Primeira Impressão 40

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Novas palavras, velhos significados

nÂş 40 | dezembro de 2013 |

pi primeira impressĂŁo

Os verbos do mundo online presentes na vida real



LUIS FELIPE MATOS

editorial O jogo da velha virou hashtag

A

palavra inglesa selfie – uma fotografia que uma pessoa faz dela mesma, normalmente com um celular ou uma webcam – foi eleita a palavra do ano de 2013 pelo Dicionário Oxford. A escolha revela, em primeiro lugar, a importância que as redes sociais ganharam na contemporaneidade, pois esse tipo de fotografia é normalmente publicado na rede. Expor, para o maior número de pessoas possível, imagens, pensamentos, opiniões e até bobagens virou rotina e até obsessão para alguns. Mais do que isso, a escolha também mostra como as línguas se mantém vivas. Novas palavras surgem a todo o momento, tanto no mundo online quanto nas ruas, e, com a ajuda das mídias, atravessam continentes e são compartilhadas por pessoas de diferentes culturas. No Brasil, especificamente, este ano também foi marcado pela mistura dos mundos digital e real. Várias manifestações foram planejadas e organizadas na internet para depois tomarem conta das ruas de todo país. Cartazes com palavras de ordem relacionadas com o mundo web – como o uso de hashtags – se misturavam com velhas expressões. As passeatas que enchiam as ruas, depois tinham suas imagens postadas nas redes, mostrando essa mistura do digital com o real só perceptível para os mais velhos, pois, para os mais jovens, já não existem distinções. Foi pensando nisso – e depois de muito debate – que a turma de alunos repórteres e fotógrafos da Primeira Impressão 40 decidiu fazer uma revista que mostrasse como vários verbos que utilizamos no dia a dia podem ser aplicados tanto na web como na vida real. O desafio virou quase uma brincadeira: cada repórter escolheu um verbo que é utilizado nas mídias digitais e viu como ele pode – ou poderia – ser aplicado no dia a dia fora do computador. Algumas palavras já fazem sentido nos dois mundos – mostrando como eles já podem ser vistos como um só –, outras serviram como exercício de imaginação, provocando relações de sentidos. Convidamos você, leitor, a navegar conosco nas próximas páginas. Thaís Furtado Editora de textos

Flávio Dutra Editor de fotos

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 3


índice

6 ACESSAR 10 ADICIONAR 14 ANEXAR 18 ARQUIVAR 22 ATUALIZAR 26 BLOGAR 30 COMPARTILHAR 34 CONECTAR 38 COPIAR

4 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

42 CURTIR 46 CUTUCAR 50 DESLIGAR 54 EXCLUIR 58 FAVORITAR 62 FORMATAR 66 GOOGLEAR 70 INDEXAR 74 LINKAR


DEIVID DUARTE

78 MAXIMIZAR 82 MEMETIZAR 86 MINIMIZAR 90 PHOTOSHOPAR 94 POSTAR 98 RECUPERAR 102 REINICIAR 106 RENDERIZAR 110 RESETAR

114 SALVAR 118 SCANEAR 122 STALKEAR 126 TROLLAR 130 TWITTAR 134 UPAR 138 VIRALIZAR 142 VISUALIZAR 146 ZAPEAR

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 5


acessar NAGY DANIEL / STOCK.XCHNG

no mundo real

6 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


Luta e persistência O difícil caminho até a conquista do diploma Por Carol Santos. Fotos de Rayra Krajewski e Nagy Daniel (Stock.Xchng)

N

o Brasil, a oferta da educação alterouse significativamente a partir dos anos 1990. Houve a ampliação do Ensino Fundamental, o crescimento do Ensino Médio e também do Ensino Superior, cujas matrículas triplicaram. Apesar desse intenso crescimento observado no Ensino Superior, o percentual de acesso dos jovens é ainda muito restrito, abrange 19% na faixa etária de 18 a 24 anos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009 (PNAD). Paulo Sérgio de Melo Barcelos, 32 anos, é um exemplo de quem passou por muitas dificuldades e conseguiu chegar à universidade. Ele é o primeiro filho de um total de sete anos. Seus pais ficaram casados por sete anos. Do casamento, tiveram três filhos. Depois casaram novamente, e desses novos relacionamentos cada um teve mais dois filhos. Paulinho, como é chamado carinhosamente por amigos e familiares, foi criado na periferia de Novo Hamburgo, a 42 km de Porto Alegre. Com a separação dos pais, foram morar nas margens da ERS 239. “Minha mãe foi deixada pelo meu pai. E, como sempre acontece com as mulheres, ela ficou com os filhos: eu com sete anos, meu irmão com seis e minha irmã com 21 dias”, conta. Com as obras de duplicação da rodovia, a família teve de ser retirada do local. O prefeito da época, Paulo Ritzel, removeu as pessoas para o loteamento Flor do Vale, próximo ao Loteamento Kephas. “Nas margens da rodovia, não tínhamos água encanada, nem energia elétrica. Tampouco saneamento básico. Sanitários, somente as velhas patentes”, lembra Paulo. Com a mudança, acabaram recebendo da Administração Municipal um endereço. A mãe de Paulo teve que vender alguns objetos domésticos para pagar uma pessoa para que reconstruísse uma casa de madeira. O local

era melhor. Havia infraestrutura, água, esgoto, energia elétrica. Mas, mesmo com essas melhorias, a situação financeira da família só piorava. Nessa nova casa, a família continuou passando por muitas privações. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas durante a infância e adolescência, Paulo continuou lutando pelos seus objetivos, mas a partir do dia 18 de maio de 2002, ele não lutaria mais sozinho. Naquele ano, Paulo casou com Vanessa. Contrariando a vontade de alguns preconceituosos, que diziam para ele não casar por ela ser negra, Paulo seguiu em frente. “Como eu já fui muito humilhado e também vítima de preconceito por ser pobre, ignorei. Meu amor por ela falou mais alto”, afirma. Como eles não possuíam casa própria, foram morar de aluguel em Dois Irmãos, cidade próxima a Novo Hamburgo. Paulo e Vanessa dividiam a casa e o aluguel com outro casal. Dava cerca de R$ 180 de aluguel, o que para eles era bastante. Paulo e sua esposa trabalhavam em uma fábrica de calçados e decidiram sair do emprego para vender biscoitos e ver se a situação melhorava. Compraram dois carrinhos de carregar malas para poder carregar as bolachas. Todos os dias embarcavam no ônibus em direção a Novo Hamburgo. Caminhavam até vender tudo, voltando tarde para casa. Mas as coisas não andavam bem. Cada vez era mais difícil pagar o aluguel. Diante da situação financeira que começou a ficar insustentável, os dois resolveram voltar para Novo Hamburgo. Sem ter para onde ir, foram para casa da mãe de Vanessa. Os móveis ficaram no pátio expostos ao tempo. “Ficamos nessa situação por pelo menos dois meses. Até que minha sogra decidiu alugar algumas peças para nós morarmos”, conta. Alocados numa espécie de quitinete, tentaPrimeira Impressão n Dezembro de 2013 n 7


acessar ram recomeçar com a ajuda da sogra. Os dois começaram a fazer “cuecas-viradas”, um tipo de bolinho frito coberto com açúcar e canela, para vender. As vendas iam muito bem. Passados alguns meses, a dona da casa começou a reclamar do cheiro das frituras. Portanto, mais uma vez estavam numa encruzilhada. O que fazer? Para onde ir? Não tiveram escolha, restava apenas a casa da mãe de Paulo. “Ao chegar ao destino, meu irmão veio me receber. Perguntou se eu queria comprar a casa que ele tinha nos fundos do terreno da minha mãe, pois estava se mudando”, conta. Paulo aceitou de primeira, mesmo sem ter o dinheiro. A casa era uma meia água, com quarto e sala, em madeira e com uma cozinha de alvenaria. Não tinha banheiro. Quando precisavam usar, tinham que ir até a casa da mãe de Paulo. Ficaram na casinha por pelo menos três anos. Seu pai lhe deu um forno industrial e alguns objetos de padaria, como

no mundo virtual

Iniciar comunicação eletrônica com computador, rede de computadores, programa ou arquivo em computador etc.; conectar-se a. bancada de mármore e um jogo completo de formas para pães e bolos. Decidiram aproveitar os clientes que compravam biscoitos e resolveram se aventurar na produção de bolachas. Tudo que os dois faziam era vendido, mas o lucro era muito baixo. Além disso, não tinham como levar as mercadorias para vender. Com muito esforço, trocaram um telefone celular por uma bicicleta. Uma cliente, que fielmente comprava cuca, perguntou, do nada, se gostariam de comprar sua residência. Vanessa acenou positivamente, mas faltava algo importante, o dinheiro. Ofereceram R$ 300,00 por mês. E, para seu espanto, a cliente aceitou.

Já na nova casa, os dois começaram a ampliar as vendas para conseguir levantar a quantia das parcelas assumidas. Nesse período, decidiram voltar a estudar. Conseguiram bolsa integral no Colégio Marista São Marcelino Champagnat. Com a evolução nos estudos, Paulo já sonhava com a faculdade. Foi então que Vanessa soube que a universidade oferecia desconto para os funcionários da instituição. Na primeira quinta-feira do mês de junho de 2008, os dois decidiram ir até a universidade fazer o cadastro para uma vaga de emprego. Na semana seguinte, chamaram Paulo para contratá-lo no setor de higienização da universidade. Para não abandonar os estudos novamente, Paulo decidiu encarar o trabalho na madrugada. Ficou nesse turno por sete meses. Quando começou a trabalhar na limpeza, não falou para o seu pai. Paulo tomou coragem para contar somente na noite de Natal. Junto com a notícia, contou também

ARQUIVO PESSOAL

n Paulo superou preconceitos, casou com Vanessa, teve dois filhos e se formou em Jornalismo RAYRA KRAJEWSKI

8 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


RAYRA KRAJEWSKI

n Além das teorias,

Paulo aprendeu na faculdade tarefas simples do dia a dia, como enviar e-mails

que havia passado em quarto lugar no vestibular para Jornalismo. Seu pai ficou feliz e triste. Feliz por saber que seu filho havia concluído o Ensino Médio. Triste por saber que o filho não queria mais ser padeiro como ele. Atualmente, Paulo continua padeiro e confeiteiro nas horas vagas. Paulo sempre levou os estudos a sério. Saiu logo fazendo sete disciplinas. Procurava fazer sempre o máximo. Não era fácil para uma pessoa que aprendeu a acessar a internet ou enviar e-mail, ali mesmo na universidade. Mas curiosidade e desejo de aprender foram fundamentais para o seu desenvolvimento intelectual e profissional. Saía de casa as 5h40min, para começar a sua jornada de trabalho das 7h às 16h45min. “No final do turno, já corria para a sala de informática para colocar os estudos em dia.” Às 19h20min ia para a sala de aula e, finalmente, às 22h25min embarcava no ônibus para voltar para casa. “Uma vizinha chegou a perguntar

para Vanessa se eu havia ido embora de casa, pois não me via mais”, conta, achando essa situação engraçada. SONHO REALIZADO No dia 27 de junho de 2013, Paulo chegou cedo à universidade. Era uma tarde cinzenta. Quando estacionou seu carro, desabou em lágrimas. Uma mistura de alegria, emoção, pois naquele instante ele entrava no campus para apresentar seu Trabalho de Conclusão de Curso, o tão temido TCC. Chorou em pensar que seria um jornalista. Também chorou ao lembrar de tudo que havia passado, nos quatro anos e meio de curso. Ao término da apresentação, o resultado: Paulo conseguiu passar e se formaria em Jornalismo. No dia três de agosto de 2013, uma sexta-feira, às 19h, Paulo entrou no teatro onde foi realizada a formatura e conseguiu, com muita garra e luta, transformar o sonho de ser jornalista em realidade.

impressões de

repórter

Sempre gostei de ouvir as histórias que as pessoas têm a nos contar. A grande maioria nos traz algum tipo de ensinamento, ou nos motivam a não desistir do que estamos almejando. O meu interesse por esta história aumentou após ler inúmeras notícias e artigos sobre a educação no país, que diziam que havia aumento significativamente o número de pessoas que consegue acesso ao Ensino Superior. Escrever sobre a história de uma pessoa que passou por dificuldades a vida toda, e ainda assim conseguiu entrar para o Ensino Superior e concluí-lo, foi muito emocionante e gratificante. Poder conversar com alguém que mal conhecemos e conseguir saber detalhes de como foi a sua vida, de como foram acontecendo suas conquistas, com certeza é a melhor parte de ser jornalista.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 9


adicionar no mundo real

Olha quem está falando Novas palavras criadas no ambiente digital inserem-se no cotidiano offline

Por Alessandra Ribeiro Fedeski. Fotos de Camila Capelão e Mariana Staudt

“B

orocoxô”, “Patavinas”, “Bulhufas”. Se você conhece essas expressões, há uma grande probabilidade de ter nascido em um período anterior a 1950, junto com a TV no Brasil. Mas hoje a internet e as tecnologias digitais trazem novas expressões, como “twittar”, “deletar”, “add” e as adicionam aos vocabulários online e até rompem o espaço virtual, chegando nos vocabulários offline. São palavras que serão ensinadas por aqueles que nascerem hoje para seus pais e avós lá da década de 1950, e eles provavelmente farão uso de, pelo menos, uma parte delas. Tanto as palavras encontradas nos dicionários quanto as gírias sempre existiram. Ocorre que hoje as palavras provenientes do meio digital estão inseridas no cotidiano, nas relações pessoais e profissionais. Palavras que foram inseridas em nosso vocabulário por serem relacionadas com a tecnologia digital saem do computador e vão parar nas conversas formais e informais, e até mesmo em trabalhos acadêmicos, como é o caso de link, deletar, clicar ou email.

10 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

“O contexto onde determinadas palavras são inseridas deve ser levado em consideração”, diz Adriana Amaral, coordenadora da Especialização em Cultura Digital e Redes Sociais da Unisinos. Um diálogo em uma mesa de bar, por exemplo, não vai ser adequado em um trabalho científico, seria no mínimo estranho. Outra novidade, em termos linguísticos, é a americanização de algumas dessas novas palavras. Para Adriana Amaral, essa característica não foge de uma normalidade mais ampla, visto que os americanos muitas vezes estiveram à frente da maioria de processos inovadores que envolvem economia, cultura e tecnologia. Nas páginas oficiais online de empresas ou entidades, determinadas expressões já amplamente difundidas na internet não podem ser usadas sob a alegação de se manter uma “formalidade”. Mas e como saber até onde ir com o “tecnologiquês”? Para a professora Adriana, é preciso discernir bem, já que cada meio tem o seu tipo de linguagem. Já o webwritter Fernando Dupont acredita que, com a maior absorção das palavras pelas gerações atuais, a ten-

dência é que os termos do “internetês” cheguem cada vez mais até na literatura. Logicamente que nem todas as palavras e expressões poderão circular nos mais variados meios, pois algumas não têm significado fora do ambiente digital. A hashtag (palavras-chave antecedidas pelo símbolo “#”, que designam o assunto o qual está se discutindo em tempo real no Twitter, e que foi também adicionado ao Facebook e ao Instagram), por exemplo, é um símbolo que, se usado de forma indiscriminada em um texto jornalístico, perderá o sentido. Escrever fora do ambiente digital expressões como #soquenao, #sualinda, #cute, #vergonhalheia, não faz muito sentido, já que elas são destinadas a um determinado grupo em um determinado contexto e que dura um tempo determinado. Para Dupont, a internet existe, entre outras coisas, para encurtar distâncias. Exemplo claro disso são as redes sociais, que hoje possuem papel significativo no ambiente da internet e fora dela. Se, há muitos anos, uma carta que levaria dias para ser entregue era a forma mais eficiente de manter conta-


MARIANA STAUDT

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 11


MARIANA STAUDT

n O webwritter Fernando

Dupont acredita que os termos do “internetês” serão cada vez mais utilizados até na literatura

to com uma pessoa distante, hoje uma janela de bate papo no Facebook tem resposta instantânea e pode incluir fotos, vídeos e músicas. Essa facilidade faz com que cada vez mais as redes sociais façam parte da vida das pessoas e, consequentemente, que as expressões utilizadas nesse ambiente passem a fazer parte do vocabulário de muita gente. Não faltam palavras em nossos dicionários, mas, mesmo assim, novas expressões, oriundas da tecnologia ou não, se disseminam a todo instante, 12 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

pois a língua é viva. Com a mesma rapidez que surgem, algumas palavras podem sumir, ou seja, podem ser usadas por um período curto e não chegar a serem incluídas nos dicionários, caindo no esquecimento . No campo profissional, muitos homens já foram substituídos por máquinas. Mas, para Dupont, o mundo digital possibilitou a criação de outras novas profissões. Uma delas é a que ele exerce hoje: webwritter, aquele que escreve na internet. Formado em Comunicação Digital, Dupont, hoje com 23 anos, já tinha um fórum na internet aos 14. Nasceu na nova geração e conseguiu aliar a profissão com o hobby da adolescência, os games. De uma atitude empreendedora, possibilitada pelo uso das tecnologias, nasceu um canal no Youtube e um blog, de nome Craft Studios. Dupont e mais dois amigos do Rio de Janeiro iniciaram o projeto após conhecerem-se na internet. A paixão por games motivou as

primeiras animações realizadas. Porém, a pedido do público, o foco do Craft Studios mudou, e os proprietários passaram de gamers a produtores de conteúdo. De tímido tamanho, o então canal de narração e apresentação de jogos não trouxe um significativo retorno financeiro, ficando então apenas como hobby para Dupont. O seu sustento agora é garantido ao exercer a profissão de webwritter. A cada semana tem que conviver com uma novidade do universo tecnológico, o que é considerado ótimo pelo jovem. Dupont observa o estranhamento à linguagem virtual como algo intrínseco às pessoas de mais idade. Para ele, os que estão nascendo agora já serão educados para compreender esses novos tipos de linguagens. LÍNGUA VIVA A professora Adriana Amaral também percebe a língua como uma enti-


CAMILA CAPELÃO

adicionar no mundo virtual

Utilizado principalmente nas redes sociais, o termo se refere a incorporação de elementos, como imagens, amigos, arquivos e postagens.

impressões de

repórter

dade viva, que se modifica constantemente e que incorpora determinadas expressões, como já foi feito com a Gillette, com o Nescau e tende a continuar na internet. E a evolução não deve parar por aqui. Dupont visualiza um leque de opções muito maior. Para ele, a internet passará a se incorporar de tal forma na vida das pessoas que praticamente tudo estará online. A tecnologia digital não é um monstro do Lago Ness que vai usurpar as nossas vidas e as inserir em um universo paralelo. Ela já está ambientada em lugares que muitas vezes nem percebemos, como, por exemplo, em uma câmera digital que mostra as fotos na hora em que são tiradas, ou em uma votação eletrônica para eliminar este ou aquele participante de um reality show. Inicialmente acusada de isolar as pessoas diante do computador, hoje, apesar de ainda não estar amplamente difundida no Brasil – dados do IBGE

apontam que 53,5% dos brasileiros com mais de 10 anos não tinham acesso à internet em 2011 – a internet assume um papel de imponência natural. Ou seja, independente das expressões que usarmos, a força prática das tecnologias digitais está inserida no todo social. De certa forma, acabamos por voltar a usar a linguagem escrita na comunicação interpessoal por meio da internet. Acrescentamos ao aprendizado pela imagem, característico do período de predominância da televisão como grande meio de comunicação de massa, o conhecimento digital, que elimina distâncias em uma globalização hegemônica. Isso não quer dizer que expressões de culturas locais ou gírias usadas em determinada época estarão fora de uso ou sem novas criações, mas elas estarão mais restritas às conversas informais. O que vem por aí já vem transformando a forma como víamos determinadas palavras.

A ideia central da revista já me agradou de imediato: verbos, tecnologias, internet. O tema não poderia ser melhor e mais atual. Essas expressões estão absolutamente presentes nas rotinas de trabalho e estudos dos jornalistas, sejam eles já graduados ou quase chegando lá. Assim, desde os primeiros passos da construção da pauta com a pesquisa de informações e até o contato com as fontes e a construção da reportagem, as coisas foram se desenvolvendo de uma maneira tranquila e eficaz. Durante o desenvolvimento da entrevista com as duas fontes, a minha visão do universo digital e tecnológico ampliou-se. Foram novas percepções, conhecimentos e possibilidades que contribuíram tanto para meu desenvolvimento pessoal, quanto para o enriquecimento da reportagem. Creio que é dessa maneira que devemos nos sentir após o término de qualquer texto jornalístico. Com os contatos obtidos, percebi ainda o quão importante é estar sempre atualizado. As mudanças de softwares, de aplicativos e até mesmo de linguagens costumam surpreender, fazendo com que as pessoas desprevenidas tenham que correr atrás do tempo perdido. Fiquei bastante otimista ao perceber a possibilidade de qualquer pessoa – não necessariamente ligada a alguma grande empresa – ser capaz de empreender no mundo digital. O caminho é bem menos burocrático, e a disseminação e expansão estão mais próximas. Além do prazer, o lucro financeiro e a divulgação de conhecimentos propiciados pela internet surpreenderam.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 13


anexar no mundo real

Um novo filho 14 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


Tatiana e JoĂŁo Pedro querem adotar Telmo, de 54 anos Por Ubirajara da Costa. Fotos de Luis Felipe Matos

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 15


D

e acordo com o artigo 1º da Lei Nacional de Adoção brasileira, a adoção é a inclusão de uma pessoa em uma família distinta da sua natural, de forma irrevogável, gerando vínculos de filiação, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-a de quaisquer laços com pais e parentes biológicos. Tatiana Silva da Silva, 31 anos, viúva, cuidadora de pessoas, e seu esposo, João Pedro Barreto da Rocha, 65 anos, serralheiro, vivem, em Tapes, a 108 km de Porto Alegre, na localidade do Butiá, uma área rural, zelando pela vida de Telmo Rocha, 54 anos. Telmo é deficiente mental e foi incorporado à família do casal em meados de 2011, após sua família alegar falta de condições em cuidá-lo. Ele passa grande parte do tempo numa modesta cadeira de rodas. Telmo já teve dois acidentes vasculares cerebrais (AVC), sendo o último há cerca de um mês. A história de vida de Telmo é impactante, triste até. São muitos os obstáculos existentes nessa adoção, como as limitações de Telmo em se locomover e se expressar. Mas o casal, João Pedro e Tatiana, ou Tati, como é conhecida, consegue driblar as dificuldades com os momentos de lazer e descontração em família. Para atender as necessidades do adotado, de modo legal, o casal tem uma guarda provisória judicial. Ela pode avançar para uma tutela definitiva que possibilita ao casal toda a administração de um incapaz mental. “O pai de Telmo, que é muito velhinho disse que não podia ficar com o filho, e aceitamos cuidá-lo”, conta Tati com naturalidade. Ela acrescenta que, desde que cuidou de Telmo, por cerca de três meses no hospital local, quando ele sofrera ainda o primeiro AVC, ele teve o 16 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

anexar no mundo virtual

Disponibilizar um documento ou arquivo, em seu formato original, junto a um e-mail.

mesmo comportamento, o mesmo ‘jeitinho’. “Telmo não me incomoda. O pai dele, o seu Nilo, me procurou pedindo para que eu cuidasse, e ele veio pra cá. Isso foi cerca de um mês depois que ele saiu da primeira internação hospitalar.” Tapes, uma cidade com 17 mil habitantes, onde agora reside Telmo, é uma localidade distante 4,5 km da área urbana do município, cercada por fazendas e sítios. O ambiente onde Telmo mora com Tati e João Pedro, mais os filhos do casal, um menino de 15 anos, do primeiro casamento dela, e, uma menina de 12 anos, da união com João Pedro, é, certamente, propícia ao desenvolvimento cognitivo de uma pessoa com tantas limitações. No sítio, há ovelhas de corte. Há também muitas galinhas, galos, criação de porcos, um laguinho com peixes, cachorros, muitas aves, muita sombra de árvores frutíferas, e chão batido, repleto de folhagens secas no fim do inverno. Telmo tem mais dois irmãos, mas um deles está desaparecido. O outro possui um quadro clínico semelhante ao de Telmo, de deficiência mental. A mãe, Joana Rocha, faleceu quando Telmo tinha apenas 9 anos. Seu pai, Nilo Lopes, tem hoje

92 anos, reside sozinho, num sítio, próximo de onde Telmo hoje mora com Tati e João Pedro, mas sem condições financeiras e de saúde. Esporadicamente, consegue deslocar-se sob ajuda para as eventuais visitas ao filho. Tati e João Pedro mantém as despesas relativas à Telmo, hoje, com um auxílio-doença no valor de um salário mínimo. Ambos aguardam a decisão do Ministério Público (MP) pela guarda definitiva de Telmo. Tati conta que já estava preparada para assumir Telmo após o pedido de seu Nilo. “Eu já sabia que era definitivo. Ninguém da família quis ficar com ele, pois diziam não ter tempo. Todos trabalham, conta sem arrependimento. Para a chegada de Telmo, o casal fez na pequena residência algumas mudanças. O filho de Tati deslocou-se para um outro quarto com a irmã, dando lugar a uma cama hospitalar para Telmo. Mas uma nova peça será construída, especialmente para atender com mais qualidade o novo morador. Telmo faz uso de muitos remédios e até de fraldas geriátricas. A ação de Tati, que poderia destacar como destemida, recebeu aprovação de seus familiares. “Eles não se importaram”, diz. Tati comenta que sua vida teve algumas mudanças. Contudo, não demonstra estar desanimada. “Dá mais trabalho cuidar de pessoas assim, tem de dar banho, alimentar na boca, trocar fraldas, tudo é feito por mim”, conta. A possibilidade de levá-lo para um asilo, segundo Tati,

n Deficiente mental, Telmo ganhou uma nova família em 2011, quando seu pai não teve mais condições de cuidá-lo


foi rejeitada. Todos temiam pela saúde de Telmo. Ela acredita que, se Telmo estivesse num asilo, não estaria mais vivo. Tanto Tati quanto o João Pedro revelam que se numa eventualidade algum familiar levasse-o embora, o sentimento seria muito grande. Por fim, João Pedro conta que o que mais pesou na “adoção” de Telmo foi o lado afetivo. Este gesto de humanidade pode surpreender a muitos, mas serve de modelo, certamente, nestes dias de indiferença, em que o calor humano está em baixa.

impressões de

repórter

Tão logo definimos o tema da revista Primeira Impressão 40, pensei na história de uma amiga, Tatiana Silva da Silva. Por força de uma eventualidade, ela cuidou de um familiar meu, que infelizmente faleceu. Nas conversas, ao longo do período em que estivemos convivendo, num ambiente hospitalar, além de um comportamento muito simples de sua parte, me chamava a atenção a dedicação que ela tinha com os pacientes, indistintamente. Quando me contou a história da adoção de Telmo Rocha, fiquei surpreso, pois não é todo o dia que uma pessoa adota um adulto, especial. Telmo é uma pessoa com uma história de vida complicada e cheia de limitações. Entretanto, vi que, junto com seu esposo, João Pedro, ela consegue ter um carinho por Telmo, que sequer tem vínculo familiar. Não sei se faria o mesmo, não sei se outras pessoas fariam também. Por fim, Tati me ensinou algumas coisas que irei agregar em minha vida. Ensinamentos que serão importantes para ver o quanto nossa vida é maravilhosa.”

