caso em que a música amemente das conversas e nizou a dor de um dos pacientes. interações, mexendo as “Um homem de 40 anos que estava sobrancelhas e dando com tumor no cérebro era fã dos respostas com o olhar Beatles. Quando tocávamos, ele atento a tudo que está à afirmava sentir um conforto e alívio sua volta. da dor”, destaca o médico. “Ela responde sim Mostrando na prática como ou não, aperta a mão e a música ajuda a tratar os mais sempre que queremos diferentes aspectos da dor e serve fazer algo, perguntamos e pedimos permissão para como oração para reafirmar o otiela”, enfatiza Marisa. mismo, Marisa canta todos os dias O gosto particular do indivíduo é fundamental junto com a mãe antes de dormir: para um tratamento assertivo. O chefe do Serviço de “Santa Rita rogai por nós, interceDor e Medicina Paliativa do Hospital de Clínicas de dei a Deus por nós’’. n
As músicas mais pedidas eram do Roberto Carlos”, relata médica do Hospital Mãe de Deus
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A VIDA TÃO RARA
ENTRE AS PAREDES BRANCAS, QUEM PISA NO HOSPITAL GERAL DE CAXIAS DO SUL TRANSITA ENTRE A DOR E O ALÍVIO
TEXTO E FOTOS DE MILENA SILOCCHI
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uarta-feira, 20 de abril, a cidade se dispersa para a chegada do feriado. A previsão é de tempo bom para os próximos dias. Em Caxias do Sul, o frio começa a mostrar os primeiros sinais da sua presença na Serra Gaúcha. Céu ensolarado, sem nuvens, 17º C, 9h13 da manhã. Já é possível avistar os casacos empoeirados guardados há meses no fundo dos armários. Os carros se dividem entre a Rota do Sol e o centro pela rua Sinimbu. Em uma tentativa de fugir do tráfego da ERS122, busco uma rota alternativa pela BR-116, apenas 2 km a mais do meu destino final. Ainda assim, deparo-me com obras intermináveis na estrada. O capim cresce alto nos acostamentos barrando a visão dos motoristas de um trânsito que raramente fica vazio. A temperatura sobe para 19º C às 9h45. As máscaras já caíram, menos no Hospital Geral. Nele, vida e morte caminham de mãos dadas. Na sua frente, ao distanciar de uma avenida, as vidas foram interrompidas pelas grades do Presídio Regional. Do lado de trás, a vida prospera para os futuros profissionais que sairão formados pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), a mantenedora do hospital. Os 17.127 m2 de área são distribuídos nos seis
andares que abrigam, cada qual, uma ou duas alas. Após nove anos de construção, em 1998 abriram suas portas para a população caxiense e região. Do estado gaúcho, 49 municípios dirigem-se ao centro oncológico do HG. Às 9h52 a Portaria Administrativa anuncia a minha chegada. Em seguida, um homem se aproxima e puxa conversa na cabine como quem se encontra no elevador do trabalho ou na fila de banco.
1º andar Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, o térreo é invadido pelo barulho de panelas e travessas batendo na cozinha hospitalar. Perto dali, pacientes aguardam na recepção serem chamados por um dos sete guichês de atendimento. Às 10h13 o silêncio logo é interrompido pela família senta-
da duas fileiras à minha frente. Impacientes com a demora, brincam uns com os outros no desejo de fazer o tempo passar mais rápido. Em volta, espalhados entre cadeiras distanciadas e cabeças baixas, mantêm os olhos mirados nas telas, como quem não quer ser incomodado. Do lado de fora, o carro da Prefeitura de Gramado aproxima-se para buscar duas senhoras, que em passos lentos se direcionam até o veículo. Diferentemente delas, as enfermeiras, com suas roupas claras e pró-pés nos sapatos, atravessam a sala em passos acelerados. Onde a vida de alguém está em jogo, não há tempo para perder. O alto-falante comunica o próximo paciente em som abafado e de difícil compreensão, ao ponto de se olharem entre as cadeiras para ter certeza de qual senha foi chamada.
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n Já aposentado, Airton escolheu passar os próximos anos levando alegria às crianças internadas
quenos se locomovam pelos corredores, para que pelo menos tenham um momento de diversão no dia.
3º andar
2º andar Enquanto o tempo acelera e pede pressa, alguns degraus acima, às 10h25 quase não se ouve ninguém. O andar é equipado com cinco salas de aulas e biblioteca para os alunos de Medicina da UCS. No centro, a capela encontra-se vazia. Desde o início da pandemia, os bancos permanecem com poucos fiéis, por vezes nenhum. Ainda assim, o padre faz questão de realizar missas e rezar os terços todas terças e quintas-feiras, tentando levar alívio e conforto aos familiares que deixam seus entes queridos num quarto de hospital. A alguns metros de distância, mulheres com lenços nas cabeças olham desconfiadas para a porta. Elas esperam por mais uma sessão de quimioterapia. Na sala vizinha, desenhos de animais revestem as quatro paredes brancas da sala.
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Os lápis de cor espalhados sobre a mesa indicam que há pouco crianças passaram por ali. Um minuto depois, o único casal chama o filho entretido nos brinquedos para uma consulta. Pelo andar já podemos imaginar o diagnóstico. Quando abatidos, o hospital disponibiliza carros de brinquedo para que os pe-
A vida é tão rara. 10h29, o som de um salto alto ecoa pelos corredores. Era a médica do centro obstétrico chegando com seu café na mão. Na sala de espera, mães aguardam com a cabeça apoiada nas paredes segurando o sono. Outro sapato ganha espaço na cena. Um homem, já tomado pela calvície, de camisa polo bordô, calça de alfaiataria e casaco nas pernas, bate seus sapatos marrons de couro em ritmo acelerado e contínuo. Uma olhada para o relógio de pulso e outra para a porta. 10h39 as mãos se cruzam em forma de oração. Os olhos fecham à medida que o cansaço vence. Ao seu lado, a mala e a mochila cor de rosa tomam conta do lugar, anunciando a chegada de um novo integrante na família. Era Eloá, a primeira filha do casal. Naturais de Alagoas, José Pereira, 47, e Edileide Sousa, 35, vieram para o sul há 15 anos através de um conhecido. Hoje comerciantes, esperam a hora para receber em seus braços a pequena que ainda na tarde anterior mostrava sinais de que queria vir ao mundo uma semana antes do planejado.
4º andar Enquanto todo mundo espera a cura do mal, atrás de uma pilha de brinquedos, um mais colorido que o outro, esconde-se Airton José dos Passos Da Silva, 56. Um dos poucos voluntários que restaram no Hospital Geral.
Por mais de 15 anos atuou como técnico de enfermagem e há 17 perdeu um dos seus quatro filhos, Fernando, para a leucemia. Fruto do segundo casamento – hoje terminado –, o jovem foi logo diagnosticado com a doença após chegar em casa pálido e com caroços pelo corpo. “Aí começou o calvário”, conta Airton, que não se conforma com a perda do filho que precisava apenas de um transplante de medula para sobreviver – o que, segundo ele, foi negado por motivos religiosos da família da ex-esposa. Se alguém, assim como eu, esperava um homem amargo, muito pelo contrário. Airton afirma não ter tempo para isso. Voluntário há seis anos, dedica-se a levar alegria para as crianças internadas no hospital e conforto aos pais aflitos. “As pessoas vêm até aqui levar os filhos brincar e acabam desabafando. Alguém precisa estar forte e mostrar apoio. E eu
sou essa pessoa. Mas a coisa é doída. Há poucos dias perdemos um recém-nascido, a gente sente, só quem não tem coração.” Junto a ele, a estudante de Educação Física Camila Pin, 30, trabalha todas as manhãs como responsável pelo setor da Recreação Terapêutica. Entre as estantes entulhadas de brinquedos, o videogame e o slime são os mais disputados entre as crianças. Quando elas não aparecem na sala, a dupla sai batendo de porta em porta com seus jalecos verde e roxo. “Antes, quando aparecíamos de branco era uma gritaria, um choro imenso. Hoje não. Agora eles vêm e te abraçam, sentam no seu colo, riem alto. Ver aquelas crianças sorrir é inexplicável”, descreve Airton. Do outro lado, no mesmo andar, já não se pode dizer o mesmo. O espaço é ocupado pela Pravivis Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual, o primeiro centro de referência infantojuvenil. Por razões já subentendidas, o acesso é restrito, assim como nos degraus seguintes.
Alguém precisa estar forte e mostrar apoio. E eu sou essa pessoa. Mas a coisa é doída”, diz Airton
5º andar A gente espera do mundo e o mundo espera de nós. No andar em que o silêncio paira no
ar, junto dele a esperança por uma doação. O Banco de Olhos encontra-se à frente dos quartos de portas fechadas da UTI pediátrica. O mesmo acontece na Unidade de Internação Oncológica. Pacientes presos à cama aguardam se livrar das amarras dos equipamentos hospitalares e sonham em deitar-se no conforto de suas casas, longe das paredes brancas e gélidas.
6º andar Será que temos esse tempo pra perder? É preciso ter Paciência, como sugere a música de Lenine, cujos versos espalhamos em itálico ao longo deste texto. Os últimos degraus do HG são para aqueles que ganharam uma segunda chance. Seja qual for o trauma que os fizeram chegar até ali, sabem que o mundo lá fora gira cada vez mais veloz. A vida tão rara, a vida não para. E um dia poderão vivê-la sem ser através de uma vidraça. Até lá as portas se mantêm fechadas. 11h05, é hora de terminar a visita. n
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AVANTE, FILHOS DE FÉ TEXTO E FOTOS DE TAINARA PIETROBELLI
10 ANOS DA SEARA DE UMBANDA CACIQUE OGUM DA LUA SE RESUMEM A CARIDADE, FÉ E RESPEITO
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m abraço de mãe, um desabafo, a libertação de um problema que tirava o sono, o perfume preferido… todas as coisas boas, não são tão boas quando comparadas ao abraço do Pai Ogum. A Seara de Umbanda Cacique Ogum da Lua fica em São Leopoldo, próximo da Unisinos, com uma vizinhança tranquila, em uma casa que, a cada segunda-feira, abre as portas para quem quiser entrar. Todos são bem-vindos e, por mais difícil que seja o problema, todo trabalho realizado é em nome da caridade e do amor. Nada se cobra, mas tudo se doa: tempo, dedicação, acolhimento e principalmente respeito. Todas as despesas são supridas com o empenho dos médiuns e de Maiquel, que é o Sacerdote de Umbanda, papel mais conhecido como dirigente da casa. 25 de abril de 2022 foi dia de festa na casa. A celebração comemorava o aniversário de 10 anos. Entrar na Seara desperta sentidos e sentimentos inexplicáveis. A energia é diferente, e a musicalidade contagiante afasta qualquer pensamento negativo. Ao entrar na terreira, o primeiro ponto que chama a atenção é o congá, como é chamado o altar onde todas as imagens dos Orixás, santos e elementos importantes da religião ficam colocados. Na Seara, o congá é feito de pedras e coberto por muitas velas, que o tornam ainda mais exuberante e imponente. Na Umbanda não existe preconceito religioso com as outras doutrinas. É possível observar imagens de divindades de diversas culturas e crenças. Tudo contribui para uma corrente ainda mais forte energeticamente. Enxergar essa miscelânea de imagens religiosas faz lembrar a mistura de crenças e tradições que compõem o Brasil, tão rico culturalmente. Depois do impacto visual causado pelo altar e por todas as imagens dispostas também em quadros nas paredes, a movimentação dos médiuns desperta curiosidade. São muitos, todos usam vestes brancas e demonstram um mix de n Pai Maiquel agradece, alegria e concentração. A terreira é dividida entre o espaço em frente ao congá, pelo aniversário de uma de acesso apenas para os trabalhadores da casa e a área em década da Seara
que os visitantes se sentam para assistir à sessão. Após algumas preces, Maiquel, o dirigente da casa, “recebe” a entidade Cacique Ogum da Lua. É Pai Ogum que dá início à chegada de todas as outras entidades, que trabalham através dos médiuns da casa. Ele cumprimenta cada um com muita alegria, mas demonstra profundo respeito e intimidade com todos. Pai Ogum é a entidade que dá nome à Seara, e é recebido por Maiquel, homem forte, com cabelo e barba ruiva e um semblante sempre tranquilo e simpático. Ver o dirigente da casa, mesmo antes da incorporação, transmite paz. É como se a nossa energia se elevasse, em sintonia com a dele. Começou sua trajetória na Umbanda em 2000. Na época, passou a ter sonhos com o dirigente espiritual de uma casa de religião, onde havia sido batizado quando bebê. Maiquel nem sabia desse batismo, e descobriu após relatar os sonhos para familiares. Após isso, foi convidado para conhecer uma casa e, depois de visitar outras, iniciou o desenvolvimento mediúnico poucos meses depois. Em 2011, com mais de uma década de trabalho como médium, se aprontou na religião como Sacerdote de Umbanda, e fundou a Seara em 2 de abril de 2012.
A chegada das entidades A etapa que antecede a incorporação na Seara consiste em todos os médiuns deitados no chão, “fir-
mando cabeça”, expressão usada para os momentos em que se busca extrema concentração e conexão com os guias. Enquanto se preparam para receber as entidades, Pai Ogum fala diversas palavras que são difíceis de entender para um leigo, mas uma linguagem facilmente entendida entre eles. Durante todo esse processo, a música é a estrela da noite. Os pontos de Umbanda são cantados por quem assiste e entoados com uma vibração além do comum pelos dois tamboreiros da casa. O batuque é tão intenso que parece influenciar até mesmo o ritmo das batidas do nosso coração. Um dos primeiros momentos após a chegada das entidades na terreira é marcado pela defumação, uma forma de purificar todas as pessoas, limpando-as de toda a energia negativa. Para isso, um recipiente de ferro é passado em torno de cada um, com a fumaça resultante de algumas ervas queimadas em brasa. Tudo é feito ao som de um ponto específico utilizado nesse momento: “Oi corre ronda Pai Ogum Filhos quer se defumar A Umbanda tem fundamento É preciso preparar Tem essência Benjoim Alecrim e Alfazema Defumai filhos de fé Com as ervas da Jurema” Após a defumação, as entidades dançam, festejam e são servidas pelos cambonos, ajudantes da casa que acendem os charutos
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e servem as bebidas, além de mediar o contato do público com os médiuns no momento do passe. O clima, por parte de quem assiste, é de alegria, mas ao mesmo tempo, de uma admiração e atenção muito grandes. Sabe-se que, apesar de haver tanta música e danças, o local é de trabalho em prol da caridade. É por esse motivo que tantos médiuns assumem a responsabilidade de atuar na casa, levando para a vida o amor pela Umbanda.
A Umbanda é paz e amor “Todo trabalho na terreira é de caridade, não cobramos por bandeja ou axé, é um lugar para pessoas que querem fazer a diferença, querem ajudar o próximo e seguir uma orientação das suas entidades, porque elas precisam dessa luz para evoluir”, ressalta Maiquel. Ele não trabalha com nenhum tipo de atendimento, como tarô e búzios, apenas a caridade, que é posta em prática todas as segundas-feiras. Nas terças, a casa abre para o desenvolvimento dos médiuns, estudos e amparo dos trabalhadores da casa, que precisam estar bem para conseguirem ajudar o próximo. Uma pessoa que segue a Umbanda adota o mesmo estilo de vida dentro e fora da casa. Uma conexão de respeito e valores, seja com a sociedade ou com as entidades, como cita o dirigente da casa. “Tudo que eu falar hoje, se a minha entidade falar diferente,
n Momento de
concentração em que os médiuns se preparam para receber as entidades
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o que prevalece é o que ela diz. Na nossa doutrina temos intuições, são nossos guias próximos que dão algumas informações.”
Música, batuque, energia O papel da música dentro da Umbanda funciona como uma trilha sonora. Os pontos, como são chamadas as músicas, possuem um papel fundamental para a corrente durante as sessões, como explica Jandrey Schmidt, médium e tamboreiro na Seara. Durante as sessões, há dois tamboreiros, que ficam posicionados ao lado da porta de entrada da casa, na ponta da corrente, círculo formado por todos os médiuns. Ao longo da noite, as entidades, uma a uma, vão até os tamboreiros para dançar, cantar ou se comunicar com eles. A trajetória do músico na Umbanda começou logo que o espaço da Seara foi montado. Na época, era preciso ajuda de voluntários para a reforma do local, e foi aí que ele se ofereceu para ajudar. Esse primeiro contato fez o jovem se interessar pela religião, e logo começou a se desenvolver. A música é o ponto alto de uma sessão de Umbanda. É como se fosse uma trilha sonora que emociona, energiza e conecta todos os fiéis aos Orixás. O tamboreiro tem uma missão muito importante. É como se destinasse o caminho que a corrente irá seguir, através da energia dos pontos. “Se estivermos em uma sessão
e tocarmos o ponto errado, quebra toda a energia da sessão, e as entidades podem ir embora. A música não só harmoniza, como também é um guia. Se identifica muito bem quando é um ponto de abertura, de descarrego e até mesmo um ponto de equilíbrio, para manter a energia estabilizada. Por meio da música é possível atrair apenas os espíritos bem intencionados, afastando aqueles que buscam somente consumir vícios. Mantendo a constância da música, conseguimos manter a harmonia dos trabalhos”, explica Jandrey. O Hino da Umbanda, composição de Jose Manoel Alves, é um ponto obrigatório nas sessões, pois carrega em sua letra a essência do amor ao próximo, que é a base para a religião: “A umbanda é paz e amor É um mundo cheio de luz É a força que nos dá vida E a grandeza nos conduz Avante, filhos de fé Com a nossa lei não há Levando ao mundo inteiro A bandeira de Oxalá”
Orixás: quem são eles? Antes de entrar em um centro de Umbanda e assistir a uma sessão, qualquer ideia sobre quem são os Orixás é inferior à visão que se tem após vivenciar a presença deles. A chegada das entidades na casa acontece através da incorporação dos médiuns, que se desenvolveram para conseguir conectar-se a entidades específicas. Observando atentamente cada etapa de uma sessão, é nítida a diferença entre um médium antes e depois do processo de incorporação. A expressão muda, assim como a forma de andar, a voz e a língua falada. Dançam rapidamente na terreira, na maior parte do tempo, com os olhos fechados. Aparentam uma concentração enorme, e mesmo sem ver, não esbarram um no outro. Na Seara, é possível retirar senhas para o passe, momento em que o público pode conversar com as
n Médiuns dançam
ao som dos pontos de umbanda; Jandrey (D) é um dos tamboreiros, que possuem papel fundamental na religião; Pai Maiquel e os médiuns fazem preces antes de incorporar entidades e com o Pai Ogum. O passe é como um benzimento, onde se recebe a bênção das entidades, assim como aconselhamentos. O passe é o melhor momento da visita à casa. A conversa rápida, mas precisa, sempre traz informações inesperadas, garante um alívio inexplicável, mesmo diante de grandes problemas. O diálogo é, muitas vezes, difícil de compreender. Nas palavras diferentes, percebe-se que a entidade é experiente, muitas vezes idosa, e transparece isso em sua fala, mesmo o médium sendo jovem. Foi em um destes momentos que Jandrey, após quebrar uma perna e ouvir do médico que levaria 12 meses para voltar a andar, escutou de uma entidade na sessão de Exu que dentro de um mês estaria bem, e voltaria ali para servi-la. O tamboreiro afirma que esse caso foi o mais marcante ao longo dos anos trabalhando na casa. Apesar de ter desconfiado da afirmação, devido à gravidade do problema, ele conta que após o passe começou a se recuperar rapidamente, até a melhora total. “Na época eu achei meio difícil, e contei isso pra minha mãe. Ela até achou que eu tinha entendido errado. Fui na mesma semana ao médico, ele olhou meu raio x
anterior, onde todos os meus ligamentos estavam rompidos, e comparou com o novo. Meus ligamentos estavam normais, como se nunca tivessem sido rompidos. Na quarta semana eu estava servindo aquela entidade na Umbanda. Isso com certeza foi o momento mais impactante”, conta Jandrey. Na Seara, existem três tipos de sessões, que são intercaladas entre si ao longo do mês: as sessões de Caboclos, onde as entidades que chegam para trabalhar são, em sua maioria, espíritos indígenas; as sessões dos Pretos Velhos, que são espíritos que se apresentam como velhos africanos que viveram nas senzalas, como escravizados; e, por fim, as sessões de Exu, o Orixá mais discriminado fora da religião. As entidades que chegam para as noites em que as sessões são de Exu possuem um comportamento mais festeiro. Falam alto, dão gargalhadas, bebem e dançam muito. Em cultos evangélicos, o nome de Exu e entidades da sua falange geralmente são associados a espíritos demoníacos, mas esse pensamento é um equívoco. Na verdade, Exu é o Orixá mais semelhante a nós, e auxilia na busca por objetivos materiais, financeiros e amorosos. Por essa semelhança, a divindade possui características como o gosto pela bebida, o cigarro, a dança e a sensualidade.