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 17


arquivar MARINA CARDOZO

no mundo real

18 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


TAIZE ODELLI

MARINA CARDOZO

MARINA CARDOZO

MARINA CARDOZO

Profissão tabu

Funcionários de uma funerária e de um crematório relatam como é estar diariamente em contato com a morte Por Marina Matias Corte. Fotos de Marina Cardozo e Taize Odelli

E

ntre montanhas, há um lago de água cristalina. Nele, flutua suavemente um barquinho de madeira. Ao fundo, reflexos do sol iluminam a cena. Esse poderia ser o relato de um fim de tarde de pescaria, mas é a descrição da pintura que faz parte do altar da sala de cerimônias do Crematório Metropolitano São José, em Porto Alegre. Maristela Bueno Amaral, funcionária da empresa há três anos, acredita que a paisagem ajuda a imaginar que a morte não é o fim. “Um barco só desaparece no nosso campo de visão”, esclarece. “Mas em algum lugar ele está.” Os rituais funerários têm um papel

importante no processo de luto. São uma forma simbólica de aceitar a passagem da vida para a morte e começar um doloroso processo de desvinculação para os familiares enlutados. Quem explica é a psicóloga Claudia Corazza. Segundo ela, o ritual marca de forma concreta o enfrentamento da perda e se torna um momento de socialização da dor. Atualmente, o destino mais comum de um corpo é o cemitério, mas a cremação é uma opção cujo número de adeptos vem crescendo. Para Claudia, é difícil perceber uma relação absolutamente vinculada entre a forma do sepultamento e a superação do luto, mas tanto o enterro quanto a cremação, fazendo parte

do conjunto das doutrinas religiosas ou crenças de uma pessoa, podem trazer o conforto: “É a esperança de continuidade que uma crença pode suscitar”. A morte é, no ditado popular, “a única certeza da vida”. Em função do abalo e da inaptidão das pessoas em aceitá-la, no entanto, acaba se criando um tabu e uma negação em torno da perda. “Os rituais funerários servem, então, como uma forma de extravasar a inconformidade em um ambiente de enfretamento e amparo”, explica a psicóloga. Respeitar a opção de quem se foi também pode ser uma auxílio no processo de luto. Foi o caso de Maristela, que perdeu o pai há cinco anos. Na época, ela não estava Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 19


FOTOS MARINA CARDOZO

n Maristela é

cerimonialista do Crematório Metropolitano São José, em Porto Alegre. Germano é consultor de atendimento da Funerária Previr, também na Capital. Os dois trabalham diariamente com o ritual de despedida familiarizada com a cremação, mas acatou o pedido do pai. A cerimonialista, de 30 anos, conta que muitas pessoas ainda têm certo receio quanto ao procedimento de cremação. Alguns imaginam que o procedimento é feito em conjunto e não individualmente ou que o caixão é revendido. “Eu tinha essa visão quando o meu pai foi cremado”, admite. “Não queria participar da cerimônia, porque pensava que a gente iria assistir à cremação.” Hoje, Maristela sabe que o máximo que iria ver seria uma porta dourada baixar lentamente, revelando a reconfortante paisagem do lago entre montanhas. CERIMÔNIA E CREMAÇÃO Ao descer, a porta flavescente não revela fogo, mas a já citada paisagem do barquinho. O mecanismo – uma esteira – está instalado sobre um altar. Ao final da cerimônia religiosa (que é opcional), o ataúde é colocado na esteira e, em silêncio ou ao som de flauta ou violino ao vivo, desliza sobre ela. até o subsolo, onde está localizada uma câmara de conservação. Por lei, o corpo precisa esperar 24 horas para ser cremado. Após esse período, ele é então transportado para o equipamento de cremação. Em outros locais, no lugar da porta dourada há uma cortina marrom ou azul e a opção de uma chuva de pétalas de rosa. O esquife, nesse caso, não desliza, mas desce por um elevador. “Tudo nós fazemos de acordo com o que a família deseja”, sublinha Maristela. 20 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

O serviço oferece até lembrancinhas personalizadas. “Antes isso não existia”, diz a cerimonialista. “Certas pessoas acham muito estranho, mas outras chegam aqui já sabendo e querendo.” A tecnologia igualmente divide opiniões. Enquanto alguns acham “um horror”, há os que chegam com o pen drive recheado de fotos para serem exibidas durante a cerimônia. O equipamento de cremação fica no subsolo de uma capela. Ao final do prazo de 24 horas, os funcionários transportam o corpo (dentro do caixão) em um carrinho. Só são retirados os adornos do ataúde, como alças, espelhos e vidros. O forno trabalha em aproximadamente mil e duzentos graus, levando de duas a três horas para completar o processo de incineração. “O calor é tão grande que consome tudo. Só permanecem os ossos”, explica Maristela. “O que nós entregamos à família são os ossos calcinados.” – grosso modo, triturados. Ou seja, os ossos são levados a um processador, tornando-se as cinzas do ente

arquivar no mundo virtual

Classificar, guardar ou depositar documentos em pastas do computador ou em mídias externas.

querido. Por esse motivo, quando é feita a documentação de autorização da cremação, pergunta-se à família se existe algum pertence junto ao corpo que eles queiram reaver antes do procedimento. Afinal, nem a aliança de casamento sobreviveria a tamanho calor. A FUNERÁRIA Esqueça aquela imagem clássica de funerária, com caixões enfileirados na fachada. Na Previr, em Porto Alegre, o ambiente não é nada sepulcral. Marco Germano, 44 anos e há cinco trabalhando na área, é consultor de atendimento na empresa. Ele diz, orgulhoso, que cuida da pessoa que faleceu, mas também das que ficaram. “Isso é muito gratificante”, afirma. No entanto, nem todas as funerárias são assim. “Existem empreendimentos que não entregam o que vendem”, critica. “Por isso, se enxergam por aí corpos com algodão no nariz e ataduras na cabeça.” Germano explica que a principal preocupação da funerária é a segurança no velório, sem exalação de odores ou vazamento de fluídos. Quanto à vestimenta, a família pode trazer, mas, se não possuir, a própria empresa fornece. A maquiagem depende muito do que a família determina. Por isso, ela é um dos tópicos de um questionário que busca saber a intensidade da pintura, tons preferidos e se está autorizada a


Passo a passo Conheça os procedimentos padrões da hora do óbito ao momento do enterro ou cremação:

retirada de pelos faciais. Na opinião, bem humorada, de Germano, “não há o que não aja” em uma cerimônia de despedida. O funcionário já viu, por exemplo, casos de familiares que bateram no féretro para ver se esse era feito de madeira ou MDF. LIDANDO COM A DOR “Quando tu chegas aqui, tens que esquecer a vida lá fora”, destaca Maristela. Para a cerimonialista do crematório, é preciso estar preparado psicologicamente e emocionalmente. Dos momentos de dor, ela tira lições. “A minha vida pessoal mudou muito com o trabalho aqui, fiquei mais sensível, conta. “O nosso tempo é tão precioso, e a gente às vezes se importa com coisas tão pequenas.” Ela hoje pensa muito na própria morte. Já sabe até como será a sua cerimônia. Nas últimas férias, gravou um vídeo, que – já avisou os colegas e familiares – deverá ser exibido durante a despedida. Germano, funcionário da funerária, evita tais pensamentos. “Eu penso é na vida”, diz ele, que procura cuidar da saúde para manter a morte distante. Os dois, no entanto, têm um lado em comum: se apaixonaram pelo que fazem. “É relevante demais para a família”, diz Germano. “É um serviço essencial, e para mim é muito gratificante realizá-lo.” Ele continua se emocionando com o óbito e com as pessoas que ficaram. “Tu não ficas mais frio por lidar com a morte todos os dias, ficas ainda mais emotivo”, diz. “Ver o quanto as pessoas se penitenciam por atitudes que tomaram ou deixaram de tomar faz repensar a vida.” Maristela pensa da mesma forma: “Não tem como um ser humano não se deixar tocar, no sentido de refletir o que está fazendo com a sua vida. Nós não somos nada, afinal”.

F Na maioria dos casos, a morte ocorre no hospital, mas a pessoa também pode falecer em uma casa de repouso ou mesmo no trânsito; F Se o óbito ocorre no hospital, uma Declaração de Óbito é fornecida pelo médico. Caso contrário, o Departamento Médico Legal ou Instituto Médico Legal realiza perícia no corpo para saber a causa da morte; F A empresa funerária começa o seu trabalho. A primeira coisa a fazer é conferir a Declaração de Óbito; F Em um cartório, a funerária e a família do falecido transformam a declaração em uma certidão; F Eles vão até uma Central de Óbito, órgão vinculado à prefeitura municipal, no qual comunicam a morte e pegam uma Autorização de Translado e Remoção. Sem esse documento, não é permitida a retirada do corpo do local da morte, nem a entrada dele em um cemitério ou crematório; F A família vai até a funerária, onde é feito um contrato de prestação de serviço; F O corpo é transladado para o laboratório da funerária; F A família escolhe o ataúde. É contra a lei enterrar ou cremar corpos que não estejam dentro de caixões; F Começa o processo de preparação do corpo: higienização, vestimenta, maquiagem e ornamentação do féretro; F O corpo é transladado para o cemitério ou crematório.

impressões de

repórter

Falar sobre a morte é delicado. Corre-se o risco de fazer comentários de mau gosto ou mesmo escorregar na escolha das palavras. Cada detalhe importa. Percebi isso mais ao ouvir os depoimentos dos entrevistados do que ao escrever a reportagem. Eles foram altamente profissionais ao responder minhas perguntas. Evitaram as palavras “corpo”, “caixão” e “morte”, por exemplo, preferindo empregar termos como “ente querido”, “ataúde” e “óbito”. As escolhas, acredito, demonstram grande respeito pelo trabalho que escolheram e, acima de tudo, pelas famílias que atendem. A escolha do subtema me pareceu muito natural, pois sempre nutri certa curiosidade sobre ele – assim como, acredito, muitas outras pessoas. Penso que ter tido a oportunidade de conversar com a Maristela e o Germano foi fundamental no processo de desmistificar procedimentos tabus e entender que, mais que ética profissional, o respeito é uma questão humana. Certamente, esta é uma pauta que ficará marcada em minha memória.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 21


atualizar no mundo real

Olhar para dentro A meditação como ferramenta de desenvolvimento interior Por Bruno dos Santos Gross. Fotos de Gabriela Barbon e Yasmim Lopes

O

estresse que faz parte do cotidiano de milhares de brasileiros gera um desequilíbrio que, no decorrer do tempo, traz sérios problemas, sejam refletidos em nossa saúde ou em nossa estrutura emocional. Quando nos damos conta, estamos vivendo uma vida desregrada e mecânica, sem propósitos além do imediatismo exacerbado do cotidiano. No meio dessa correria, acabamos cuidando apenas da parte externa do nosso corpo, afinal, o pensamento imediato só nos pede isso, precisamos realizar a manutenção da aparência para o nosso emprego, para nos apresentarmos diante da sociedade a qual estamos inseridos. Aí surgem os problemas que, a cada dia, se tornam mais comuns: estresse, insônia, depressão, problemas de memória e concentração. Foi por conta desses problemas que o almoxarife da Polícia Civil Antônio Budzikowski, 30 anos, procurou alternativas e encontrou na meditação uma melhora em diversos aspectos de sua vida. “Eu vivenciava uma rotina desregrada quase que habitual e mecânica, geralmente acordava meio dia, desanimado e sem propósitos claros na vida.” Ex-aluno do curso de Ciências Contábeis na Unisinos, Antônio enfrentava problemas para desenvolver os conteúdos abordados em aula. Ao final da noite, quando retornava para casa, um novo processo se dava. “O da insônia, acompanhado de ansiedade, desatenção, que culminava sempre em problemas de memória. A meditação me proporcionou evoluir em meus processos mentais

22 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

e cognitivos”, conta. Apesar da associação entre as questões tradicionalmente relacionadas à espiritualidade e essa prática, a meditação pode também ser praticada como um instrumento para o desenvolvimento pessoal em um contexto não religioso. A palavra meditação vem do latim meditare, que significa “voltar-se para o centro no sentido de desligar-se do mundo exterior” e “voltar a atenção para dentro de si”. É uma forma de acalmar a mente para enfrentar os problemas as tensões cotidianas. Muitas pessoas já ouviram falar em meditação, entretanto, são poucos os que de fato buscam informações e inserem a prática no cotidiano. Em fevereiro de 2006, a agência dos Estados Unidos responsável por pesquisas médicas, a National Institutes of Health (NIH) reconheceu formalmente que a meditação é uma prática terapêutica e que pode ser associada com a medicina convencional. Em maio desse mesmo ano, o Ministério da Saúde brasileiro baixou uma portaria que incentiva postos de saúde e hospitais públicos a oferecer meditação em todo o país. Alfredina de Souza é professora inativa do Estado e, atualmente, instrutora do Instituto Gnóstico de Antropologia, tendo realizado um curso no Monastério de Guadalajara, no México. Para ela, só se descobre a importância da meditação quando se compreende que ela é a bússola que nos indica o caminho para Deus, porque traz consigo a disciplina “Esotérica da


YASMIM LOPES

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 23


FOTO S

YA SM IM

LO PES

n Alfredina e Antônio

encontraram na meditação uma forma de tranquilizar a mente

Mente”, que não pode ser ensinada, porém pode ser aprendida e estudada individual ou coletivamente. Essa prática, além de acentuar a capacidade de manter a disciplina, proporciona melhorias na qualidade de vida e também busca promover uma mudança interior. Criando uma analogia com o universo da internet, é como se fizéssemos uma atualização na versão do nosso firmware interno e, em decorrência disso, corrigíssemos alguns problemas do nosso sistema além de potencializarmos algumas funcionalidades, criando assim uma nova versão de nós mesmos, mais completa, revisada e atualizada. De acordo com Alfredina, medita-se para se obter tranquilidade, para aperfeiçoar-se internamente e ter acesso às experiências dos mundos superiores. Também se pratica a meditação para transformar a maneira de pensar, de sentir e de agir e de participar da vida em seu “livre movimento”. Para Antônio, os resultados foram bastante consistentes: “Percebi que, ao longo do tempo, meus pensamentos se organizavam melhor, com maior rapidez e fluência, e minha memória estava extremamente funcional. Sentia que meu cérebro estava se desenvolvendo e eu estava tendo uma qualidade de vida melhor”. O almoxarife ainda revela que percebeu melhorias em seu trabalho, como maior atenção, concentração, ânimo e raciocínio para a realização de suas tarefas. 24 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

Contudo, o grande desafio para quem quer sair da inércia psicológica habitual, para quem deseja promover essa mudança interior, é conseguir conciliar disciplinadamente as práticas meditativas com as rotinas diárias. Para a instrutora do Instituto Gnóstico de Antropologia, não existe um tempo determinado de dedicação à prática. “A meditação é uma técnica aplicada que depende de condições internas e externas de quem pratica. Portanto, o tempo é relativo à pessoa e ao grupo.” Quanto às condições externas, ela destaca um ambiente adequado onde se possa obter quietude e se evitar interrupções. Também aconselha a utilização de música apropriada para a técnica (geralmente música clássica ou instrumental) e o uso de perfumes, incensos e florais. Como fatores internos para uma boa meditação, ela menciona algumas práticas, tais como: relaxamento corporal, mental e a respiração diafragmática. É através dessa técnica que se consegue aumentar significantemente a capacidade volumétrica dos pulmões em mais do dobro. Desse modo, o corpo é mais oxigenado, inclusive o cérebro. MANTRAS PARA HARMONIZAR Para tentar conciliar suas tarefas cotidianas com a prática meditativa, Antônio conta que acorda mais cedo, organiza-se e efetua sua primeira meditação com o nascer do dia, realizando mantras para se harmonizar consigo mesmo. No final do

dia, quando chega em casa, o processo se repete, desta vez, faz uma meditação para uma melhor qualidade de sono, realizando uma espécie de limpeza mental. Considerada a doença do século, a depressão atinge, atualmente, entre 5 a 10% da população do país, sendo a grande maioria na região metropolitana de São Paulo. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença afeta cerca de 340 milhões de pessoas e causa 850 mil suicídios por ano em todo mundo. Depressão e ansiedade são responsáveis pela metade (740 milhões de pessoas) das doenças mentais existentes no mundo. Antônio também era depressivo: “Desânimo, aflição, ansiedade e apatia, eram problemas que eu tinha. A meditação não faz milagres, principalmente da noite para o dia. Ela é um exercício constante que nos leva a níveis de autoconhecimento cada vez maiores. O ato de meditar nos ajuda a enxergar nossos erros e defeitos, para que possamos evoluir em nossa jornada”.

atualizar no mundo virtual

Na web, é aplicado a situações onde determinadas páginas renovam informações e exibem dados mais recentes.


repórter

Sempre penso que nessas matérias em que nos é possível escolher sobre o que iremos escrever, o assunto nada mais é do que um reflexo de nossa curiosidade, de nossa inquietação mental. Já faz algum tempo que me questiono a respeito e, aos poucos, busco inserir a meditação a minha rotina, pois me enquadro na faixa dos “milhares de brasileiros” que se atordoam com o estresse desse cotidiano agitado. Há também, por trás disso, uma busca interior, espiritual e de autoconhecimento. Isso tudo me levou a escolher a meditação. Engraçado que, justamente por causa da minha correria cotidiana, acabei fazendo as entrevistas pela internet e não pessoalmente (uma por e-mail e a outra pelo facebook). Mas ambas foram bem sucedidas e obtive as respostas necessárias para desenvolver a pauta. Por falar nisso, agradeço ao Antonio e a Alfredina (aprendi a não chama-la de “Dona”) por terem sido muito solícitos e participativos. Também agradeço as fotógrafas Gabriela Barbon e Yasmin Lopes que ilustram a matéria.”

GABRIELA BARBON

impressões de

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 25


blogar

no mundo

real

26 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013

“Querido


diário...”

Saiba como a psicologia e a história explicam o uso de diários, considerados os precursores dos blogs de hoje em dia Por Laís de Oliveira Fotos de Gabriela Giralt

D

epois de tanto tempo sem escrever essas duas palavras do título desta reportagem, elas até soam ultrapassadas, principalmente para quem, assim como eu, tem seus vinte e poucos anos e nasceu em uma época que praticamente tudo é compartilhado na internet. Mas para quem já escreveu um diário clássico, desses de papel, a frase acima é mais do que familiar. Fui conversar sobre diários com o professor Paulo Roberto Staudt Moreira, que é coordenador do Programa de Pós-graduação em História da Unisinos. Ele me contou que eles surgiram no século XVI, na mesma época em que as autobiografias, mas só no século XIX começaram a se popularizar. “Foi durante o Renascimento, quando as pessoas começaram a se considerar mais como indivíduos”, explica. O professor participou da transcrição de dois diários que traziam detalhes sobre a Guerra do Paraguai e a Guerra Federalista. Ele conta que esse tipo de documento pessoal é importante para o historiador, porque traz uma noção de intimidade que não é facilmente encontrada em outros registros históricos. Um exemplo é o diário de Getúlio Vargas. Além das informações sobre a esfera política de sua época, o diário do ex-presidente traz suas impressões sobre a vida. Manter um diário é uma prática quase paradoxal. O historiador diz que, nos dias de hoje, quando as pessoas têm o costume de expor suas vidas nas redes sociais, ter um diário revela uma forma de resguardar a intimidade. “É um jeito de manter controle sobre Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 27


blogar

no mundo

virtual

Criar e manter uma página na web em que as informações são apresentadas em ordem cronológica reversa, tendo cada publicação sua hora e data de inserção. É também um espaço onde outros internautas podem incluir comentários associados. Inicialmente foi usado como diário, mas, com a popularização, tornou-se também um meio para publicação de notícias, divulgação de ideias etc.

a própria vida”, diz ele. Mesmo assim, de acordo com Staudt, o autor do diário também tem vontade de se autoperpetuar. “A intenção é de preservar aquelas memórias”, completa. Jéssica Sobreira, que estuda Jornalismo e tem 22 anos, me disse que ainda mantém os diários que escreveu até 2009, e que, com eles, relembra os acontecimentos do passado. Jéssica nasceu em Campo Bom, Rio Grande do Sul, e conta que, quando pequena, mesmo antes de começar a ir à escola, já sonhava em aprender a ler e escrever. Como incentivo, a família lhe presenteava com os diários. Escrevia sobre o cotidiano e sobre os presentes que desejava ganhar. Mais tarde, começou a usar o diário como um caderno de recordações, onde guardava frases, poemas e textos que queria manter na lembrança. Em 2003, mudou de escola e ganhou o “Diário da Estudante”, onde anotava todos os acontecimentos importantes da vida acadêmica. As aulas de teatro, violão

e preparação vocal também eram assuntos recorrentes. “Escrevia para deixar registradas as coisas mais emocionantes do meu dia a dia”, revela. As páginas eram reservadas aos acontecimentos mais importantes. Jéssica conta que, normalmente, escrevia à noite. “Eu pensava: que coisa legal que aconteceu comigo! Tenho que registrar! Talvez daí tenha surgido a minha vontade de fazer Jornalismo”, reflete. Em 2009, ela parou de fazer anotações nos diários porque percebeu que estava encerrando uma fase de sua vida. “Quando fui aprovada no vestibular para Jornalismo, escrever passou a ser minha profissão. Eu senti que a minha vida escolar já estava registrada, e não tinha mais necessidade de usar os diários”, explica. Até hoje, Jéssica guarda todos os diários que já teve. Pelo último, tem um carinho especial: “É o que mantenho mais bem conservado, porque gosto de lê-lo de vez em quando. É bom para relembrar coisas que aconteceram.”

n Jéssica mantém

conservados até hoje os diários que escreveu durante a adolescência

28 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


A maior parte dos diários de Jéssica foi escrita durante a adolescência, que é o período em que a maioria das pessoas adquire o hábito de registrar suas vidas, conforme explica a professora Simone Bicca, que leciona no curso de Psicologia da Unisinos. Porém, eles não estão restritos a este período e, muitas vezes, se estendem até a fase adulta. De acordo com ela, dois elementos levam as pessoas a produzir diários. O primeiro é a memória, já que ter um diário - como o professor Staudt também explicou – é uma forma de preservar os acontecimentos. “O registro escrito prevalece sobre a produção da memória, que se perde. A escrita é mais fiel ao acontecimento”, esclarece Simone. O segundo elemento é a elaboração da escrita, que funciona como uma reflexão. É uma forma de refletir sobre a vida e os acontecimentos de uma maneira que a pessoa não seria capaz de fazer se aquelas ideias ficassem só no pensamento. De acordo com a psicóloga, nesse sentido, o papel passa a ser um espaço de escuta, que não substitui a terapia acompanhada por um psicólogo, mas que tem sentido semelhante. “O diário não te julga. Certas coisas, quando relatadas para a família ou para os amigos, implicam em um parecer dessas pessoas a respeito daquele acontecimento. As outras pessoas farão uma intervenção, e o diário, não”, completa. COISA DE MENINA? Por mais que ter um diário pareça ser coisa de menina, a História prova exatamente o contrário. A pesquisadora americana Cinthia Gannett comprova que, como até o século XIX as mulheres não frequentavam universidades, a escrita era uma prática reservada aos homens. Além disso, em seu livro Gender and the journal: diaries and academic discourse (sem tradução para o português), ela demonstra que os diários masculinos traziam registros de guerras, conquistas, política e outros assuntos considerados de esfera pública; enquanto os femininos, que nunca eram publicados ou estudados, falavam de família e sentimentos. Por isso, eles não eram considerados importantes.

Já na era da internet, com a popularização dos blogs, as mulheres estão mais presentes, registrando seu dia a dia e compartilhando suas opiniões com o resto do mundo. Conforme a professora Simone, cada vez mais os diários passam da instância privada para uma instância pública. Ela diz que vivemos um momento de transição, e que a psicologia ainda não tem os elementos necessários para explicar o que leva uma pessoa a publicizar coisas que, em outras épocas, seriam da ordem privada. Apesar da instabilidade da relação entre o público e o privado, há casos em que as pessoas revelam seu cotidiano na internet porque julgam que seus relatos, de alguma forma, podem ajudar outros que já passaram ou estão passando pelas mesmas situações. “O sentido, neste caso, é de compartilhamento de experiências”, explica Simone. DIÁRIOS NA LITERATURA No cinema, na TV e na literatura, o tema “diários” já rendeu vários produtos de sucesso. Um dos mais recentes é a série de livros O Diário da Princesa, da autora norte-americana Meg Cabot. A história é narrada através da personagem Mia Thermopolis, uma adolescente que descobre ser herdeira do trono de um pequeno país europeu. Os direitos dos 10 livros foram comprados pela Disney, que produziu dois filmes baseados na série. Publicado no Brasil pela editora Record, O Diário da Princesa já vendeu mais de 1 milhão de exemplares. Outra série de livros de grande sucesso é Diário de um Banana, de Jeff Kinney. O personagem Greg Heffley narra suas aventuras escolares e seu jeito bem particular de lidar com a chegada da adolescência. Porém, o mais famoso diário da literatura não conta a história de um personagem, e sim de uma pessoa real. O Diário de Anne Frank narra a vida da garota judia que vivia escondida com sua família durante o nazismo. O livro foi publicado em 1947 pelo pai de Anne Frank. Hoje, os relatos do cotidiano passaram para o computador e o privado está cada vez mais público.

impressões de

repórter

A ideia de fazer uma reportagem sobre diários surgiu durante uma conversa no trem com uma colega da disciplina em que produzimos a revista Primeira Impressão. Enquanto discutíamos o tema escolhido para a edição de número 40, começamos a especular por quais ângulos os verbos que escolhemos poderiam ser abordados. O tema diários me veio num surto de criatividade. Na hora, pensei que, além de uma pauta interessante, seria fácil escrever sobre o assunto e conseguir fontes. Afinal, todo mundo já escreveu um diário, certo? Errado! Achar alguém disposto a falar sobre seus diários foi a parte mais difícil. Muita gente não tinha mais os diários para mostrar, e precisávamos fazer as fotos que ilustram essa matéria. Outros disseram que tinham vergonha de falar sobre o que escreviam. A ideia de entrevistar alguém que ainda mantivesse seu diário atualizado foi logo descartada, já que todas as pessoas que encontrei pararam de escrever durante a adolescência. Apesar dessas dificuldades, escrever essa reportagem foi uma atividade muito recompensadora e que me proporcionou um enorme aprendizado. Entrevistei pessoas muito dispostas a transmitir seus conhecimentos e a sanar todas as minhas (às vezes bobas) dúvidas. Espero que os leitores possam aprender algo com o texto, assim como eu aprendi. Boa leitura!”