Ser umbandista é ter amor ao próximo, ser cortês e tratar todo mundo igual”, diz Jandrey
A intolerância religiosa “Ser umbandista é ter amor ao próximo, ser fiel aos princípios e ideais, ser cortês, educado com todos e tratar todo mundo igual. É ser puro de pensamentos, não desejar mal a ninguém.” Apesar do significado da religião, explicado por Jandrey, o
preconceito com o desconhecido é comum. Grande parte da sociedade desconhece seus princípios e suas crenças, e nem faz questão de conhecer. Embora os casos de intolerância religiosa com a Umbanda sempre tenham existido, nos últimos anos essa realidade tem piorado. Parte importante para esse cenário é o domínio de grupos evangélicos ultraconservadores no Brasil. Tais figuras reverberam discursos de ódio contra tudo que “desobedece às leis de Deus” e insistem em julgar aquilo que desconhecem, reconhecendo apenas as suas crenças. Pai Maiquel fala com orgulho que ao longo dos 10 anos da Seara de Umbanda Cacique Ogum da Lua nunca teve problemas relacionados à intolerância religiosa, mas ressalta que é importante ter respeito mútuo, o que nunca faltou com a vizinhança da casa. Para Jandrey, a única forma de diminuir o preconceito é levando conhecimento: “Desde criança, eu tinha essa ideia de querer mostrar para as pessoas como as coisas funcionavam, seja na Católica, na Espírita ou, hoje, na Umbanda, porque não é diferente em nenhum lugar. O preconceito existe pela ignorância, existe pela falta de conhecimento. Estamos quebrando muitas barreiras. É muito importante trazer para as pessoas o que é a Umbanda, porque no fundo todas as religiões buscam o amor ao próximo, o amor à vida.” n
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n O desafio de conciliar
as demandas preenche o dia a dia de Ariane Rocha
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PONTO DE PA
ARTIDA
O MERCADO DE TRABALHO PODE SER DESAFIADOR PARA AQUELES QUE INICIAM A CARREIRA
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TEXTO E FOTOS DE LOHANA SOUZA
sta é a primeira crise econômica e política vivida pelos mais jovens, que estão se adaptando ao atual cenário do Brasil. Vivemos atualmente a inflação, privatizações, sucateamento do ensino público. Acreditamos na mobilidade social e econômica proporcionada pelo ensino superior conquistada em governos anteriores de centro-esquerda. Infelizmente, tapetes vermelhos foram puxados de nossos pés. Uma pandemia mortal e um governo negacionista e autoritário paralisaram, ou adiaram, os planos de quem ainda estava aprendendo a sonhar. A geração mais nova está sobrevivendo em um mercado de trabalho dominado pela terceirização e pelo trabalho informal via aplicativo, em que cada vez menos empresas estão dispostas a contratar funcionários CLT, recusando direitos trabalhistas. A vida adulta nos cobra cada vez mais maturidade. Mas o que é ser maduro em um contexto econômico onde a dependência financeira e a falta de perspectiva empurram pessoas de 30 e 40 anos de volta para a casa dos pais? Isso parece extremamente injusto. Quando eu era criança, minha mãe dizia que eu poderia ser o que eu quisesse. Acredito que essa é uma fala muito usada por muitos pais.
O início da jornada Entre vidros de esmaltes, alicates, algodão, toalhas e livros. Essa é a rotina de Ariane Rocha, 18 anos. A jovem de cabelos longos e castanhos se concentra na finalização da esmaltação vermelha na unha da cliente. A sala adaptada na garagem da família está repleta de utensílios de esmalteria. A dupla, às vezes tripla jornada faz parte da vida da estudante há alguns anos,
conta ela finalizando o trabalho. “Comecei a empreender aos 13 anos. Inicialmente vendia trufas na escola e na igreja. Com esse dinheiro não precisava ser mais tão dependente dos meus pais.” Conforme cresceu, a rotina se intensificou. Como sempre gostou de estética, um dos primeiros cursos foi o de manicure. Ariane conciliava o emprego em um supermercado, aulas na escola Amadeu Rossi, em São Leopoldo, e o trabalho como manicure. “Eu quis logo trabalhar, mas enfrentava a barreira de não ter nenhuma experiência antes. Como se adquire experiência se as empresas não estão dispostas a dar oportunidades?” A rotina atual exige esforços e sacrifícios. Acorda de manhã e atende em média quatro clientes por dia, em casa, no início da semana. O restante da semana trabalha dentro de um salão, no centro da cidade. Os próximos passos incluem novos desafios, e para se animar ela conta que faz parte dos seus dias a música Tudo Bem, da cantora Kellen Byanca. “É bem difícil conciliar tudo, mas, pensando em uma estabilidade financeira, continuo em busca de maior conhecimento na área de estética, agora também estou organizando meu casamento, ainda não está tudo bem, porém tudo vai ficar bem. Eu sou evangélica e tenho muita fé”, explica. “E quando alguém me perguntar se tá tudo bem Por mais que não está, contigo eu sei que vai estar”
Mudança através da educação Quando criança, Ana Souza se tornou uma exímia sonhadora. Ela atribui essa característica à família, que sempre incentivou novos desafios e ensinou que a
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mudança acontecia investindo em educação como uma ferramenta libertadora. Acompanhou de perto a luta da mãe, que é a primeira pessoa a se formar no ensino superior da família, em 2009. A analista de marketing, de 23 anos, com cabelos curtos, lisos e pretos, olhos expressivos, ainda lembra das correções de prova que acompanhava de longe, porém com curiosidade, na sala de casa. “Minha família era muito interessada em garantir que eu não tivesse limitações com relações às minhas perspectivas de mundo.” Ana conciliava até ano passado o trabalho e aulas na UFRGS. A rotina era extremamente cansativa. Acordava às 7h para ir para o trabalho e conseguia retornar para casa somente à meia-noite todos os dias, enquanto finalizava todas as demandas. Para conseguir concluir as atividades, às vezes era necessário abrir mão da vida pessoal e de algumas horas de sono. A jovem conta que se sentia realizando
n Das estradas para o
mundo da tecnologia: Janaína trabalha para empresa multinacional em home office
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uma lista de tarefas infinitas. A conquista do diploma aconteceu em maio de 2022. Uma de suas músicas favoritas é Admirável Gado Novo, sucesso na voz do cantor Zé Ramalho – um dos motivos também é o paralelo com o contexto atual. Para o futuro, a jovem pensa em uma especialização na área de marketing e atuar em outro país. “Vocês que fazem parte dessa massa Que passa dos projetos do futuro É duro tanto que ter que caminhar E dar muito mais do que receber E ter que demostrar sua coragem À margem do que possa parecer” O cenário, em que muito jovens pensam em deixar o país, se repete em várias regiões. Se pudesse, quase a metade (47%) dos jovens brasileiros optaria por viver em um novo local, de acordo com os dados da Fundação Getúlio Vargas. O Brasil foi o país que mais pesquisou no Google pela palavra
“ansiedade” desde janeiro de 2021. Os jovens foram um dos grupos que tiveram a saúde mental mais afetada pela pandemia de acordo com o Datafolha. Sobre o cenário atual para as gerações mais novas que ingressam no mercado, Ana não tem uma visão otimista. Acredita que cada vez mais o trabalho está sendo precarizado, e isso acaba impactando muito a entrada dos mais jovens no mercado de trabalho e gerando ansiedade. No meio da pandemia, ela começou a fazer consultas regulares com a psicóloga, tentando equilibrar mentalmente as atividades da faculdade, o trabalho e o momento completamente atípico que passamos nesses últimos anos. Admite que foi importante o autoconhecimento de pedir ajuda e receber ajuda no momento
O cenário não está tendo condições para a nova geração ingressar e prosperar no mercado”, diz Ana
necessário. “Atualmente nós estamos com índices de desemprego muito altos, e em especial pelo que aconteceu nos últimos dois anos com a pandemia. O cenário político não está tendo condições para que essa nova geração possa ingressar e prosperar no mercado de trabalho”, conclui. Ana também se envolveu no recente projeto de diversidade da empresa multinacional onde atua, em São Leopoldo. Ela acredita que nem sempre todos os grupos da sociedade puderam ser ouvidos, representados ou respeitados da mesma forma, então é importante falar sobre essa pluralidade de realidades para construir projetos que influenciam o futuro.
Da boleia do caminhão à tecnologia avançada Após quase oito anos de jornada nas estradas do Brasil, Janaína Lima da Silva mudou completamente de vida ao in-
gressar no mundo da n Ana iniciou como solveu ir em busca de especialização para tecnologia. Como ca- estagiária e atualmente conseguir mudar de profissão. minhoneira, ela leva- é analista na área de Encontrou no Senac uma nova oporva mercadorias para marketing de uma tunidade através do curso Java, e em segrandes marcas. O pri- empresa multinacional guida o curso técnico de desenvolvimento. meiro caminhão foi um de São Leopoldo Assim, conseguiu uma oportunidade em presente dos pais aos uma empresa de Novo Hamburgo, onde 18 anos. Conheceu inúmeros atuou por nove meses e ganhou experiência. Com lugares e culturas entregando mais confiança, conseguiu espaço em uma empreencomendas no sul do país até sa multinacional do ramo. Atua participando da conseguir adquirir seu próprio análise de desenvolvimento dos sistemas. O goscaminhão aos 21 anos. Na estrada, to pela música continua, mas agora um dos seus o que mais lhe fazia companhia hobbies é prestar mais atenção na trilha sonora era a música. Com gosto ecléti- dos filmes. Os preferidos são Senhor dos Anéis, co, gostava de descobrir novas Piratas do Caribe e Orgulho e Preconceito. canções através do rádio. Janaína sonha em ir cada vez mais longe dentro A jovem, que agora tem 32 da área escolhida e também pensa em mudar de país. anos, passou por toda essa troca “Não pretendo mais mudar de área, busco cada vez de carreira nos últimos quatro mais conhecimento para me desenvolver dentro da emanos. O pensamento de mudar presa onde estou e, consequentemente, ter mais oporcompletamente de vida se tor- tunidades profissionais, inclusive fora do país. Meu nou cada vez mais frequente sonho é morar no Canadá”, finaliza Janaína. em sua mente. A precarização Entrar na vida adulta sempre teve a ver com do trabalho, a baixa remune- modificar expectativas: do que ela é e do que ela ração e a segurança foram as- pode trazer. Ajustamos nossos objetivos: recalipectos que pesaram para essa bramos a compreensão muito tranquilizadora dos decisão. “Eu queria um salário nossos pais e conselheiros sobre o mercado de tramais alto, um pouco mais de balho versus a realidade da nossa própria expetranquilidade para criar minhas riência nele, mas também chegamos a uma visão filhas e uma segurança maior diferente e nossa. Afinal, ser adulto não é glamoroso para o futuro.” Foi quando re- e nem fácil (pelo menos não no começo). n
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HISTÓRIA QUE NÃO PA pi . 36
ARA DE TOCAR
ALÉM DE LIGAÇÕES E NOTIFICAÇÕES, O ROCK CLÁSSICO EMBALA A ROTINA DA PRIMEIRA LOJA DEDICADA A CELULARES DE CAMPO BOM TEXTO E FOTOS DE TYNAN BARCELOS
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r ao cinema para ver um filme e não comer pipoca ou assistir apenas a um episódio daquela série em que se está viciado é tão improvável quanto imaginar a vida das pessoas atualmente sem o celular, também conhecido como: smartphone. Em Campo Bom, uma cidadezinha extremamente pequena em termos geográficos, porém, com uma população que ultrapassa os 60 mil habitantes e uma história ligada à imigração alemã no estado e à ascensão da indústria calçadista na segunda metade do século 20, três pessoas ganharam e ganham a vida basicamente lidando com celulares. Na grande maioria do tempo, consertando diferentes modelos de diferentes épocas. Mas não é só isso. Tudo começou com Martin Lopez Pinsent, um argentino de 52 anos que nasceu em Buenos Aires. “Sou portenho”, define o próprio. Martin veio para Porto Alegre no final dos anos 1990 para trabalhar com vendas. Apaixonou-se por uma mulher que era de Campo Bom e, no mesmo período, começou a se interessar por tudo que envolvia celulares. Foi, então, no início dos anos 2000, que ele saiu do mundo das vendas e adentrou o universo dos eletrônicos. Nesse momento nasceu a Johnny Cel, a primeira loja especializada em consertos de celulares e outros eletrônicos de Campo Bom.