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 29


compartilhar no mundo real

n Iara não pode ficar mais

do que duas horas longe de casa, pois sua mãe, Ângela, depende dos seus cuidados

30 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


Sem limites A rotina pesada e a saúde debilitada não impedem duas mulheres de serem cuidadoras Por Suzi Servo. Fotos de Yasmim Lopes

P

és pequenos andam apressados pelas ruas tranquilas. Entram e saem rápido do comércio e do banco. Sempre atentos ao tempo. Quando sai, Iara Maria Walter fica no máximo duas horas longe de casa. Quem a conhece não se incomoda com seu rápido cumprimento, porque sabe que ela tem uma rotina pesada. Da manhã à noite, Iara limpa a casa, cozinha, ajuda a filha, costura e cuida da sua mãe. No único momento disponível para descansar, prepara o chimarrão, senta em frente a sua residência ou no sofá. Nesse período, aproveita também para se informar através dos noticiários sobre o que está acontecendo no mundo. Normalmente, isso ocorre ainda no alvorecer e lhe serve como um combustível para os demais afazeres. Sua rotina não foi sempre tão ligada ao lar, mas sua vida começou a mudar há cerca de dezesseis anos, com o diagnóstico de um Acidente Vascular Cerebral que sua mãe, Ângela Luiz Walter, recebeu pela primeira vez aos 42 anos. Ela causou muita preocupação à família, porém, conseguiu se recuperar e ficar sem sequelas. No entanto, dois anos mais tarde, outro AVC causou-lhe a perda parcial dos movimentos da perna esquerda. O último AVC fez com que Ângela perdesse a capacidade de andar e de falar. Esse foi um dos momentos mais difíceis para os filhos, reconhecer que a condição da mãe não se alteraria e que os cuidados teriam que ser constantes. O esposo, que era alcoolista,negou-se a tomar para si a responsabilidade de cuidar de Ângela. Por isso, quando recebeu alta, ela foi morar com o filho Luiz Fernando Walter, com quem ficou por cerca de dois anos e meio. A vida da Iara mudou em definitivo há oito anos quando ela assumiu o pa-

pel de cuidadora. Passou a compartilhar todos os seus dias com sua mãe. Iara, 41 anos, conta que largou o emprego e arrumou o quarto da sua filha para receber a sua mãe. Seus olhos negros ficam marejados e o rosto demonstra cansaço quando relata as dificuldades financeiras que decorreram da ausência de renda extra e, também, a tristeza que lhe causou a falta de compreensão de pessoas que deixaram de frequentar a sua casa. Nesse período, Iara não foi mais a festas com o marido e encontrou no trabalho autônomo motivação. Hoje, ela contribui na renda familiar com a costura de calçados. Sua área de trabalho fica junto à lavanderia, local bem iluminado e com saída para a cozinha, onde ela enxerga o relógio branco, que regra os seus dias, suspenso próximo à janela. Ao lado da cozinha, encontra-se o pequeno quarto ocupado por Ângela, faz com que Iara consiga ouvir os resmungos da sua mãe. Ângela fica a maior parte do tempo na cama, assistindo televisão ou brincando com Chico, cãozinho da família. O animal pula na cadeira que fica ao lado da cama e faz companhia a senhora. Ela estende o braço longilíneo e o acaricia. Seu toque é extremamente suave, pois sua pele é delicada e morna. Em constante contato com Iara, que sempre procura manter a mãe informada das suas tarefas, Ângela não se assusta com a presença de estranhos. Sorri, seus olhos negros iguais aos da filha brilham. Estende a mão em cumprimento, aproxima o rosto do visitante e o beija. Iara conta com orgulho que sua mãe está bem cuidada, pois está sempre atenta a sua alimentação e as suas manias, como ligar a televisão de manhã, abrir a janela e dormir de lado.

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 31


n Hilda, de 75 anos,

cuida da filha, Ilce, vĂ­tima de isquemia cerebral, que limitou seus movimentos e sua fala

32 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


As duas são muito próximas.Observadora, Iara aprendeu o significado de cada um dos gestos de sua mãe. O olhar as conecta. Quando contou que, às vezes, sua mãe demora para dormir e a chama várias vezes quando está com visitas, Ângela escuta e ri no quarto. Rapidamente a face de Iara se transforma, a expressão suaviza, sorri abertamente e brinca com a mãe,falando que a preferência sempre é dela na hora do jantar. Iara não nega que se descuidou da aparência, pois raramente sai para ir a um salão. Sua ansiedade fez com que ganhasse peso. Alega que um dos motivos é a divisão do seu tempo, que não é justa com sua filha, Poliana, de 12 anos, pois raramente participa dos eventos da escola e falta em algumas reuniões. Mesmo assim, Poli fala que aprecia a dedicação da sua mãe. “Gosto do carinho que ela demonstra, pois mostra que ama de verdade a minha avó.” Iara também é da opinião de que não deve deixar de fazer absolutamente nada que está em seu alcance. “O que me conforta é que eu sei que não estou fazendo nada errado, mãe é uma só, tudo o que eu posso fazer, que eu sei que é melhor, mais saudável a ela, eu faço”. DISPOSIÇÃO APESAR DA IDADE A quatro quilômetros de distância da residência de Iara, vive outra família que compartilha uma situação parecida. A diferença é que a cuidadora é a mãe, Hilda Klein, de 75 anos, uma senhora com um problema lombar, que se locomove com dificuldade. Ela faz o que pode para ajudar no lento processo de recuperação da sua filha, Ilce Klein, vítima de isquemia cerebral, que há sete anos tenta recuperar os movimentos e a fala. Elas vivem juntas, há mais de 30 anos, na casa de madeira marrom com janelas brancas, abaixo do nível da rua, que já chegou a abrigar sete membros da família. A residência hoje é o lar de duas mulheres que acordam cedo, todos os dias, para tomar um chimarrão em frente a casa e cuidar dos seus afazeres. No lugar, ouve-se oconstante canto dos pássaros e sente-se o cheiro das plantas, que se espalham em uma profusão de cores na lateral do muro. Hilda conta que a filha quase morreu, emociona-se, seus olhos de um verde cristalino brilham. Sua voz grave vibra com a emoção das lembranças. Ela diz que está feliz, pois Ilce fez muitos avanços. Consegue andar, tomar banho e preparar seu café sozinha. Com um passo depois do outro, um pouco trôpegos, Ilce agora vence as distâncias. Isso é possível, porque faz fisioterapia regularmente e, também, anda de bicicleta todos os dias de manhã. No entanto, no que diz respeito à comunicação, ela ainda depende muito da sua mãe, pois, embora tenha ido ao fonoaudiólogo, não conseguiu reaprender a falar. Todavia, a sintonia entre as duas mulheres permite uma interpretação exata dos gestos e dos sons de Ilce. Com a ajuda da mãe, Ilce conta a sua história. Em seu quarto, mostra suas relíquias, duas máquinas de costura. De frente para a janela, ao lado da cama, pensativa, ela relembra seus dias de costureira de mão cheia. Tudo permanece

intacto, aguardando a recuperação do braço direito. Ao lado da porta, há uma cômoda e um espelho, porque, segundo a mãe, Ilce é uma pessoa muito vaidosa, que gosta de se pentear e maquiar. Observando, Hilda brinca com a filha, alivia a expressão do seu rosto e esboça um suave sorriso. A mãe tem fé na recuperação da filha. “Graças a Deus ela está viva.” Ela comenta ainda o absurdo que acha os pais estipularem um tempo para se preocuparem com os filhos. “Tem gente que diz quando o filho faz 21 anos, os pais não têm mais compromisso. Mas não é nada disso, filho é para o resto da vida.” Por isso, relata, que independente das quedas que enfrenta na hora de buscar os remédios de Ilce, ela sabe que está fazendo o que é certo.“Tudo o que eu posso fazer, caindo e levantando, eu faço”.

compartilhar no mundo virtual

Na internet, ouviu-se falar pela primeira vez em “compartilhar” no facebook, onde é uma ferramenta usada por um usuário que copia informações de outros e divulga no próprio perfil.

impressões de

repórter

Sempre achei incrível a história de pessoas que compartilham a vida, doando tempo e disposição para amenizar o sofrimento dos outros. Presenciei o dia em que uma ambulância chegou transportando o corpo frágil de uma senhora, que mais tarde descobri ser a mãe da Iara. A partir desse dia, observei que o comportamento da Iara se alterou, passou a andar mais rápido e parou de estender as conversas com os vizinhos. Fiquei admirada no dia em que conheci Ângela e a vi feliz, sorridente, com as brincadeiras da filha. A intimidade que as duas partilhavam e a compreensão perfeita que uma tinha da situação da outra, me deu vontade de construir uma narrativa e dividi-la com outras pessoas. Com Hilda ocorreu o mesmo. De vários pacientes que atendo diariamente na farmácia em que trabalho, foi ela que me chamou a atenção, não só pelo físico debilitado pela idade, mas também pela voz incrivelmente grave e vibrante. No dia em que estendi um pouco mais a conversa e descobri que ela cuidava de uma filha doente, senti vontade de saber um pouco mais da sua rotina. Quando surgiu a oportunidade de fazer esta reportagem, logo pensei nas duas. Com elas constatei na prática a importância da observação. Sem observar, jamais teria sido possível contar essa história de amor sem limites.”

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 33


conectar no mundo real

NATÁLIA SCHOLZ

Glorioso encontro

José e Bia se conheceram na Igreja, após lerem o mesmo livro Por Caroline Weigel. Fotos de Natália Scholz e José Roberto Marçal Guco

J

osé Alexandre Curiacos de Almeida Leme, de 33 anos, teve uma infância feliz. Sendo filho único, sempre recebeu atenção e dedicação dos seus pais, além de se divertir ao lado dos primos e amigos. “Quando eu reclamava que não tinha irmãos, meus pais me consolavam dizendo que Jesus também era filho único”, lembra. Foi com os pais que José Alexandre aprendeu a rezar. Foi com eles também que começou a frequentar a igreja aos finais de semana. Aos 14 anos, o jovem descobriu que existiam missas diárias e passou a frequentá-las. A partir dessa fase, ele conta que se apaixonou pelo trabalho da igreja. “Foi nesse momento também que cresceu um amor muito grande por Nossa Senhora, e eu rezava o terço e distribuía medalhinhas dela para todos que precisavam”, conta. José Alexandre sempre procurava uma forma de rezar o terço e acabou criando uma técnica para fazê-lo durante as

34 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

aulas. “Eu escrevia no caderno um P para o Pai Nosso e um A para a Ave Maria, assim conseguia contar um Pai Nosso e dez Ave Marias”, explica. Enquanto rezava o terço, José Alexandre pedia para Nossa Senhora que preparasse uma namorada para ele. Além disso, comprou dois anéis de terço, para serem as alianças. “O tempo passou e eu perdi esses anéis, mas o pedido sei que ficou com Maria”, acredita. “Depois fui catequista, coordenador de grupo de jovens, missionário, ajudava na música e na liturgia. Pela dedicação que tinha, fui convidado a ser um ministro da Eucaristia, jovem, aos 24 anos.” ENQUANTO ISSO Em Lins, São Paulo, a 350 quilômetros de Piracicaba, onde José morava, Ana Virgínia de Castilho Santos Curiaco, de 31 anos, conhecida por todos como Bia, mantinha uma rotina parecida, sem saber os desígnios que estariam na sua vida. Na sua infância, ela acompanha-


Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 35


va seu avô Hubert na igreja. “Ele me apresentou o amor de Jesus e de Nossa Senhora. Eu ia com ele nas visitas aos doentes para levar a comunhão e, desde criança, tive o sonho de ser ministra da Eucaristia, como ele”, afirma. A família de Bia sempre foi muito fiel à igreja. Enquanto seu avô se dedicava a ser ministro e sua avó se responsabilizava por lavar os aparatos da igreja, sua mãe era catequista. “Cresci dentro da igreja e fui me envolvendo em várias pastorais, como música, grupo de jovens, catequese, crisma, liturgia”, explica. A prática de rezar o terço em sala de

aula também esteve presente na vida de Bia, de uma forma um pouco diferente. “No Ensino Médio, durante as aulas, fazia bolinhas de papel e traçava um risco na carteira, e a cada Ave Maria rezada passava a bolinha para o outro lado do risco”, conta. Foi também nessa época que Bia começou a frequentar a missa diariamente e realizou o sonho de se tornar ministra da Eucaristia. O ENCONTRO Em Piracicaba, José Alexandre ganhou o livro Glorioso Encontro de um

amigo do Grupo de Oração Universitário. O livro, em certa parte, propõe que se faça uma lista com as características que a pessoa gostaria de encontrar no seu parceiro. “Na minha lista, pedi uma mulher que me acompanhasse nas atividades da igreja, que fosse fiel, verdadeira e companheira. E que tivesse uma mãozinha pequena, para que minha mão pudesse protegê-la, ou seja, que eu pudesse cuidá-la e ampará-la”, relembra. Em Lins, Bia ganhou o mesmo livro de presente de uma amiga, mas só foi ler depois de quatro anos. Na hora de fazer a lista, ela pediu alguém que amasJOSÉ ROBERTO MARÇAL GUCO

36 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


se Jesus e Nossa Senhora e que a acompanhasse nas Missas. “Pedi também alguém que cuidasse de mim, que fosse companheiro, fiel, dedicado e amoroso, como meu avô. E que fosse ministro da Eucaristia. Exigente, né?”, brinca. CAMINHOS CRUZADOS Tempos depois, após defender o doutorado, José Alexandre seguiu para Lins para dar aula na Faculdade dos Padres Salesianos de Lins. No mesmo mês, Bia foi convidada a dar aulas de ensino religioso no colégio das Irmãs Salesianas, que ficava bem em frente à faculdade, do outro lado da rua. “Assim, na mesma época, passamos a frequentar a missa diária na paróquia sem nos conhecermos”, explica Bia. “Um dia, um amigo nos apresentar e passamos a nos cumprimentar. ‘Oi, tudo bem, como vai’, essas coisas. E assim foi durante o ano todo”, acrescenta Bia. A intenção de José Alexandre era ficar pouco tempo em Lins. No segundo semestre, José passou em um concurso e decidiu voltar para Piracicaba. Porém, no dia em que foi encerrar seu vínculo, ao passar na capela da faculdade, decidiu ficar, sentindo que algo o segurava naquela cidade. “Assim, ele passou a viajar os 700 km toda semana para dar aula uma noite e voltar”, cita Bia. Após as férias, os dois se encontraram na missa e a mãe de Bia estava com ela. “Eu apresentei minha mãe para ele, e eles não pararam de conversar. Ela até perguntou se ele tinha namorada! Quando ele disse que não, ela se ofereceu para rezar para o José encontrar uma pessoa especial. Eu quase a matei”, lembra Bia. Ela acredita, porém, que foi nesse momento que os olhos dos dois se abriram e eles passaram a se enxergar de

n Quando José e Bia se

conheceram, descobriram que tinham muito em comum. Um ano e meio depois, já estavam casados

conectar no mundo virtual

Troca de informação entre computador e internet. Troca de dados, envio de sinal. Serve também para ligar um aparelho a uma rede elétrica ou computacional.

uma forma diferente. “Passamos a conversar mais e descobrimos muita coisa em comum. Entre elas, o fato de que os dois tinham lido o livro Glorioso Encontro”, conta. José descreve outra coisa em comum: “Em uma das missas, vi que a Bia usava um anel de terço exatamente igual àquele que eu havia comprado na adolescência”. SURPRESA E CONEXÃO A história dos dois começou a se juntar quando José convidou Bia para sair e os dois tiveram a certeza de que um preenchia a lista do outro. Bia e

José namoraram durante seis meses e, nesse período, Bia ia com José até Piracicaba, para ficar com a família dele. Em uma dessas visitas, José levou Bia para conhecer o Santuário Nossa Senhora Desatadora de Nós. “Chegando lá no santuário, achei-o lindo, uma igreja perfeita, maravilhosa”, relembra Bia. “Nós comungamos, já estávamos os dois chorando, em prantos ali, e a gente se ajoelhou, continuou rezando, lembro que coloquei a mão sobre a da Bia e rezei por ela. Terminada a missa, passou no telão da igreja a propaganda do nosso livro, Glorioso Encontro. Aquilo fez a gente perder o chão, parecia que a gente estava no céu”, conta José. Bia completa: “E assim tivemos nosso encontro glorioso. O livro foi o instrumento que Deus usou para nos aproximar, pois parecíamos já estar conectados antes mesmo de nos conhecermos. Percebemos que realmente foi Jesus e Nossa Senhora que uniram a gente. Decidimos nos casar”. Após seis meses de namoro, os dois noivaram e, depois de um ano, se casaram. “Estamos abertos para os planos de Deus. Queremos passar todos os dias de nossas vidas juntos, criando nossos filhos dentro da igreja, assim como fomos criados, e nos dedicando a ela, em gratidão a tudo o que Jesus e Nossa Senhora fizeram para nos unir”, conclui Bia.

impressões de

repórter

Como gosto muito de ler, procurei por pessoas que tinham se conectado através de um livro e que, de preferência, tivessem se apaixonado. Quando já estava quase desistindo da busca, vi um vídeo que uma amiga minha compartilhou no Facebook, contando a história do José Alexandre e da Bia. Quando o vídeo começou, senti que era exatamente aquilo que eu estava procurando, acrescentado ainda o poder da fé. O problema é que o casal morava em São Paulo e eu no Rio Grande do Sul. Fiz contato com a produtora, que prontamente me respondeu e me enviou os contatos do casal. A entrevista foi realizada por e-mail, mas, nessa troca de informações, pude perceber o quanto os dois se amam e também o quando amam a Igreja. A história deles me encantou, justamente pelo fato de eu também ter uma ligação com a Igreja Católica desde a infância - participei, inclusive, da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, com a presença do Papa Francisco, neste ano. Eles conseguiram me mostrar que muitas vezes passamos por momentos que nós não compreendemos, e às vezes temos que insistir em alguma coisa sem saber direito a razão.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 37


LUISA ZOTTIS

copiar no mundo real

Não é mera coincidência A história de Nikki Goulart, que deixou de ser apenas um fã para se tornar sósia profissional Por Karina Sgarbi. Fotos de Luisa Zottis e Gisa Fenner

F

oi depois de assistir ao clipe de um dos tantos sucessos do rei do pop que tudo começou. Michael Jackson havia lançado em 1991 o hit Black or White, como forma de resposta ao falatório da mídia sobre as mudanças na cor de sua pele. E como de praxe para o cantor, a música se tornou rapidamente um sucesso mundial. O clipe, que precisou viajar alguns milhares de quilômetros para chegar à capital gaúcha, chamou a atenção dos amigos de Nikki Goulart. O jovem porto-alegrense, então com 20 e poucos anos, já trabalhava como performer na época, mas, até então, não tinha pensado em se tornar sósia de Michael Jackson. Quando Michael apareceu com a pele clara no vídeo, a semelhança entre os traços dele e de Nikki se tornaram evidentes, e esse foi o começo de uma trajetória de sucesso. “Sempre gostei do Michael, cresci ouvindo suas músicas, desde o tempo do The Jackson 5. Fiquei encantado quando vi o clipe de Black or White, comprei todos os discos dele e então comecei a estudá-lo”, relata Nikki. A primeira apresentação ocorreu em 1992. Como na época os canais televisivos de clipes não eram muito comuns e também não havia internet, as referências para o show eram escassas. Mas, mesmo assim, tudo correu bem e foi um sucesso. Dentre as inúmeras apresentações que já realizou, Nikki destaca dois momentos

38 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

como os mais importantes. Um deles foi quando participou de uma temporada de shows no Beto Carrero World, em Santa Catarina. “A comoção das pessoas que me assistiam era impressionante. Eu não estava acostumado com aquilo”, afirma. O segundo momento foi em um show no qual ele seria apenas mais um na plateia. Na mesma época em que se apresentava no parque catarinense, surgiu a oportunidade de assistir a uma apresentação da cantora Rita Lee, em Florianópolis, em setembro de 2010. Fã dela há muito tempo, Nikki não queria perder a oportunidade de vê-la novamente no palco. Depois de fazer o seu show, ele embarcou em um carro e foi ao encontro dela caracterizado como Michael. “Não ia dar tempo de tirar toda a maquiagem, então fui vestido como estava.” Obviamente, ele chamou a atenção do público, não apenas pela presença inusitada de um sósia de Michael Jackson em um show da Rita Lee, mas, principalmente, pela sua semelhança com o ídolo. De cima do palco, a cantora também se deu conta de que a plateia contava com um convidado especial e o convidou para acompanhá-la em uma música. Nikki foi levado ao backstage, e quando ficou cara a cara com Rita, gravou na memória a primeira frase que ela lhe disse: “Isso é arte”. Juntos, voltaram ao palco e improvisaram a música Bad.


Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 39


GISA FENNER

copiar

no mundo virtual

Ato de reproduzir algo igualmente ao original. Comando Ctrl + C do computador. Imitar. Plagiar algo ou alguém.

Dois meses depois, a produção da cantora entrou em contato com Nikki, convidando-o para fazer uma apresentação como Michael Jackon dentro do show de Rita Lee. Foram dois anos na estrada acompanhando a turnê dela, interpretando a canção Bad. “Foi uma experiência incrível. A Rita é maravilhosa, assim como toda a equipe dela. São de um profissionalismo incrível”, detalha Nikki. A MORTE DO ÍDOLO O rei do pop faleceu em 25 de junho de 2009. Uma semana antes, Nikki havia estreado um novo show. Criterioso, ele estudava o ídolo o tempo todo, como forma de aprender e também de incrementar coisas novas em sua apresentação. Naquela quinta-feira, ele chegou em casa e foi assistir a um novo DVD de Michael, que havia sido lançado há poucos dias. Sem acessar a internet, ouvir rádio ou ligar a televisão em algum canal de notícias, Nikki acompanhava a apresentação do DVD, alheio ao que havia acabado de acontecer e que dominava o noticiário mundial. Ele achou estranho que muitos amigos estavam lhe enviando mensagens desejando força naquele momento, mas, sem entender do que estavam falando, continuou a ver o show. “No meio da apresentação, um amigo me ligou perguntando se eu sabia quem tinha morrido. Quando ele falou o nome do Michael, eu não acre-

n Muitas

vezes, Nikki já foi confundido com o seu ídolo, Michael Jackson

40 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


ditei. Parei de ver o DVD e coloquei em um canal de notícias, mas mesmo assim não achei que fosse verdade. Minha ficha só caiu mesmo três dias depois. Michael Jackson pra mim é um gênio em todos os aspectos. Muita gente se lembra dele pela dança, mas o seu talento é muito mais complexo do que o moonwalker”, conta Nikki. A vida de Michael Jackson foi marcada pela histeria dos fãs. O sucesso mundial, o assédio da mídia e um público completamente apaixonado foram marcas importantes em sua carreira. E ser sósia dele não poderia ser diferente. Ainda que em proporções menores, Nikki também passou por situações inusitadas e até estranhas, justamente por seu trabalho ser tão bem feito a ponto de as pessoas confundirem com a realidade. O momento tenso foi ainda na época em que ele divulgava seu telefone pessoal como contato para shows. Foi então que uma menina, moradora de Curitiba, no Paraná, começou a ligar para ele diariamente. “Às vezes ela ligava e eram três horas da madrugada. Ela dizia que me amava e que queria casar comigo, coisas assim, que chegavam a dar medo”, conta. Alguns amigos dela também o agrediam pela internet. A solução foi trocar de telefone e assim dar um basta nas ligações exageradas. “Nesse caso eu percebi o que é a figura do Michael Jackson. Ele era um prisioneiro daquilo tudo, não conseguia se sentir uma pessoa normal.” Nikki conta que a primeira música de Michael Jackson com a qual teve contato foi ainda na infância. Amante de filmes de terror, ele assistiu ao filme Ben – O Rato Assassino, cujo tema é a música Ben, obviamente interpretada pelo rei do pop. “Eu via as reprises na televisão, e a música sempre rolava. Aquilo me marcou muito”, afirma. A família também influenciou seu gosto por Michael. “Todos adoram meu trabalho, são superfãs”, afirma.

LUISA ZOTTIS

Michael Jackson teve seu nome envolvido em vários escândalos, para delírio da mídia sensacionalista. A principal acusação que recebeu foi de pedofilia – ainda que anos mais tarde algumas crianças tenham confessado que foram obrigadas a contar mentiras por seus pais. E se a imagem do ídolo estava abalada em função desse tipo de acusação, a do sósia também sofreria reflexos disso. “Em alguns shows que fiz e havia crianças na plateia, por exemplo, eu via os pais tirando elas dali, como se pudesse acontecer algo. Foi bem estranho passar por isso”, relata. Hoje, aos 39 anos, Nikki tira do trabalho como sósia de Michael Jackson o seu sustento. Além de gostar e admirar muito o ídolo, ele conta que sempre está estudando e aprendendo mais sobre ele. “Michael está em minha vida. Grandes ídolos como ele nunca morrem.”

impressões de

repórter

Como toda boa pauta, esta aqui começou com uma ideia e acabou com um rumo diferente do original. Quando pensei em entrevistar sósias de famosos, comecei buscando por covers de Elvis Presley e Raul Seixas. Mas, como eles não foram tão solícitos quanto eu esperava, comecei uma busca desenfreada por outros sósias, até que tive o retorno do Nikki. Marcamos a entrevista no Café Bertoldo, em

Porto Alegre, e como eu e os fotógrafos chegamos antes, confesso que temia não reconhecê-lo já que tínhamos nos falado apenas pela internet. A surpresa ao vê-lo foi grande, pois, mesmo sem o figurino e a maquiagem, eu via o próprio Michael ali na minha frente. Simpático, ele me cedeu a entrevista contando toda a sua vida. É daquelas pessoas boas de entrevistar, que resultam em uma boa história para contar, e, assim espero, para se ler.”

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curtir no mundo real

42 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


r a r c i o l p m x a e e m d U vel í s s o p im Carlos Welter é capaz de loucuras para estar perto de um ônibus e cultivar o seu hobby Por Dienifer Cecconello Fotos de Raisa Torterola

A

ndar e admirar os ônibus para curtir os motores e seus sons, as carrocerias e seus desenhos inovadores, suas tecnologias e suas pinturas com variedades de cores e formas. Para muitos um gosto estranho e sem sentido, mas, para aproximadamente 13 mil pessoas no Brasil e 45 mil no mundo, uma paixão sem explicação. Fora do dicionário, o termo busologia surgiu no Brasil por in-

termédio do engenheiro Hélio de Oliveira, designer de ônibus. Ele fundou em abril de 1979 o Clube do Design de Ônibus, uma entidade civil formada por colecionadores e admiradores de carrocerias. Em 1986, os colegas de Hélio começaram a chamá-lo de busólogo. Do apelido, surgiu o nome desse curtir: busologia. Trata-se de hobby, ou passatempo, um tanto complexo, ainda mais levando

em consideração que muitos cultivam esta preferência desde criança e dificilmente sabem explicar o motivo. Esse é exatamente o caso de Carlos Alberto Welter, de 24 anos. “Na verdade, eu não sei como iniciou, só sabia que, quando era pequeno e até hoje, gosto de andar de ônibus, inclusive viagens longas, onde as mais belas paisagens na beira da estrada podem ser encontradas”, explica.