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Fui duas vezes até a loja, que fica na avenida Brasil, a principal e mais movimentada rua da cidade. Mas ela não foi sempre lá. A Johnny Cel já existiu em dois diferentes lugares, todos sempre no centro da cidade, perto da igreja Santa Teresinha. Logo ao chegar, quem quer consertar o seu celular ou quer comprar algum acessório ou equipamento seminovo (a loja não vende equipamentos novos, não vale a pena) depara com um “museu do celular” na vitrine. Lá estão pendurados em uma pequena construção de madeira, certamente, mais de 50 modelos de celulares de anos e décadas passadas, alguns tão antigos quanto a Johnny Cel e o próprio Martin. O museu atrai alguns olhares curiosos de quem passa pela calçada, como os de um casal que resolveu dar uma parada na vitrine para conferir se algum daqueles modelos simpáticos já havia passado por suas mãos. Uma coisa é certa na Johnny Cel: independentemente do momento em que você for lá, estará tocando ao fundo da loja algum rock internacional clássico. E isso dá um certo tom único para o local. Survivor, Metallica, Dire Straits e Creedence Clearwater Revival foram alguns dos sons que “passaram” por lá nos dois dias. Além das músicas, o que embala os mais de 20 anos de existência da loja, principalmente, são as histórias, inclusive, do próprio nome “Johnny Cel”. Martin, o argentino, muitas vezes definido de forma errada por alguns clientes como “o paraguaio” ou “o chileno”, é um homem alto, de cabelos loiros e porte físico atlético. Sempre gostou de rugby - um dos esportes mais populares na Argentina, que já rendeu alguns momentos históricos para o país, como a vitória sobre a temida e poderosa seleção da Nova Zelândia, os “All Blacks”, em 2020. Antes de abrir a loja, quando ainda trabalhava na capital gaúcha, Martin sempre penteava seu cabelo para trás, o que o deixava extremamente parecido com o personagem do desenho animado Johnny Bravo, da Cartoon Network. Johnny pra cá, Johnny pra lá. O apelido pegou. Ao abrir a loja, talvez, a única cer-
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n A Johnny Cel está localizada
na principal avenida de Campo Bom. Em uma vitrine, diversos modelos de celulares antigos chamam a atenção de quem passa pela calçada
teza que Martin tinha era o nome do lugar. Quem conta essa história é Everton Scholles, que tem 32 anos de vida, sendo 18 deles dedicados à Johnny Cel. Desde meados de 2014, Everton é responsável pelos consertos, mas começou entregando panfletos da loja. Muitos panfletos. Segundo ele, mais de meio milhão. E ele era um especialista, conta Martin aos risos: ”Uma vez ele estava entregando panfletos no Centro. Me entregou um e saiu andando. Não viu que era eu. Eu tive que ir atrás e chamar ele. Nisso, ele pegou o panfleto de volta e voltou a entregar para outras pessoas. Não queria desperdiçar nenhum”. Everton saiu do panfleto para o conserto aprendendo com Martin e alguns cursos. Começou com celulares antigos, os “tijolões”, e foi seguindo os novos lançamentos, os smartphones e as telas touch. A loja sempre tem clientes novos, porém, conseguiu também manter uma relação de confiança com alguns clientes antigos, uma “carteira fiel”, explica Lucas Alves, 33 anos, que trabalha no balcão. Ele também não está há pouco tempo ali: 11 anos até o momento. Antes de trabalhar, Lucas frequentava a Johnny Cel quando ela era também uma lan house, entre 2008 e 2013, época em que muita gente saía de casa para buscar um computador com acesso à internet rápida. A loja chegou a ter mais de 30 computadores, todos conectados em uma rede de 10 Mega, números absurdos para a época, hoje cômicos. Para se ter uma ideia, em 2022 uma casa qualquer abriga roteadores com velocidades de 300 a 400 mega. Os anos passaram, algumas tendências apareceram e depois sumiram, porém, o celular sempre esteve lá como principal aparelho, seja de consertos, vendas e histórias. Hoje, as pessoas não conseguem viver mais sem celulares, por mais que seja por algumas horas. “Geralmente, os consertos são rápidos, mas, se eu digo que pode demorar quatro horas, por exemplo, tem gente que fica aqui sentado esperando”, conta Everton. Já chegaram na loja alguns clientes pedindo um “atestado” de não funcionamento do aparelho, pois algumas mensagens e informações podiam ser comprometedoras. “Me dá um jeito de dizer que esse celular não tem conserto”, certa vez foi um dos pedidos. Da mesma forma, Martin já precisou lidar com alguns casos e clientes exóticos. Em um momento, tudo começou com uma placa que ficava na frente da loja, com a mensagem “assistência 24 horas”. Foi o que bastou para ele receber uma ligação do prefeito da cidade, às 3h da madrugada de um sábado, com uma missão: consertar um Motorola que estava com a tela quebrada. Martin consertou e cobrou R$ 300. Outra vez o “culpado” foram os panfletos. Colocar panfletos em telefones públicos - popularmente conhecidos como orelhões - ainda era uma
prática muito comum e vantajosa na primeira década do século 21, pois muitas pessoas usavam o aparelho fixo, devido ao alto valor cobrado pelas operadoras de celular na época. Ao achar o contato e endereço, um homem que estava muito bêbado resolveu conhecer o tal “Johnny Cel”, levando consigo, literalmente, metade do orelhão quebrado nas costas. Chegando na loja de forma cambaleante, o homem tinha apenas uma pergunta: “É aqui que fica a Johnny Cel?”. Martin falou que não e indicou a loja “roxa”, que ficava mais abaixo na avenida, a concorrente Vivo. Certamente, histórias ficaram de fora das lembranças de Martin, Lucas e Everton. Algumas mais comuns e outras extremamente bizarras. E assim é com os celulares e smartphones. Pessoas ganham a vida com os aparelhos. Trabalham, se comunicam, pedem comida, pedem carros para se locomover, fazem transferências bancárias e até algumas outras tarefas que talvez não saibamos. Algumas outras pessoas perdem com os aparelhos: saúde mental e física, momentos em família ou com os amigos. As coisas acontecem sob o som dos celulares, sejam as notificações ou ligações. No fim das contas, ele é o som onipresente – o som que está em todos os lugares. Enquanto isso, lá em Campo Bom, Everton e Lucas seguem consertando - ou tentando consertar - diversos celulares e colecionando diferentes histórias. Martin já não está mais tanto na loja. Está de férias por tempo indeterminado em sua chácara que fica em Sapiranga, município ao lado de Campo Bom. Ele a construiu no período da pandemia de Covid-19. O celular deu tudo a Martin. Deu de comer aos seus cinco filhos, como ele mesmo reconhece. Mas a Johnny Cel agora está em boas mãos, pois Martin precisa descansar. n
Se eu digo que pode demorar quatro horas, tem gente que fica sentado esperando”, conta Everton
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RIMAS DE SÃO HELL
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EVENTO QUE OCORRE DESDE 2012 REÚNE ADEPTOS DA CULTURA HIP-HOP EM SÃO LEOPOLDO TEXTO E FOTOS DE ARTHUR SCHNEIDER
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ra um final de um domingo chuvoso na cidade de São Leopoldo, poucas pessoas na rua, tudo muito calmo pelas redondezas. Porém, ao lado da estação São Leopoldo da Trensurb, no local denominado como “O palco”, havia muitos jovens reunidos, fazendo rimas ao som de caixas de som, se preparando para o início de mais uma Batalha São Hell. Eram 17h30, e o começo seria apenas às 19h30, devido à presença de MCs de outras localidades. As pessoas estavam em grupos, alguns fazendo rimas, outros apenas conversando e bebendo. Eu cheguei ao local junto do casal Lucas Fraga e Vanessa Driemeier. Ele mora em São Leopoldo e participa há alguns anos das batalhas, é uma pessoa muito tranquila, gosta de passar seu tempo curtindo com seus amigos ou então jogando videogame com eles.
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Ela também é de São Leopoldo e costuma vir junto de Lucas, para assistir suas batalhas e apoiá-lo. É uma pessoa muito animada e que gosta de aproveitar a vida o máximo possível. Vanessa buscou me deixar por dentro sobre os participantes do dia e me informou que essa Batalha São Hell iria reunir MCs de vários municípios diferentes do estado, sendo chamada de “edição Cantos do RS”. Consegui conhecer alguns MCs e busquei observar como os grupos se comportavam, com isso pude ver o porquê de eles se denominarem uma “família”. Grande parte dos indivíduos que costumam ir, se conhecem e se consideram amigos. São muito calorosos entre si, mas também são muito receptivos com pessoas novas, correspondendo ao que os organizadores defendem de ser um espaço acolhedor, onde quem tem interesse pode participar ou apenas acompanhar as batalhas, sendo assim um evento aberto à comunidade de São Leopoldo e região. “O palco”, local onde ocorrem as batalhas, por estar conectado à estação São Leopoldo da Trensurb, possui características estruturais semelhantes a ela. No centro dele, existe uma estrutura que é parecida com uma escada de um degrau no formato de um retângulo, e por ter essa elevação, acaba por se tornar semelhante a um palco. Atrás dessa parte tem uma parede, com uma porta de vidro, que deve levar até a parte interna da estação. Essa parede está cheia de pixações coloridas, é possível encontrar toda as cores do arco-íris nela. Também se destaca a presença de alguns trens antigos, que pertencem ao Museu do Trem de São Leopoldo, que fica ao lado do local. Perto do horário combinado para o início do festejo, as pessoas começam a se reunir ao redor do palco, fazendo um formato de uma lua. No canto fica o DJ, que coloca as músicas para fazer a batida das batalhas. Logo surgem dois dos organizadores para dar início na disputa, João Wesley (JW), de 25 anos, e Braian Gehlen, de 33 anos. JW é quem apresenta, sempre com seu caderno de anotações em mãos, para organizar os chaveamentos. Busca a todo instante envolver a torcida com o evento, canta algumas músicas e a torcida responde, como
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o trecho que ele usa no início das registrada nos encontros, auxilia na motivação de todos, batalhas: “Isso é batalha São Hell, cantando outras músicas características de outras edié rima a todo instante, o que vocês ções e dando auxílio para JW quando necessário. querem ver?”. A torcida responde: Nessa noite, havia 42 MCs de alguns municípios “Sangueee!!!”. Outro trecho que da região, e isso acabou obrigando a se reunirem em eles cantam com a torcida é assim: trios. O de Lucas era considerado o da casa, pois reunia “Se vocês amam essa cultrês participantes de São Leopoldo: o próprio tura, como eu amo essa n Lucas Fraga com Lucas; Marco Mot, um dos organizadores cultura, grita hip”, e a tor- o microfone na mão, da batalha, sempre com a sua longa barba e cida “Hop”, e repete mais rimando com seu uma touca ou boné; e Conti, o que possuía duas vezes. Já o sociólogo trio, na batalha da mais desenvoltura entre os três, sempre busBraian, com sua camisa do primeira fase contra cava mexer com a torcida. Os outros grupos Grêmio, que já é sua marca a equipe de Igrejinha tinham o nome de sua cidade, região ou gru-
po, como os dois de Igrejinha, da Capital, de Caxias, o LGBTQIA+, Metropolitana, entre outros. Lucas buscou me explicar sobre como funcionavam as batalhas. A modalidade utilizada nesse dia seria a chamada de “40 segundos”, em que o MC tem 40 segundos para tentar desmoralizar com suas rimas o seu adversário. Depois que acaba o tempo, o outro MC possui 40 segundos para responder. Ao final, o apresenta-
Se vocês amam essa cultura, como eu amo essa cultura, grita Hip”, diz JW. E a torcida: “Hop”
dor pede para que a torcida faça barulho para o MC que foi melhor, e o que tiver mais barulho acaba por vencer o round. No seguinte, quem terminou o anterior começa. Ao todo são três rounds, o que vencer mais passa de fase. O trio de Lucas começou enfrentando um dos de Igrejinha. Nessa batalha eles foram superiores e passaram de fase, rimaram com assuntos voltados à religião, devido ao fato de os adversários serem de Igren Trio de Igrejinha jinha, e sobre contra-ataca as rimas desenhos como o famoso Lilo e de Lucas, com JW (no centro), com seu Stich, pelo fato do nome de um caderno à mão dos adversários ser Lilo. Ao longo da batalha, ocorreram problemas técnicos, devido às caixas de som do DJ desligarem por alguém ter tropeçado no fio e soltado a tomada. Mas isso não foi problema. Para interromper a rima deles, um MC de fora chegou mais próximo dele e fez um beatbox, para dar continuidade na batalha. Ao final, a equipe de Lucas convenceu melhor a torcida e recebeu mais votos. Para a segunda fase, eles iriam enfrentar o outro trio de Igrejinha, mas acabaram tendo um problema: na véspera da batalha, um dos integrantes, o Conti, acabou indo embora antes da hora. Devido a isso, eles tiveram que adiar a vez deles até conseguirem encontrar Conti. Esse fato fez com que Lucas e Mot perdessem um pouco de sua concentração, mesmo assim foram para a batalha. Foram feitas rimas com o tema do desenho dos Jovens Titãs e com características de cada integrante de ambos os grupos. Nessa batalha, o trio de Lucas acabou sendo eliminado. O grupo dos três MCs de igrejinha acabou sendo a revelação da noite, pois chegou até a final, mas acabou perdendo para outra trinca de MCs de São Leopoldo. Agora é continuar treinando, se preparar para o próximo encontro e buscar uma posição melhor nas eliminatórias. Lucas nunca venceu uma Batalha São Hell. Sua melhor posição havia sido uma semifinal, mas o processo é assim. A cada edição ele busca evoluir mais e mais, para que um dia consiga alcançar a vitória. n
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NO COMPASSO DO TRADICIO n Noite de baile
em um CTG de Farroupilha
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HERANÇA CULTURAL GAUCHESCA É PASSADA ADIANTE ATRAVÉS DA MÚSICA E DA DANÇA
ONALISMO TEXTO E FOTOS DE JOÃO TEIXEIRA
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chão é de madeira, as decorações são rústicas, tudo remete à tradição. Palavra que é sinônimo de cultura aqui na serra do Rio Grande do Sul, mais precisamente em Farroupilha. O município serve muito bem à população com sua cultura tradicionalista gaúcha, desde muito tempo. E é nos CTGs que a educação gauchesca inicia cedo. A arte começa nas primeiras horas da manhã. O dia está ensolarado e anima ainda mais o desejo de conhecer a rotina de um dos muitos CTGs espalhados pela cidade. É de dentro do quarto, olhando no espelho, que vejo a moda da tradição. JERÔNIMO PORTOLAN FILHO
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que por sinal fazem agora uma roda de chimarrão, hábito gauchesco extremamente cultivado em nossas terras. As letras soam em meus ouvidos. Frases que abordam mudanças sociais, perdas e ganhos históricos, envolvendo sempre como protagonista o gaúcho. Trazem como coadjuvantes os cavalos, nossa terra, o chão, as comidas e os costumes. Tudo de maneira sutil e cantada. Por fim, saio do CTG, devolvo a pilcha e rumo para casa. Esta grande experiência fez me entender a necessidade do conhecimento do tradicionalismo gaúcho, o envolvimento de jovens desde cedo com a educação cultural e, principalmente, o gosto pelas canções.
A descoberta de uma paixão
A camisa branca bem abotoada, o lenço vermelho amarrado ao pescoço, a bombacha verde militar, guaiaca e a bendita bota com a famosa espora. Assim como um dos muitos peões e prendas, sinto na pele o peso da responsabilidade por carregar nossa cultura. É ao chegar em frente ao galpão que ouço as vibrações das cantigas gaúchas, as vozes e os passos das danças. De dentro do CTG, vivencio as diversas histórias transmitidas pelas músicas que ecoam no ambiente. A simplicidade do salão e a riqueza da cultura, através das decorações, aproximam ainda mais o coração da tradição gaúcha. Não é simplesmente ouvir e gostar do estilo musical. É entender o espírito, os sentimentos e o significado cultural que possuem sob nosso município e estado. Músicas instrumentais que trazem ritmos animados para as danças. Pesquisas apontam que essas trilhas sono-
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ras remetem a uma região com grande prestígio folclórico. Vivenciar mais um dia de ensaio é uma experiência espetacular. A cada compasso da música, um passo novo para aprender. Não pense que ser um artista é fácil. Ainda, ao ouvir as cantigas, nomes e palavras bem diferentes do que estamos acostumados, descobri significados marcantes para uma história de tradições. É como vivenciar um filme a cada estrofe musical e movimentação corporal dos dançarinos. Chegou momento de aprender a dançar. Pausa para troca das turmas – muita gente. Sento-me em um banco rústico e continuo a apreciar a beleza do ensaio e a prestar atenção na música. Sigo acompanhado de jovens
Foi naquele galpão, nas batidas e compassos das músicas gaúchas, que a estudante Camila Casanova, de 20 anos, viu amor pela tradição e cultura de nossa terra. Nos encontramos em frente ao CTG, onde colocou seus pés e alma por cinco anos. Aproximadamente com oito anos de idade Camila pisou pela primeira vez no chão amadeirado, deu olá aos professores e teve o primeiro contato com a dança. Lembra que no começo tudo soava estranho. A menina que possuía dificuldades em aprender qualquer passo não era mais a mesma. Em sua primeira experiência, parecia transportar em seus pés a vivência de uma dançarina. Como em minha primeira vez no CTG, a garota também estranhou os cânticos, seu ritmo e suas palavras “esquisitas”. Tornou sua curiosidade em conhecimento. A cada frase uma palavra nova para pesquisar. Encaixar cada significado era o mais complicado, mas foi assim que Camila deu início ao amor por sua região. “As letras não faziam sentido na minha cabeça”, afirma a jovem quando perguntada sobre as músicas. “Na única experiência que vivenciei em um CTG, também tive dificuldades na compreensão”, respondi. “Foi uma longa jornada até decifrar que cada palavra era relacionada a um momento marcante ou uma expressão da língua gauchesca”, lembra Camila, contando sobre sua pesquisa. “Anotava em meu caderno tudo que eu não entendia, isso com meus 13 anos.” Assim como muitos jovens, Camila só entendeu a importância da dança e da música na sua educação mais tarde. Todas as segundas e quintas-feiras passava uma hora do seu dia lá, dançando, comendo, ouvindo, experienciando a cultura gauchesca. Era chegar no ambiente que a jovem mudava seu ânimo. Coração palpitava, sorriso corria todo seu rosto e os olhos brilhavam. Era hora de colocar a blusa, sua linda saia cor de rosa claro e o sapatinho. Arrumava o cabelo e corria para o palco, como assim era chamado por ela. Pronta,
Ensaiamos dia atrás de dia, sem parar. É cansativo, mas não tem preço”, diz Fernando
estava na hora de aprender um novo passo e compasso. E não eram apenas aulas. Os professores chegavam, divertiam os jovens e ensinavam um pouco da cultura e da dança. Antes de ir embora, reunia-se com a turma para tomar chimarrão, assim como fiz naquele meu encontro com o CTG. Então, Camila estava pronta para ir para casa, pesquisar novas palavras. Assim eram todos os dias. Como no primeiro encontro, minha reunião com Camila ao lado de fora do CTG durou pouco. Fomos convidados a entrar, e a jovem, a dançar. Não era mais a mesma, aliás, fazia cinco anos que não entrava ali. As raízes da dança já não pareciam transportar sua alma na música gaúcha, mas seu canto mostrava ainda a paixão pela cultura. Servido novamente com chimarrão, fiquei ali, sentado outra vez no banco de madeira, somente observando. A educação que a jovem adquiriu com as raízes de sua terra através da musicalização e dança
não vem desde o nascimento, mas com certeza será passada de geração, além de gerar influência em novos jovens.
Cultura veio de berço Diferente do encontro com Camila, desta vez me desloco para um restaurante. Não se engane, ali é palco de outro grande CTG e de muito aprendizado sobre nossa cultura. Ao chegar no ambiente, já conhecido, deparo-me com uma decoração semelhante ao que havia encontrado no outro galpão. Que lugar grande e tradicionalista. A começar por sua comida, com o famoso churrasco de espeto corrido gaúcho. Neste local, encontro-me com Fernando Vassoler, ex-dançarino desta instituição. Me atento no primeiro contato ao seu jeito de caminhar, forma de falar e cumprimentar – bem gaúcho. O jovem conta que passou metade de seus 20 anos envolvido com a instituição. Começou desde cedo a entender a importância da tradição gaudéria para seu crescimento pessoal e cultural. Levou-me para o salão principal, onde ocorrem os ensaios. Mostrou-me todos os títulos que o CTG já adquiriu durante sua trajetória, além de explicar como eram os eventos e campeonatos. “De vários. Todos os anos existe uma grande preparação. Ensaiamos dia atrás de dia, noites a fundo, sem parar”, pontua. “É cansativo, mas não tem preço.”
Em Farroupilha, todos os anos são realizadas festividades relacionadas ao gaúcho. O acampamento gaudério é um dos maiores sucessos. Além de eventos municipais, Fernando já participou de eventos regionais. A maneira que ele olhava para o chão e as paredes, relembrando cada momento, transparecia o amor pela tradição. E assim como Camila, tentou demonstrar em um compasso de música a alegria que o conjunto da estrofe com a dança representava em sua vida. Por fim, assim como me despedi de um momento no coração da tradição e me despedi da Camila, me despeço também de Fernando. Saio do CTG com coração cheio de conhecimento. Agora, um pouco mais gaúcho e apaixonado pelo ritmo e pela dança que envolvem nosso povo. Assim, me preparo, peço para que minha vó faça uma bombacha para que eu possa, nos momentos vagos, revisitar e aproveitar mais tardes no coração da tradição. n
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HISTÓRIAS EM 33 RPM TEXTO E FOTOS DE GABRIEL M. FERRI
O DISCO DE VINIL ESTÁ DE VOLTA. EM LOJAS E FEIRAS, REÚNE OS SAUDOSISTAS E CONQUISTA NOVOS ADMIRADORES
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or mais que o vinil pareça um formato obsoleto para ouvir músicas, muitos ainda o consideram superior ao digital, em uma questão que vai além da qualidade do áudio, mas de ouvir músicas como uma experiência completa. A tecnologia foi inventada em 1948, chegou ao Brasil em 1951 e se popularizou em 1964. Mas, como acontece com toda a tecnologia, começou a cair em desuso, nos anos 90, e se tornou obsoleta nos anos 2000, quando as fábricas da Polygram e Continental encerraram as atividades – a lacuna foi suprida por novas empresas, como a Polysom, em funcionamento desde 2008, e a Vinil Brasil, desde 2017. Hoje, uma comunidade inteira se construiu ao redor da mídia. Em Porto Alegre existem três lojas diferentes que focam apenas na venda do vinil, além dos sebos e outras lojas que não se especializam nele, mas carregam alguns títulos em seus estoques. Para melhor capturar esse sentimento de nostalgia por um formato que não é mais tão popular, resolvi ilustrar esta reportagem com fotos tiradas em uma Pentax P50 Date, uma câmera importada do Japão em 1986, com um filme Kodak ISO 400. No dia 23 de abril, na Capital, acontecia a Feira do Vinil, evento esse que acontece de dois em dois meses. Fui meio despreparado para a feira, pois o planejamento era outro.
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Quando fiquei sabendo que acontecia, fui correndo até a Casa de Cultura Mario Quintana. Como já passavam das 14h, o sol batia nas paredes mais altas do antigo Hotel Majestic e deixava todo o espaço com um tom bem suave de rosa. As paredes do hotel presenciaram várias evoluções dos formatos musicais. Construído enquanto a escolha predominante para ouvir músicas eram as fitas de rolo, o hotel viu essas fitas se transformarem nos discos de goma-laca, depois nos discos de vinil, na fita cassete, no CD, no MP3 e finalmente passando ao streaming. Hoje ele volta a reviver, nem que seja por um breve momento, a glória do vinil. Uma brisa soprava do Rio Jacuí, nada muito forte, o suficiente para refrescar o dia ensolarado de outono. Havia uma grande circulação de pessoas no local. Aqueles que não sabiam que o evento estava acontecendo e passaram apenas para dar uma olhada, aqueles que estavam ali vendendo, aqueles curiosos que compraram seu primeiro vinil e aqueles que estavam ali com o objetivo de aumentar a coleção de discos. Era um fim de semana em que a capital gaúcha já respirava cultura, pois, espalhado por cinemas de Porto Alegre, acontecia o festival de cinema fantástico, o FantasPoa. Ali, comprando discos de vinil, estavam Ricardo Oliveira e Bela Expedito. Juntos, possuem uma coleção de mais de 1.200 títulos em vinil. A admiração pela mídia vai além da apreciação da música, mas também o momento para curtir a música e todo o ritual que envolve ouvir um disco. “Minha visão é que o consumo do vinil, além dessa questão da memória afetiva, é também a construção de um ritual, onde preservamos a hora criativa dos músicos. Eles criaram aquela capa, eles pensaram naquela letra, e assim tu consegues consumir essa parte visual, além da parte sonora. Aí tem toda aquela preparação de pegar o vinil, abrir para ver o encarte com a letra, ter aquela peça maior para colocar ali no porta disco, além do som, né. O som, ele é infinitamente superior a um som de um outro formato, como o CD. Para mim é como se eu estivesse prestando respeito ao artista.” Ricardo e Bela, durante a pandemia, em 2020, resolveram abraçar
esse amor à música e lançaram seu próprio projeto musical, chamado FunnyAlexander. Com o avanço da pandemia em 2020, as recomendações para ficar em casa e as atividades não essenciais movidas para o home office, Ricardo e Bela se encontram com muito tempo livre. Como Ricardo já fazia parte de uma banda, a decisão foi bem fácil, até mesmo porque já era um projeto que tinha sido engavetado por falta de tempo. Em dezembro de 2020 lançaram seu primeiro single, chamado Meu Lugar Comum, e em 11 de março deste ano lançaram seu EP, intitulado Que Sorte Que Tem o Amanhã. Por outro lado, na feira também havia entusiastas como Fred Maihub, de 22 anos, que mesmo sem possuir o equipamento, tem interesse pelo vinil. Ele soube do evento no Instagram e, mesmo sem intenção de comprar alguma coisa, ao chegar lá, comprou no impulso seus primeiros dois discos. Agora pretende caçar mais títulos interessantes para expandir a coleção e dar o próximo passo em direção à compra de um toca-discos. Entre o colecionador com mais de 1.200 títulos e o entusiasta comprando seus primeiros discos, há alguém como Sérgio Pereira, de 56
anos. Sergio comprava vinil quando ainda era o n À esquerda, Sérgio acompanham o álbum. formato mais popular de músicas no Brasil, até Pereira, que voltou a Além disso, é toda uma abandonar o hábito e priorizar a conveniência colecionar discos após preparação para chegar à comprando CDs. Hoje ele voltou a colecionar, e uma pausa que durou Casa de Cultura e vender junto com o que já tinha, possui 150 títulos di- entre a introdução do os discos. Além de verififerentes. Para Sérgio, o vinil é um ritual: “Tirar CD e o retorno do vinil. À car a previsão do tempo, da capa, olhar, apreciar a capa, já que muitas direita, os integrantes da separa o inventário de disvezes é uma obra de arte, colocar no toca-dis- FunnyAlexander, Ricardo cos, assim como equipacos, colocar a agulha e ouvir aquele barulhinho Oliveira e Bela Expedito. mentos. Como vendedor, tradicional. Isso é para quem tem a minha Juntos, acumulam mais já passou por algumas idade, te remonta a sentimentos e a emoções de 1.200 discos de vinil situações engraçadas, que a gente não tem em outro tipo de música”. como na vez que teve que Os sons no evento eram os mais variados, havia negociar com um cliente estrangeiro diversos comentários das pessoas que circulavam: “Isso mesmo sem falar inglês. “Para pese chama nostalgia”, “Isso não é do tempo dela”, “Isso chinchar não foi necessário tradução, eram os discos de vinil, assim que a gente costumava ouvir pois o cliente me entregou uma nota música”, “É o vinil que tá voltando?”. No lugar havia uma de 50 reais e no olhar entendi que música tocando ao fundo, mas como eram diversos sons estava pedindo desconto.” diferentes, ela era irreconhecível, notável apenas era a E você, quando foi a última vez mudança de ritmo. O que parou para ouvir e apreciar uma melhor de todos era a música, sem nenhuma distração e máquina de expres- sem pensar no que vem depois? so, funcionando sem Quando foi a última vez que ouviu parar ao fundo. Não um álbum inteiro, sem acelerar sei se o cheiro de café ou passar as músicas, apreciando realmente estava no cada canção como se fosse a cena ar ou apenas era meu de um filme ou o capítulo de um cérebro associando livro? Com a rotina cada vez mais um cheiro com o som agitada, utilizamos a música como que ouvia. trilha sonora, mas te convido a fazer H á t a m b é m esta reflexão com a arte fonográfica. quem fazia aquele Tirar do canto e trazê-la para o cenevento, como o ven- tro, tentar dar um local de destaque dedor Jorge Luis Machado, de 55 anos, que há mais ou na sua vida. Não importa se for no menos quatro anos vende na feira. Jorge, além de ven- vinil, na fita cassete, naquele velho dedor, é professor de história em Gravataí, e não possui MP3 jogado em alguma gaveta, CD muita dificuldade em conciliar os dois trabalhos. Para ele, ou streaming. Gaste seu tempo oua magia do vinil está no ritual de colocar o disco para tocar, vindo música, e não apenas ouvindo abrir e explorar a capa, os encartes e demais materiais que músicas como passatempo. n
Para Sérgio, vinil é ritual: “Olhar a capa, colocar no toca-discos, ouvir o barulhinho tradicional”
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SINGULAR
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EM NOVO HAMBURGO, PROJETO SOCIAL ENCANTA COM TRILHAS SONORAS QUE AUXILIAM NO DESENVOLVIMENTO DE PESSOAS COM AUTISMO TEXTO DE PATRÍCIA WISNIESKI FOTOS DE KAROLINA BLEY
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egunda-feira, 23 de maio. Enquanto muitos sofrem com mais uma semana que se inicia, um grupo aguarda ansiosamente pelos encontros que vêm com a sua chegada. O dia ensolarado, de clima típico do outono, nem muito frio, nem muito quente, favorece o bom-humor e os sorrisos que estão dispostos no rosto de todos. Em meio à paisagem bonita da Unidade Fundação Evangélica do Instituto Evangélico de Novo Hamburgo (IENH), um prédio aparentemente abandonado e escondido passa a chamar atenção. Em uma das poucas salas abertas, o pequeno Vicente, acompanhado de Lucas, Enzo, Fabrício, Eduardo e do jovem Gabriel, encontra um ambiente acolhedor. São 9h30 e alguns ruídos que mais parecem com um barulho desengonçado começam a ser ouvidos, indicando que a primeira sessão do longo dia de atendimentos do projeto Uma Sinfonia Diferente se inicia. Entre aqueles sons dispersos,
a voz calma e tranquila da musicoterapeuta Graziela Pires coloca todos os participantes em uma mesma sintonia. “A musicoterapia trabalha com os elementos da música: a melodia, o ritmo, a harmonia, não necessariamente tudo junto e no formato de uma música pronta. A gente usa qualquer som que a criança consiga emitir para fazer isso virar uma expressão musical, tanto o repertório de música que ela canta e gosta quanto o improviso”, inicia Graziela, que é coordenadora do projeto no Rio Grande do Sul. Reunindo diversas técnicas terapêuticas, Uma Sinfonia Diferente auxilia no desenvolvimento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista
(TEA). Em sua 4ª edição, o projeto social de Novo Hamburgo é o primeiro e único do estado com a metodologia idealizada pela musicoterapeuta Ana Carolina Steinkopf. Todo trabalho é realizado de forma voluntária e dividido em três grupos: a equipe, que conta com 10 mulheres, entre musicoterapeutas, psicopedagogas, psicólogas e fonoaudiólogas; o time de voluntários, que neste ano é formado por 26 pessoas de diferentes áreas; e a banda, formada por sete músicos, com foco na realização do espetáculo que acontece sempre ao final de cada ano. Quem pensa em sinfonia logo lembra dos arranjos clássicos produzidos por Beethoven. Assim, em um primei-
n Os instrumentos, antes dispostos
no tatame, logo passam a ocupar as mãos de Vicente, Lucas, Eduardo e Enzo. Fabrício, por sua vez, toma conta do teclado durante todo o andamento da sessão
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ro momento, pode parecer estranho que a Sinfonia Diferente não seja tão afinada como seu nome sugere. “Ao contrário da aula de música, que tem como objetivo um produto musical, a musicoterapia trabalha para que o sujeito esteja bem, soando a partir da música, que serve ao sujeito para que ele apareça. Então quem dá o tom, o ritmo, quem organiza é o musicoterapeuta, mas as crianças vão tocar do jeito que elas conseguirem. E isso é muito legal porque cada um se expressa como consegue sem se sentir deslocado, já que não há uma cobrança estética da música”, explica Graziela. A coordenadora do Sinfonia diz que os objetivos do projeto são desenvolver a interação social, a comunicação e a linguagem em pessoas com autismo. “A música por si só já tem esse poder de fazer mudanças no nosso comportamento, no nosso fisiológico. Quando a gente escuta uma música acelerada a tendência é que os nossos batimentos vão ficar mais acelerados, a nossa respiração vai mudar. Então a gente usa esse poder que a música tem em conjunto com técnicas específicas da musicoterapia para acessar o sujeito”, destaca. Graziela esclarece ainda que a música pode ser uma aliada no tratamento daqueles que possuem TEA: “É a ferramenta que o musicoterapeuta tem pra abrir os canais de comunicação que muitas vezes são difíceis de abrir de outra forma, porque eles são extremamente musicais”. Corroborando essa afirmação, o pai de um dos 48 participantes deste ano, César Augusto Fols, conta que Gustavo Fols, de 22 anos, foi diagnosticado aos sete e tem o hiperfoco na música. “Meu filho participa desde a primeira edição e é muito especial para ele. Notamos que o projeto auxilia bastante no comportamento e na sociabilidade”, expõe. O pai diz que sempre ao final de cada encontro é possível perceber que Gustavo fica mais centrado, mais calmo e mais sociável. “Mesmo que ele já seja um adulto, ele ama fazer parte do projeto, participa de todas as músicas”, declara César, que complementa: “Ele é fã número 1 de Chitãozinho e Xororó”. Os benefícios percebidos no filho foram tantos que César decidiu se voluntariar em 2021. Com as habilidades desenvolvidas ao longo dos anos com Gustavo, o pai agora auxilia outras crianças a realizarem as atividades propostas durante os encontros. Também voluntária, Letícia
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n Graziela é
musicoterapeuta e coordena o projeto deste a primeira edição
Santos é estudante de Psicologia e vê no projeto uma possibilidade de expandir os conhecimentos sobre o TEA recebidos em aula. “O Sinfonia é uma ótima ferramenta no auxílio às pessoas com autismo. Já consigo ver um pouquinho de evolução, principalmente da criança que eu observo, na comunicação e na interação com os outros”, expõe. Os atendimentos da 4ª edição do projeto iniciaram há pouco mais de dois meses e vão até outubro, quando ocorre o espetáculo final. Eles acontecem sempre às segundas-feiras e têm duração de 45 minutos, com participantes divididos em pequenos grupos que se estendem ao longo de todo o dia. O grupo das 9h30 é formado por meninos com idades entre 6 e 10 anos – com exceção de Gabriel, que já é mais crescido. Depois, às 11h, é a vez dos “bebês” – como define Graziela –, de 3 a 5 anos. À tarde, são atendidas meninas com idades bem diversificadas, e à noite, o foco são jovens e adultos. De acordo com a musicoterapeuta, essa interação que Letícia percebe vai aumentando na medida em que os participantes vão se vinculando uns aos outros. “Eles interagem muito entre eles e essa interação entre iguais ajuda muito no desenvolvimento, pois eles não
ficam só com adultos, terapeutas e professores, e isso faz com que eles se reconheçam uns nos outros”, comenta Graziela. Cada grupo tem suas singularidades e é composto por autistas verbais e não verbais, com menos ou mais dificuldade de interação e comunicação. O que é unânime entre todos os participantes é o favoritismo das músicas Mestre Mandou e Dança Maluca. Graziela conta que ambas representam o objetivo do projeto e foram criadas justamente para instigar a interação entre eles mesmos e os voluntários. As letras indicam o que eles devem fazer, como dançar, para frente e para trás, pular, correr, dando espaço para que cada um se movimente como quiser. A energia passada pela Dança Maluca é tanta que Dejeane Arrue, diretora musical do espetáculo, lembra com alegria das vezes que participou junto das apresentações. “Eu adoro tocar, cantar, eu me divirto com essa dança porque é isso mesmo, é dança maluca e tu dança do jeito que tu quiser”, expressa, sorrindo muito. Dejeane diz que é visível o quanto os participantes se identificam com a música: “Ela tem muitos elementos que eles adoram e eu vejo que tem um momento que eles soltam tudo, se entregam, e a gente também”. Outra fã da Dança Maluca é Cristiane Magnus, de 25 anos. São 14h e ela chega, toda sorridente, ao lado do pai, Cristiano, ambos uniformizados com camisetas azuis do Uma Sinfonia Diferente. A Cris é autista não verbal, mas isso não a impede de se comunicar com o pequeno grupo que vai se formando enquanto a sessão não inicia. O pai conta que ela iniciou no projeto em 2020 e, por conta da pandemia, este é o primeiro ano em que os encontros são presenciais. “Ela adora fazer parte do Sinfonia. Ela sempre gostou de projetos de música. Desde pequenininha participa de coral, de balé, de todo tipo de atividade com
Cada um se expressa como consegue sem se sentir deslocado”, destaca a musicoterapeuta Graziela
dança e com música”, expressa. O Cris – sim, os dois têm o mesmo apelido – diz que a filha sai muito entusiasmada e faceira dos encontros. Além de gostar da Dança Maluca e do Mestre Mandou, a Cris gosta muito da música Amiguinho, que tem na letra os trechos: “Como é bom saber que você está aqui comigo, juntinho de mim. Saber que a gente tem uma amiga, um amigo sempre. Bem perto assim”. Ela, que também é fã da dupla Sandy e Junior desde pequena, prefere músicas que permitam a movimentação do corpo. “Quanto mais interação tem dela, mais ela gosta”, expõe o pai.
No espetáculo, as estrelas são eles A coordenadora do Sinfonia explica que o espetáculo encerra o ano de trabalhos do projeto e busca dar um retorno para os pais e familiares sobre o que foi feito nos últimos meses de atendimentos. Em 2022, a apresentação está marcada para o dia 16 de outubro e vai acontecer no Teatro Feevale, em Novo Hamburgo. Assim como nos últimos anos, sua realização só é possível porque a iniciativa foi contemplada por editais de apoio à cultura. “Nosso musical é uma sessão pública muito mais bonita e enfeitada. É uma sessão igual à que a gente faz o ano todo, só que com o som alto ligado, com músicos, com plateia, com outros elementos que a gente vai acrescentando aos poucos para eles”, comenta Graziela.
Dejeane – a diretora musical do espetáculo – revela que a apresentação é um momento mágico, pois os participantes se sentem especiais e únicos. Entusiasmada, ela lembra da sensação que teve na primeira edição, quando o musical ocorreu de forma presencial, assim como será neste ano. “A gente está lá como coadjuvantes, eles são os artistas especiais da noite. Foi lindo ver a reação deles no palco, eles interagindo, socializando, foi incrível”, destaca. A musicista diz ainda que não há preço que pague o orgulho que os pais sentem ao verem os filhos brilhando, sem receio de toda a plateia que os assiste. É evidente que a primeira apresentação do Sinfonia marcou a história de todos que fizeram parte dela. A segunda e a terceira não foram menos importantes, pois demandaram tanto trabalho quanto o show presencial. Por conta da pandemia, nas duas edições passadas o musical foi gravado, música por música, família por família, e disponibilizado para todos através do YouTube – e ainda está disponível para quem quiser conferir. As expectativas para este ano são as melhores: Dejeane está ansiosa pelo retorno; Graziela se prepara para compor partes que faltam da música Trem da sinfonia, tema da primeira edição do musical que agora vai ganhar uma continuação; e os pais César e Cristiano veem na apresentação pública uma chance de dar visibilidade para as pessoas com autismo.