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 43


Vindo de uma família profissionalmente ligada ao transporte coletivo, é fácil entender como sua ligação com essa modalidade de veículos tornou-se um hobby. Seu avô foi motorista de ônibus por mais de 25 anos, seu tio avô também e seu pai foi cobrador, “Eles sempre me levavam quando pequeno para andar de ônibus com eles”, lembra com orgulho da história de sua família. Carlos troca as noites de festas para estar nas ruas com os amigos em busca do ônibus perfeito ou o mais inusitado. Sempre com uma câmera fotográfica nas mãos, registrando todos os modelos que passam por seus olhos. Assim, adquiriu um vasto ban-

co de imagens, que por vezes abastecem as revistas especializadas. Como ele próprio gosta de dizer, não seria necessidade, mas sim o prazer de estar próximo. “Para mim, o hobby é uma terapia, para livrar a cabeça do estresse e daquela rotina maçante. Quando fotografo ou ando de ônibus, gosto de prestar atenção nos detalhes de cada paisagem, o que me faz ficar mais tranquilo, por maior que seja o congestionamento”, conta. Em seu quarto, letreiros de ônibus, modelos em miniaturas, símbolos de fabricantes de carrocerias, revistas e fotografias e muitos outros objetos que fazem lembrar a

sua paixão. Assim como todas as pessoas com hobbys, ele já sofreu preconceitos e pontua que não coleciona apenas os ônibus, mas sim tudo que o envolve, como histórias, fotos diferenciadas, conversas, viagens e principalmente, as amizades. “As pessoas acham que somos loucos, pois é sempre a mesma história: ‘Tirando foto de ônibus, tá perdendo tempo’, ou quando admiramos um modelo mais clássico, dizem: ‘Tirando fotos desse caco, você só pode estar louco’, muito ouvi isso, mas levo numa boa aí explico o sentido, alguns acham legal depois que ouvem.” Como realização pessoal, Carlos trabalhou, por dois anos, na mesma empresa de transporte coletivo em que seu pai trabalhou. Demorou quatro anos para garantir essa vaga e estar em tempo integral ao lado dos ônibus. Muito mais que ao lado, ele lidou diariamente com o “coração” dos veículos, como assistente de manutenção. “Sempre tentei a vaga para cobrador, pois a minha intensão era futuramente virar motorista, porém, acabei sendo aceito pela Administração da Manutenção de Frota.” Ele ainda complementa que foi difícil se habituar a rotina de uma empresa de transporte coletivo, pois chegou com muitas ideias e curiosidades, o que, segundo ele, lhe trouxeram problemas. Disposto a qualquer coisa para estar perto de um ônibus, ele já fez loucuras, como atravessar a rua correndo sem olhar para os lados para fotografar um dos mais lindos veículos da empresa Presidente Vargas, segundo

curtir

no mundo virtual

O verbo ganhou força na internet por meio da rede social facebook, que associou o verbo ao símbolo positivo que é feito com a mão. Quando o internauta gosta de um post, pode clicar na opção curtir.

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n A paixão de Carlos por

ônibus começou quando ele ainda era criança. Hoje, ele é um dos 13 mil busólogos do Brasil

ele. “Quando o vi de longe, atravessei a rua correndo como louco, e, quando subi a calçada, senti apenas o vento e ouvi a buzina de um articulado das linhas da Restinga me tirando fino, mas a foto que eu queria bater saiu”, conta aliviado. Carlos utiliza a internet para curtir seu hobby. Para isso, ele participa de vários grupos, o principal deles é o ViaCircular, do qual contribui com suas imagens. “Gosto de viagens longas, porém dentro de ônibus, já passei quase seis horas em uma viagem de Porto Alegre a Arroio do Sal por causa de um congestionamento, porém, se for contar por viagem, quando fui à cidade de Santo Ângelo, passei quase sete horas dentro de um carro para fotografar os ônibus daquele local, mas tenho curiosidade de fazer uma das maiores rotas de ônibus existentes no país, a linha Porto Alegre - Santarém, da empresa Ouro e Prata, que passa pela Transamazônica com seus ônibus especiais para terrenos acidentados, os chamados off-road. Fico imaginando as paisagens o quanto belas devem ser e o quanto de trabalho que uma viagem desta proporciona, é um desafio que eu ainda quero cumprir.” Mas desse hobby também surgiu um sistema de utilidade. Carlos participa de um banco de dados com informações de carrocerias de ônibus de mais de 500 empresas de transporte do Brasil. No Rio Grande do Sul, ele é um dos alimentadores dessas informações, que consistem em catalogar o histórico das carrocerias de todos os veículos até que seus documentos tenham baixa no Departamento Nacional de Trânsito - Detran. Com esse banco, é possível descobrir de onde é o veículo, por quais empresas ele passou e sua

situação atual. O “curtir” de Carlos vai além da roleta e das pinturas, pois engloba o universo do transporte coletivo como um todo. Muitos jamais verão a magia que Carlos consegue ver. Para ele, é muito mais que um hobby, uma mania ou uma loucura. É uma paixão.

impressões de

repórter

Enquanto todos os colegas falavam de suas pautas, eu fiquei pensando quão era difícil escolher um tema que se encaixasse na proposta da revista e que ao mesmo tempo eu gostasse de fazer. Foi então que me lembrei dos busólgos. Eu também conhecia pouco sobre o tema e achei que seria legal, pois muitas pessoas não sabem que existe a busologia. A pauta foi aceita e eu saí em busca da pessoa mais apaixonada por ônibus que eu conheci: Carlos Welter. Conversar com ele sobre o assunto e ler informações foi esclarecedor para mim. Tenho certeza que será para todos os leitores da revista Primeira Impressão. A entrevista ocorreu de forma tranquila, pois Carlos esteve a todo o momento disposto a contribuir com riqueza de detalhes. Gostei bastante dessa tarefa, pois por muito tempo fiquei sem escrever textos longos e, nessa reportagem, tive a oportunidade de voltar à essa técnica.”

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 45


cutucar no mundo real

46 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


Incomodar para consertar A quiropraxia cura atravĂŠs do toque Por Bibiana Lunkes Kranz. Fotos de Lucas Portal

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 47


C

utuco pode servir para muitas coisas: para chamar atenção de alguma pessoa tocando-lhe a pele, até para curar através da pressão do dedo em algum ponto específico do corpo. A quiropraxia se utiliza de técnicas de manipulação e pressão dos dedos para curar problemas específicos, como o deslocamento da Articulação Tempormandibular (ATM). Em meados de 2009, descobri que a fonte de minhas dores de cabeça habituais era o deslocamento de ATM, que, além de refletir pelo crânio todo, travava a minha mandíbula. Uma cirurgiã-dentista havia sugerido alguns tratamentos agressivos e assustadores e que deram vontade de sair correndo do consultório dela. Uma tia minha, que é terapeuta floral, ouvira falar de um quiropraxista americano, Rodney Troy Mutter, 41 anos, que tinha consultório em Novo Hamburgo e tratava da área tempormandibular. Foi-me passado o contato dele. Muitas pessoas não sabem que seus problemas de dores de cabeça podem estar diretamente ligados a ATM e que existe um tratamento quiroprático para a dor que parece ser tão interna, mas que não passa de uma pressão do músculo contraturado

n O quiropraxista Rodney

estuda, desde 1998, a técnica SOT, que trata a coluna vertebral e as extremidades

48 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

do disco localizado entre a mandíbula e o crânio. A quiropraxia em si é uma técnica de ajustes das articulações que estão ligadas ao sistema nervoso periférico. Por meio destes ajustes é possível devolver o normal funcionamento das articulações ou vértebras afetadas, diminuindo as compressões nervosas, reduzindo a dor e melhorando a saúde geral do paciente. Basta saber como e onde cutucar. A ATM pode deslocar-se de muitas maneiras, mas o mais comum é através de alguma tensão específica, como o bruxismo. Normalmente o processo que ocorre é o tensional, devido ao desalinhamento da cervical, que pressiona logo abaixo da mandíbula, no maxilar, e acaba deslocando o disco. Existem deslocamentos em S, ou em C, e, com o tempo, o disco pode girar, ou ir para frente. COLUNA ALINHADA A primeira coisa que se faz no tratamento da ATM é o alinhamento da coluna, pois, se o problema é acarretado pela cervical, não adianta tratar localmente e não resolver a tensão provocada por outras partes do corpo. Uma simples torção no tornozelo pode

influenciar na rotação da coluna, que tenta compensar a torção e puxa a musculatura que está diretamente ligada à articulação tempormandibular. Em geral, é uma tensão da musculatura que cria a consequência do desalinhamento da ATM, e apenas após o alinhamento da coluna que se trata a mandíbula. Existem determinadas técnicas para se tratar especificamente a ATM. Algumas são externas e outras são internas. Alguns profissionais se utilizam das duas formas para o tratamento, através de uma massagem facial e em seguida através de um procedimento interno. O quiropraxista, utilizando luvas, introduz o indicador dentro da boca do paciente, e ‘cutuca’ a área de contratura, onde é inibida a circulação sanguínea, interrompendo o fluxo por um determinado período de tempo, até o disco se ajustar na posição correta, e então a pressão é liberada. Inicialmente, a técnica que lidava com o alinhamento de ATM era a craniopatia. Historicamente, ao menos na região dos Estados Unidos, a craniopatia pertencia à área dos Osteopatas. Nas últimas décadas, a Osteopatia se enturmou mais com a filosofia e prática da medicina convencional, tratando seus pacientes com medicamentos e


pouco manipulação óssea em si. A área da craniopatia foi resgatada pelos quiropraxista, especificamente a técnica chamada Sacro Occipital Tecnique, ou SOT. Essa técnica trata do relacionamento entre o crânio e a pelves e realiza tratamentos da coluna vertebral e extremidades. “Eu estudo essa técnica desde 1998 e, além de ter participado em congressos anuais nos Estados Unidos, passei um ano na Inglaterra com um mestre do SOT, que dedicou sua carreira para melhor entender a relação da ATM com o crânio e a coluna”, conta Rodney Mutter. “Quando cheguei ao Brasil, em 2001, trouxe junto comigo essa técnica e meu conhecimento e os introduzi na área da quiropraxia para os alunos e formados do Brasil. Por muitos anos, eu fui o único com este conhecimento e, como consequência, virei referência.” Muitas pessoas que estudaram com Rodney se identificaram com a técnica, e foram além, para entender melhor essa ciência. Alguns profissionais viajam para fora do país para congressos, outros trazem palestrantes para o Brasil, e hoje existe uma organização nacional que é reconhecida pelo SOT internacional e é o único grupo com direitos e autonomia de ensinar essa matéria e repassar adiante. TÉCNICA INTERNA Maria Cecília Colombo, quiropraxista de 28 anos, e formada há seis, trabalha com a técnica interna. Ela buscou o conhecimento da ATM com o professor Ricardo Fujikawa, que foi um dos profissionais que trouxe a técnica diversificada. Ricardo era médico, e, ao resolver seus problemas de coluna com a quiropraxia, resolveu seguir a profissão. A linha diversificada era mais manual que a SOT. “A técnica diversificada possui esse nome, pois foi inventada por vários autores, diferente de outras técnicas, que possuem um único autor que lhes sede o nome. Eu gosto muito dos ajustes, e acho muito interessante essa linha”, conta Maria Cecília. Muitos quiropraxista ajustam apenas a região dolorida do corpo e acabam deixando de alinhar o resto. “Geralmente, quando alguém vem com uma torção de ombro, é possível tratar apenas a região, dependendo da técnica, porém, existem pontos ligados a esta torção que podem ser o Cervical 7 (C7), ou o C8, torácica alta (T1), ou T4, pois to-

das elas têm enervação que pega o braço”, diz Maria Cecília, “Não adianta só tratar o local, tem que ser um conjunto, justamente porque se trabalha a parte da homeostase, que é o mecanismo natural do corpo que equilibra os elementos sanguíneos, temperatura, pH, balanço hídrico, pressão arterial e outras substâncias. Assim, o corpo fica 100%, sem interferências. Eu tenho muitos colegas que trabalham só com a parte local, mas eu, particularmente, não consigo deixar nada para trás.” Ocorrem casos de dores musculares que podem gerar falsos sintomas de doenças relativamente graves. O quiropraxista pode analisar e ajustar partes do corpo doloridas, e os sintomas podem sumir. “Tenho o caso de uma senhora que, quando ela desalinha a lombar, a dor é refletida na bexiga, e simula o sintoma de cistite. Quando ela veio aqui a primeira vez, ela tinha essa queixa”, conta. “São muitas as possibilidades quando temos um sintoma desse nível. Tem que investigar a parte da urologia, até mesmo por ser uma paciente de mais idade, e fazer todos os exames e as avaliações, pois se for alguma coisa mais grave”, explica Maria. “No Brasil isso ainda é muito novo, já nos Estados Unidos, as pessoas vão para o quiro, e se ele consegue tratar apenas com os ajustes, a pessoa nem precisa tomar medicamento, mas se for algo mais grave, o quiropraxista já direciona o paciente a outro profissional”, conta. Todas as áreas da saúde tem um ponto em que se encontram, apesar de cada uma ter o seu método. A quiropraxia é um curso bem semelhante ao da medicina, porém não possui tratamento cirúrgico. Rodney Mutter ainda prevê que, no futuro, algumas áreas se fundirão. “O que vai acontecer é que a quiropraxia, a odontologia, e a área de medicina no geral vão poder unir os estudos de todos os campos e melhor entender o relacionamento entre cada peça do nosso organismo, assim oferecendo resultados melhores para a cada paciente. A medicina e a área da saúde no geral evoluíram muito, porém existe uma humildade que pesa muito quando consideramos tudo que ainda temos que conquistar”, completa Rodney. O tratamento quiroprático que fiz foi continuo e resolveu 80% do problema, sendo os outros 20% restantes gerados por bruxismo, fazendo com que minhas visitas ao consultório continuem.

cutucar no mundo virtual

É uma opção de comunicação do facebook que permite que o usuário cumprimente, chame atenção ou mostre interesse em algum amigo de maneira simples, sem ter de criar uma conversação tediosa. O cutuco do facebook é especialmente útil para demonstrar um interesse romântico por alguém. Segundo o FAQ da rede social, uma cutucada é uma forma de interagir com seus amigos. Quando foi criada a opção de cutucar, não havia uma finalidade específica, pois cada usuário interpretaria da maneira que achasse melhor.

impressões de

repórter

Como as pautas tinham de ser relacionadas à internet, e no momento da escolha eu tinha um determinado assunto em mente, fiquei com o cutucar. Como sofro de hipermobilidade articular, possuo uma flexibilidade acima do normal, o que infelizmente pode ajudar a tirar partes do meu corpo do lugar. A minha ATM começou a estalar devido a uma artrose em 2004, e a deslocar em 2008, e a complexidade do meu caso era tanta que já me foi cogitado colocar pinos na mandíbula. A quiropraxia foi o que me salvou, e escolher fazer esta matéria sobre este assunto foi bastante gratificante, pois além de compartilhar minha experiência, tenho a oportunidade de fazer mais pessoas compreenderem como essa técnica é válida, funciona e pode resolver o problema de milhares de pessoas sem que elas tenham que passar por tratamentos drásticos.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 49


desligar real

BILL DAVENPORT (STOCK.XCHNG)

no mundo

50 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


A ordem é desestressar

Cansaço, falta de vontade, insônia e irritabilidade? Você pode ser mais uma vítima do estresse Por Bruna Natalha Henssler. Fotos de Luis Felipe Matos e Bill Davenport (Stock.Xchng)

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 51


E

ra uma terça-feira, Gabriel*, 20 anos, foi junto com sua mãe abrir a loja de sua família, uma tradicional boutique da cidade de Igrejinha, Rio Grande do Sul. Final de ano, época de compras natalinas, mal dava conta de atender todos os clientes. Boa parte da população estava de férias coletivas e as lojas mantinham um constante movimento. Por outro lado, Gabriel estava feliz, liberado das aulas, recentemente havia passado por muitas provas e uma correria agitada com sua formatura, no Ensino Médio. A empolgação era grande com essa nova etapa da vida, pois agora ele poderia assumir o turno integral e gerenciar a loja da família. Mesmo com toda euforia, foi neste dia que percebeu que algo estava errado. Sempre foi um rapaz calmo, bem humorado, mas naquela manhã acabou se estressando facilmente com uma cliente que estava insatisfeita por não achar peças de roupa do tamanho desejado. Gabriel se segurou, respirou fundo, contou até cem, mas logo depois acabou descontando em seus pais. Quando foi almoçar, passou a se sentir culpado, pois aquilo não era de seu perfil. Andava com insônia e irritado, via todos seus amigos de férias e boa parte deles nem trabalhando estava. O final do ano estava corrido, ele nem sequer podia descansar da mesma forma que os outros. Depois de uma briga mais intensa, seus pais, já preocupados, conversaram

com um amigo da família que era médico e descobriram que Gabriel podia estar sofrendo com estresse. Assustaram-se. Ele, um garoto tão novo e saudável? Jamais imaginaram que poderia estar passando por isso, mas, no fim, compreenderam que o jovem passara por mudanças muito repentinas em sua vida, se sentia pressionado e não estava preparado para assumir tamanha responsabilidade. “Por trabalhar em uma empresa familiar tradicional na cidade, eu sofria com a falta de horário. As pessoas te conhecem, sabem onde você mora e acabam te procurando fora de hora”, desabafa Gabriel. Hoje em dia muito se fala sobre o estresse, considerado a doença do século, ele está relacionado ao desgaste das pessoas, podendo, como consequência, causar vários problemas de saúde. O estresse é um conjunto de perturbações orgânicas, psíquicas, provocadas por vários agentes agressores, ligados a uma vida muito ativa e agitada. Atualmente já recuperado, Gabriel está morando em outra cidade, apenas estudando. Seu sonho agora é encontrar um emprego onde possa exercer atividades na sua área de estudo, para conquistar a felicidade profissional. Segundo a psicóloga Clarissa Machado Pereira, com MBA em Gestão Empresarial e Coaching Clinic, a depressão e o estresse podem ser considerados umas das maiores doenças nos tempos atuais, e a tendência de aumento nos ambientes de trabalho, tende a crescer. “As tecnologias aproximam LUIS FELIPE MATOS

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pessoas, informações e fatos, além disso, tem toda a questão econômica, que faz com que sejamos obrigados a fazer cada vez mais por menos, isso faz com que algumas pessoas se sintam pressionadas”, diz Clarissa. Esta rotina cada vez mais “conectada” faz com que as pessoas não consigam ter o descanso necessário e se sintam facilmente estressadas. Uma recente pesquisa da Associação Internacional do Controle do Estresse (ISMA), mostra que o Brasil é o segundo país que mais sofre com a doença, sendo que entre as mulheres ela está crescendo, por serem mais exigidas em tarefas, além de terem que cuidar dos filhos e da casa. FAZER O QUE SE GOSTA Daiana Anelise de Oliveira, 25 anos, também natural de Igrejinha, onde reside até hoje, é estudante de Ciências Contábeis e escolheu o curso pois desde muito pequena admirava sua tia que é contabilista. Como muitos jovens, divide parte da sua rotina entre trabalho, estudos e entretenimento. Pelas manhãs, ajuda na empresa do seu pai como auxiliar administrativo, no período da tarde até às 19h30min, trabalha na faculdade onde estuda três dias por semana como auxiliar de RH e telefonista, à noite cursa Ciências Contábeis. Nos outros dias, que não tem aula, trabalha na faculdade até às 22h30min. Uma menina batalhadora que se destaca de muitos da sua idade, além de todos esses compromissos, arruma tempo para fazer academia, vender produtos de uma revista de cosméticos e ajudar sua mãe nos serviços domésticos. “Ajudo meu pai pela manhã, vou para academia, almoço e então vou para faculdade trabalhar e depois estudar. Quanto às vendas de cosméticos, não posso desmerecer meu namorado, que me ajuda na logística dos produtos.” Mesmo com toda esta rotina agitada, se considera calma, não sofre de estresse e gosta de ter muitas atividades. “Alguns anos atrás, quando trabalhava em serviços gerais numa fábrica de calçados, tive


alguns problemas com estresse. Confesso que não procurei ajuda médica, acabei tomando remédio por conta própria. Fiz errado. No meu caso, o estresse não veio por consequência do trabalho, mas sim por assuntos pessoais.” O segredo para não se estressar? Daiana fala que é não levar o trabalho para casa e aproveitar o final de semana para descansar, se deligar de tudo. “Fazer o que eu gosto e o sonho de me formar em contabilidade também me dão forças para não desanimar”, salienta Daiana. A FÓRMULA DA SUPERAÇÃO Bruna Jacobus, 24 anos, natural de Novo Hamburgo e moradora de Campo Bom, é graduada em enfermagem e vai se formar em Pós-Graduação em Saúde Pública. Quando pequena, seu sonho era ser cantora. Recebia apoio dos seus amigos, apesar de achar que não tinha voz para a profissão. Certo dia comentou com sua mãe o interesse que tinha em cursar fisioterapia. “Minha mãe ficou preocupada, pois sempre fui uma pessoa que ficava assustada quando via alguém passando mal, foi então que ela sugeriu que eu conciliasse com o Ensino Médio o técnico de enfermagem, para iniciar minha carreira na saúde. Gostei tanto que depois cursei na faculdade.” Apesar de trabalhar apenas 36 horas semanais, Bruna tem uma rotina corrida, acorda cedo, pois depende de ônibus para ir até à Capital, onde trabalha como enfermeira do bloco de cirurgia cardíaca no Hospital Santa Casa. Dependendo do dia, vai de ônibus às 05h20min da manhã. Depois de todo o trânsito enfrentado, pega o trem, para então chegar ao local de trabalho. Seu horário é de seis horas diárias e inicia no meio da manhã, o que não dá direito a Bruna ter horário de almoço. Então acaba tendo que se alimentar com lanches rápidos. Diariamente, independente do horário de saída, também depende de transporte público para voltar. Como enfermeira responsável, muitas vezes acaba não tendo um horário certo: “Meu horário é das 10h às 16h, mas se temos uma cirurgia marcada para a noite, tenho que ficar, pois recebi treinamento para cuidar deste bloco. É de

minha responsabilidade separar materiais e orientar as enfermeiras técnicas. É meu emprego, é o que eu amo fazer”, conta Bruna. Com uma rotina difícil, em um lugar onde lida com muitas pessoas de todos os temperamentos, ela diz nunca ter se estressado, pois a maioria dos pacientes acaba compreendendo e respeitando o profissional de saúde. “Aprendi que minha profissão é essencial para muitas vidas quando trabalhava numa Clínica de Endoscopia em Campo Bom. Era uma sexta-feira, eu queria sair cedo para fazer unhas e cabelo. No fim daquela tarde, perto de fecharmos a clínica, chegou uma paciente na faixa de 30 anos, estava com sangramento e era urgente, teríamos que atender, não tinha jeito. Na hora fiquei irritada. Depois, ao ver o sofrimento daquela mulher, fiquei refletindo. Ela sofria de diabetes, estava com uma grave úlcera e passava por outros problemas de saúde, enquanto eu estava reclamando por uma coisa boba, ela estava ali cheia de esperanças. Iria passar o final de semana inteiro no hospital e quem sabe até dois, e eu achando que o meu estava acabado”, conta Bruna emocionada. Segundo a psicóloga Clarissa, o médico do trabalho é um dos profissionais que pode apoiar os colaboradores que sofrem com o estresse, mas normalmente este tratamento precisa ser feito com psiquiatras ou psicólogos clínicos. Como consequência, de empresas sofrem impactos de custo, rotatividade de pessoas e no clima organizacional. Já para os funcionários, o preço a pagar é na saúde: dores de cabeça, afastamento do ambiente social, baixa na autoestima, insônia, entre tantas outras complicações. “Às vezes, o diagnóstico é complicado. Muitas vezes, o primeiro indicador são os familiares ou amigos próximos. Muitas pessoas demoram a aceitar a doença e por isso demoram a buscar um tratamento. Cansaço, falta de vontade de fazer as coisas e baixa na imunidade podem ser alguns dos indicativos”, diz Clarissa. *O nome foi trocado a pedido do entrevistado

desligar no mundo

virtual

Fechar todas as aplicações abertas em um computador, fazendo com que ele se finalize por completo.

impressões de

repórter

Apesar do estresse ser algo tão comum nos dias de hoje, não foi fácil arranjar boas fontes que quisessem admitir que já sofreram com isso. A única pessoa que aceitou falar sobre o assunto não quis seu nome revelado, por achar que seria algo que poderia vir a interferir futuramente em sua carreira profissional. Não é somente ela que tem esta opinião. Várias pessoas não querem admitir que são estressadas, justamente por acreditarem que quem sofre com estresse pode ser considerado mal humorado e com baixa produtividade. Por outro lado, por mais que as outras fontes não tenham sofrido profundamente com o estresse, puderam revelar a importância do profissional dedicar um momento para se desligar das suas rotinas de trabalho e de estudos. Além disso, provaram para mim que amar o que fazemos é algo que possui grande importância para a realização pessoal e que o dom de enxergar os problemas de quem nos rodeia faz com que a gente reflita. Existem situações muito piores do que aquelas com as quais costumamos nos estressar.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 53


excluir no mundo real

A luta pela vida A rotina e a esperança por um novo lar das crianças que aguardam adoção Por Juliana Barcellos. Fotos de Claudia Sobieski

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A

s casas coloridas não se parecem em nada com um abrigo onde crianças abandonadas pelas famílias vivem seus dias sem saber o que lhes aguarda do lado de fora. Por dentro, a pintura antiga e desgastada se mistura aos brinquedos espalhados no chão. Assim vivem 73 crianças e adolescentes, com idades entre zero e 18 anos, divididas nas cinco casas de um dos lares de Porto Alegre destinados a abrigar candidatos à adoção. Mesmo em condições precárias, o que não falta é carinho, amor, alegria, além do típico choro de bebê. Para a Justiça, excluir as crianças do convívio com os pa-

rentes é o último recurso. Investir na família é a prioridade da Vara da Infância e Juventude. As famílias são acompanhadas e recebem ajuda do Estado, como auxílio psicológico, tratamento para largar as drogas, entre outros. Isso para ter condições de reintegrar essas crianças aos seus lares. As crianças ficam 120 dias em casa, o que é chamado de período de experiência. Se o resultado for positivo, a Justiça concede a guarda definitiva à própria família. Quando a tentativa não dá resultado, elas são encaminhadas à adoção. Nos abrigos, as crianças têm uma rotina igual à de qualquer outra que reside em um lar “tradicional”, com mãe, pai e

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irmãos. Elas frequentam escola, cursos, aulas de tênis, informática e escolinha de futebol. A diferença é a presença dos chamados monitores, responsáveis pela organização do dia a dia delas. Por trás de cada rostinho existe uma história de sofrimento, descaso, abandono, exploração e, em alguns casos, até abuso sexual cometido por familiares. De acordo com Christiane Garcia, assistente social do abrigo Lami, na Zona Sul da Capital, é com frequência que crianças recém-nascidas são levadas dos hospitais direto para os abrigos. “Esses bebês chegam aqui porque as mães não querem assumir a responsabilidade. Outras vezes, por não terem condições financeiras e psicológicas de assumir a criação delas. O serviço social dos hospitais entra em contato com o Judiciário, que as encaminha para os abrigos residenciais”, explica. Para Christiane, os candidatos à adoção criam uma expectativa muito grande. E a realidade nem sempre é como essas pessoas imaginam. “Existem crianças de todos os tipos aqui. Crianças que vieram de realidades sociais bem diferentes. Algumas se sentem excluídas. Não por viver em um abrigo, mas por causa da vida que tinham antes, envolvendo o uso de drogas, a violência sexual, miséria e violência doméstica”, destaca. A assistente social também acredita que existe uma dificuldade maior

de adoção de crianças negras, mais velhas ou que tenham alguma deficiência, já que a procura maior é por bebês recém-nascidos, brancos e com a saúde perfeita. Mesmo com tantos percalços, as crianças não perdem o brilho no olhar, o sorriso às vezes tímido, a alegria de brincar com os amigos e a esperança de encontrar um novo lar. Além dos funcionários, divididos entre técnicos de enfermagem, psicólogos, recreacionistas e educadores, o abrigo conta com apoio de pessoas da comunidade que trabalham voluntariamente ajudando na manutenção e rotina do lar. Entre as atividades que os voluntários desenvolvem estão organização do aniversário das crianças, oficinas de contação de histórias, recreação e aulas de reforço escolar. Em meio a histórias de dor e sofrimento, também existem aquelas com final feliz, ou com um quase final feliz. É o caso de João*, hoje com 12 anos, que foi para o abrigo quando tinha apenas oito meses. Ele e os três irmãos mais velhos viviam em uma família onde as condições eram precárias. A mãe, usuária de drogas, não tinha condições de ficar com os filhos. Em 2010, quando tinha dez anos, João fugiu do abrigo com o um dos irmãos, na época com 13 anos. Os dois foram viver na rua, onde usavam crack e viviam em situação de mendicância.

Algum tempo depois, o serviço social do abrigo descobriu que João estava morando na casa de um homem, que, comovido com a situação do menino, resolveu levá-lo para sua casa e tentar organizar sua vida. Esse homem que levou João pra casa também já havia morado nas ruas, mas conseguiu, mesmo que de uma forma mínima, reorganizar sua vida e voltar a trabalhar. O “anjo da guarda” de João entrou com um pedido de adoção do garoto, quando ele já tinha 12 anos. No começo de agosto, o menino voltou para o abrigo, após dois anos nas ruas. Voltou com a esperança de que o pedido de adoção do homem que o estendeu a mão seja aceito. O processo de adoção é longo, e o pedido ainda está sendo analisado. Já para Miguel*, de pouco mais de ano, a história é diferente. A criança está prestes a voltar ao convívio da família. A avó materna já conseguiu obter a guarda legal da neta, que em breve estará em casa cercada de muito amor e carinho. APADRINHAMENTO AFETIVO Para quem tem vontade de adotar uma criança, mas não possui condições, existe a possibilidade de ser um padrinho afetivo. Desenvolvido pelo Instituto Amigos de Lucas, em parceria com o Poder Judiciário, o Programa de Apadrinhamento Afetivo é uma ação que envolve órgãos governamentais e da sociedade civil, em conjunto com os conselhos esta-

Como adotar uma criança Cadastro: procure o Juizado da Infância e da Juventude de sua cidade para fazer um Cadastro de Pretendentes para Adoção. Os documentos solicitados variam entre os juizados. Pessoas solteiras também podem adotar. A partir do momento que o juizado considerá-lo apto, você ganhará o Certificado de Habilitação para Adotar, válido por dois anos em território nacional. Aprovação: sua ficha pode não ser aprovada, então procure saber as razões e fazer as mudanças necessárias para recomeçar o processo.

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Fila: com o certificado, você entrará na fila de adoção e aguardará até aparecer uma criança com o perfil desejado. Para adotar alguém que conhece, o processo é diferente: é preciso um advogado para entrar com o pedido no juizado. Espera: a espera pela criança varia conforme o perfil escolhido. Meninas recém-nascidas, loiras, com olhos azuis e saúde perfeita – a grande maioria dos pedidos – demoram até cinco anos. A lei não proíbe, mas alguns juízes são contra a separação de irmãos e podem lhe dar a opção de adotar mais de uma criança.


excluir

no mundo virtual

Deletar ou apagar. Pode ser uma frase, uma palavra, uma foto, um e-mail ou até mesmo excluir uma pessoa do seu circulo de amizades nas redes sociais.

dual e municipais dos direitos da criança e do adolescente. O objetivo é possibilitar que pessoas assumam responsabilidades como padrinhos ou madrinhas de fato de crianças e adolescentes abrigadas em nosso Estado. Prestar assistência moral, afetiva, física e educacional ao afilhado, integrando-o em seu convívio gradativamente, são algumas das atribuições do padrinho afetivo. O mais importante para essas crianças, no entanto, é o carinho que elas receberão dos padrinhos, pois normalmente, o público-alvo do programa são crianças e adolescentes com possibilidades remotas ou inexistentes de adoção. Qualquer pessoa com mais de 21 anos – desde que respeite a diferença de 16 anos entre ambos –, e que se enquadre nos critérios estabelecidos pelo Judiciário, pode candidatar-se a padrinho ou madrinha afetivo. Durante o processo, os candidatos passarão por uma oficina de sensibilização, além da aproximação com o possível afilhado. * Os nomes das crianças foram trocados para preservá-las.

impressões de

repórter

Quando fiz a escolha da pauta da Primeira Impressão, a primeira coisa que me veio foi contar um pouco da história e rotina das crianças que aguardam por adoção na Capital. Sempre tive curiosidade em saber como esses pequenos, e alguns grandinhos, vivem. Confesso que achava que eles tinham uma vida triste dentro dos lares. Mas ao chegar ao abrigo residencial da Zona Sul minha teoria foi por água abaixo. Essas crianças têm uma vida normal, como de qualquer outra que mora em uma casa “convencional”, com pai, mãe e irmãos. Fiquei aliviada. Tive receio de encontrar um ambiente triste, choroso, sem alegria, sem esperança. O brilho no olhar e o sorriso nos lábios dessas crianças são contagiantes! Percebi que eles ficam felizes quando chega uma visita na casa deles. Fazem uma festa! Há algum tempo tenho vontade de adotar uma criança. Depois dessa pauta, a vontade só aumentou. Passei uma tarde maravilhosa ao lado desses seres iluminados. Senti vontade de levar dois para minha casa. Um menino e uma menina, com idades e características físicas diferentes. Quem sabe um dia... Saí de lá feliz em ver que essas crianças têm, sim, uma rotina alegre e cheia de esperança. Saí feliz por ver que elas têm condições de dar e receber muito carinho.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 57


favoritar no mundo real

n Júlio e Carla

(ao centro) são os anfitriões da Festa da Floresta

A festa preferida 58 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


Evento que completou dez anos reuniu mais de 100 amigos em um sítio de Gravataí Texto e fotos de Venise Borges Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 59


J

úlio Sá, 41 anos, reúne em um só lugar tudo que mais gosta: amigos, família, esposa, boa música, bandas e muita diversão. Todas essas coisas ele consegue juntar no seu lugar favorito: o sítio onde vive, mais conhecido como Floresta. A Floresta ficou consagrada depois de suas famosas e bem sucedidas festas, que iniciaram em meados de março de 2003 e até hoje vêm crescendo e agregando mais gente a cada edição. No dia 13 de setembro deste ano, o evento completou 10 anos em um lugar cheio de atrações. Mas qual o segredo para juntar todas as coisas favoritas? Impossível contar a história da festa sem falar da história do sítio. Logo que Júlio casou-se com sua ex-mulher, morava de aluguel em São Leopoldo. Sempre teve a vontade e o sonho de juntar alguns amigos para comprar um local para morar coletivamente e, de preferência, na zona rural. A ideia era fugir do aluguel e exercer os conceitos de solidariedade e cooperativismo. Foi quando um grande amigo dele, já falecido, Zé Adair, separou-se de sua companheira e propôs realizarem o tal sonho. “Topamos e começamos a procurar um imóvel. Nós três trabalhávamos em Porto Alegre. Achamos esse sítio em Gravataí, de barbada, e resolvemos apostar. Combinamos que, após seis meses e com algumas benfeitorias prontas, realizaríamos uma festa pra comemorar. Dito e feito. Em setembro, organizamos a 1ª Festa na Floresta”, conta Júlio. Júlio lembra o quanto excitados ficaram pensando no conceito da festa. Durante uns dois meses, definiram três princípios básicos, que perduram até hoje: 1) não cobrar nada; 2) tudo que levares para a festa é de todos; e, talvez a essência paro sucesso da festa; 3) só rolar música boa, 60 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

não importa o estilo, mas desde que seja de raiz, de fábrica. “Nada de lixo cultural consumista da modinha da hora”, diz. A primeira festa aconteceu com a participação de 69 pessoas, sendo que a maioria acampou no sítio, o que deu um caráter de woodstock que segue até hoje. “Havia uma época em que contávamos quantas pessoas tinham ido à festa. Obviamente não no dia, e etilicamente também não era logo depois de ela ter rolado”, relata Júlio, dando risada. “Levávamos uma semana para precisar os números. Mas o auge foi uma festa numa água de março qualquer, em que compareceram 160 pessoas. Na festa de 10 anos, passaram pela Floresta mais de 100 pessoas, com certeza”, conta, orgulhoso. Júlio, como bom anfitrião, diz ser indescritível o sentimento de ver tantas pessoas felizes em sua casa, e que isso vem de família. “Me envolvo pra caramba na organização e fico muito frustrado quando grandes amigos não comparecem, independentemente de seus motivos”, fala. Crescido em uma família que adora o “ajuntamento”, casa cheia e música rolando, conta que sua mãe, Lizete, foi cantora de rádio e trabalhou em rádio-novelas, e é dela que vem essa veia musical. Seu pai, João Paulo, é metalúrgico e sempre falou para o filho de suas posições de “chão de fábrica”, pela divisão dos ganhos e avanços entre todos

favoritar no mundo virtual

Selecionar links e páginas como preferidos para posterior leitura ou acesso virtual. Agrupar materiais favoritos em um local seleto e de rápido acesso.

os colegas. Júlio diz que solidariedade, companheirismo, amor à música boa, sempre estiveram presentes na família. Nos finais de semana, era casa cheia, invariavelmente. Foi militante no movimento estudantil, na área da infância e da juventude, mas sua grande escola foi o movimento ecológico em Novo Hamburgo, com a hoje extinta Terraguar Associação Ecológica. Quando questionado sobre o que isso tem a ver com a Festa da Floresta, logo responde: “Tudo, pois isso são construções de nosso caráter que levamos para vida. E, desde que pude ter um pedacinho de terra, um cantinho para morar, sempre quis compartilhar isso com os meus. E a festa é o ápice disto, inclusive com a participação dos meus pais, que adoram. Agora são minhas sobrinhas de 10 e 8 anos, que querem participar a todo custo das festas, mas não dá, né? Daqui uns anos elas já podem”, brinca. É curioso pensar como o dono da casa faz para manter a ordem em uma festa com tantas pessoas no meio do mato. Mas, para isso, existem regras. A mais básica é ser e fazer com que todos se sintam felizes. Júlio acredita que as pessoas têm que exercer o amor, o desprendimento e a vontade de conhecer as outras, de tirar máscaras, de ser o que é e se permitir. O festeiro defende que ninguém vai moldar ninguém, e cita Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, midiatizados pelo mundo”. Júlio sempre espera que a midiatização da Floresta seja propícia para os convidados se tornarem seres humanos melhores, longe de preconceitos e de práticas que desrespeitem direitos humanos. “Se quem for não tiver presente esses valores, naturalmente não se sente bem na festa. Mas os que tiverem esses


valores adormecidos, com certeza saem de lá, no mínimo, refletindo mais sobre sua práxis”, diz ele. Com tantas festas, histórias e lembranças não faltam. Júlio lembra com muita emoção do falecido amigo Zé Adair, que partilhou com ele esse sonho e morreu aos 39 anos devido a um câncer. “Numa das primeiras festas, três amigas, após exaustivamente montarem sua barraca, resolveram adentrá-la para bater papo e descansar. Nisso ouvem, do lado de fora, um som de sucção totalmente sexual, esses do tipo história em quadrinhos pornô com legendas: Vushh, vushh, vushh”, lembra. Uma delas disse às outras: “Bah, esse cara é bom, hein?”, sendo que o som continuava freneticamente. Quando resolveram sair da barraca, deram de cara com a revelação do som: um amigo, exausto, já com uma perna mais grossa que a outra, tentando encher seu colchão de ar. “As três caíram na gargalhada, e ele só foi saber das razões da comicidade, após elas terem contado para o restante da galera o mal entendido. De fato, essa ficou para a memória”, conta. Para que os convidados consigam chegar até o sitio – o que não é assim tão fácil -, há muito planejamento. Júlio diz que isso aprendeu com muitos anos acampando mundo afora. Basicamente com uma receita detalhadíssima de como chegar e do que levar, sempre via mala de e-mails e agora com o apoio das redes sociais. A galera curte, é quase uma aventura. Mas o que a festa de 10 anos teve de mais especial do que as outras? “Chegar com esse pique e essa referência de astral em 10 anos já é motivo suficiente para comemoração, né?”, brinca Júlio. Sobre os planos para a próxima festa, ele diz que é estar vivo e montar uma banda da

Floresta, com vários músicos “avulsos”. UMA UNIÃO FLORESTAL O anfitrião Júlio Sá conta com todo apoio de sua atual esposa e co-anfitriã nas festas da Floresta. Carla Quadros, 51 anos, conheceu Júlio em julho de 2006 em um bar de Porto Alegre. Isso não é nenhuma surpresa, já que os dois adoram uma boa música e boa companhia. Carla diz que o que a surpreendeu foi quando ele disse que morava em um sítio em Gravataí. “O sítio era, para mim, uma urbanóide, praticamente uma floresta. Aos poucos a gente foi se conhecendo e sabendo da história de cada um. E uma das histórias mais curiosas do Júlio era sobre as festas que rolavam no sítio. As tais Festas na Floresta”, lembra. No final daquele ano, haveria uma edição. Carla conta que acompanhou todos os preparativos, quase um ritual. “Como uma ex-urbanóide, já ambientada com a floresta, mas ainda uma virginiana organizada e metódica, fiquei em pânico! Que loucura é essa? Será que isso vai dar certo?”, conta. Carlinha, como é chamada pelos amigos, conta que ficou tão encantada com tudo que, na semana seguinte, resgatou algumas fotos da primeira festa que estavam na parede do galpão, meio mofadas, e fez um quadro. “A ideia era guardar um pouco dessa memória e também presentear o grande mentor desse evento tão legal”, justifica. A paixão pelo lugar é tão grande que esse ano os pombinhos resolveram casar de surpresa, em meio a uma das Festas da Floresta, o que foi um grande espanto para os amigos presentes, que nem imaginavam que iriam participar de um casamento. “E foi lindo, uma maravilha! Vocês pensam que isso não existe? Então nunca foram numa Festa na Floresta!”, brinca Carla.

impressões de

repórter

Encontrar o tema certo para a minha pauta não foi fácil. No início fiquei apavorada, pensando que história eu iria encaixar no verbo favoritar. Foi quando o grupo musical que faço parte recebeu o convite para uma apresentação na Festa da Floresta. Na mesma hora pensei: é essa a história que vou contar! Dez anos de uma festa que é preferida por muitas pessoas. Programei-me para entrevistar o Júlio, dono da festa, e marquei com ele. Disse que antes do início da festa iríamos bater aquele papo. No dia marcado, tive imprevistos e cheguei um pouco mais tarde do horário combinado. Logo vi que a entrevista teria que ficar para outro dia, pois o entrevistado já tinha bebido algumas cervejas e estava totalmente em clima de festa. Eu é que não iria estragar a festa dele com várias perguntas. Relaxei e curti! Mas quem disse que as coisas estavam fáceis para a repórter aqui? Na semana seguinte, quase morri procurando pelo meu entrevistado, que um dia me enviou uma mensagem pelo facebook avisando que estava em férias com a esposa no Ceará e que retornaria só na semana seguinte. Entrei em pânico. Eu tinha que entregar algum material para a professora e minha fonte estava a mais de três mil quilômetros e sem acesso à internet. Mais uma vez resolvi relaxar e esperar ele voltar. Mas como bons entrevistados e também interessados em deixar essa história registrada, em uma revista da qual eles são leitores, o Júlio e a Carla me procuraram assim que chegaram em Porto Alegre. Mais uma vez pude relaxar, pois agora sim eu teria a minha história!” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 61


formatar no mundo real

Três vezes um sonho A história de uma mulher que renovou o desejo de ser mãe, mas que carrega a lembrança de dois filhos na memória Por Natália Dalla Nora. Fotos de Fernanda Reus

62 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


É

com ternura no olhar que Marizete Campana, 37 anos, amamenta o filho Davi, de 11 meses. Muito ativo, o menino loiro, simpático e ainda com poucos fios de cabelo, consome toda a energia da servidora da prefeitura de Viamão, mas ela não se importa. Marizete sempre teve o sonho de ser mãe. Um sonho tão grande que se concretizou pela terceira vez. Natural de Descanso, Santa Catarina, Marizete é casada há 14 anos com Paulo César Fraga. Engravidou de seu primeiro filho em 2006. Matheus nasceu saudável e parecido com a mãe: as fotos antigas acusam a semelhança. Com oito meses, Marizete decidiu matricular o filho em uma creche. A felicidade de ter construído uma família era, aparentemente, inabalável. No entanto, uma ligação inesperada da creche mudou tudo. “Ele se afogou com alguma coisa e sofreu um refluxo. Os médicos nunca souberam dizer o que realmente aconteceu”, conta. Passados 10 dias da morte de Matheus, Marizete decidiu voltar a trabalhar. Três meses depois, estava grávida novamente. “Não foi uma maneira de substituir meu primeiro filho, mas eu precisava de um motivo para continuar vivendo. Saber que existia uma criança crescendo dentro de mim me deu forças para isso”, diz. Arthur nasceu em fevereiro de 2009, aparentemente saudável. A partir dos quatro meses, no entanto, Marizete percebeu que o filho estava perdendo peso e os movimentos do corpo. “Eu vi que ele não estava normal. O Matheus, com essa idade, era muito diferente e mais ativo.” Com seis meses, Arthur teve a primeira pneumonia e ficou dois meses internado em um hospital. Foi com quase um ano de idade que os médicos descobriram que ele tinha Síndrome de West, um tipo raro de epilepsia que atinge crianças.

n Marizete agradece

por chegar ao final do dia cansada. Davi é muito ativo e não dá descanso à mãe Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 63


n Davi (ao lado), de 11

meses, é o terceiro filho de Marizete. Matheus morreu com oito meses e Arthur com quase dois anos de idade Com os olhos cheios d’água, Marizete conta que Arthur morreu em seus braços no Hospital Santo Antônio, em Porto Alegre, em outubro de 2010. “Eu tinha toda estrutura à minha volta e, mesmo assim, vi ele se apagar como uma vela em meu colo.” Arthur foi infectado por uma bactéria e, como já estava com a saúde debilitada, não resistiu. Antes do óbito, os médicos sugeriram realizar uma traqueostomia, procedimento cirúrgico que facilita a entrada de ar nos pulmões. Marizete, no entanto, não quis. Ela afirma que a intervenção não traria qualidade de vida ao filho. “Se eu amo o meu filho, é justo eu fazer ele passar por tudo isso apenas para poder dizer que ele está ao meu lado? Eu preciso aceitar que eu tenho que perder também. Se eu amo, não posso ser egoísta” , afirma. Quando Arthur morreu, Marizete sentiu uma mistura de alívio e dor. Uma dor porque perdeu um filho, mas um alívio porque ele deixou de sofrer e descansou. A PERSISTÊNCIA A menstruação já estava atrasada. Marizete foi até uma farmácia e comprou um teste. Sem controlar a ansiedade, foi no banheiro durante o horário de trabalho para ter certeza. Saiu de lá cor-

64 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

rendo, chorando. Assustadas, as amigas perguntaram o que havia acontecido. Estendeu-lhes o teste: o resultado era positivo. Pela terceira vez, Marizete estava grávida. Davi Campana Fraga nasceu em 24 de janeiro de 2013 e espalhou alegria na sala de parto. “O doutor dizia que meu filho era lindo!”, conta a servidora, emocionada. A experiência de ser mãe novamente, segundo ela, é inexplicável. “Chega o final do dia e eu dou graças a Deus por estar morta de cansada”, brinca. Marizete está feliz, mas, como muitas mães, tem que conviver com a dor de ter perdido dois filhos. “Vai ficar sempre aquele buraco no peito que dói dia e noite. A gente fica de bengala a vida inteira. Mas o Davi é um impulso para eu continuar vivendo. Ele me devolveu essa vontade, porque, depois do que aconteceu, a vida perde um pouco o sentido. Hoje eu digo que sou 80% feliz graças a ele.” O tratamento com psicólogo ajuda Marizete a lidar com tudo o que passou, mas ela admite que o medo de acontecer de novo é inevitável. “Não posso te dizer que olho para o Davi e me sinto 100% segura. Qualquer um precisa de ajuda numa situação dessas, não adianta negar”, conta a servidora,

que está em licença de trabalho para se manter perto do filho e admite sentir receio de colocá-lo em uma creche. Apesar da insegurança, Marizete não quer que o seu sofrimento atrapalhe a criação de Davi. A superproteção seria algo natural depois das situações pelas quais passou, mas ela pretende não misturar as coisas. Perder dois filhos é difícil, mas a luta seria ainda maior se Marizete não contasse com o apoio da família, principalmente do marido. Durante os três meses em que Arthur ficou internado, Paulo César não deixou de visitá-lo um dia sequer. “Ele trabalhava e ia direto para o hospital. Chegava em casa tarde, acordava cedo para ir ao serviço novamente e, após o expediente, mesmo muito cansado, visitava nosso filho e eu.” O desejo de engravidar novamente era dividido com o marido, que deu força à Marizete todas as vezes em que ela sofria pela perda. “Nos segurávamos um no outro, sempre buscávamos levantar o astral e pensar em coisas boas”, diz. Quando recebeu a notícia de que estava esperando outro filho, a servidora ligou para Paulo César e contou a novidade. “Eu já sentia que estava grávida muito antes de ter a certeza, e meu marido também, só que nenhum


de nós dois havia contado ao outro. A gente se encontrou no horário de almoço do Paulo César e, quando ele foi me dar um beijo, estava gelado de tanta emoção!” A SAUDADE “Ainda bem que ele morreu, porque ele era especial”, foram algumas palavras que Marizete ouviu quando perdeu Arthur. Por causa da doença, sua morte era esperada, mas não significa que doeu menos. “O Matheus é como um anjo que não saiu de perto de mim, mas a saudade que eu tenho do Arthur parece maior, sabe? Acho que é porque ele dependia de mim até para respirar. O sofrimento que eu e ele vivemos naquele hospital eu não desejo a ninguém.” A certeza de ter feito tudo o que podia em relação aos dois filhos que perdeu é o que dá força para Marizete seguir em frente. Nos três meses em que Arthur ficou internado, a servidora não voltou para casa. “Dei o melhor de mim, inclusive para o Matheus. O tempo que pude tirar de licença para cuidá-lo, tirei. Não sinto remorso”, confessa. Marizete procura não comparar nenhum dos filhos, tampouco esquecê-los. Mas uma coisa os três têm em comum: o amor da mãe. “O Davi é o Davi.

Cada um tem suas particularidades. Às vezes, fico pensando em como seria conviver com os três juntos, mas aí eu lembro que só tive o Arthur porque perdi o Matheus, e só tenho o Davi porque perdi o Arthur. É difícil imaginar essas circunstâncias.” Ela tenta não pensar muito no assunto. O que importa, agora, é curtir o filho e criá-lo como se fosse o único. Matheus e Arthur são carregados na lembrança e na pele. O olhar e as tatuagens espalhadas pelo corpo da servidora trazem as marcas do que viveu. Mas ainda falta uma terceira tatuagem, que ela já pensa em fazer. Davi será marcado na pele e, junto ao nome de seus dois irmãos, irá traduzir o sonho e o desejo de Marizete de ser mãe. Três vezes.

formatar no mundo virtual

Processo realizado para que o sistema operacional seja capaz de gravar e ler dados no disco, criando, assim, estruturas que permitam gravar os dados de maneira organizada e recuperá-los mais tarde.

impressões de

repórter

Eu conheci a história da Marizete em 2011, quando trabalhava na prefeitura de Viamão. Naquela época, ela chorou várias vezes enquanto conversava comigo, mas, agora, com outro filho, isso não aconteceu. Encheu os olhos de água ao falar do Matheus e do Arthur, embora não derramasse nenhuma lágrima. Essa atitude demonstra, para mim, a força de Marizete, que sempre vai carregar a tristeza de ter perdido dois filhos, mas que levantou a cabeça e não desistiu do sonho de ser mãe. Quem não a conhece, jamais saberá pelo que passou, pois é uma mulher alegre e de muita fibra. A reportagem me proporcionou grandes ensinamentos, principalmente em relação à postura que um jornalista deve ter diante de uma pauta delicada, que envolve sofrimento e sentimentos. O maior benefício, no entanto, é ter tido contato com a história. Na verdade, acredito que essa seja a essência e o segredo de uma boa reportagem literária: envolver-se com o tema e se jogar com alma na história. Acredito que, dessa forma, o resultado sempre será positivo.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 65


NATÁLIA SCHOLZ

no

googlear mundo

real

A arte de pesquisar Embora a internet seja considerada uma das grandes sensações deste século, nem todas as pessoas se renderam aos seus encantos. Muitas preferem buscar conhecimento nas bibliotecas Por Giseli Nesi. Fotos de Natália Scholz e Taize Odelli

66 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


NATÁLIA SCHOLZ

S

NATÁLIA SCHOLZ

hhhhh! Silêncio, você está em uma biblioteca! Aqui, só é permitido o som das páginas dos livros, revistas e jornais. O acervo contempla também mapas e material multimídia. A informação e o conteúdo adquirido vagarosamente pelos leitores são absorvidos, pouco a pouco, como se estivessem saboreando uma deliciosa refeição. Tem conhecimento por toda parte, basta você apanhá-lo em uma das dezenas de prateleiras. Historicamente, as primeiras bibliotecas que se tem notícia foram chamadas de “minerais”, porque seus acervos eram constituídos de tabletes de argila. Depois vieram as bibliotecas vegetais e animais, constituídas de rolos de papiros e pergaminhos. Mais tarde, com o advento do papel, fabricado pelos árabes, começaram-se a formar as bibliotecas de papel e, após, as de livro propriamente dito. Foi a partir do século XVI que as bibliotecas realmente se transformaram, tendo como característica a localização acessível, passaram a ter caráter intelectual e civil, e a democratização da informação foi especializada em diferentes áreas do conhecimento. No Brasil, a primeira biblioteca pública instituída oficialmente abriu suas portas no Rio de Janeiro, em 1825. Essa biblioteca foi constituída pelos livros do rei de Portugal Dom José I, trazidos para o Brasil por Dom João VI, em 1807. As transformações sócio-econômicas e políticas ocorridas com a revolução industrial provocaram também mudanças na função da biblioteca, o que era apenas uma armazenadora de livros, passou a ter um importante papel social. No Rio Grande do Sul, a criação e a instalação da Biblioteca do Estado, decorreram da Lei Provincial nº 724, de 14 de março de 1871, que autorizou o gasto de até oito contos de réis para aquisição de livros, e ao mesmo tempo criou o cargo de bibliotecário e um de contínuo para sua administração. Conta Morgana Marcon, diretora da biblioteca, que só em 1877 suas atividades começaram acontecer. “Em 1922, a biblioteca ganhou nova sede, localizada na Rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, onde permanece até hoje”, acrescenta. Nesse mesmo século, 17 anos mais tarde, nascia o jornalista, escritor e poeta gaúcho José Machado Leal. Usuário da caneta tinteiro, evoluiu para a máquina de escrever e, nos anos 1990, rendeu-se ao computador. Rápido, prático e com capacidade de armazenar histórias, a máquina foi recebida de braços abertos pelo jornalista, que, com a ajuda da ferramenta, lança anualmente na reconhecida Feira do Livro de Porto Alegre, suas obras sobre as histórias do Rio Grande do Sul. “Eu me considero um grande entendedor do Word. Entretanto, minhas pesquisas só realizo em livros. Tenho uma biblioteca em casa e frequento outras da Capital. Diariamente, me informo por meio do rádio e dos jornais, leio um livro por semana e não sinto a necessidade de utilizar a internet. Já os meus filhos e os meus netos utilizam a ferramenta”, enfatiza Machado Leal aos 74 anos.