A realização de fazer parte do projeto “Eu quero fazer a musicoterapia ser acessível para as pessoas”, pontua Graziela. Ela conta que, desde que se formou, reflete sobre quem não pode pagar pelo tratamento, uma vez que para o desenvolvimento de pessoas com TEA são necessárias muitas formas de terapia. Desse modo ela conheceu a metodologia do Uma Sinfonia Diferente, que traz distintas técnicas terapêuticas integradas. O diferencial do projeto gaúcho é que, além de auxiliar os pacientes, também oferece acolhimento para os pais. “A nossa missão é fazer com que todas as pessoas que participam do Sinfonia tenham uma memória afetiva de que aqui tem um espaço em que eles foram acolhidos e
amados sem serem julgados”, relata. Ela diz que além dos ganhos terapêuticos, que são de fato o objetivo do projeto, há muitos ganhos sociais. “É geralmente onde as famílias têm muita carência, porque são famílias em que os filhos não participam de nada, não são convidados a fazer nada e nem tem amigos na escola, não fazem festa”, afirma Graziela. A musicoterapeuta deseja criar uma comunidade em que essas pessoas tenham amigos e saibam disso, assim como os pais, pois um entende o outro. Toda a produção do Sinfonia é realizada pela Pretas Produções, da qual Graziela e Dejeane fazem parte. Ambas se sentem muito satisfeitas por garantir que o projeto se concretize a cada edição. “Eu me sinto extremamente grata, extremamente feliz e realizada em poder participar desse processo assim tão de perto, de estar envolvida na questão musical, com as crianças, com a produção desse projeto que é um projeto do coração das Pretas. Feliz por poder fazer parte da família de cada um dos participantes”, manifesta Dejeane. Já Graziela destaca que, ainda que seja um grande desafio coordenar um projeto realizado totalmente com o apoio de voluntários, os ganhos percebidos são tantos que todo esforço vale a pena. “O cansaço é só físico, porque os ganhos são muitos. A gente percebe a realização deles, a realização dos voluntários, a realização dos pais. É gratificante poder ver a galera se desenvolvendo e aprendendo junto”, conclui. n
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VIAGEM NO TEMPO O PODER DE VOLTAR AO PASSADO ATRAVÉS DA MÚSICA TEXTO E FOTOS DE ELIAS VARGAS
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uem um dia não imaginou fazer uma viagem no tempo? Voltar ao passado ou até mesmo saber o que será do seu futuro? As ondas musicais fazem o que a ciência ainda não descobriu como fazer, conduzindo nossa mente a relembrar momentos importantes. Enquanto a ciência busca na física e na matemática uma alternativa para fazer o impossível se tornar possível, nosso cérebro tem o poder de levar o indivíduo para qualquer lugar, e com a música, isso é um caminho muito mais acessível. Pois o som que mescla a harmonia e a melodia mexe na alma, acelera as batidas do nosso coração e auxilia, através do som, com que nossos pensamentos viajem para o lugar que a música marcou nossa vida. Para Lucas Cadore Bramont, 33 anos, psicólogo, a música é como um detector de um terreno com provável incidência de fósseis riquíssimos em conteúdos sobre uma certa época da história. “Se eu escutar a música e ela mexer comigo de uma maneira particular, então eu consigo reagir com a lembrança passada”, afirma.
Casamento A palavra casamento nos faz lembrar de festa, igreja, noivos etc. Enfrentar uma caminhada até o altar não deve ser algo simples, mas é digno de muita coragem, pois é um dos momentos que marcam a vida de quem optou por casar na igreja diante de seus convidados. Tudo deve ser escolhido nos mínimos detalhes. Desde o momento em que vai se levantar, as horas no salão de festas, o vestido, o buquet de flores e, é claro, a música de
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n Pamela e Ricardo,
em seu apartamento, preservam as lembranças da cerimônia que os uniu
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Saudade
entrada. Afinal, um casamento sem mú- n A canção Maravilha, novo entendimento de sica seria como um silêncio no deserto. do Raça Negra, é a realidade presente atraPâmela Selleri, 26 anos, auxiliar de música que faz Josias vés dos recortes do pasengenharia, relembra até hoje o momento lembrar de Carina sado”, observa. do casamento. “Meu marido emocionado Poder viajar no no altar, as pessoas queridas presentes naquela oca- tempo e estar de volta no vessião”, conta. A música escolhida por Pâmela “retrata tido, sentir o perfume usado tudo o que sinto pelo meu marido, e que sempre acre- naquela ocasião, lembrar dos ditei encontrar alguém como ele”. Era A Thousand passos que foram dados até o alYears, de Christina Perri. “Representa um momento tar é o que acontece com Pâmela especial e marcante em minha vida, no qual eu e meu quando fecha os olhos e escuta a marido nos tornamos um só”, resume Pâmela. música. “Revivo esse momento. Conforme Lucas Cadore, cada ser humano é Um misto de sentimento que é um território, cada um possui sua experiência de inexplicável. Consigo me olhar vida, e com isso a música faz uma provocação à caminhando na direção do altar. memória que traz uma lembrança boa ou não. “São Esse momento é maravilhoso”, os dados a serem resgatados e considerados neste finaliza.
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Com seu violão, Josias Vargas, 34 anos, técnico em mecânica, gosta de tocar algumas músicas para relaxar quando está de folga, além de se distrair jogando videogame. Mas é com o instrumento musical que seu sorriso vem fácil. A cada verso dedilhado seu semblante fica radiante. O hábito veio do pai, Marcos Antônio Silva de Vargas, que o adquiriu do avô de Josias, Ruy Corrêa de Vargas. “Alguém da minha família vai ter que continuar o legado”, conta, com um sorriso que não mede esforços de mostrar a felicidade ao estar com o violão. Ruy sempre tocava para seus filhos ou nas festas da família. As músicas favoritas eram as gaúchas, como as de Teixerinha, Gildo de Freitas etc. Apesar de não cantar em nenhuma banda ou em CTG, Ruy passou o amor ao violão adiante. “O pai sempre disse que aprendeu sozinho, mas eu duvido”, diz Josias. Quando Josias começa a tocar as músicas que recordam do tio-avô que o criou, Olívio Vargas – irmão de Ruy –, o sorriso dá lugar a uma voz trêmula e chorosa. Nesse momento, para de tocar, deixa o violão escorado e se afasta. É possível ver seus dedos indo na direção de seus olhos e secando as lágrimas. Apesar da feição de durão, quando o assunto é família, o coração amolece. No samba Saudosa Maloca, dos Demônios da Garoa, a saudade foi mais forte do que a harmonia e os acordes do violão. “Ele [Olívio] cantava essa música sentado, tomando chimarrão, sempre nos intervalos de uma cuia e outra”, recorda. Um sorriso, uma guerra, a saudade de um beijo, o anúncio de uma morte ou um clima chuvoso. A relação com a lembrança de um determinado acontecimento revela muito sobre a história de cada pessoa. “Algumas lembranças são a nossa forma de viajar no tempo em busca de maior compreensão sobre si e sobre nosso contexto”, comenta Lucas Cadore. O sorriso de Josias volta quando a mulher, Carina, pede sua música, Maravilha, do Raça Negra. O violão volta a propagar a harmonia de felicidade, e neste momento uma serenata começa a ser feita para a esposa. “Essa música é perfeita para ela, em qualquer lugar que eu es-
cuto, me lembro da minha companheira, amiga, mulher”, diz.
Adolescência Quem um dia não gostaria de voltar a sua adolescência e relembrar dos momentos vividos? As músicas, os amores, as amizades, tudo o que marcou uma época única na vida de cada ser humano. Leozir José Silva do Amaral, motorista, ama a banda Fresno e as músicas que fizeram parte de sua adolescência. “Melhor época”, conta. Com 29 anos, Léo, como gosta de ser chamado por todos, resolveu aderir a uma mudança na sua fisionomia. Não se preocupa muito com o corpo, mas tem um cuidado especial com a barba e o cabelo. “Não tive influência de ninguém, só queria mudar um pouco, a barba me deixa mais bonito”, conta com um sorriso tímido. Alguém que te faz sorrir, da Fresno, é a música que Léo se recorda de quando estava com 16 anos, na Redenção, em uma roda de amigos, tomando vinho, e foi um marco na sua vida. “Me lembra até hoje do dia, do momento e de quem estava comigo. Surreal”, diz. Conforme o psicólogo Lucas, “a música pode tomar várias formas e se tornar um meio de expressão, uma forma de identificação a partir do que a letra e a banda representam”. Na adolescência, Léo gostava de passear na Redenção, aproveitava a força que tinha e o momento que não volta mais. Curtia muito a parte da Cidade Baixa com seus amigos e bebia vinho quando chegava o inverno gaúcho. E foi nesse mesmo local que Léo conheceu a esposa, Kellen Ambieda. “Música, banda e minha esposa. Não tem como não ouvir essa música e não se lembrar de tudo isso. Toda vez que escuto essa música passa um filme na minha cabeça. Posso voltar no tempo e me recordar de tudo”, conclui. Sem música, a vida seria um erro. Uma frase que faz muito sentido quando paramos para pensar no silêncio que teríamos sem a harmonia, os sons, as melodias, as notas, os tons e tudo o que necessita para compor uma música. Um momento, uma lembrança, um alguém. Não importa qual a sensação, a época ou a pessoa que passou pela nossa vida, o fato é que
A música é pessoal, um misto de sentimentos relacionado com a experiência de cada um”, diz Lucas
somente a música é capaz de trazer as lembranças passadas como uma viagem no tempo. “A música é exclusivamente pessoal, um misto de sentimentos diretamente relacionado com a experiência de cada um. Portanto, é possível se transportar efetivamente para outra época ouvindo uma música e esse é um fenômeno incrível e absolutamente acessível. Basta apertar o play e os cintos”, finaliza o psicólogo Lucas Cadore. n
n Leozir se recorda
da adolescência ouvindo Fresno
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UM OUTRO OLHAR
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A VIDA GUIADA SOMENTE PELOS SONS QUE O AMBIENTE TRANSMITE TEXTO E FOTOS DE GUSTAVO MACHADO
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ma paixão por telenovelas que já dura 30 anos. Essa é a idade de Anderson Dilkin, estudante de Jornalismo e radialista na ABC 103 FM, do Grupo Editorial Sinos. Uma infância em que o pensamento era voltado em chegar da escola para adentrar nas histórias da já extinta Malhação – uma novela voltada ao público adolescente transmitida pela Rede Globo –, cujos principais personagens eram Dona Vilma, Pasqualete, Cabeção, entre outros tantos que ano a ano se destacavam e ganhavam popularidade. À época residia em Santa Maria do Herval – uma cidade no Rio Grande do Sul localizada a 65 quilômetros da capital Porto Alegre –, de onde se dirigia para Dois Irmãos para estudar à tarde na
Escola Estadual de Ensino Médio Affonso Wolf. Mas nenhuma ação era feita antes de abraçar e beijar a mãe, Sônia Dilkin, dona de casa, no portão que já começara a dar indícios de ferrugem pelas questões temporais. As árvores presentes na frente da residência impediam a passagem direta do sol, o que colaborava para que a umidade estivesse presente com maior frequência. Aliás, essa era uma das características da rua, arborizada, embora isso prejudicasse as calçadas, já que elas acabavam levantando-se devido às raízes
n O radialista Anderson
Dilkin, apaixonado por telenovelas há 30 anos
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enormes; no verão, servia de uma forte sombra. Depois de um banho rápido para limpar o suor da tarde, provocado em maior proporção quando de alguma forma brincava com os seus amigos na hora do recreio – assim eram chamados os intervalos escolares antigamente, hoje é só intervalo mesmo, uma palavra que é vista como mais adulta. Já vestido com o seu pijama visando ficar mais confortável, sentindo-se literalmente em casa e também preparado para dormir mais tarde, pegava o seu achocolatado, bebida que preferia em relação ao café, por vezes acompanhado daqueles biscoitos de maisena ou então de um sanduíche com mortadela magra e queijo muçarela, e estava pronto para ouvir mais um capítulo da novela jovem Malhação. A mãe era quem fazia o lanche para que quando Anderson saísse do seu banho tomado com água morna já estivesse pronto, e deixava tudo em cima da mesa, com a xícara e os biscoitos ou o sanduíche enrolados em guardanapos brancos para que nenhuma mosca ou outro inseto chegasse perto. Embora ele também conseguisse fazer tudo o que fora preparado pela mãe por conta do tato altamente apurado e a alta capacidade de sentir todo e qualquer elemento ao seu redor. Sentado na cadeira junto à mesa redonda que servia de almoço e de jantar, ali mesmo na cozinha apertada da casa, ficava se alimentando e acompanhando a telenovela. A televisão de 29 polegadas ficava bem próxima da mesa, naqueles chamados racks, que serviam para deixá-las acima. Elas eram pesadas, com um tubo na parte traseira, bem diferentes das smarts atuais. O momento pedia silêncio, já que nada poderia passar batido. A concentração era gigantesca para captar o que acontecia em cada cena. A Malhação tinha como característica imagens aleatórias feitas por animações gráficas para transitar de uma cena para a outra sempre composta por uma das diversas trilhas da temporada. Então, quando tudo ficava em silêncio, sem falas, e uma música tocava, era a deixa para saber que viria outra cena. Claro que esses detalhes, inicialmente, a mãe Sônia que informava e descrevia. Depois ficara mais fácil a percepção dos elementos da novela. Assim, Anderson seguia todos os horários das demais teledramaturgias da televisão brasileira. A trama não ficou marcada somente pelas histórias de mocinho e vilão, mas por Charlie Brown Jr., banda que abria a novela teen com Te Levar, de 1999 até 2005. Movimentos diários, iguais, como chegar, pegar o achocolatado com bolachas ou outro lanche e parar em frente à TV. Sônia é quem servia de companhia durante a noite para assistir à chamada “novela das nove” junto com o filho. O pai, Osvino Dilkin, não resistia ao cansaço do trabalho e partia para a cama mais cedo. A lida na roça com a agricultura, por vezes debaixo de um sol forte, o desgastava a tal ponto. Ele acabara deixando para trás a novela Senhora do