NATÁLIA SCHOLZ TAIZE ODELLI

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 67


TAIZE ODELLI

n Morgana Marcon

é diretora da Biblioteca do Estado do Rio Grande do Sul, criada em 1871, mas que começou a funcionar em 1877 Um estudo feito com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no primeiro semestre de 2013, mostrou que o acesso à internet cresceu cerca de 143,8% entre a população com 10 anos ou mais, de 2005 para 2011, enquanto o crescimento populacional foi de 9,7%. A pesquisa também mostrou que os jovens são os que mais acessam a internet. Os maiores no mundo virtual percentuais foram Fazer busca no Google, ou utilizar o dos grupos com idade de 15 a 17 anos navegador de maneira geral. (74,1%) e de 18 ou 19 anos (71,8%). A internet contribuiu significativamente para as modificações na relação do homem com as informações, o tempo e o espaço. O Google, por sua vez, é uma empresa multinacional de serviços online e de software, criada na década de 90. Seu papel é hospedar e desenvolver uma série de serviços e produtos baseados na internet. Diariamente, o site Google

googlear

68 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

recebe cerca de três bilhões de acessos, formando automaticamente uma cadeia gigantesca de usuários, pessoas fascinadas pelo imediatismo das informações e dependentes das suas respostas. Alguns pesquisadores apelidaram o Google de Deus, eles brincam dizendo que ele é onipresente, e provocam: faça seu pedido que ele atenderá em segundos. Mas, assim como Machado Leal, há outras pessoas que também preferem as pesquisas no papel. Esse é o caso de José Roberto Zaccani, contabilista aposentado, que aos 63 anos passa duas horas, quatro vezes por semana, se informando por meio de jornais e livros da biblioteca da Capital. Ele conta que já chega à biblioteca sabendo das principais notícias que ouviu pelo rádio e assistiu pela televisão. “Gosto de comparar como cada veículo conta a notícia. Além disso, leio a seção sobre esportes e filmes. Tenho computador em casa, mas não consegui me adaptar com as informações através da internet. Parece que falta alguma essência”, desabafa. As bibliotecas, no entanto, precisam se adaptar aos processos de inovações tecnológicas. Dentro deste novo cenário,


NATÁLIA SCHOLZ

n O jornalista José

Machado Leal utiliza o computador para escrever, mas só faz pesquisas em livros

a diretora da Biblioteca do Estado do Rio Grande do Sul, Morgana Marcon, enfatiza que a biblioteca precisa aliar as novas tecnologias aos serviços oferecidos. “Quando a informação que o usuário solicita não se encontra na biblioteca, o bibliotecário busca na internet, em sites específicos, ou no Google, são possibilidades para oferecer ao usuário um caminho em direção a informação que procura.” Para Morgana, o Google é uma imensa base de dados, basta saber utilizá-lo corretamente. “A informação no Google não está indexada. Por exemplo, se você digitar a palavra “rosa”, vai aparecer milhões de sites sobre a flor rosa, a cor rosa, pessoas com o nome de rosa. O bibliotecário faz o filtro, busca a informação exata desejada pelo usuário”, explica. Há pouco tempo, levantou-se uma polêmica de que a Google tem o desejo de criar a maior biblioteca digital do mundo. O tema circulou intitulado: “A ameaça do Google Books”. Porém, apreciadores de bibliotecas saíram em defesa de sua existência, explicando e reforçando para a sociedade os diversos papéis que a biblioteca cumpre. Entre eles, fo-

ram citados: o auxilio no processo educativo e a promoção para o cidadão ao acesso à informação local para o pleno exercício de sua cidadania. A relação das pessoas com o livro impresso ainda é bastante expressiva. “Por mais portáteis que sejam os tablets, nada substitui o prazer do contato com o livro impresso. A televisão não substituiu o rádio. O smartphone não substituiu o computador. As tecnologias vêm para agregar. Os e-books vêm para atuar conjuntamente com o livro impresso. A era da informação não quer perder público, dessa forma se adapta para agradar a todos”, ressalta Morgana. Embora neste novo século a tecnologia da informação apresente ferramentas capazes de encurtar o caminho entre o conhecimento e as pessoas digitando somente uma palavra, e exista a chamada geração Y, que aprova e consome as ferramentas criadas, as bibliotecas ainda continuam recebendo muitas pessoas. Mesmo com tantos atrativos tecnológicos, elas não abrem mão de sentar-se em suas cadeiras e folhear suas mais variadas páginas em busca de informação e conhecimento.

impressões de

repórter

A pesquisa, seja por meio dos livros, seja através do Google, é uma tarefa individual. É um momento de solidão em relação a tudo o que é externo. Porém, é uma contemplação do conhecimento, que desperta as mais variadas sensações à medida que vai sendo absorvido pela mente. Os livros, na maioria das casas, são exibidos como troféus e ocupam os melhores espaços. Para algumas pessoas, são companhia, afago, uma relação antiga de cumplicidade. Para essas pessoas, as novas mídias digitais ocupam um espaço muito pequeno. Para elas, as bibliotecas são um refúgio. É possível observar nesses leitores um vai e vem de expressões. De repente, surge um sorriso, um suspiro, um olhar de desaprovação. Quando a leitura chega ao fim, fecham-se as páginas, leitores se recompõem e voltam para o mundo real, para as suas atividades e obrigações até o próximo encontro, que já tem hora marcada.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 69


indexar no mundo real

Da imagem ao som Trilhas sonoras produzem símbolos desde o cinema mudo Por Anelise Durlo. Fotos de Amanda Nunes e Fernanda Reus

U

ma mulher ensaboa-se distraída no chuveiro. Logo uma sombra surge atrás da cortina fosca. Não há diálogos, apenas o som da água caindo sob o chão. Um desconhecido afasta o tecido de plástico subitamente e inicia-se a trilha. A jovem tenta se esquivar do estranho, que avança com uma faca em sua direção. O clima de tensão é pontuado com as notas histéricas dos violinos. A personagem grita, porém facadas a atingem. As notas estão num tom menor, a fim de conferirem o drama à mulher que desfalece apoiada na parede de azulejos e, por fim, dá seus últimos suspiros. A sequência, do filme Psicose (1960) de Alfred Hitchcock, tornou-se um marco do cinema moderno. O impacto da cena, que perpetuou o longa entre gerações, também merece créditos que estão além das questões de produção, roteiro e direção. A trilha sonora foi, igualmente, uma personagem quase tão principal quanto o protagonista. Após 53 anos, o fragmento da película ainda está difundido no imaginário popular, especialmente pelas notas agudas que, se escutadas mesmo por alguém que não tenha assistido ao filme, irá associá-las à imagem da mulher esfaqueada no chuveiro. Por isso, a música, presente a partir da década de 1910 no cinema mudo, representa um papel que está à frente de ser um pano de fundo para ilustrar diálogos e ambientes. O recurso permite ao espectador acessar emoções e sentidos implícitos na trama. “Ela representa essa emoção, seja a tensão, a passagem do tempo, mas, principalmente, o que o personagem sente”, salienta André Sittoni, editor e desenhista de som pela University of California, Los Angeles (UCLA), que atuou em mais de 30 produções no Bra-

70 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

sil e nos Estados Unidos e há dez anos é professor do curso de Realização Audiovisual da Unisinos. Já o músico, jornalista e compositor de mais de 34 trilhas para cinema, teatro e televisão Arthur de Faria completa que a canção não é o único elemento a ser ponderado, mas os sons e silêncios devem ser levados em consideração a fim de propiciarem um conteúdo estético e narrativo ao filme. “Quando se pensa numa trilha, tem que pensar o que tem em cena, além do diálogo, também os ruídos”, explica. Para ele, dentro desse universo, o diretor Stanley Kubrick foi perspicaz em somar músicas muito difundidas, como Danúbio azul e Assim falou Zaratustra, à falta completa de diálogos, citando 2001: Uma odisseia no espaço (1968) como exemplo. “Foi uma ideia boa e que deu certo. E ele [Kubrick] é um desses caras contemporâneos que fez algo muito expressivo”, acrescenta. Arthur também sugere alguns compositores relevantes na história das trilhas do cinema, como Max Steiner, de E o vento levou (1939); Nino Rota, com O poderoso chefão parte I e II (1972-1974); John Williams, que construiu uma carreira sólida nos longas de Steven Spielberg, como Tubarão (1975); Ennio Morricone, autor de canções do famoso gênero spaghetti western, o bang-bang italiano, sendo uma influência a Quentin Tarantino; e Philip Glass, precursor da linguagem da música clássica contemporânea e do minimalismo. No cenário brasileiro, ele é enfático em destacar Antônio Pinto, responsável por filmes como Abril despedaçado (2001) e O senhor das armas (2005). “É um cara que conseguiu criar uma linguagem brasileira e virou universal”, pondera. Outra referência


FERNANDA REUS

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 71


AMANDA NUNES

FERNANDA REUS

AMANDA NUNES

indexar no mundo virtual

Criar, estabelecer índices, a fim de tornar ágil o acesso a documentos ou comandos.

é André Abujamba, reconhecido pela crítica por Carandiru (2003). “A trilha precisa, entra pouco, mas é uma bofetada na cara da sociedade. É um exemplo claro do que é um compositor e um diretor inteligentes que trabalham bem juntos”, opina. O PROCESSO Produzir músicas que gerem sentidos, combinadas ao propósito da narrativa do roteiro e que agradem ao diretor não é uma atividade fácil. “São duas linguagens diferentes, o cinema e a música, mas têm muito em comum”, avalia Arthur. Segundo o músico, existem duas maneiras de idealizar e concretizar uma trilha. A primeira consiste em acompanhar o processo de produção, estudar os personagens e, se possível, até mesmo assistir às filmagens, no intuito de encontrar 72 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

n Para o compositor Arthur de Faria, sons e silêncios são relevantes como conteúdo estético e narrativo de um filme

a “cor” que essas canções deverão ter. “É um trabalho de muita disciplina, mas exercita a imaginação.” Outra alternativa, mais prática e que compromete menos o orçamento, é elaborar as músicas a partir do material das gravações. Na finalização da abordagem audiovisual, o procedimento de mixagem é fundamental, pois combina todos os elementos de sons e trilhas. “É o último processo criativo. Na hora da mixagem, tu temperas mais música ou menos música, mais voz ou menos. Se mistura os sons para que ele se torne uma experiência única”, reforça André. O editor, entretanto, critica a falta de planejamento que há entre a imagem e o som, especialmente nos filmes nacionais. “Acho que nosso cinema tem essa carência muito grande, hoje se põe a câmera e grava, é algo muito duro, falta o artístico”, conclui.

Também, desde o fim da década de 1990, o valor e a preocupação narrativa das trilhas sonoras vem perdendo espaço para as estratégias de marketing. Os grandes estúdios, no âmbito de conquistar mercado e promover longas, reduzem as músicas a mero produto de divulgação. “O que me incomoda atualmente, dos blockbusters, é confundir a trilha sonora com o CD do filme. Começou com o Batman do Tim Burton. E virou muito indústria de merchandising”, reflete Arthur. MENOS É MAIS Orquestras numerosas ou efeitos exóticos nem sempre comovem público e crítica ou garantem prêmios nos festivais mais tradicionais. Neste sentido, Arthur destaca o músico e produtor argentino Gustavo Santaolalla, pela sim-


FOTOS FERNANDA REUS

n O editor e desenhista de som André Sittoni critica a falta de planejamento entre imagem e som nos filmes nacionais

plicidade de suas composições, realizadas com economia de recursos. “É um cara que faz qualquer negócio, e isso é uma revolução de trilhas nos últimos dez anos, virou referência”, conta. O vencedor de três Oscar por melhor canção e trilha sonora original com Diários de motocicleta (2004), Brokeback Montain (2005) e Babel (2006) – ocorrência pouco comum no circuito norteamericano, sobretudo, para os latinos – entrou na indústria americana graças ao CD solo Ronroco, de 1998, em que utilizou nas faixas o charango – instrumento sul-americano de dez cordas feito da casca de tatu. “Isso vai cair em Hollywood e cai na mão do produtor e do Walter Salles [diretor de Diários]”, explana Arthur. Em oposição, o músico traça um comparativo ao alemão Hans Zimmer, que possui extensa lista de produções e composições para Hollywood, incluin-

do Rei Leão (1994) – que lhe rendeu o Oscar na categoria de melhor trilha original – a série Piratas do Caribe (20032011) e, recentemente, Superman: o Homem de Aço. “O cara [Hans] com 12 bateristas e uma orquestra de cem mil não ganha [o Oscar]”, zomba. Zimmer é conhecido pela engenhosidade que move em suas composições. Com grande orçamento, contrata orquestras, corais e, para seu último filme, uma equipe com os melhores bateristas tocando simultaneamente. “Ele entra em muitos momentos da trilha, o efeito é legal, mas faz isso em todos os filmes”, reclama Arthur. Contudo, não há fórmulas para conceber uma trilha, uma vez que existem diversas possibilidades. Além da criatividade, estabelecer uma boa relação com o diretor é uma das lições primordiais a um compositor.

impressões de

repórter

A pauta surgiu por acaso. Iria participar de um curso de extensão na universidade sobre trilhas sonoras e ali estava o assunto não apenas passível de reportagem, mas um tópico que muito me interessava. Contudo, embora a pauta se mostrasse viável, parecia-me clichê. Desde os 11 anos, quando escutei pela primeira vez as canções de The Wonders: o sonho não acabou (1994), trilhas são meus objetos constantes de pesquisas e conversas entre amigos. O lugar-comum, porém, se mostrou pouco provável. Tanto André como Arthur – que, além de entrevistado, foi meu professor no curso – bombardearam-me de informações, mostrando-me inúmeros desdobramentos e me convencendo, ainda mais, do poder narrativo da música no cinema. Pois, levar o espectador a um universo à parte de sua realidade e a experimentar distintas emoções – às vezes somente em duas notas – é uma das grandes e difíceis façanhas da arte de fazer filmes. Por isso, despertar – o mínimo que fosse – a curiosidade do leitor em aguçar seus outros sentidos quando os créditos iniciais passarem na tela, certamente, foi o propósito que segui nesta reportagem.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 73


linkar no mundo real

A peça que faltava Fornecedor de peças acabou unindo irmãos que não se conheciam Por Paula Viegas. Fotos de Gabriela Barbon

O

s irmãos por parte de pai Alvilmar e Vilmar Rubi se encontraram pela primeira vez há três anos. A peça chave para a promoção dessa união foi o fornecedor em comum, Antônio Massuchetti. Alvilmar Rubi, 57 anos, nasceu e cresceu em Cachoeira do Sul, onde morava com um irmão, a mãe e, até os seis anos de idade, com o pai, Antônio da Costa Rubi, que abandonou a família. Desde então, Alvilmar não tinha mais informações do pai. “Minha mãe nunca falava nada sobre o meu pai, tanto é que eu tinha ele como morto”, explica. Ao casar-se com Irene, em 1979, se mudaram para Porto Alegre, onde abriu a Auto Painel Velocímetros. Por volta de 1990, um cliente de Alvilmar perguntou a ele qual seu sobrenome. Quando ele disse que era Rubi, o cliente o questionou por que ele não havia colocado “esse nome tão bonito” na sua empresa. Foi quando a oficina passou a se chamar Velocímetros Rubi. Vilmar Spehr Rubi, 51 anos, sempre morou em Canoas, com a mãe, os três irmãos mais novos, Vinei, Volnei e Leonardo, e, até os 16 anos, com o pai, Antônio da Costa Rubi, que novamente abandonou sua família. Vilmar se tornou mecânico de automóveis e, em 2009, se viu obrigado a trocar o nome da oficina quando o locatário do terreno onde se encontrava seu prédio pediu para que se retirassem de lá, pois tinha planos para o terreno. Nesse endereço, a empresa era denominada com o nome da avenida, Boqueirão. Ao mudar de endereço, passou a se chamar Auto Mecânica Rubi. A partir desse momento, o universo foi dando suas 74 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 75


n Vilmar e Alvilmar Rubi têm

a mesma profissão e só se conheceram porque Antônio (ao centro) era fornecedor dos dois e relacionou os sobrenomes iguais de seus clientes

pinceladas, uma a uma, até que todas as peças estivessem encaixadas para os irmãos Alvilmar e Vilmar Rubi se unirem. Para o fornecedor de peças automotivas Antônio Massuchetti, que fez o link entre os irmãos, o “Rubi” no nome da oficina de Alvilmar era a pedra valiosa que é usada em relógios como eixo de precisão, pelo seu desgaste ser muito menor. “Eu imaginei, sem comentar com ele, que ele havia tido a ideia de colocar o nome da pedra para passar a ideia de precisão”, explica Massuchetti. Um aspecto apontado pelo fornecedor como fundamental para o encontro dos irmãos é o sistema de cadastro de clientes de sua empresa, que além da razão social, exige que se coloque um nome fantasia, chamado de apelido. “Rubi” já era o apelido do Alvilmar no seu cadastro, logo este não poderia ser o novo 76 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

apelido da oficina de Vilmar, que havia mudado o nome do local. Ao comentar o fato com a esposa de Vilmar, Ângela Maria, que não poderia botar “Rubi” como apelido da empresa, pois já tinha um cliente com esse apelido em Porto Alegre, ela comentou com o marido se não seria algum parente dele. Vilmar, então, foi conversar sobre o assunto com Antônio. Quando Antônio confirmou que Rubi era o sobrenome de Alvilmar, ele contou a história de abandono do pai que aconteceu com a família de Vilmar. “Eu disse para o Alvilmar que tinha um cliente de Canoas que o pai dele era caminhoneiro e deixou a casa deles quando eram muito jovens. A esposa de Alvilmar, Irene, estava junto e comentou com o marido: “Bah, Alvilmar, mas que história mais parecida com a tua!”. Com brilho nos olhos, Antônio disse que ficou surpreso nesse momento, pois não conhecia a história de vida de Alvilmar. “Isso foi o que deu o ‘estalinho’ para mim que deveria ter alguma relação de identidade mesmo. Foi quando eu passei os telefones de um para o outro.” Humilde, Antônio não atribui somente

para si o encontro dos irmãos, mas para uma série de fatores que se somaram. Qualquer um que tivesse falhado, poderia ter mudado o final da história. “Eu me senti valorizado de fazer parte dessa história, porque aí a gente vê como a comunicação é importante, porque em qualquer momento eu poderia ter dado aquilo como encerrado, ou a Ângela, ao ter ouvido aquilo que comentei poderia não ter levado adiante, enfim, vários fatores contribuíram”, conclui o fornecedor. A FALHA NA CONEXÃO Todos os filhos foram abandonados pelo pai em determinado momento da vida. A mãe de Vilmar, Lílian Spehr, sempre falava para os filhos da existência de um irmão mais velho, fruto do casamento anterior do pai deles, inclusive que achava que ele tinha o mesmo nome do mais velho, Vilmar. Aos 21 anos, Vilmar viajou em busca do pai. “Fui até Governador Valadares, em Minas Gerais, atrás do pai, que já estava com outra mulher. Fiquei cerca de dois meses com ele lá, mas a gente não


tinha muita convivência, eu não me dava muito bem com ele, então decidi voltar”, relata Vilmar. Certa vez, Alvilmar passou cinco anos à procura do pai. “Não tive resultados, quase enlouqueci, então desisti”, conta. Em 2013, o irmão Volnei encontrou o pai em Castanheira, a 829 km de Cuiabá, no Mato Grosso, e deu o endereço aos irmãos. Foi então que Alvilmar reencontrou o pai. Procurando palavras, ele não soube dizer o que sentiu. “Foi bom, mas não era o que eu estava esperando. Não ficou bem resolvido. Às vezes eu me pergunto se valeu a pena ou não tê-lo conhecido”, diz Alvilmar. Ele sempre criou as três filhas com respeito e limites, jamais pensando em abandoná-las. “Sempre quis dar para minha família o que o meu pai não deu para nós”, reforça. A CONEXÃO O momento do encontro dos irmãos foi marcado pelas semelhanças, primeiro a do humor. De posse do telefone e do endereço de Vilmar, fornecidos por Antônio, Alvilmar ligou e se identificou como “Francisco”, dono de um Santana que queria marcar um horário para revisar o carro no sábado de manhã. Vilmar conta que já estava louco para encerrar o expediente quando o irmão chegou, se identificou como Francisco, do Santana, e puxou a identidade do bolso. “Foi quando ele me mostrou ali na filiação o pai ‘Antônio da Costa Rubi’. Aí eu olhei pra ele e disse ‘mas esse cara aí é o meu pai’”, conta Vilmar com um sorriso no rosto. Alvilmar lembra que, quando chegou à oficina de Vilmar, o irmão nem o encarou direito. “Ele pegou o carro, colocou para dentro da oficina e ainda me disse: ‘é, eu já tô lhe aguardando’, com uma cara de quem diz: ‘chega esse cara a essa hora para me encher o saco’”, se diverte ao relembrar a ocasião. Para Vilmar, conhecer o irmão foi uma oportunidade que a vida deu. No momento em que viu o nome do pai na identidade do irmão, se sentiu muito contente. “O Alvilmar é um irmão muito bacana, um exemplo de ser humano, exemplo de pai de família”, elogia, orgulhoso. “Graças ao seu Antônio!”, diz Vilmar, reforçado por Alvilmar, que complementa dizendo que o fornecedor é um grande amigo. Alvilmar acredita que ter conhecido o irmão foi muito bom. “Quando constatamos que éramos irmãos de verdade, para mim foi como se tivesse nascido uma nova família, essa é a verdade. A família que tanto esperei na vida.”

linkar

no mundo virtual

Ligação entre documentos na Internet. Pode ser a ligação de um texto para outro texto, imagem, som ou vídeo (ou vice-versa).

impressões de

repórter

Conheço Vilmar Rubi desde pequena. Em uma das reviravoltas da vida, minha mãe, Ângela, e ele acabaram se casando, há pouco mais de dez anos. Em praticamente todas as conversas sobre vida e família sempre ouvi meu padrasto falar que ele tinha um irmão mais velho “por aí”, filho de um casamento anterior do pai dele. Apesar de nunca ter procurado, ele sempre contava isso, independente do interlocutor. Quando ele contou a história de abandono do pai para o fornecedor Antônio Massuchetti, estava contando para a pessoa certa. Antônio já era fornecedor da minha mãe quando ela tinha uma loja de autopeças com o meu pai. Minha mãe constantemente elogia Antônio por sua calma e observação. Assim que o tema da PI foi definido, logo pensei em contar a história deles com o verbo Linkar, pois foi isso que ele fez, contribuiu para a ligação dos irmãos Rubi.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 77


maximizar no mundo real

Reverberando cultura 78 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


n Geda Mil (de verde e

de boné) e Dionísio (de rosa) presidem a Acrer

A Associação Cultural Reggae RS realiza atividades para promover os temas reivindicados nas letras desse estilo musical Por Gabriel Reis. Fotos de Camila Weber

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O

reggae tem como marca o desejo da igualdade social, a propagação do amor entre todos, o repúdio aos políticos corruptos e o fim do preconceito racial. Esses são as principais reinvindicações que marcaram e ainda permanecem enraizados no estilo musical mais popular da Jamaica, uma pequena ilha da América Central. O maior responsável por popularizar o reggae pelo mundo foi Robert Nesta Marley, popularmente conhecido como Bob Marley, filho de um britânico branco com uma africana negra e que foi a voz dos oprimidos pelo sistema até o último dia de sua vida, o triste 11 de maio de 1981. No Rio Grande do Sul, o reggae chegou nos anos 1980 e foi muito bem acolhido pelos gaúchos, inclusive vivendo grandes momentos, como na década de 1990 e no começo dos anos 2000. Passados esses anos, um grupo de amantes do reggae resolveu criar uma associação, com o intuito de difundir a cultura, a música e maximizar oportunidades de desenvolvimento social e econômico para quem admira ou tem algum apreço pelo estilo musical. “A Associação Cultural Reggae RS (Acrer) surgiu da necessidade de artistas e simpatizantes do reggae aqui do Sul promoverem, de forma organizada, a cultura reggae no Estado, realizando atividades de caráter educacional e ações culturais e sociais”, diz o recém eleito presidente da Acrer, Geda Mil. A Acrer foi criada no dia 11 de abril de 2011 e nesses quase três anos de existência já se enraizou no circuito cultural de Porto Alegre, e participando, de forma regular, do Fórum Social Mundial, por exemplo. “A Acrer tem um número grande de pessoas interessadas em fazer a cultura reggae se disseminar de uma forma mais efetiva pelo nosso Estado. E a cultura reggae não está relacionada só com música, envolve o espiritual, o social. Queremos discutir temas que são relacionados ao reggae”, explica o vice-presidente da associação, Paulo Dionisio. O presidente da Acrer, Geda Mil, é

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maximizar no mundo virtual

Deixar a janela do software em uso no seu tamanho máximo, ocupando toda a tela do computador. Os programas costumam disponibilizar um botão especial para esse fim no canto superior direito da tela. Ele é representado por dois pequenos quadrados.

vocalista da Motivos Óbvios, e o vice, Paulo Dionisio, é vocalista da Produto Nacional, duas bandas de respeito na cena reggae local. A associação não tem endereço próprio, o que não impede o trabalho do grupo. Eles se reunem sistematicamente nas noites de terças-feiras na Assembleia Legislativa do Estado, na Sala Salzano Vieira da Cunha. “Lá é a nossa sede”, afirma Geda Mil. “As reuniões têm sido um sucesso, sempre tem quórum. As pessoas se predispõem a sair de suas casas para ir até lá. Sentimos falta de um lugar, mas a Assembleia tem nos atendido muito bem”, completa Dionisio. O grupo já tem registros de atividades importantes, em pontos estratégicos e de forte representatividade cultural, como a primeira edição do “Volta ao Jardim”, que ocorreu no Jardim José Lutzenberger, no terraço da Casa de Cultura Mário Quintana, em março de 2012, e contou com oficinas, palestras e apresentações de grupos de reggae do Interior do Estado. Como palestrante, foi escolhido Emerson Rocha, educador da Casa de Acolhimento Abrigo Residencial 7, de Porto Alegre, para falar sobre o funcionamento dos abrigos residenciais do município. O oficineiro convidado foi Filippo Cauac, para apresentar o Integral Bambu, modalidade esportiva de alongamento e meditação, praticada sobre uma base-tripé construída de bambu. “Essa primeira edição foi muito importante, porque acolheu

pessoas de diversos pontos do Estado e isso possibilitou que nós, aqui da Capital, propagássemos para os demais sobre a Acrer”, explica Geda Mil. A atividade contou com uma segunda edição em maio de 2013, e que foi mais ampla e contou com um número mais significativo de pessoas. “Podemos dizer que o ‘Volta ao Jardim II’ foi uma consolidação da nossa ideia e das nossas vontades. O que estava apenas rabiscado no papel começou a tomar forma e ser percebido por muitos, inclusive por pessoas que não fazem parte da associação”, revela Dionisio. A segunda edição ocorreu, no Centro Cultural Afrosul Odomodê. “Na segunda edição, tivemos a palestra ‘A Arte Faz Justiça’, de Carmela Grüne, que realiza um trabalho denominado “Direito no Cárcere”, que leva manifestações artísticas de todas as vertentes ao Presídio Central para promover o contato com a arte e a cultura àquelas pessoas que se encontram em situação de detenção”, diz Geda Mil, que também lembrou da participação de Fábio Kalifa, que apresentou uma oficina voltada a ensinar técnicas para roadies, profissionais que atuam desde a montagem de equipamentos à timbragem de instrumentos musicais. O evento encerrou com a participação de bandas locais. “Essa edição foi muito especial, principalmente para quem organizou e se envolveu de forma direta, pois percebemos o envolvimento e a acolhida das pessoas nas atividades realizadas”, ressalta Dionisio. A Acrer almeja saltos maiores, mas o processo de conquista é lento, porém de forma linear. “Não é fácil se propagar e ‘vender’ cultura. É algo abstrato demais para a maioria, e há certa resistência por boa parte da sociedade”, critica Geda Mil, que tenta ver os próximos dias com mais otimismo. “Nossa missão é levar conhecimento, mas sem estabelecer valor. Nosso trabalho é dar oportunidade para os que querem caminhar em direção à conquista. Isso demanda muito esforço e dedicação, o que há de sobra na mensagem da música reggae”, finaliza.


impressões de

repórter

A entrevista com o presidente da Acrer, Geda Mil, e com o vice, Paulo Dioniso, estava, no meu imaginário, marcada para um ensolarado feriado de 20 de setembro – talvez o dia mais importante para os gaúchos – , uma sexta-feira, na Usina do Gasômetro, local perfeito para se verbalizar sobre música, cultura, diversidade e, claro, reggae. Mas não foi bem assim que ocorreu. O dia da entrevista amanheceu chuvoso e tudo indicava que o mau tempo iria se estender por horas, o que de fato ocorreu. Foi então que recebi, às 14h, uma ligação. No outro lado da linha, o meu entrevistado, Geda Mil, que questionava sobre o nosso encontro e sobre o imprevisto que ocorria naquele momento, no caso, a chuva. Disse para ele que não havia problema, que mudássemos de local e que me deslocaria até eles. Ele, de prontidão, disse que: “tudo bem”. Entraria em contato com o outro entrevistado, Paulo Dionisio. Alguns minutos se passaram e retornou afirmando que teríamos de ir até Belém Velho, na casa de um deles. Confirmamos o novo local da entrevista e readequamos o horário. Por volta das 16h, da chuvosa e tediosa sexta-feira, eu e Geda Mil chegamos ao local da entrevista, a casa de Paulo Dioniso. Por lá permanecemos por mais de três horas, entre perguntas e respostas, idas e vindas de familiares pelo corredor lateral da varanda, onde ocorria a entrevista. Xícaras de cafés, algumas risadas e os relatos sobre uma longa caminhada de ambos. Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 81


memetizar no mundo real

Uma desilusão que roubou a razão Nas ruas do centro de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, existem personagens que poderiam ter saído diretamente das páginas de um livro de aventura Por Mariana Zimmer. Fotos de Daniel Grudzinski e Deivid Duarte. 82 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


DEIVID DUARTE

S

e Dom Quixote de La Mancha vivesse nos tempos de hoje, continuaria sendo uma pessoa fora dos padrões. Confundia fantasia e realidade, lutava contra moinhos gigantes e, como um cavaleiro andante, saía pelo mundo acreditando em seus delírios. Algo inadmissível no bom convívio de uma sociedade como a nossa. O mundo está cheio de Dom Quixotes, mas, distantes das páginas dos livros, essas pessoas não são consideradas heróis ou heroínas. Muito pelo contrário, são vistas mais como vilãs dos centros urbanos. “Ela já me assustou quando eu estava caminhando pela Rua Independência. Vinha contra mim e, ao passar do meu lado, gritou ‘sai da frente, guri’”, conta o estudante e morador de São Leopoldo Milton Manoel. Ele está falando de Estrela. “Ela sempre usava muito batom, sentava na frente da loja da Nova Era, falava sozinha e, provavelmente, não tomava banho, pois a catinga era grande”, lembra Milton. Em sua memória, ainda está a lembrança de Estrela dormindo embaixo da marquise da antiga imobiliária de seu pai em São Leopoldo. “Sujava tudo, falava sozinha e ria. Também não gostava que ninguém atrapalhasse suas conversas com os amigos imaginários”, diz Milton.

Para outras pessoas, Estrela não era apenas mais uma moradora de rua. Estrela na verdade se chamava Rejane. Um tom de pele escuro, mas não negro, e uma combinação de roupas muito original de saia e calça coloridas. Vaidosa, chegava a gastar um batom inteiro em apenas um dia. Muito solitária e fechada, era diferente dos outros mendigos. E a soma dessas características chamou a atenção da cabeleireira Elenir Oliveira Silva, conhecida como Nica, que no seu caminho diário para o trabalho não deixou de reparar em Rejane. “Eu me aproximei dela para dar coisas para comer. Imagiva que ela morava por aqui, e a família recolhia de vez em quando, como esse outro pessoal da rua”, conta Nica. Na verdade, de vez em quando, Rejane sumia, mas não ia para casa. O serviço social a recolhia e a levava para o albergue municipal, assim como faz com muitos outros moradores de rua. SAI DIABO! Para Estrela, os vira-latas eram como seus moinhos gigantes a serem todas as noites derrotados. “Ela tinha muito medo de cachorro, pois já tinha sido mordida várias vezes. Ela gritava ‘sai diabo!’”, lemPrimeira Impressão n Dezembro de 2013 n 83


DEIVID DUARTE

n Estrela costumava circular

em frente à loja Nova Era, no Centro de São Leopoldo. Também frequentou algumas vezes o albergue municipal

bra Nica. Estrela usava sua calça e saia como escudo pra se defender de tudo o que ninguém via quando caía a noite. Um certo dia choveu em São Leopoldo. Normal, às vezes chove nas cidades. Então você vai para casa e ouve a chuva caindo na rua, onde estava Rejane. “Eu comprei uma sombrinha pra ela, e no outro dia cheguei ao trabalho e ela estava no mesmo lugar e com a sombrinha na mesma posição, me deu uma pena dela”, revela a cabeleireira. Rejane só não usou mais a sombrinha num dia que Estrela teve que usá-la como espada para espantar as criaturas da noite. LETRA DE DIPLOMA Uma caixa de sapato acompanhada de uma caneta foi suficientes para Estrela revelar uma parte de Rejane. “Ela estava escrevendo com uma letra lindíssima, daqueles de escrever o nome em 84 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

diploma, perfeita”, conta Nica. Assim, logo percebeu que Rejane tinha estudo, então resolveu puxar assuntos com ela. “Ela conversava sobre tudo, mas depois pirava”, diz a cabeleireira. Além de Nica, as donas da Floricultura Lu, Clair Cavalleiro e Luciane Pagatto, também compartilhavam da mesma simpatia por Rejane. “A letra do caderno era excelente, parecia de professora”, conta Luciane. Rejane então recebia a solidariedade dessas mulheres que ajudavam com alimentos, roupas e, principalmente, atenção. “Dava para perceber que ela não era uma pessoa de rua, pois falava corretamente e era sempre bem educada, falava: ‘será que dá para me conseguir um café, por favor’, ela dizia”, lembra Lucia. Clair conta que ia para casa, mas ficava com muita pena de deixá-la na rua. Seu pensamento continuava em Rejane. “Ela nos marcou muito, que saudades que tenho dela”, revela Clair. BATOM E UNHAS PINTADAS Clair, Lucia, Nica e outras pessoas se afeiçoaram por Rejane e ela acabou muito dependente delas. “Um dia ela me pediu batom e esmalte. Também, junto com as gurias da loja Nova Era, nós pintávamos a unha dela”, conta Nica. Rejane encontrou um lugar onde

se sentia bem. Até que num dia, não tão belo, Rejane sumiu. Nica ficou preocupada, ainda mais quando soube que uma mendiga, com as mesmas características de Rejane, tinha morrido atropelada em baixo do viaduto do bairro Scharlau de São Leopoldo. Passaram seis meses e avisaram Nica que Rejane estava de volta na cidade. “Não sei explicar se fiquei contente ou triste, mas saí na rua procurando e logo a encontrei”, conta Nica. Estrela estava de volta de sua aventura em Porto Alegre. De acordo com Estrela, levaram-na da cidade, pois estava incomodando muito. “Contou que um dia conseguiu entrar no trem e voltar para São Leopoldo, pois gostava da cidade”, explica Nica. Nesse dia, Estrela também disse que morava na Bahia, tinha sido adotada por uma família, mas, quando os pais adotivos morreram, os filhos gananciosos a mandaram embora e ela ficou “ruim dos nervos”. NÚMEROS E NÚMEROS Na tentativa de ajudar Rejane, Nica deu um caderno e uma caneta para ela. “Escreve aí tudo que é número de telefone que tu lembrar”, pediu Nica. Ela explicou que talvez tivesse alguém procurando por Rejane. Então Estrela res-


no mundo virtual

Vem do termo grego “meme”, que significa imitação. Na internet, o significado de meme refere-se a um fenômeno em que uma pessoa, um vídeo, uma imagem, uma frase, uma ideia, uma música ou uma hashtag alcançam muita popularidade entre os usuários.

pondeu: “Namorado será que me procura?” E deixou no ar uma esperança para Nica de que Rejane tivesse um passado antes de ser também Estrela. Primeiro, Estrela escreveu páginas e páginas de números. Foi no albergue que Rejane se lembrou de um número específico de telefone e entregou para a assistente social. “Aí nós ligamos, fomos tentando vários códigos de área. Quando colocamos o código de Curitiba, atenderam!”, conta Nica. Pode ser que Estrela fosse da Bahia, mas Rejane era de Curitiba, e seus pais não eram adotivos. “Na época, em 2010, ela estava com

DEIVID DUARTE

DANIEL GRUDZINSKI

memetizar

36 anos, muito maltratada. Por telefone, os pais contaram que ela ficou assim aos 18 anos, por causa de uma decepção amorosa. Ela tinha um namorado, estava de casamento marcado, quando o noivo desistiu de casar e ela pirou”, explica Nica. Na manhã seguinte, os pais verdadeiros chegaram para buscar Rejante. “Eu fiquei muito contente que ela não quis viajar sem me ver. Eram seis da manhã, eles chegaram ao albergue, e a assistente social teve que me chamar, pois ela não queria ir embora sem me dar tchau”, conta Nica. Hoje Rejane está em Curitiba e mora com seus pais. Parece que Estrela deu um tempo, pois agora ela está sendo medicada. “Eu já fui visitá-la, levei presente e revi o sorriso lindo que ela tem. Ficou feliz em me ver e perguntou por todo o pessoal do centro que um dia a ajudou”, diz Nica. Assim como Estrela voltou a ser Rejane, no final do livro, Dom Quixote volta à razão, renuncia suas aventuras e morre como Dom Alonso Quixano. Um exemplo de herói que, na sua loucura, foi tão corajoso quanto os verdadeiros herois. Atualmente, Rejane mora em um condomínio fechado, para Estrela não fugir novamente. Mas ela nunca sairá da lembrança dos amigos do centro de São Leopoldo.

impressões de

repórter

Produzir essa reportagem foi voltar no tempo e lembrar o motivo pelo qual optei cursar jornalismo. Caminhar pelo centro da cidade apenas com pistas sobre o paradeiro de uma moradora de rua, que já há algum tempo não era mais vista pelas redondezas, foi um desafio. Eu que na infância sempre quis ser detetive, pude experimentar por alguns dias como seria essa profissão. Saí perguntando para pessoas que se lembrassem da passagem dessa marcante moradora de rua. Como eu já tinha cruzado com ela no passado, sabia, mais ou menos, o local que ela costumava ficar. Foi meu ponto de partida para começar a perguntar por ela. Por sorte, encontrei várias pessoas que conheciam a Estrela e outras que também conheciam a Rejane. Foi um prazer ouvir a história de quem ajuda e se sensibiliza com o que está em sua volta. Estamos, na maior parte do tempo, tão concentrados e impregnados em uma rotina que não paramos para observar e, muito menos, ajudar alguém que grita por socorro. Eu só queria encontrar uma bela história, e acabai ganhando uma lição de vida.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 85


minimizar no mundo real

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JONAS PILZ

Montanha russa da vida Ana Paula ameniza o sofrimento do câncer mantendo sua rotina e convivendo com as pessoas que ama Por Carolina Chaves. Fotos de Cristina Link e Jonas Pilz

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A

os 45 anos, a enfermeira Ana Paula Pacheco de Oliveira foi surpreendida por um câncer de mama no seio direito. Em uma simples consulta de rotina, veio talvez a notícia mais avassaladora de sua vida. Mas não é de hoje que Ana Paula passa por momentos difíceis e de aprovações. Ela sempre seguiu por trilhos de montanha russa. Quando tinha 14 anos, perdeu seu pai, vítima de cirrose. Aos 15 anos, ainda uma menina, teve que aprender a ser mãe. Em uma fase que a única preocupação da maioria das garotas é se divertir e estudar, a realidade de Ana Paula era outra. Logo após o nascimento de sua filha, Ana Paula resolveu sair da casa da mãe e assumir uma vida com a sua família. Devido às novas obrigações, percebeu então que era hora de escolher uma profissão. Como não tinha o Ensino Médio completo e gostava da área da saúde, resolveu fazer um curso de auxiliar de enfermagem. Começou a trabalhar no meio, mas para ela isso ainda não era o suficiente, alme-

java novos rumos. Quatro anos e meio depois, a segunda filha nasceu. Ana Paula conta que foram anos bem complicados, pois tinha que trabalhar, cuidar de duas filhas, estudar para concluir o Ensino Médio. Era ainda uma menina-mulher, cheia de sonhos e de objetivos para serem realizados. Com muita perseverança, pouco tempo depois de concluir o Ensino Médio, prestou vestibular para enfermagem, profissão que ela se declara apaixonada. Mas, como diz o ditado, nem tudo que reluz é ouro. Outros momentos complicados e nebulosos ainda estavam por chegar mais uma vez na vida da enfermeira. Após dezoito anos de casamento, o fim da relação foi inevitável. Foi um momento muito turbulento, conforme relata Ana, pois, como em uma montanha russa, a vida dela chegou ao ponto mais baixo. Foi uma decisão muito difícil se separar. Resolveu que o melhor a fazer no primeiro momento era ir morar um tempo na casa de sua mãe. Assim o ca-

sal poderia ter tempo para pensar e ver se a separação era realmente a solução para vida de ambos. As filhas do casal, que na época tinham 13 e 18 anos, ficaram morando com o pai. Passado um mês, foi dada entrada na documentação da separação, e como as meninas já tinham idade para resolver com quem iriam morar, optaram por ficar no apartamento onde já moravam com o pai, e com ele acabaram ficando. Aos poucos a vida da enfermeira Ana Paula foi tomando rumo. A cada dia que se passava, ela se tornava uma pessoa mais forte e lutadora. Trabalhava durante o dia no hospital, à noite dava aulas para técnicos de enfermagem. Passados dois anos de sua separação, Ana Paula encontrou uma pessoa

n Os passeios de veleiro ajudam Ana Paula a relaxar CRISTINA LINK

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muito especial. Um homem que fez com que ela acreditasse novamente no amor. “Estamos juntos há 11 anos, ele é uma pessoa sensacional, um ótimo namorado, homem e amigo. Com certeza muitas mudanças positivas que tive na minha vida devo a ele.” O CHÃO SE ABRIU Em janeiro de 2011, enquanto aproveitava as férias, Ana Paula resolveu fazer uma visita ao seu ginecologista para realizar os exames de rotina. Foi quando teve o diagnóstico de câncer de mama. “Eu assimilei, mas o chão se abriu. Tu tens vontade de correr e gritar: Não, não é comigo! Chorei muito. O suficiente para limpar, toda aquela sensação de dor, medo e angústia. Mas, depois disso, acabou. Era hora de levantar a cabeça e seguir, pois eu tinha uma cirurgia para fazer e um longo tratamento pela frente. Era hora de encarar a minha doença e cuidar da minha vida.” Ana Paula já havia vivido a experiência da doença na sua família três anos antes com o diagnóstico de câncer de mama da sua mãe, Ana Maria. A enfermeira conta emocionada que fez o que pôde para ajudar no tratamento da mãe. E que sabia que teria de ser muito mais corajosa e forte do que antes. A doença veio como um vendaval. Foi levando tudo o que tinha pela frente. “Achei que todos os meus sonhos e planos nunca mais seriam concretizados. Tinha minhas filhas, meu namorado, minha profissão, minha família. O que iria acontecer?“ Mas isso não durou muito tempo, pois 12 dias após a comprovação do tumor maligno, Ana Paula já estava realizando a cirurgia de retirada do nódulo. E dando início às longas jornadas de quimioterapias e radioterapias que teria que realizar. Pelo diagnóstico precoce, Ana Paula não teve que tirar a mama. A cirurgia foi apenas para retirada do tumor e dos linfonodos, que são gânglios responsáveis por drenar a linfa para os seios, ou seja, uma troca líquida. A relação de proximidade com a família ficou mais forte com a nova

realidade. Assim, ficou mais fácil de encarar e enfrentar os problemas com muito mais leveza e tranqüilidade ao lado de suas irmãs, filhas e sobrinhos. “Com certeza, não ter abandonado a minha rotina de trabalho e continuar fazendo as coisas que eu amo foi essencial para que a minha melhora fosse excelente.” Ana Paula afirma que existem dias que é impossível não ficar cansada, que a dor e os efeitos colaterais a deixam desanimada. Nessa hora que é necessário lembrar que é vida é maravilhosa e que esses momentos também são necessários para a recuperação. Pois as dores, os medos e as inquietações fazem parte. Ana Paula diz que, quando alguém descobre uma doença desse tipo, quer muito viver. “Não queremos brigar com ninguém. As pequenas coisas que antes fazíamos enormes como, por exemplo, uma briga, percebemos que não fazem mais sentido”. Ana Paula conta que, mesmo não morando com as filhas, o companheirismo, a amizade e a intimidade com as meninas só cresceu. E ela tem convicção de que, como diz outro ditado, tem males que vêm para o bem. O tumor fez com que as filhas se aproximassem mais dela, minimizando sua dor. A enfermeira ainda realiza o tratamento. Durante cinco anos após o fim das sessões de quimioterapia e radioterapia, é necessário usar uma medicação para evitar que novos tumores apareçam. Mas não é apenas isso que ela faz hoje em dia para prevenir o câncer e outras doenças. Ela nunca foi de praticar muitos esportes e sua alimentação também era um pouco desregrada. Hoje ela tem acompanhamento de um nutricionista e realiza atividades físicas três vezes por semana. Além disso, faz ótimos e relaxantes passeios de veleiro com José Francisco, seu companheiro. Ana Paula ressalta que, por ter o conhecimento técnico e ter vivenciado o câncer, pretende, em um futuro bem próximo, trabalhar de voluntária em grupos que atendam mulheres que estão realizando o tratamento do câncer, para ajudar a esclarecer dúvidas, levar confiança, carinho e coragem.

minimizar no mundo virtual

A principal utilidade da função minimizar é esconder a tela que você está visualizando num determinado momento, para que você possa ficar livre para visualizar ou abrir outras telas. Desta forma, você não precisa fechar a tela em que você estava trabalhando, podendo assim retornar a ela assim que você desejar.

impressões de

repórter

A escolha pela minha entrevista já estava pensada desde o primeiro dia de aula. Logo que falamos sobre possíveis temas para revista, sempre tive em mente falar sobre superação, sobre mulheres vitoriosas, que haviam tido câncer de mama e que, após realizar o tratamento, retomaram suas vidas. Acredito que gosto e me sinto à vontade de tratar sobre esse assunto, por ter mulheres na minha família e amigas muito queridas que tiveram que lutar contra o câncer de mama. Entrevistar Ana Paula foi algo sensacional. Conversar com essa mulher sobre momentos de dor, de medo, de angústia que ela passou e, mesmo assim, poder ver no olho dela o brilho que mostra que tudo o que ela viveu, no fim, foi algo que trouxe muita aprendizagem é realmente compensador. Espero que essa entrevista faça com que as pessoas sintam a mesma sensação que eu tive de querer viver cada dia mais e melhor. Que sejamos mais tolerantes e felizes com as coisas mais simples e puras da vida, como ter uma família amiga e unida, ter saúde, e principalmente, força de vontade para lutar todos os dias com mais coragem e fé!” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 89


no mundo real

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RAVEN3K’S (STOCK.XCHNG)

photoshopar


Bem na foto

Cirurgia plástica alia bem estar físico e mental Por Daniela Flores. Fotos de Amanda Nunes, Paula Silveira e Raven3k’s (Stock.Xchng)

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uem não gostaria de ver no reflexo do espelho uma imagem mais aprimorada? Um corpo mais lisinho, mais enxuto e até mais jovem? Levante a mão quem nunca pensou no que poderia fazer para se sentir melhor em relação a sua aparência, seja estética ou funcionalmente. Como caminho para o bem-estar completo e duradouro, os brasileiros tornaram o país o segundo no ranking mundial de cirurgia plástica, perdendo apenas para os Estados Unidos. Numa sociedade em que o culto ao corpo e a manutenção da juventude se destacam, a medicina trabalha incansavelmente para que a saúde venha em primeiro lugar. O cirurgião plástico Paulo

Amaral, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) diz que a cirurgia plástica é uma ramificação da medicina e tem um papel muito importante para as pessoas e porque saúde é o bem-estar físico e emocional do indivíduo. Esta é também a definição dada pela Organização Mundial de Saúde. “Quando fazemos uma cirurgia plástica, estamos buscando a saúde da pessoa, sua integração consigo mesma”, diz Amaral. A intenção de alcançar o corpo desejado ou de ter de volta um corpo alterado por circunstâncias naturais, como uma gravidez por exemplo, é um dos motivos que fazem com que as mulheres estejam no topo da lista de intervenções cirúrgicas estéticas e repara-

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PAULA SILVEIRA

n O cirurgião plástico Paulo

AMANDA NUNES

Amaral diz que a anatomia corporal é secundária, caso contrário, todos os bonitos seriam felizes

n Maria Vergínia

alia alimentação e atividade física para manter o resultado alcançado com a cirurgia plástica

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doras. Lipoaspiração, abdominoplastia e prótese mamária são as principais intervenções a que se submetem as mulheres. “Fiquei com excesso de pele e gordura na região abdominal, o peito ficou muito diferente em função da amamentação. Eu só tinha 24 anos, me achava nova para manter o corpo da maneira como ficou depois da gravidez”, explica a fisioterapeuta Ana Paula Lima, que optou pelos três procedimentos mais procurados por mulheres em geral. Para Amaral, a cirurgia plástica contempla um aspecto emocional muitas vezes intrínseco no desejo de cada paciente. “Ao optar por uma cirurgia plástica, o paciente busca se sentir bem, com saúde e satisfeito com seu próprio corpo. A anatomia corporal é secundária, visto que, se não fosse, todos os bonitos seriam felizes”, diz. A perda da autoestima tem sido fator determinante entre os candidatos à cirurgia e também a explicação relevante entre aqueles que já enfrentaram o bisturi. “Comecei a usar roupas largas, sutiãs com enchimento, o desconforto em relação ao meu corpo passou a atrapalhar até mesmo e principalmente minha vida sexual. Mesmo com o apoio do meu marido, perdi a naturalidade, e a timidez tomou conta de mim em nossos momentos íntimos”, conta Ana Paula. O valor que um indivíduo dá a si mesmo, se abalado por fatores emocionais, pode alterar a resposta dos especialistas à solicitação de uma cirurgia plástica. Em pesquisa recente divulgada pela SBCP, expectativa irreal por parte do paciente é a maior causa da não realização de procedimentos por parte de cirurgiões plásticos. “Em alguns casos, contraindicamos o procedimento solicitado pelo paciente por entendermos que o resultado esperado não é possível. Numa crise emocional,


a pessoa pensa que corrigindo, melhorando uma forma, outras coisas em sua vida vão melhorar, seus amores, suas realizações”, explica Amaral. Entre as intervenções mais comuns no mundo, a lipoaspiração está no topo. É exatamente por isso que em cirurgias como esta as queixas são mais frequentes. Segundo Amaral, a lipoaspiração não é tão simples quanto pode parecer, deve ser bem avaliada e não pode ser usada como método de emagrecimento. “A lipo é um procedimento cirúrgico, portanto deve ser cuidado e tratado como tal. Mesmo se tratando de uma ou mais incisões pequenas e de recuperação menos demorada, não deve ser banalizada, pois internamente existe um trauma”, explica o cirurgião. “Procedimentos deste porte são indicados para pessoas com acúmulo de gordura localizada em determinadas áreas e que, mesmo com o peso ideal, não desaparecem. Se isso atrapalha, pode e deve ser feita a lipoaspiração da região, sempre com o devido cuidado e acompanhamento necessários”, completa. Mesmo com a disseminação dos métodos cirúrgicos de correção e reparação e de eventuais distorções, a cirurgia plástica é realizada na maioria das vezes por pessoas preocupadas com seu bem-estar de maneira geral, o que compreende evitar ao máximo intervenções médicas, a fim de poupar o corpo. É o que diz a funcionária pública Maria Vergínia Pibernat, operada para corrigir os estragos causados pela distensão do abdomem durante a gravidez e realizar o sonho de ter mamas e nádegas mais firmes. “Antes de operar, busquei as referências médicas necessárias e a operação complementou meu cuidado com o corpo. Alimentação balanceada e prática de exercícios fazem parte da minha rotina, não quero perder o que conquistei com a cirurgia plástica”, conta Vergínia. A fisioterapeuta Ana Paula completa a opinião de Vergínia: “Se já nos submetemos a um procedimento cirúrgico, reparando o que era necessário, precisamos trabalhar cuidando do corpo como um todo, da saúde física e mental, pois nosso corpo no futuro é reflexo do que fizemos no passado. Precisamos envelhecer bem,

sem perder a identidade, o que acontece muitas vezes com quem se submete a muitas cirurgias”. CIRURGIAS ENTRE ADOLESCENTES Segundo dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o número de cirurgias para colocação de prótese de mama em adolescentes cresceu 141% nos últimos quatro anos, deixando a entidade em alerta. A adolescência é caracterizada por um período de transição, e é comum que meninas nesta fase não estejam satisfeitas com o reflexo do espelho, esquecendo que o corpo ainda não está totalmente formado. “O aspecto emocional de uma adolescente ainda está em formação, estabilização. Não é possível operá-la, seja qual for a cirurgia desejada, sem entender como está sua condição emocional, assim como sua condição de enfrentar uma intervenção cirúrgica, o pós operatório e principalmente a modificação em seu corpo”, explica Amaral. O corpo do adolescente alcança maturação completa de forma individual, impedindo uma padronização da idade mínima para uma intervenção complexa como a cirurgia plástica e exigindo do profissional uma avaliação delicada. Paulo Amaral diz: “Não vamos operar uma menina de 12 a 14 anos, mas tão importante quanto a idade em si é o quanto o aspecto corporal está interferindo na evolução, no desenvolvimento e no relacionamento interpessoal desta adolescente, fazendo com que o aspecto físico e emocional sejam avaliados paralelamente”. A cirurgia plástica é um tratamento com muitos benefícios, mas delicado e complexo. Ela passa pela escolha do profissional, do procedimento adotado e dos resultados esperados e possíveis. Não se deve banalizá-la, permitindo que nosso corpo seja desrespeitado em prol de um padrão de beleza inalcançável. A saúde deve vir em primeiro lugar e, se eventualmente as emoções estiverem fragilizadas, é melhor parar e reavaliar a situação, impedindo que no lugar da alegria venha a frustração.