Destino, da vilã Nazaré Tedesco, trama a que a esposa e o filho assistiam um ao lado do outro sentados no sofá da sala, um dos lugares mais espaçosos da casa. O móvel era coberto por uma manta vermelha para que o tecido fosse mais bem conservado. Hoje casado, ele acaba de jantar e se dirige até a pia ao lado da sua esposa Letícia Dilkin para ajudá-la a finalizar o trabalho de limpeza da louça. Depois de secar o último prato, segue para o sofá da sala, onde senta-se para acompanhar a telenovela da Rede Globo. Antes de se acomodar em definitivo, verifica se está confortável e ali fica. O Jornal Nacional está chegando ao fim, William Bonner e Renata Vasconcelos dão boa noite aos telespectadores e inicia Pantanal. O Cebolinha, seu amigo inseparável – um cão de pequeno porte –, senta-se junto no sofá para fazer companhia aos seus donos. E ali começa mais um momento de concentração, agora, a acompanhar outro sucesso das telenovelas (um remake feito pela Globo vindo da extinta TV Manchete). Certos momentos é Letícia, que fica sentada ao seu lado, quem colabora para fechar a informação com o som ouvido. “O tiro acertou a cabeça dele” ou “o acidente foi grave, o carro capotou várias vezes”. São detalhes que faltam depois de ouvir o som do tiro e o barulho da batida do acidente. Assim, o entendimento da cena fica mais completo para Anderson. É o chiado do chimarrão que informa que a água na cuia chegou ao fim, é a vinheta final do Jornal Nacional que indica que ele acabou e que é hora da novela, é o bater da porta de casa que quer dizer que a Letícia chegou em casa do trabalho, depois de sair cedo, pegar um trânsito caótico ouvindo buzinas vindas de motoristas impacientes para chegar na fábrica de calçados onde trabalha. E por lá presencia o forte barulho das máquinas, da sirene que indica a pausa para o almoço, a retomada do trabalho e o fim do expediente. Os sons estão presentes em todos os ambientes e provêm de todos os elementos. Mas sempre foram e serão a parte mais importante para Anderson do que qualquer outro objeto visual. Eles expressam toda a informação que ele tem sobre tudo. Através de cada ruído, voz ou trilhas, ele reconhece o ator ou a atriz. Conforme a música, ele já sabe qual é o par romântico que estampa a tela da televisão. Se a cena é de ação ou de romance, o som determina. Já o resto, pode ter um pouco da imaginação depois que a Sônia ou a Letícia descrevam as pessoas e os elementos da cena. O que importa é que a novela é assistida com um outro olhar, que talvez quem tem a visão disponível possa não enxergar. Anderson não tem a visão desde o seu nascimento por conta de um descolamento de retina. Por isso, os sons, sejam eles quais forem, determinam tudo durante todo o seu dia. n
Quando tudo ficava em silêncio e uma música tocava, era a deixa para saber que viria outra cena
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A VELHA GUARDA RESISTINDO E ENSINANDO, ELES CONSTRUÍRAM E CONTRIBUÍRAM COM A HISTÓRIA DO CARNAVAL PORTO-ALEGRENSE TEXTO DE LAURA SANTOS
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escolas de samba. “Vamos treinar para ser porta-bandeira?”, convidou a direção da Bambas da Orgia para que Lígia ensaiasse para o concurso de escolha. Nos anos 70, para participar de algumas alas eram feitos concursos para definir os integrantes. E foi assim que, dos 17 aos 30 anos, Lígia, junto do seu fiel companheiro, Paulo Roberto, o Fiapo, foi porta-bandeira da Bambas da Orgia. A sua trajetória no Carnaval é a de uma verdadeira amante da festividade. Após sair da Bambas, desfilou por poucos anos RACAS PUBLICIDADE/ARQUIVO PESSOAL LÍGIA FLORES
venida lotada. O tumulto e o barulho são abafados pela potência da bateria. Plumas e paetês entregam a formosura que se espera de um bom desfile. Carros alegóricos, ala das baianas, mestre-sala e porta-bandeira e passistas completam e abrilhantam as escolas de samba. A ansiedade para colocar o primeiro pé na avenida e dar início a tudo toma conta. A comissão de frente só espera a batida, o sinal: “tum tum!”. E, assim, tudo começa. Em pouco mais de uma hora as escolas colocam o trabalho realizado em um ano na avenida. Para muitos o Carnaval é só mais um dia, só um evento qualquer. Porém, para quem vive a festa, é o momento mais esperado do ano. Esse sentimento é compartilhado pelos integrantes do que podemos chamar de velha guarda: Lígia, Mestre Nilton e Iara. Eles tiveram uma vida inteira dedicada ao Carnaval e ajudaram a construir um pouco da identidade e da história da festa em Porto Alegre. “O Carnaval sempre foi o meu combustível”, define Lígia Flores, 71 anos, que desde a infância vive cada momento dele. O tempo não fez arrefecer essa paixão, ao contrário, foi esse mesmo tempo que fez com que as relações com o Carnaval se estreitassem. Aos sete anos era na ala da família, organizada por uma tia próxima, que Lígia já estava inserida no meio. Sempre “bonitinha”, como ela define, Lígia chamou a atenção de carnavalescos que insistiram para que ela se dedicasse e começasse a experimentar novas alas das
em outras escolas, retornando à agremiação para compor o último carro alegórico da Bambas. Para Nilton Pereira, o Mestre Nilton, como é conhecido, 70 anos, não foi muito diferente que o Carnaval apareceu na sua vida. Com um pai músico, naturalmente ele foi seguindo o mesmo caminho. Na escola, ainda garoto, começou a participar da banda marcial. Com um amor pelo instrumento de sopro, conseguiu um emprestado para que pudesse praticar. Nilton lembra bem da emoção e do sentimento que a música sempre despertou nele. Assim, uma coisa foi levando a outra. Com quase 20 anos, foi convidado – quando ainda havia instrumentos de sopro nas baterias – a participar da Fidalgos e Aristocratas. Era 1972, além de tocar, Mestre Nilton iniciou ajudando a comandar a bateria da agremiação. “A partir dali nunca mais parei. Estive com diversas escolas, fui parar em 1979 nos Bambas da Orgia, onde permaneço até hoje”, conta. O vínculo com a escola, como relembra Mestre Nilton, é o que mais marca. Passar a compreender a escola como uma comunidade, pertencer àquele lugar são coisas que o Carnaval desperta. Foram tantas histórias, tantos momentos. À frente da bateria da Bambas e da presidência, Mestre Nilton marcou e n Lígia desfilou marca até hoje. Eram meados dos por mais de dez anos seguidos pela anos 80 e a bateria da escola já Bambas da Orgia
ARQUIVO PESSOAL/LÍGIA FLORES
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ARQUIVO PESSOAL/NILTON PEREIRA
contava com 250 ritmis- n Mestre Nilton ciava que as festividades tas. Muitas fantasias eram herdou do pai a iriam começar. Pequena entregues no dia anterior paixão pela música e sempre atenta, Iara já e ficavam guardadas quase e pelo Carnaval nutria essa paixão. Uma que a sete chaves. Assim foi escola de samba ensaiacom os chapéus que compunham o va nas proximidades de sua casa. figurino da bateria. Mestre Nilton, Esse, para ela, era o momento que na época ensaiador de bateria, re- mais esperava. Sentada em frente lembra que os chapéus não foram ao portão, com seu cachorrinho, ela entregues a tempo. “Era sair com admirava todas aquelas mulheres e alguns chapéus ou nenhum na ave- homens que passavam fantasiados, nida”, conta, hoje rindo da situa- com muito brilho e muita alegria. ção. Foi briga, foi desavença, mas Mal sabia a pequena Iara que anos a escolha foi de sair sem nenhum depois era ela quem estaria fantachapéu. Resultado: Bambas campeã siada e glamorosa nas avenidas. do Carnaval daquele ano. “Eu tenho essa imagem muito clara De certa forma, é isso que o na minha mente. Posso dizer que Carnaval desperta em quem o vive a minha relação com o Carnaval é com intensidade: a vontade de estar desde sempre, eu acho que desde na avenida, acima de tudo. Iara Deo- antes de nascer já estava no sandoro, 66 anos, divide esses mesmos gue”, conta, entusiasmada. pensamentos e paixões pela festa. E desde pequena tem isso muito forte Resgate à com ela. Filha de um pai amante do ancestralidade Carnaval, no fim, para Iara, essa foi Mas foi na verdade a dança que uma das maiores heranças que ele deixou. Ela lembra que mesmo após aproximou Iara, já grande, dos desa morte dele esse amor continuou files de Carnaval. A convite de um grupo de músicos, ela preparou uma entranhado em suas veias. Ela, pequena, por volta de seus coreografia para que participassem oito anos, morava no bairro Petró- de um festival. Era 1974, e era quanpolis, na capital gaúcha. Aquele do surgia o Afro-Sul Odomode. Foi calor da época de Carnaval anun- nesse mesmo grupo que Iara parti-
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cipou e acompanhou a criação de uma escola que fez história em Porto Alegre, a Garotos da Orgia. “Foi quando eu constituí minha família, também. O Afro-Sul me apresentou o meu marido”, relembra Iara. Na Garotos, Iara era tudo: figurinista, coreógrafa, porta-bandeira, só não compunha a bateria, como ela mesma diz. A Garotos fez história, não só no Carnaval, mas em toda a cultura. Sua principal regra era que todo samba-enredo deveria trabalhar com a história ou trazer a cultura afrodescendente para dentro da avenida. Foi assim que Iara passou a resgatar, entender e ensinar sobre as ancestralidades. “Aquele momento todo mundo parava para ver e, acima de tudo, para aprender com a Garotos”, lembra com carinho. Até mesmo Jorge Amado, o escritor, tem uma história com a Garotos. Isso porque em 1988 o samba-enredo da agremiação tinha a obra Tenda dos Milagres como base. A escola tentou contato com o autor, mas Iara conta que sem muitas expectativas. “Ele nem vai responder mesmo”, disse Iara. Muito mais que responder, Jorge Amado colocou a escola em contato com os roteiristas que criavam a minissérie, na época. Foi praticamente um spoiler de tudo que teria na série. A escola não foi campeã, mas, para Iara, só isso já valeu demais.
Trajetórias que inspiram “Eu lembro da minha trajetória no Carnaval com muita alegria, com muito orgulho”, enfatiza Lígia. Cada movimento executado na avenida por ela e Fiapo serviu de inspiração para casais de mestre-sala e porta-bandeira que foram surgindo. Na retomada do
Carnaval em 2022, os dois foram “Eu fui e sou feliz com tudo que vivi no Carnahomenageados pela Academia de val”, enfatiza Iara. Da dança ao samba, influenciou e Samba Praiana, e foi quando Lígia incentivou meninas a resgatarem sua identificação. retornou à avenida para atraves- Para ela também é impossível selecionar apenas uma sá-la dançando e no chão. história, mas tudo o que viveu com a Garotos foi Ao olhar para trás, é impossível importante e marcante denão se emocionar. Lígia passou pela mais em sua trajetória com avenida, pelos carros e pelo júri. o Carnaval e com a dança. Sempre muito respeitada. “Eu acho Em apenas um ano de Carque todo o respeito e amor que a naval, com os dançarinos do gente nutriu pelo pavilhão e pela es- Afro-Sul, ela saiu em 17 escola fez com que nossa história fosse colas. Foi no amor e na vonreferência para muitos”, aponta Lí- tade de mostrar a cultura. gia. E, no fim, para ela, foi isso que se Eram mergulhos de pesperdeu no Carnaval gaúcho. quisa e de busca por conheSe pudesse escolher uma histó- cimento para, na avenida, ria, um momento vivido, para Lígia apresentar o que era, de fato, não é tão fácil assim. Nesses mais a cultura negra. “Eu vim de de 60 anos de dedicação e amor uma infância branca!”, coao Carnaval, já passou por muita menta Iara. Cada tema aborcoisa. Na época, ela lembra que dado era, portanto, uma descoberta de suas origens até uma cortina de sua casa virou também. Fazer esse resgate transformou a vida de Iara figurino para o desfile. Lígia foi a e hoje o que ela quer é transformar a vida de quem parprimeira gaúcha a usar uma saia ticipa do Afro-Sul, para que não se perca essa identidade plumas em um Carnaval. “Eu de. “O Carnaval sempre foi isso, uma forma de passar recordo de passar pela Perimetral, mensagens. E devemos resgatar isso, o que o Carnaval a pé, e todos gritando e exaltando. daqui acabou perdendo. Podemos copiar o que é bom E eu me exibia, óbvio”, é assim que de outros estados, mas transformar em algo rentáLígia descreve esses movel com a nossa realidade”, diz Iara. mentos, com muita risada, n Iara sempre viu Em uma vida movida pela dança, pela alegria e saudades. Mas, na dança uma forma busca de suas origens e ancestralidade, se para ela, tudo tem seu de representar a pudesse escolher uma trilha sonora para a tempo, e agora é momento ancestralidade do sua vida, Iara escolheria uma composta pelo de “deixar a vida levar”. seu povo seu marido, Lamento. “Essa é a música da
minha vida, essa é a trilha que eu gostaria de levar comigo para sempre.” Mais do que uma música, para Iara ela simboliza o sofrimento que os seus ancestrais passaram. Já para Mestre Nilton, a música da sua vida seria algo como “Faria tudo de novo”. Com uma história e ligação tão forte com o Carnaval, para ele, mais do que isso, o Carnaval foi o momento em que externou a sua afetividade com a música. “A música, o Carnaval, tudo foi um encaixe perfeito na minha vida”, conta Nilton. Fazer tudo de novo seria voltar a trilhar esse caminho vitorioso e alegre. Mais uma vez os três compartilham do mesmo sentimento. Que o Carnaval irá mudar com o passar dos anos é um fato. O que não se pode perder é a vontade e o amor em fazer essa festa. O Carnaval é trabalhar em conjunto, com união e determinação, para contar histórias. n
O Carnaval sempre foi isso, uma forma de passar mensagens. E devemos resgatar isso”, diz Iara
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NO RITMO DAS ARQUIB pi . 68
OS CÂNTICOS EMBALAM A TORCIDA DO GRÊMIO DO TREM ATÉ O ESTÁDIO TEXTO DE LUCAS ALVES
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BANCADAS LUCAS ALVES
amisas e bandeiras tricolores espalhadas pelas ruas, janelas e carros no centro de Novo Hamburgo indicam que é dia de jogo. A movimentação nas principais cidades que ligam o interior até a capital do Rio Grande do Sul é diferente em dias de jogos da dupla Gre-Nal. Além do azul, preto e branco, o vermelho e branco também se fazem presentes. Afinal, um dia antes o maior rival do Grêmio, o Internacional, já havia entrado em campo e vencera sua partida. Quem conhece a aldeia futebolística no sul do Brasil sabe que quando uma das equipes joga primeiro e vence sua partida a “responsabilidade” da outra é ainda maior em busca de vitória. “Putz, os caras venceram ontem. Temos que ganhar hoje”, comenta um torcedor com dois amigos a caminho da estação Novo Hamburgo, Já fardados com a camiseta do Grêmio e enrolados em uma bandeira. Certo que esses estão a caminho de Porto Alegre para acompanhar mais um duelo do tricolor jogando em sua Arena. “Hoje é obrigação”, reforça o outro. Quando Grêmio e Internacional vencem ou perdem seus jogos na mesma rodada não há muito assunto nas rodas de amigos. Porém, a situação não é a mesma quando apenas um deles perde. A tradicional “flauta”, como são chamadas as provocações futebolísticas, pega de todos os lados. Por isso a tal “obrigação” do Grêmio em vencer seu jogo naquele início de noite. Animado com o duelo que se aproxima, outro grupo de torcedores já começa a puxar cânticos da torcida enquanto espera na fila para comprar os bilhetes do trem. O cântico se espalha pelos corredores gelados da estação Novo Hamburgo. Aqueles que vão chegando já começam a cantar junto, como se já estivessem nas arquibancadas. Os que já passaram a catraca deixam um trem partir para pegar o próximo. “Fazemos isso pois é mais bacana ir daqui até Porto Alegre com esses caras que cantam o tempo todo”, afirma o torcedor. “Vamos, Grêmio, tu és copeiro, e hoje temos que ganhar. Eu te sigo desde pequeno, já não posso mais parar.” Aos poucos, a estação vai se parecendo cada vez mais com as arquibancadas do estádio gremista. Alguns parecem que chegarão ao destino já sem voz. Já dentro do trem os gritos e as cantorias não diminuem. A cada estação mais torcedores vão entrando na composição e reforçam a voz. Talvez aqueles que embarcaram nas estações anteriores aproveitem para descansar a garganta. Não importa o tamanho do jogo ou a competição que está sendo disputada.
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Em dias de partida em Porto Alegre sempre há operações especiais para o transporte de passageiros que vão aos estádios. Da mesma forma, também há algumas preocupações em jogos em que um grande público é esperado. Trens exclusivos para torcedores são disponibilizados. Nesses costumam ir as organizadas, que geralmente se concentram em Sapucaia do Sul. Muitos torcedores que não moram nesse município possuem o hábito de se deslocar até lá apenas pela emoção de irem todos no mesmo trem. Cantando, claro. Quando digo que aos poucos a estação e os trens vão se parecendo mais com o estádio, não estou exagerando. Além da voz, bumbos, trompetes e até mesmo sinalizadores ajudam a compor a festa.
Dedicada às três cores Dana Moraes, de 25 anos, herdou o sentimento e a razão de torcer pelo Grêmio de seu pai. A torcedora raiz é daquelas que somente usam roupas ou acessórios ligadas ao clube. Sejam camisetas, jaquetas, calças, não importa. O importante é mostrar o sentimento mesmo que sem falar nada. Dana, que é moradora de Novo Hamburgo, explica que independente da situação que o time vive, a torcida gremista é muito expressiva. “Estamos sempre presentes pro time, mas não deixamos de demostrar insatisfação quando necessário”, relata. Sem sombra de dúvidas um dos capítulos mais melancólicos da história recente tricolor foi o rebaixamento à série B do Campeonato Brasileiro. Uma tragédia anunciada. Rodada após rodada o Grêmio não conseguia escapar da zona de rebaixamento. O desempenho do time dentro das quatro linhas foi fraco. Há aqueles que acreditam que com a torcida presente no estádio do início ao fim do campeonato o Grêmio não cairia de divisão. Destaco que a torcida não frequentou as arquibancadas desde o início por conta da pandemia de Covid-19. Dana acredita que por mais que a torcida influencie o time dentro de campo, o rebaixamento de 2021 passou mais pela administração e gestão de clube. A torcedora também enaltece que escutar vaias é raro. Mesmo que o desempenho não
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seja o esperado, a torcida sempre canta o nome do time em meio a palmas no final dos duelos. “Eu sempre vejo que muita gente aguarda aquele momento em que os jogadores vêm até a torcida agradecer pra demonstrar apoio independente da situação”, destaca Dana. “Vâmo, vâmo tricolor, hoje eu vim te apoiar. Para te ver campeão, para te ver ganhar.” A música já tradicional puxada pela Geral do Grêmio é cantada de maneira mais forte. Naquele momento não foi possível ver nenhum passageiro do trem que não estivesse cantando junto. Talvez os únicos em silêncio fossem os seguranças que acompanharam o trajeto até a estação Anchieta e o próprio maquinista. O trem já se aproximava do destino. Os torcedores que estavam sentados logo ficaram de pé. A música seguia sendo cantada, porém outros gritos de incentivo se misturavam na melodia. “Estação Anchieta, um bom jogo a todos”, diz o condutor do trem de composição antiga. “Boa, motora”, “o motora é nosso”, “a Trensurb é nossa”, são os gritos da torcida em resposta ao anúncio da estação. Enquanto é possível observar a fumaça que sai da chapa onde a carne do entreveiro no pão é preparada, vendedores ambulantes precisam se desdobrar para todos entenderem o que está sendo vendido. “Água, refri, cerveja”, “três latão por doze”, “ingresso, ingresso, compro e vendo ingresso”. Cada um busca uma forma de ganhar seu dinheiro enquanto os torcedores percorrem os quase dois quilômetros que separam a estação Anchieta da Arena. Os torcedores uniformizados vindo das cidades da região metropolitana aos poucos vão se encontrando com os demais membros da torcida. Próximo ao estádio fica localizada a base de algumas torcidas que se reúnem e partem em direção ao palco do jogo em desfile, com bandeirolas, instrumentos e músicas. “Grêmio, és puro sentimento, somos a ban-
Hoje em dia temos o dever e a liberdade de trazer pautas sociais para discussão”, diz Dana
ARQUIVO PESSOAL / DANA MORAES
da da Geral”. Nesse momento os torcedores que não fazem parte das torcidas uniformizadas ficam apenas admirando a festa enquanto os grupos marcham em direção ao estádio. Filmando e cantando. Engana-se quem pensa que as torcidas cantam suas paródias e composições próprias apenas durante os 90 minutos de um jogo. Já durante o aquecimento diversas letras são entoadas com o objetivo de incentivar os atletas antes de a bola rolar. Antes disso, outra concentração importante, que já é tradição entre as torcidas no Rio Grande do Sul, é realizada nos corredores e túneis dos estádios. E é dessa forma que as torcidas organizadas adentram nas arquibancadas. Os torcedores que optam em ficar em outras partes dos estádios celebram a entrada das bandas. Mas nem tudo é motivo de alegria. Recentemente, a principal torcida organizada do Grêmio foi punida pelo Ministério Público estadual por cânticos de cunho racista. Em algumas melodias, a presença da palavra “macaco” é utilizada para se referir ao rival, associado à população negra. Nervosa com a situação do jogo, que insistia em ficar no zero a zero, Dana diz que a sociedade evoluiu muito com o passar dos anos. “Hoje em dia temos o dever e a liberdade de trazer pautas sociais importantes para discussão. Hoje sabemos o quanto a fala [macaco] é problemática”, diz. Com o objetivo de ajudar a combater o racismo, a própria torcida Geral do Grêmio trocou a expressão nas composições cantadas. “Agora vai de cada torcedor fazer sua parte. Vejo que muitos já se adaptaram às novas versões, mas ainda existe resistência por parte de alguns”, finaliza Dana. A torcedora enaltece os esforços da torcida organizada pela mudança. De volta ao jogo, dessa vez não houve paciência por parte da torcida. Mesmo com o apoio incondicional, dentro de campo a equipe encontrou dificuldade e não conseguiu sequer fazer um gol. As vaias já haviam começado segundos antes de o árbitro levar o apito à boca para encerrar o jogo, e logo foram diminuindo. Alguns torcedores ainda reconheceram o esforço do time e aplaudiram. n
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ALÉM DO QUE SE VÊ
OS BASTIDORES DO TEATRO MUSICAL SÃO CERCADOS POR DIFICULDADES, INSEGURANÇAS E MEDOS TEXTO DE MAYANA SERAFINI
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CLAUDIO ETGES/ARQUIVO PESSOAL
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s luzes se apagam. Por alguns segundos, o silêncio domina o ambiente, antecipando — de forma um pouco irônica — o que vem a seguir. A expectativa torna-se quase palpável. É como se todos os presentes estivessem segurando o ar, aguardando a explosão acontecer. Então, as cortinas se abrem e o espetáculo se inicia. Durante as próximas horas, o público imerge em um universo de música, dança e atuação em tempo real. Tudo acontece diante dos olhos fascinados dos espectadores, mas nem tudo é visível. Por trás do que se vê, há horas, ou melhor, anos de dedicação em tempo integral. Para ingressar no mundo do teatro musical, é necessário que o artista cante, dance e atue com maestria. Nesse meio, os três atributos coexistem e, para que um profissional se destaque na área, é necessário ter devoção total à sua formação. Isso exige aulas de canto, dança e atuação, além da preparação física para encarar horas de ensaio e uma rotina de apresentações quase que diárias. Gabrielle Fleck tinha seis anos quando se interessou pelo teatro musical. Contudo, desde muito cedo, a menininha de cabelos castanhos e olhos sonhadores sempre foi apaixonada por todos os aspectos do gênero. O universo mágico dos filmes da Disney esteve pre-
sente em sua infância n Com a sua produtora, vivia em um orfanato na Nova Iorque dos através das fitas VHS a G. Fleck Produções, anos 1930. Entre as músicas e os passos que nunca deixavam Gabrielle criou o espetáculo despretensiosos de dança realizados pelas o videocassete de sua Broadway em Quatro crianças, Gabrielle se encontrou. casa. As canções dos Tempos. As produções Em pouco tempo, aquele tornou-se o contos de fadas eram contam com uma equipe seu filme favorito. A fita VHS fora reproduentoadas a plenos pul- formada majoritariamente zida centenas de vezes, fazendo com que a mões pela garota que, por mulheres menina decorasse todas as canções. Alguns até aquele momento, anos depois do encontro de Gabrielle com ainda não tinha total consciência Annie, o musical sobre a jovem órfã voltou a surgir do que eram os musicais. na vida da ainda criança Gabi. Na época, a menininha O mundo de Gabrielle mudou gaúcha estudava em uma escola bilíngue, em Porto Alequando o pai a presenteou com gre. Com a chegada de uma nova diretora dos Estados uma nova fita para sua vasta cole- Unidos, a ideia da realização de um musical ocorreu. ção de filmes. Na capa, havia uma Dentre tantas possibilidades de musicais a serem escogarotinha sorridente, de vestido lhidos para a produção, Annie foi o selecionado. vermelho, sendo carregada por dois “Meu Deus!”, exclamou Gabrielle ao receber a adultos. Ao lado deles, encontra- notícia. “Eu conheço todas as músicas!”, completou, va-se um cachorro bege, com um empolgada. laço vermelho no mesmo tom da Obra do destino ou não, após realizar uma audição roupa da garota. Gabrielle olhou para o papel, Gabi foi a escolhida para interpretar a para a imagem com estranha curio- protagonista na produção escolar. “Eu lembro que sidade. Aquela fita destoava das fiquei completamente fascinada por poder fazer aquilo”, princesas em desenho animado relembra a gaúcha com um tom de voz que evidencia que costumava assistir. No obje- a memória afetiva daquelas doces lembranças. Esse foi apenas o início de sua carreira no teatro to retangular que segurava entre suas pequenas mãos, apenas uma musical. Como hobby, a jovem passou a frequentar aulas de canto, música e dança. Essas eram as suas palavra se destacava: Annie. Assim que possível, Gabrielle grandes paixões, pensava ela. Aos 13 anos, Gabrielle ajeitou-se em frente à TV e apertou foi estudar na Walnut Hill School for the Arts, em o botão play. Logo nos primeiros Natick, nos Estados Unidos. Foi ali, entre os correminutos do filme, uma jovem meni- dores que exalavam arte e as salas altamente equina começou a cantar, em um misto padas, que a jovem artista passou a considerar o de melancolia e esperança, sobre a que antes chamava de hobby, como profissão. No imagem idealizada que criou dos seu primeiro dia na escola interna, animada para o seus pais biológicos. Aquela meni- início do curso que realizaria ali, a adolescente foi ninha era Annie, a protagonista do levada em um tour para conhecer as instalações do longa que tinha o seu nome. Pelos local que chamaria de casa durante o verão. “E aqui”, disse o guia aos olhares ávidos dos nopróximos minutos, Gabi acompanhou a história da garota órfã que vatos em sua frente, enquanto apontava para o am-
VILMAR CARVALHO/ARQUIVO PESSOAL
biente, “neste teatro, acontecem as aulas de teatro musical”. “Como assim?”, exclamou a única brasileira do grupo. “Sim, a gente tem um programa só de teatro musical”, respondeu o homem pacientemente. Foi então que Gabrielle teve o seu momento eureka. “É isso, é isso que eu quero fazer!”, pensou a jovem, deslumbrada com a possibilidade de trabalhar nos musicais. “Se eu me esforçar, se eu treinar, se eu for atrás, isso pode se tornar uma carreira.” E foi isso que a artista fez nos anos seguintes àquela epifania. Após formar-se no ensino médio, cursado no Walnut Hill, Gabi foi atrás do seu sonho em Nova Iorque, na terra da Broadway. Durante seu período no internato, aos 14 anos, Gabrielle criou uma lista elencando todos os seus sonhos e objetivos. A pequena folha de papel ficava fixada na parede de seu dormitório para lembrá-la diariamente do porquê estava ali. Em uma das linhas, encontrava-se escrito: “Entrar na New York University (NYU)”. Após muito esforço e abdicações, ela recebeu um e-mail com a tão desejada resposta. Sim, ela havia conseguido, iria se tornar
aluna da NYU, como desejado anos antes. “Foi um momento de felicidade extrema”, rememora ela. Foram 10 anos vivendo na Big Apple. Na atmosfera intimista do bairro Village, cercada por arte e cultura, Gabrielle frequentava suas aulas de teatro musical e cinema na Tisch School of the Arts, o conservatório da NYU. Apesar da aura universitária do bairro, que contava com uma vida noturna badalada, em seu tempo livre a gaúcha só tinha um lugar em mente: os históricos teatros da Broadway. Lá, com olhos atentos e sonhadores, observava meticulosamente a performance de cada artista, imaginando sua vez de estrelar naqueles palcos. Ao longo do tempo, sua coleção de playbills – livretos que são entregues antes de cada espetáculo e que contam com o programa de cada peça – foi acumulando dezenas de unidades, sendo essas guardadas como relíquias pela artista. Em cada uma daquelas páginas estão registradas as inspirações, os anseios e os sonhos de Gabrielle. Pode não parecer, mas o teatro musical possui uma história de mais de 160 anos no Brasil. Denominado inicialmente como Teatro de Revista, o gênero chegou ao país através de artistas franceses que, no final do século XIX, estrearam o espetáculo As Surpresas do Sr. José da Piedade no Teatro Ginásio do Rio de Janeiro. Com uma grande carga satírica, as produções utilizavam-se do canto e da dança para criticar os costumes da época. Através de curtas esquetes musicadas, esses números acabaram por tornar o teatro mais acessível ao grande público. Apesar de sua longevidade no país e do passado popular, atualmente os musicais são vistos como
Se eu me esforçar, treinar, for atrás, isso pode se tornar uma carreira”, projetou Gabrielle
produtos culturais consumidos majoritariamente pelas elites. Tal fato se afirma pelos altos valores dos ingressos e, também, pelas produções se concentrarem no eixo Rio-São Paulo. Isso se deve, predominantemente, aos grandes valores de produção dos shows e à rotatividade turística de ambas as metrópoles. Atualmente, a cena do teatro musical no país investe em adaptações nacionais dos clássicos da Broadway e, aos poucos, aposta em produções originais. Michelle Camhaji e Marilia Di Dio se conheceram ao cursarem a faculdade de rádio e TV na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Em um dos semestres finais do curso, as estudantes precisavam fazer um extenso programa de rádio para uma das disciplinas. Após as orientações do professor para a execução do trabalho, elas se reuniram com o restante do grupo para discutirem os possíveis temas para a atividade. “Podemos fazer sobre novelas”, disse Michelle, que recebeu o apoio imediato de Marilia. Na época, as duas eram telespectadoras aficionadas de telenovelas. Contudo, o restante do grupo não pareceu entusiasmado com a sugestão. “A gente pode fazer sobre musicais”, propôs outra graduanda, de forma despretensiosa. “É mais sonoro para rádio”, justificou ela. Por um breve momento, o grupo permaneceu em silêncio,
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FOTOS ARQUIVO PESSOAL/MICHELLE CAMHAJI
avaliando a proposta com interesse. No entanto, nenhum dos membros ali presentes tinham conhecimento suficiente sobre o teatro musical. Após muito debate, ao decidirem em consenso sobre o tema, os alunos optaram por assistir a uma peça, no intuito de entender melhor sobre aquele universo desconhecido. Michelle nunca havia assistido a um musical. Naquela noite, quando se encontrou com Marilia e outros dois colegas do grupo acadêmico em frente ao Teatro Abril — que, atualmente, chama-se Teatro Renault —, encarava a atividade como uma mera pesquisa para o seu trabalho universitário. Assim, ela e seus amigos adentraram o majestoso teatro paulistano, acomodaram-se em seus assentos e aguardaram o show começar. O espetáculo em questão se tratava da adaptação brasileira de Mamma Mia, o famoso musical da Broadway. Anos antes, a peça havia ganhado uma versão cinematográfica, estrelada por ninguém menos que Meryl Streep. A obra teatral, escrita pela dramaturga britânica Catherine Johnson, apresenta os hits do famoso grupo sueco ABBA, enquanto narra a história de uma jovem, prestes a se casar, em busca do seu verdadeiro pai. Apaixonada. Foi assim que Michelle se descreveu após assistir ao seu primeiro musical. O som da orquestra ao vivo, a grandiosidade da arte sendo executada em tempo real, diante de seus olhos, a atmosfera grega da trama e o talento excepcional dos artistas fizeram com que ela perdesse o fôlego. Após aproximadamente duas horas de show, Michelle e Marilia se encontravam em completo estado de êxtase. “Nós duas ficamos malucas, apaixonadas…”, relembra Michelle. Após essa primeira experiência, a ida ao teatro se converteu em um hábito para as amigas. O que era uma obrigação se tornou um hobby e acabou por se transformar em uma fuga da realidade. Durante o período estressante da produção do trabalho de conclusão de curso, ambas encontraram no teatro musical um refúgio. Todos os finais de semana, durante algumas horas, elas embarcavam em uma viagem para a Grécia, mesmo sem sair fisicamente do Brasil. Isso fez com que a ligação delas com os musicais se tornasse ainda maior.
Mesmo após formadas, a paixão não diminuiu. Em uma de suas idas recorrentes ao teatro, após assistirem à adaptação brasileira do espetáculo Hair — outro grande show da Broadway —, Michelle comentou: “Puxa, eu adoraria ainda estar na faculdade para poder ter uma desculpa para fazer uma matéria de bastidores aqui. Adoraria conhecer como que é aqui dentro”. “Já que a gente não tem mais a faculdade para ter uma desculpa, o que a gente pode fazer?”,
indagou ela à amiga, ponderando em sua mente formas de realizar parcerias com sites que faziam a cobertura do circuito de musicais. “Se a gente pode fazer alguma coisa nesse sentido, vamos fazer o nosso site”, declarou Marilia, surpreendendo a amiga. “Meu, a gente não tem como fazer o nosso!”, o medo era nítido na fala de Michelle. “Não tem como, porque a gente não conhece ninguém, não conhece nada. Vamos começar um negócio do zero, sendo que já existem outros?”, indagou ela. “Não tem como, não tem espaço pra gente.”
Nós duas ficamos malucas, apaixonadas”, diz Michelle sobre o primeiro musical dela e de Marilia
n Michelle, Maria Pia e Marilia
produzem o site e o canal no YouTube, Cena Musical, que possui mais de 24 milhões de visualizações. Para isso, o trio frequenta os bastidores do teatro musical brasileiro, como os musicais O Fantasma da Ópera (foto acima) e Meu Amigo Charlie Brown, que contou com Tiago Abravanel no elenco
“Vamos tentar!”, insistiu a outra. “A gente já não tem nada, se a gente tentar e não der certo, a gente vai continuar com nada que a gente já tem.” Por fim, Marilia convenceu Michelle a criarem um site focado no teatro musical brasileiro. Sentaram-se juntas e passaram a pensar em nomes para o novo projeto. Quando o termo Cena Musical surgiu, houve unanimidade: “É esse!”, ambas exclamaram. Com o nome decidido, passaram a frequentar as portas dos teatros paulistas, na busca por entrevistas. Nunca ouviram um não como resposta. Afinal, o teatro musical ainda não era muito divulgado no Brasil e o Cena Musical passou a oferecer a toda indústria uma forma de difusão.
“O nosso objetivo é dar nome às pessoas, sabe?! É tipo…”, Michele fez uma pequena pausa, pensativa, “...É falar com todo mundo, tentar entrevistar o máximo de gente que a gente conseguir e dar nome para eles, e dar nomes para todo mundo, sabe?”. Além das duas amigas, hoje o site — que compartilha trechos de musicais nacionais e possui um canal no YouTube com mais de 77 mil inscritos — conta com o reforço da relações públicas Maria Pia Calixto na equipe. A proximidade com os bastidores das produções fez com que Michelle enxergasse uma outra realidade da indústria. Por trás da grandiosidade de um espetáculo, há muita dificuldade. “A pessoa que senta na plateia e vê o espetáculo pronto e lindo não faz ideia do tanto de trabalho que dá, o tanto de gente que tá envolvida… Então, acho que o que eu mais aprendi foi isso, foi a dificuldade que sempre vai ter”, reflete ela. Gabrielle conhece bem essa realidade. “Eu nunca, nunca pensei realmente em desistir, mas não, isso não quer dizer que eu nunca tive momentos de dúvida, momentos, principalmente, de comparações
inevitáveis”, confessa a artista gaúcha. Em um mercado tão competitivo, é difícil não cair na armadilha de se comparar aos outros. Além do mais, é necessário saber lidar com a dor de vários nãos ao longo da carreira. Por trás de um sim, há dezenas deles. Morar em Nova York, berço do teatro musical, fez com que a jovem colecionasse inúmeras memórias. Algumas boas, outras nem tanto. Em sua audição para a remontagem do musical O Despertar da Primavera, Gabrielle estava determinada a conseguir o papel de Wendla, a protagonista. Contudo, por razões que não estavam sob seu controle, acabou sendo escalada para o papel de Thea, uma das amigas de Wendla. Na época, em um primeiro momento, a atriz ficou chateada com o ocorrido. Contudo, ao começarem os ensaios, Gabi vislumbrou uma oportunidade de dar o seu melhor, o que acabou gerando elogios do elenco original do musical da Broadway. “O mundo inteiro, a nossa vida inteira, não se resume a um papel”, completou ela, após reviver aquela lembrança. Atualmente, Gabrielle vive entre o Brasil e os Estados Unidos. São idas e vindas. Há pouco, participou da série Chuteira Preta, disponível no streaming Amazon Prime, e também do filme Fatima, disponível em território norte-americano através da Netflix. Além da atuação, Gabrielle passou a exercer uma paixão que descobriu quando ainda estava na faculdade, a da produção. Em 2016, a gaúcha abriu sua própria produtora, a G. Fleck Produções, que, desde então, vem realizando diversos projetos no sul do país. Assim como a sua versão de seis anos, Gabrielle não deixou de sonhar. Aspira pelo dia em que irá atuar nos palcos da Broadway. Nesse período entre a infância e a vida adulta, muitas coisas mudaram, mas ainda há aquelas que permanecem iguais desde sempre. Os musicais seguem sendo o seu refúgio, seu conforto nos dias ruins. Apesar das dificuldades, das inseguranças e dos medos que cercam o ambiente atrás do palco, o teatro musical é fascinante. Para aqueles que atuam, para aqueles que convivem nos bastidores e também para aqueles que apenas os assistem. É um espetáculo, em todos os sentidos. É muito além do que se vê. n
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O (DES)CONSERTO MU “S PARTE I. Uma tarde ensolarada em uma cafeteria
e você vir um louco andando deitado em uma bicicleta, sou eu”, é o que o anuncia a suave voz carregada de um proeminente sotaque pernambucano. E, como era de se esperar, a famosa bicicleta reclinada rouba a atenção por onde passa. Aos olhos atentos surge a curiosidade, e nos lábios se formam os cochichos e burburinhos. “O que é aquilo?”, “Como ele não cai?”, “Acho que vi uma bicicleta assim em algum filme do Charles Chaplin” são os comentários que rasgam a atmosfera aconchegante de uma cafeteria no bairro Santana. Bicicletas reclinadas são de fato raridade — talvez pela estética um tanto quanto exótica, talvez por ter se tornado antiquada, talvez por ser ilegal em corridas oficiais de ciclismo ou talvez pelo medo da extrema velocidade que aquelas duas rodas são capazes de
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atingir. Assim, da mesma forma, as profissões músico e luthier também compartilham das mesmas peculiaridades e singularidades. O que veio primeiro: o músico ou o luthier? Para Risomá Cordeiro, 58 anos, isso se combina e se une para formar um laço estreito de musicalidade e criatividade. “O que eu mais gosto é de criar”, afirma com os olhos castanho-escuros que brilham com entusiasmo. Enquanto bebe o primeiro de muitos cafés expressos, ele conta sobre a sua vida singela e belamente cotidiana: a mudança de apartamento e de bairro — antes Cidade Baixa, agora Farroupilha — e as burocracias que envolvem o financiamento, a rotina agitada de estudo e trabalho de suas duas filhas, o processo imaginativo de sua esposa que é
artista plástica e, principalmente, sobre a viagem para uma cidade do interior do estado. “O ônibus deve sair às 15h”, diz ele olhando para o relógio que marcava próximo do horário de partida. Com um dar de ombros, continua a conversa sem nenhum resquício de pressa. Contrabaixista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) e professor de Teoria e Percepção da Escola da OSPA, Risomá tem a rotina atravessada pelas viagens. Dessa vez, a cidade em questão é Lajeado. “Fazemos concertos em praças públicas, eventos públicos e coisas assim. É muito legal poder trazer esse tipo de musicalidade para lugares mais distantes, até porque talvez essa seja uma oportunidade única para muitos dali ouvirem e terem experiência
MÚSICO, LUTHIER E PROFESSOR, RISOMÁ CORDEIRO LEVA A VIDA ENTRE INSTRUMENTOS E PARTITURAS TEXTO E FOTOS DE MARIANA NECCHI
USICAL musical com instrumentos e peças eruditas”, manifesta com a sua convicção passional de que a música é um agente social para a inclusão e igualdade — tanto que foi o fundador do projeto A Corda Criança, que tem o objetivo de ensinar música para crianças em situação de vulnerabilidade social. O resultado foi o lançamento de um CD, que Risomá assinou como compositor, arranjador e diretor musical. Além do erudito, Risomá também apresenta aptidão para a música popular. Com o extinto grupo Tribufu — composto em parceria com os músicos Orestes Dornelles e Binho Terra —, foi vencedor do Prêmio Açorianos de Música em 2005 nas categorias de melhor instrumentista e melhor compositor.
Devido ao tempo reduzido de Risomá, a conversa teve que ter um fim abrupto. Antes de nos despedirmos, não resisti em pedir para dar uma volta na bicicleta reclinada. Logo de primeira, falhei em me equilibrar deitada e desisti. Definitivamente, andar nessas bicicletas não é para qualquer pessoa.
PARTE II. Uma tarde na luthieria improvisada Caixas de papelão empilhadas pelos cantos, cheiro de tinta no ar. A estética da mudança está presente no apartamento recém ocupado por Risomá, sua esposa Laura Froés, e a filha mais nova, Clara (a primogênita, Joana, atualmente reside em São Paulo). No ritual de preparo do café vespertino, ouve-se miados e ronronares que provavelmente foram envoltos pelo aroma de cafeína se misturando com o ambiente. Com sua pelugem volumosa, América encontra seu refúgio no topo da geladeira em uma tentativa de
observar o movimento e, sorrateiramente, também para aproveitar a exclusividade de carinhos da família — já que outros três gatos estão escondidos em outros cômodos da nova morada. O quarto mais ao fundo do corredor foi o escolhido para se tornar o universo particular da musicalidade de Risomá. Violões, violinos e ferramentas estão dispostos em uma espécie de balcão ao chão; e ganham a companhia de uma imensa estante de livros — com títulos que variam desde o O Capital a guias de viagens turísticas. O contrabaixo encostado na parede fisga o olhar de qualquer um: a imponência do instrumento é chave para captar o holofote visual, seja por sua dimensão, refinamento das formas robustas ou pelas características marcas do tempo na madeira que apresenta rachaduras e arranhões. “Esse baixo deve ser de 1800 e alguma coisa. Tem muita história”, afirma, em um tom reflexivo. “Chegou no Brasil com os imigrantes alemães, então é difícil saber exatamente a linha do tempo dos donos.” A música, em sua forma abstrata, também pode significar um rito de passagem temporal — como é o caso deste instrumento, que atravessou gerações de musicistas e orquestras mundo afora até chegar ali. “Eu pego um raio de bicicleta e dou um jeito de ele virar um medidor da parte interna do instrumento”, é assim que Risomá resume a sua habilidade autodidata de criar ferramentas para o seu trabalho como luthier. Ele lembra que deu seus primeiros passos no conserto de instrumentos com um contrabaixista russo que
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conheceu durante o intercâmbio para o Estados Unidos, onde fez parte da Savannah Symphony da Universidade de Georgia. A conversa, regada a canecas cheias de café e croissant de goiabada, flui de maneira espontânea. A janela do oitavo andar presenteia uma vista privilegiada do horizonte porto-alegrense, com o Morro da Glória recortando o céu azul daquela tarde ensolarada e fria de maio. Papo vem e papo vai, me dou por conta que não havia perguntado sobre como a música começou na vida de Risomá — talvez por ser tão onipresente em sua persona que é como se os dois fossem uma coisa só. “Guria, essa história é doida”, ele alerta de forma divertida. Tudo começou ainda na infância, quando foi presenteado com um rádio em um dos seus aniversários. Ouvia música o dia todo. “É uma das poucas coisas que eu lembro dos meus tempos de criança. Minha memória é ruim”, diz. Sempre curioso para entender a funcionalidade das coisas que o cercam, Risomá logo deu um jeito de quebrar o presente em uma pedra no quintal de casa. Em sua imaginação infantil, ele tinha a certeza de que havia uma banda tocando dentro do rádio — “Nem que fosse uma banda de anões”. Ele
autoavalia que ali, nas entrelinhas, já era um sinal direto que a música era algo que o captava. Anos depois, outro episódio — dessa vez ganhando nuances de roteiro de filme hollywoodiano. Abrindo o baú da memória, Risomá lembra de seu pai, Risomar (com um R no final), como um homem rígido e reservado. “Ele era da casa para o trabalho, e do trabalho para a casa. Não tinha nada de ficar visitando parentes, amigos, ou de ficar na rua até mais tarde.” Seu tio trabalhava como taxista — “na época em que todos os táxis eram Fusca” — e, naquele dia específico, decidiu pegar um ônibus e visitar a namorada que morava em uma cidade da região metropolitana de Recife. O Fusca deixado na garagem chamou a atenção de Risomar, que viu ali uma oportunidade de trazer dinheiro extra para a família. A noite era chuvosa. E, quando chove na capital dos pernambucanos, é de forma abundante. Durante as corridas de táxi, Risomar se deparava com um variado leque de personalidades que se sentavam no banco de carona; desde pessoas simplesmente buscando uma forma de fugir da tempestade torrencial a bêbados em busca do próximo bar — esse
último, curiosamente, o mais especial. Dois jovens homens, alterados pelo consumo de álcool, entraram no carro com um violão; e Risomar cumpriu a tarefa de deixá-los em seus respectivos destinos. Um na zona Norte, e outro na Sul. Depois, uma mulher foi a próxima cliente do Fusca-táxi. “Ei, tem um violão aqui atrás”, ela avisou. Seja por façanha do destino ou descuido dos homens bêbados, o violão havia sido esquecido. Ou, talvez, tenha se feito esquecer para encontrar o seu devido lugar. E Risomar levou o instrumento para a casa da família Cordeiro. No mesmo dia, algo também aconteceu no quintal da casa. “Lá, no nosso próprio quintal, achei uma revistinha de cifras de violão. A força da chuva deve ter trazido”, relembra Risomá. Mesmo danificada pela lama, algumas páginas sobressaíram o ímpeto da tempestade — como foi a da música Nego Veio Quando Morre, do grupo musical Os Originais do Samba, que ganhou notoriedade ao figurar na trilha sonora da novela Nina, da Rede Globo, em 1977. Como se fosse algo minuciosamente ordenado para que acontecesse, agora munido com um violão e um manual de cifras, Risomá podia cultivar a sua musicalidade. Musicalidade essa que sempre parece buscar um caminho para encontrar Risomá. A rua de sua casa era um ponto de encontro de músicos seresteiros, que tocavam bandolim, violão de sete cordas e acordeon. Risomá lembra que, só de ouvir os acordes de longa distância, já ficava ansioso esperando a passagem em frente à sua residência. “Eu ficava louco, abria a porta e ia assistir no meio da calçada. Meu pai tinha que me colocar de volta para casa me puxando pelas orelhas”, recorda. Na mesma rua, também havia um ilustre afinador de acordeon — que recebia visitas de Dominguinhos e Sivuca. Lá, faziam rodas de choro e samba; e Risomá ouvia tudo.
ARQUIVO PESSOAL/RISOMÁ CORDEIRO
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Nesse período, ele se apresentava em missas e iniciou sua trajetória em concursos de música popular com a banda que formou no começo da juventude. Sua namorada da época tocava violino e fazia parte de um coral; e Risomá assiduamente frequentava como espectador. “Aqui, aconteceu outra história doida.” Um cantor faltou no ensaio e o coral estava com dificuldade de compensar a ausência de uma voz. Risomá, que já sabia de cor e salteado as músicas e as letras, naturalmente começou a cantar junto. O regente do coral, que também era professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o chamou para conversar. “Acho que tu vai gostar.” “Do quê?” “Quero que tu vá lá na universidade. Procura por Eduardo, ele é professor de contrabaixo.” “Que **** é contrabaixo?” “Vai. Isso vai te dar um rumo na vida.” “Eu não sabia o que era um
contrabaixo. E eu não tinha falado para ele que eu estava sem rumo, eu simplesmente só estava.” Assim, ele acatou o conselho do regente e foi até a universidade com um amigo. Na primeira aula, aprenderam os conceitos básicos do arco do instrumento. “Para mim, foi muito natural. Eu já saí tocando, como se eu já soubesse como aquilo funcionava desde sempre.” Ao contrário de Risomá, o amigo não conseguiu ter o mesmo êxito e abandonou as aulas logo na primeira semana. O ano era 1984, e foi assim que Risomá entrou para o curso de Música na UFPE. Nos anos seguintes, participou de cursos em diversas cidades brasileiras. Fortaleza, Belo Horizonte, Curitiba. “Isso era muito comum na nossa área, naquela época. Eram festivais que músicos de todos os lugares se encontravam para aprender, tocar junto com bandas e orquestras”, conta. Nessas andanças, conheceu os primeiros gaúchos da sua vida: o compositor e maestro Antonio Carlos Borges-Cunha, professor e pesquisador do departamento musical da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Ion Bressan, também compositor, maestro que, na época, estava fundando orquestras em Cachoerinha e Caxias do Sul. “Fizeram uma propaganda imensa de Porto Alegre, e eu fiquei muito empolgado com a possibilidade de oficialmente tocar em orquestra”, relembra. E não deu em outra. Ao voltar para Recife, comunicou aos familiares que estava se mudando
Foi muito natural. Eu já saí tocando, como se soubesse como aquilo funcionava desde sempre”
para a capital dos gaúchos e já havia transferido a faculdade para a UFRGS. Apenas com as malas e sem nenhum instrumento [o contrabaixo era emprestado da UFPE e teve que ser devolvido para o professor], Risomá se estabeleceu em Porto Alegre. “Fazia alguns dias que eu tinha me mudado. Me perdi na Redenção tentando chegar na rua João Telles — porque a Redenção, para quem está chegando, é uma floresta.” Assistiu a um concerto com o maestro Eleazar de Carvalho, que na época era diretor artístico e regente titular da OSPA. Foi ali que decidiu que queria tocar na OSPA. Para se preparar para a prova de admissão na OSPA, Risomá estudava 12 horas por dia. Dormia na capa de instrumentos no prédio do Instituto de Artes da UFRGS, já que lá era o único lugar que poderia ter acesso ao contrabaixo. Por fim, passou em primeiro lugar. “E lá se vão 33 anos que eu faço parte”, define. Atualmente, Risomá se dedica a musicalizar o livro de poemas “No faro das migalhas”, da poetisa Márcia Barbosa. O projeto é para a gravação de um álbum e turnê. n
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NAQUELA MESA MEMÓRIAS E SAUDADES SE REÚNEM EM TORNO DA CANÇÃO DE NELSON GONÇALVES TEXTO E FOTOS DE AMANDA BERNARDO
“Naquela mesa ele sentava sempre E me dizia sempre o que é viver melhor Naquela mesa ele contava histórias Que hoje na memória eu guardo e sei de cor”
N
n Amor, cumplicidade
e cuidado — boina e camisa, também
aquela Mesa, música de Nelson Gonçalves, e naquela mesa, em uma casa no interior da cidade de Santo Antônio da Patrulha, o verso era real. A mesa de madeira de oito lugares poderia facilmente ser diminuída, transformando-se em uma mesa menor, para seis, mas nunca foi preciso. Ao longo dos anos, pelo contrário, era comum faltarem cadeiras ou potes de açúcar e arroz para que os netos e bisnetos se sentassem e ficassem na altura certa. Naquela mesa, além de histórias, a roda de chimarrão era comum e os jantares com cuscuz e feijão mexido mais ainda. A contação de histórias tinha protagonista: Loni João, 76 anos, casado, agricultor, pai de seis, avô de treze e bisavô de dois. Haveria algo de errado se, ao sentar-se ali ou em uma roda de chimarrão na área externa, não houvesse uma história. Haveria algo de errado se não trajasse uma camisa, também. Para lidar com os bois e com o serviço da rua, a paleta de cores era verde — os antigos uniformes da empresa em que uma das noras trabalhava ganhavam nova função ali. Em casa, na igreja ou em passeios mais raros — feitos a algum custo, afinal, “‘véio tem que tá em casa”, ele dizia —, camisas, também. Na cabe-
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n No aniversário
de casamento de 57 anos, o varal contava histórias
ça, poucos cabelos brancos e boina — a presença da boina era mais garantida que a do cabelo. As mãos, calejadas e firmes, não seriam nada disso sem os anos de trabalho no arroz, no plantio de fumo e vassoura e na lida com o gado. As mãos ainda não eram calejadas em uma história que contava sempre. Na infância, Loni e mais dois irmãos caminhavam juntos até a casa da avó antes do horário do almoço. No caminho, a brincadeira do dia provavelmente era a pauta — na vó, tinham mais liberdade para brincar na rua. Já na casa da vó, o almoço era servido e a ideia da brincadeira era interrompida com o aviso: “Já encheram a barriguinha, já não tão com fome, já podem ir embora”. Voltavam sempre, é claro — carinho de vó e vô é diferente. A comida de vó deu espaço, ainda novo, à comida feita na
brasa, no chão de terra ao lado das bolantes — casas em que dormiam os trabalhadores das lavouras de arroz nos anos 60 e 70. Na época, Loni era empreiteiro de arroz. Nas lavouras, o empreiteiro era o responsável por coordenar cerca de 50 homens na colheita do arroz. Ele media a terra, dividia em lotes a serem cortados e, ao final do corte, designava o pagamento conforme o número de lotes cortados por cada um. Após os longos dias de trabalho, que iniciavam às 5h30, os trabalhadores reuniam-se ao redor de uma fogueira na rua. Ali, comiam e conversavam, e, após a janta, deitavam-se nas tarimbas, camas de madeira que formavam treliches dentro das bolantes apertadas. A rotina durava 20 dias e era interrompida por uma pausa no trabalho, quando os trabalhadores voltavam todos em um único caminhão para ficarem alguns poucos dias em casa. Nos meses de abril e maio, entre poucas pausas, a vida acontecia ali, nas cidades de Palmares do Sul e Capivari do Sul. “O caminhão ia embora cheio de homem, ficavam as mulheres ali, tristes”, conta Alzira, 76, esposa de Loni e responsável pelos afazeres da roça naquele período. Junto aos filhos, cuidava da criação e cortava pasto e lenha. O arroz deu lugar ao fumo. Menos distante, mais trabalhoso. O fumo era colhido enquanto
Os anos tomaram para si a agilidade dos passos, mas não havia por que ter pressa
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houvesse sol. Com a colheita da semana pronta, o trabalho mudava de lugar: durante os próximos cinco dias, o fumo colhido nos dias anteriores era queimado no forno — e precisava de supervisão, é claro. Para isso, eram feitos turnos para cuidar da queima. Queimado, o fumo era selecionado, amarrado em manocas e enfardado. Dali uns dias, o caminhão passava para levá-lo à firma.
Na lata “E nos seus olhos era tanto brilho, que mais que seu filho eu fiquei seu fã” “Me ajude, companheiro Que eu não posso cantar só Sozinho eu canto bem, Contigo eu canto mió” Para qualquer situação, um verso ou o trecho de uma peitada. Mais ou menos desbocados, a depender do público. Apesar do apreço pelas histórias e pelos versos, não era difícil vê-lo quietinho — no canto, na cadeira de
praia, com os dedos entrelaçados e os olhos brilhando. Com a casa reunida e o barulho natural da família, esse era seu modus operandi. Dos barulhos da vida, esse era um dos seus favoritos. Em silêncio ou em meio a conversas, era certeiro nas respostas. Fora assim na descoberta da gravidez de uma das netas, ainda nos anos 90. No dia, não foi difícil responder com certeza a frase do filho: “O pai nem imagina o que eu vim fazer aqui”. A resposta não precisou de tempo, nem filtro: “Pela tua cara, a grandona pegou cria”. O conselho recebido passou por menos filtros ainda: “Agora te vira, vai criar teu filho, não ajudei a fazer”.
57 anos “Lá no céu passou uma nuvem da largura de uma fita Não tem dinheiro que pague, o amor de moça bonita” O tempo e o verso garantiam: não há dinheiro que pague amor, cumplicidade e cuidado. O tempo garantiu mudanças, também. Os anos tomaram para si a agilidade dos passos, mas não havia por que ter pressa — casados há 57 anos e com os seis filhos criados, não há por que correr, afinal. Na falta de agilidade, a vida tinha outro ritmo e os grandes gestos de amor moravam quietinhos na rotina. Os remédios eram organizados por ele. O chimarrão feito por ela. A partir de certa idade, ela não pisou em velórios e nem em hortas — o lugar era triste e a terra, escorregadia, respectivamente. Naquela mesa, dentre tantas histórias e versos, o amor não precisa ser contado: ele acontecia baixinho e sorrateiro e era acusado pelo brilho do olhar. “Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim. Eu não sabia que doía tanto, uma mesa num canto, uma casa e um jardim” Loni João Bernardo faleceu aos 76 anos, em decorrência de problemas cardíacos. Deixou esposa, filhos, netos e bisnetos e uma história contada aqui e em todas as mesas que as pessoas tocadas por ele se sentarem. n
n União rendeu
6 filhos, 13 netos e 2 bisnetos
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