photoshopar no mundo virtual

Tratar fotos, tirar imperfeições como rugas, espinhas, celulite, enxugar formas físicas.

impressões de

repórter

Quando comecei a montar a pauta sobre cirurgia plástica minha preocupação era que a matéria chamasse atenção pelo assunto ligado ao tema geral da Primeira Impressão. O que me encanta no jornalismo é que, durante a apuração das pautas, temos a oportunidade de entender o que tem por trás de cada tema escolhido. Só depois de apurar, conversar, conhecer a realidade de cada case é que podemos saber o que uma matéria pode nos oferecer. A experiência do médico que entrevistei foi fundamental para que eu mesma não me perdesse entre diversas técnicas apresentadas no mercado, mas perigosas para a saúde. Ao longo da construção da reportagem, vi a importância de se levar a sério o próprio corpo. Vi que a cirurgia plástica vai além da estética e representa antes de tudo o fortalecimento da autoestima de quem se submete ao procedimento desejado. Uma pessoa consciente de sua verdadeira motivação tem condições de se avaliar e fazer a escolha certa, sem colocar uma expectativa errada sobre possíveis mudanças em seu corpo.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 93


postar no mundo real

O transplante de uma nova vida Maria Lucia passou a ajudar outros jovens depois de viver drama com seu filho Por Rodrigo Karam. Fotos de Camila Weber e Cláudia Sobieski

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marílis é uma planta de porte médio que pode chegar a um metro de altura. O aroma suave e a junção de cores em suas pétalas colocam-na na categoria de ornamentais, sendo encontradas em apartamentos e casas para dar beleza e vida ao ambiente. O crescimento saudável da planta exige que seu cultivo seja desenvolvido em ambientes com temperatura amena e luminosidade moderada. O excesso de sol, frio ou calor são fatores que podem queimar suas pétalas. Os cuidados necessários para sua conservação fazem da amarilis branca uma analogia à fragilidade da vida. SINAL PARA O INÍCIO Começa mais em encontro da ONG Via Vida Pró-Doações e Transplantes, em Porto Alegre. A sala de reuniões aos poucos recebe o grupo de voluntárias que leva adiante o trabalho social desenvolvido no espaço. A mesa, que em poucos minutos se transformaria no pilar de decisões influentes na realidade da cultura de transplantes no Rio Grande do Sul, naquele instante era ocupada por pães de queijo, bolachas e garrafas térmicas de café. Enquanto esperam o horário da reunião, os voluntários conversam sobre 94 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

amenidades da vida: a viagem de férias com familiares e o jantar de confraternização com amigos. O tema da conversa, no entanto, logo é direcionado para a recuperação do paciente que estava na fila de espera para receber um novo órgão. A boa notícia é seguida por um ato que simboliza a dedicação do grupo. Clarissa Wolff Garcez chega na sala e, antes de conversar com os colegas de diretoria, vai em direção a presidente da ONG, Maria Lucia Kruel Elbern. Dá-lhe um afetuoso abraço e entrega-lhe uma pétala de amarilis branca. O gesto foi de tal forma intuitiva que Clarissa não conseguiu encontrar palavras que explicasse o motivo. “Encontrei essa pétala e lembrei da Lucia. Fiquei com vontade de trazer de presente para ela”, relata. O gesto serviu como sinal para o início da reunião. A sala em que todos estavam tem em seus objetos uma forte ligação com a causa da doação de transplantes. O armário é ocupado por dois quadros com “certidões de renascimento”. Trata-se de um documento simbólico com fotos e a data em que duas crianças acolhidas pela ONG receberam um novo coração. Ao lado, o mural preso à parede é ocupado por lembranças de palestras organizadas por Maria Lucia em escolas e entidades sobre a doação de órgãos e frases de conhecimento público sobre como dar um novo rumo a vida.


CAMILA WEBER

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 95


postar no mundo virtual

Maria Lucia lidera uma equipe de 60 voluntários espalhados em todo o Rio Grande do Sul. São pedagogas, professoras, engenheiros e administradores de empresas que decidiram doar parte de seu tempo à causa da doação de órgãos. A ONG Via Vida Pró-Doações e Transplantes foi criada no ano 1999 com a missão de promover a cultura da doação de órgãos e tecidos no Rio Grande do Sul. A origem do trabalho está em um drama pessoal vivido por sua presidente, Maria Lucia. A vida dessa psicóloga porto-alegrense sempre foi movida pelo convívio alegre com a família. A felicidade, no entanto, sofreu um abalo em 1998, quando o filho mais novo, Martin Kruel Elbern, na época com 15 anos, recebeu o diagnóstico de insuficiência renal aguda, doença causada pela perda repentina da capacidade dos rins de retirar resíduos e concentrar urina sem perder eletrólitos. A notícia serviu para Maria Lucia in-

n A necessidade de

transplante fortaleceu a união entre Maria Lucia e seu filho, Martin

Escrever em site ou fórum da internet ou enviar um arquivo.

gressar em uma realidade difícil, porém não inédita. Quando jovem, ela tinha em casa um exemplo de dedicação à causa da doação. “Em uma ocasião, meu tio doou pele das costas no HPS (Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre) para salvar a vida de um amigo que tinha sofrido uma grave queimadura. Fiquei impressionada com aquilo, mas jamais pensei que quase 20 anos depois eu teria um problema familiar parecido”, recorda. Os primeiros instantes após receber a notícia da necessidade do filho receber um rim novo mobilizou a família de Maria Lucia. “Imediatamente fui até a Central de Transplantes do Rio Grande do Sul. A lista média de espera era de três anos. Havia 1.200 pessoas na lista”, lembra. Segundo dados da ONG, na época (1998) haviam sido notificados 156 mortes encefálicas à Central, resultando em 65 doadores efetivos e 306 transplantes, sendo que 2.300 pessoas estavam na fila para aguardar um novo órgão. Diante dessa realidade, Maria Lucia iniciou uma rede de solidariedade em busca

de uma solução para as dificuldades enfrentadas por familiares e pacientes que necessitavam encontrar doadores de órgãos que dessem uma nova oportunidade de vida para quem aguardava na fila de espera. “Conversando com médicos e outros familiares que estavam na mesma situação que a minha, decidi que deveria fazer algo para mudar essa cultura”, destaca. A vontade resultou no surgimento da ONG Via Vida Pró-Doações e Transplantes. Apesar do período de preocupação com o filho, a família serviu como base para que Maria Lucia implantasse o sonho de desburocratizar a doação de órgãos no Rio Grande do Sul, nem que para isso fosse necessário abdicar o tempo disponível para o atendimento aos seus pacientes do consultório. “Meu marido me deu apoio para que eu pudesse trabalhar pela causa”, lembra. A partir do apoio familiar, Maria Lucia buscou auxilio para montar a equipe de voluntárias para desenvolver o trabalho. A forma com a qual aborda é ressaltada pelas colegas como a marca de sua personalidade. “Sempre ajudei pessoas necessitadas. Após a morte do meu irmão, a Lucia sempre esteve comigo. Ela tem sensibilidade para lidar com o ser humano e vivenciar os seus problemas”, afirma a consultora de moda e voluntária da ONG Vera Garcêz. Após ajudar CAMILA WEBER

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CLAUDIA SOBIESKI

n Maria Lucia lidera

grupo de voluntários da ONG Via Vida PróDoações e Transplantes, de Porto Alegre

na distribuição de convites em um evento beneficente da ONG, Vera foi convidada oficialmente a ingressar na Via Vida como diretora do Departamento de Eventos. A forte relação de amizade e cumplicidade fez Vera sentenciar. “Se não for com ela, a ONG não segue em frente”, afirma. A Via Vida recebe crianças e jovens de todo o Brasil. Desde 2003, elas são encaminhadas para a Pousada da Solidariedade. O espaço é destinado aos pacientes em lista de espera e já transplantados, bem como seus acompanhantes. Durante o tempo que passam no local, as mães participam de oficinas de artesanato, enquanto os filhos fazem aulas com professoras voluntárias. O trabalho da ONG tem como objetivo levar a jovens e adultos a importância da doação de órgãos. Para isso, Maria Lucia desenvolve palestras e encontros em escolas, empresas e comunidades carentes para explicar o que é necessário para informar a família e registrar em cartório o desejo de ser doador. Clarisa Wolff é um exemplo de profissional que destina seu tempo para implementar o ensino na ONG. “Através de

apoio pedagógico, as crianças são avaliadas e recebem aulas conforme a realidade de cada uma. A gente constata que a dificuldade de aprendizado pela doença é superada com dedicação”, avalia. Clarisa reforça a opinião de Vera para descrever o papel de Maria Lucia para unir a equipe de voluntárias. “Certa vez ela ligou para mim às 22h30 para pedir que eu comparecesse em uma atividade às 8h30 do dia seguinte. Aceitei na hora, mesmo que eu já tivesse agendado um compromisso anterior. O jeito que ela pede o nosso apoio é especial. A Maria Lucia é a cara da Via Vida”, afirma Clarisa. A personalidade de Maria Lucia possibilita que o retorno seja recíproco. Pessoas desconhecidas chegam com cadeiras de rodas para as crianças da Pousada, novas voluntárias que se apresentam para abraçar a causa e pacientes que chegam e fazem questão de cumprimentá-la. “A gente vê crianças que saem daqui saudáveis e voltam tempos depois para nos visitar. Isso é um alimento de satisfação pelo trabalho”, avalia Maria Lucia. Embora o tempo tenha passado e hoje o filho tenha uma vida saudável após encontrar um doador, recordar o drama vivido pela família há 15 anos emociona Maria Lucia. Em diversos momentos, a voz silencia e os olhos ficam marejados pela lembrança da luta que travou com o propósito de encontrar uma saída para o problema de Martin, como se caísse uma gota d’água da planta que deu início a essa reportagem.

impressões de

repórter

Conheci o trabalho da Maria Lucia Elbern durante a gravação de reportagem sobre transplante de órgãos. Naquela ocasião, o depoimento claro e objetivo dela ao relatar a situação dos transplantes no Rio Grande do Sul contrastava com o drama vivido por ela, que a motivou a criar a ONG Via Vida. Desde estão, fiquei com o desejo de compreender mais sua personalidade. O perfil da Primeira Impressão serviu como oportunidade para explorar esse universo. O período que passei na ONG possibilitou conversar com suas colegas de voluntariado, analisar o espaço destinado ao atendimento e a reação de Maria Lucia ao contexto. Fica a lição de uma psicóloga que não se conformou com a realidade oferecida pelo poder público para salvar a vida de seu filho. Ela desgarrou-se dessa massa e tomou para si a responsabilidade de ajudar a outras famílias que passam pela mesma situação. Impressiona o fato de ter conseguido desenvolver uma estrutura emocional que possibilita vivenciar diariamente dramas semelhantes pela qual passou em família sem abalar o discernimento e a racionalidade transmite a mensagem de que é possível salvar vidas de desconhecidos mesmo com a dor da perda de entes queridos.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 97


recuperar ALEKSANDRA P (STOCK.XCHNG)

no mundo real

A fé que ajuda a curar 98 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


Além da medicina, a oração e a crença também podem auxiliar na recuperação de doenças Texto Lucas Brito de Barros Fotos Aleksandra P. e Odan Jaeger (Stock.Xchng)

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em todas as pessoas têm fé ou acreditam em Deus. Quando existe um problema de saúde, no entanto, muitos dos que são ateus apelam para oração. Mas será que a fé pode ajudar numa recuperação? De acordo com uma pesquisa feita com 52 estudantes de medicina, a oração pode estabilizar um dos principais mecanismos de defesa do organismo, a fagocitose. A experiência foi coordenada pelo pesquisador do Laboratório de Imunologia da Universidade de Brasília, Carlos Eduardo Tosta, no ano de 2003. Para o padre Marco Antônio Leal, 31 anos, formado em Teologia e Filosofia, com o avanço da ciência, da medicina e da psicologia, cada vez mais será comprovado que existe uma unidade no ser humano: corpo, psiquê e espírito. Os medicamentos, obviamente fazem efeito, mas a fé também pode ajudar. Uma das grandes descobertas da psicologia e da psiquiatria são as doenças psicossomáticas. Trauma, mágoa, ódio, desejo de vingança e complexo de inferioridade. Tudo isso pode fazer com que a pessoa tenha doenças físicas: úlceras, problemas estomacais, de coluna, dores fortes de cabeça. “Trabalhei em algumas clínicas de recuperação de dependentes químicos, onde um dos princípios basilares para o tratamento e libertação do vício é a fé. Os tratamentos de Alcoólicos Anônimos, ou de dependentes químicos, têm como base a fé”, afirma o padre. Alguns pacientes conseguem utilizar a fé como força para não voltarem a usar drogas. “Conversei com alguns dependentes que recaíram: alguns diziam que era a falta de disciplina, de continência, mas muitos diziam que era a falta de espiritualidade. Saíam da comunidade terapêutica e não rezavam mais e não liam a Bíblia, não participavam de uma Igreja. Acabaram voltando para os velhos costumes e recaíram”, complementa o sacerdote. Ele trabalhou seis meses no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre. Conversou com alguns médicos que disseram que 80% das pessoas que manifestaram ter fé tiveram melhores resultados. “Existem casos em que a pessoa tem fé, mas 100 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

o tratamento não produz efeito, mas é uma minoria”, relata o religioso. AUTOESTIMA João Felipe Wingert, 37 anos, é médico, especializado em Medicina de Família e Geriatria. Tem dez anos de profissão. Atualmente, trabalha no Posto de Saúde do Trensurb, próximo à Estação Unisinos, na Avenida Mauá, em São Leopoldo. Ele é responsável por aproximadamente quatro mil pessoas. “Observo que a fé é algo muito importante na área da saúde. É fundamental a pessoa ter fé, autoestima e força de vontade para superar doenças.” Para ele, estar de bem consigo mesmo aumenta a imunidade e previne várias doenças. A pessoa que tem fé, que se segura em alguma coisa, tem uma religião ou até mesmo é bem quista pelos familiares tende a ter mais qualidade de vida”, garante o médico. Para exemplificar, Wingert fala do caso de sua mãe, que teve um AVC. “Ela é uma pessoa que pensa positivo e tem

fé. Dá para se notar passos largos na sua recuperação”, afirma. “Aqui no posto, pessoas com muito problema na família se deixam afetar e acabam ficando doentes. Ou, quando morre alguém importante, principalmente quando é casal, o outro morre em seguida, por perder a motivação de viver.” Wingert explica que alguns pacientes se abatem tanto com as perdas que acabam adoecendo. Por isso é importante a pessoa se sentir útil e feliz. Até mesmo o desemprego acaba afetando a saúde das pessoas. “Acho importante acreditar em alguma coisa, independente de religião ou crença. Geralmente quando eu não tenho mais o que fazer, que já dei a medicação e indiquei o tratamento e a pessoa não melhora, peço para ela se apegar em alguma coisa, frequentar uma Igreja”, confessa o médico. RECUPERADO SEM MEDICAÇÃO Alípio de Espíndola, 71 anos, dependente químico durante 25 anos, hoje está há 14 sem usar drogas. “Comecei


ODAN JAEGER (STOCK.XCHNG)

mo: família, amigos e emprego. “Perde até a dignidade. Troca tudo o que tem pelo prazer”, diz Alípio. Na recuperação, busca-se viver bem um dia de cada vez. O tratamento é um renascimento de nove meses. “A pessoa sai orientada, com ferramentas interiores que auxiliam na batalha do dia a dia para não recair. A pessoa não pode mais viver no meio daqueles que estimulavam o uso da droga. Por isso a humildade de assumir que foi derrotado e escravizado por um vício”, explica. Alípio acredita que a religião o fez mais humano, mais solidário, mais alegre para a vida. “Joguei fora meu casamento, minha família. Hoje me considero outra criatura.” FÉ E CIÊNCIA

a me recuperar em Parobé, na Comunidade Terapêutica Vida Plena.” Hoje ele trabalha no Centro de Inclusão Psicossocial do Vale dos Sinos (Ceipsinos). Espíndola garante que foi através dos passos que são trabalhados na clínica, por nove meses, que descobriu que estava totalmente afastado de Deus. “Fazia só o meu desejo próprio, no prazer do alcoolismo. Minha decadência foi total. Foi com a espiritualidade e com as reuniões do AA que consegui me recuperar. Graças a Deus não precisei de nenhuma medicação”, comemora. Uma das coisas que teve que aprender, com toda a complexidade do tratamento, e com muita dificuldade, foi encontrar maneiras de preencher o vazio que o vício tinha deixado. Ele fez isso através da espiritualidade. Durante a recuperação, encontrou amigos de verdade. Lembra-se de um livro do Leonardo Boff que falava sobre a espiritualidade como fator de mudança positiva na vida humana. Normalmente, o dependente químico procura ajuda quando já perdeu tudo. Tudo mes-

O caso de Bruna Drieli Correia de Brito, 19 anos, estudante de Serviço Social da Unisinos foi diferente. Há dois anos ela estava com uma doença nos rins, mas só no início deste ano o problema foi diagnosticado. Bruna estava com apenas 17 mil plaquetas no sangue, sendo que o ideal era que tivesse 135 mil plaquetas. Os amigos e familiares tiveram que correr contra o tempo. Literalmente doaram parte de suas vidas para salvar a dela. Doaram sangue. Os pais tiveram que acompanhar o mês de março inteiro a luta dos médicos para descobrir qual a medicação que a faria reagir. “De repente, fui chamada no Hospital Centenário de São Leopoldo para iniciar o tratamento, pois eles estavam acompanhando o meu caso. Em menos de 24 horas fui para a UTI do Hospital Conceição, em Porto Alegre, numa ambulância. Fiquei dez dias em coma”, relata Bruna. Foram 28 dias de internação. Os familiares e amigos passaram o tempo todo orando. Bruna recebeu visita dos amigos da Igreja. “O meu caso ativou uma fé que as pessoas não tinham. Recebi muito carinho. Para os médicos, era impossível que eu fosse curada. Eu teria que tomar remédios o resto da vida. Oramos e pedimos a Deus pela minha cura”, comenta com euforia. Os médicos fizeram vários tipos de exames, e Bruna continua se tratando. Mas ela já se sente curada. “Fui curada

através da minha fé e da fé das pessoas que acreditam em Deus.” Com sorriso no rosto, ela garante que surpreendeu até as enfermeiras pela forma que encarou todo o processo. Ter fé pode ser considerado uma forma de recuperar a vida. Os médicos fazem a parte da ciência, enquanto que os pacientes apenas podem acreditar e respeitar.

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Resgatar documentos ou dados que foram perdidos ou deletados.

impressões de

repórter

Não sou santo. Muito menos um ser perfeito. Perfeccionista, sim. Se isso é qualidade ou defeito não sei, mas na questão do detalhe, da percepção, entre outras coisas que são características interessantes para a profissão de jornalista, vejo que, se bem equilibrado, o perfeccionismo pode ajudar. Mas a minha vida sempre foi batalhando para buscar uma postura correta. Na linguagem cristã, uma pessoa que busca a santidade poderia ser comparada com um ser perfeccionista, ou fanático para os que gostam de uma polêmica. Escrever sobre algo que nos interessa é sempre mais gratificante. Neste caso, falei da fé como um fator importante na recuperação da saúde, da vida como um todo. As experiências relatadas com a fé estão por toda a parte. Do padre ao médico, do paciente ao fiel. Acreditar em Deus, ter pensamento positivo, tudo isso faz parte daquilo que acredito. Somos filhos de Deus. Ele tudo pode. Sem Ele nada somos. Independente do que for, acreditar e ter o pensamento positivo, de que vai dar certo, já nos coloca a um passo da cura, de sermos melhores para nós mesmos. Basta acreditar!” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 101


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A escolta de um líder de quadrilha mudou o rumo da família do soldado Sergio de Souza Por Audrey Lockmann Barbosa Fotos de Adriano Santos e Fernanda Schmidt

Vidas que 102 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


ADRIANO SANTOS

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se refizeram

ada vez mais estamos condicionados a viver um dia a dia corrido, com estudos, trabalhos, um pouco de lazer, tudo programado. O soldado do Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar Sergio de Souza, desde o dia 8 de janeiro de 1998, passou a dar mais valor à vida e aos momentos vividos com os parentes e amigos. Naquele dia, recebeu a escala de trabalho, função e horário. Com mais dois colegas, recebeu a missão de realizar a escolta de outro policial, acusado por corrupção, para uma audiência em Venâncio Aires, a 130 km de Porto Alegre, cidade onde trabalha e mora. A viatura onde estavam foi interceptada e alvejada. O objetivo do ataque era o resgate do soldado Jorge Tadeu Freitas Flores, que estava preso à disposição da justiça no presídio militar do BOE - Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar. Quatro homens em um carro abalroaram a viatura utilizada na escolta. Isto fez com que a mesma saísse da estrada, possibilitando os disparos contra os policiais. Foram atingidos Sergio e o soldado Luiz Carlos Sotto. O cabo Antonio Carlos Brasil Conceição não foi baleado, mas ferido a coronhadas. Os militares já haviam passado por momentos de confronto antes, mas não de forma tão desigual como naquela ocasião. No dia, o cabo Brasil não estava escalado para trabalhar, mas trocou o dia de serviço, pois outro colega havia sido liberado. Brasil foi na condição de motorista e comandante da escolta. A partir do momento em que foram avisados de qual seria a missão, os soldados iniciaram os procedimentos padrões. “Seguimos toda a rotina como de costume. Organizamos os materiais, as armas, algemas, rádio” esclarece. Quando pegaram o prisioneiro, continuaram a cumprir as regras. “A revista foi realizada, ele foi algemado com as mãos para frente e foi posto sentado no banco traseiro no lado direito”, conta Brasil. O prisioneiro estava atrás do soldado Sotto, que na ocasião estava de patrulheiro. A posição ao lado do preso, atrás do motorista, ficou com o soldado Sergio. A escolta iniciou na BR-386. Aparentemente tudo seguia como Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 103


FOTOS FERNANDA SCHMIDT

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n O cirurgião Aymoré Drumound salvou a vida de Sergio

104 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

deveria. Sergio e o preso conversavam sobre família, esposas e filhos. O interesse de Jorge fez com que o soldado Sergio contasse sobre seu casamento e sobre o filho de nove anos, que o esperava em casa. Conversavam como colegas, porque Sergio achava que Jorge era inocente. Até onde sabia, não havia acusação concreta. Todos os detalhes marcaram quem estava dentro do carro. A conversa não teve continuação. Foi interrompida no quilometro 405, onde foram interceptados por um veículo Vectra de cor bordô. Eram quatro homens, sendo que dois deles estavam com a farda da Brigada Militar. Ao se aproximarem da viatura, efetuaram disparos com uma arma calibre 12. Em seguida, abalroaram o carro com intenção de retirá-lo da estrada. Com o choque entre os carros, a viatura parou e os comparsas de Jorge continuaram atirando, até o momento em que conseguiram render os soldados. Os disparos acertaram o soldado Sotto no queixo e o soldado Sergio na altura da cintura e na região da lombar. Brasil, que estava dirigindo, foi agredido com chutes, pontapés e coronhadas.

A porta do lado esquerdo ficou trancada por causa dos tiros e da batida. Acharam que Sotto estava morto, então o deixaram no banco do carro. Retiraram Sergio e Brasil da viatura. Eles foram desarmados e agredidos com chutes e pontapés, na intenção de que entregassem a chave das algemas para soltarem Jorge. “A dor era horrível, eu sabia que tinha me ferido muito, só conseguia pedir ajuda para o Brasil. Lembro como se fosse ontem, eu sussurrava: Brasil, me ajuda!”, recorda Sergio. Como não acharam as chaves, roubaram as armas e um rádio que Sergio portava e jogaram os dois soldados em um barranco. Neste momento, ficou claro que o comando da quadrilha era de Jorge. Ele ordenava: “Não, não mata eles, não mata eles!”. Com esta determinação, estava constatado que ele era o chefe da quadrilha, pois eles já estavam rendidos, e a ordem foi para não executar. Os bandidos entraram no Vectra e partiram. Sotto foi em direção a eles. Brasil já levantava Sergio para subirem o barranco. Entraram na viatura e deitaram Sergio no banco de trás, pois ele gritava de dor. Foram direto par o Pron-


to Socorro. Brasil falou para Sotto abrir o macacão de Sergio com uma faca grande que carregavam. Foi aí que viram o grande ferimento que havia nas costas e região da barriga. “Sinceramente, eu achei que ele ia morrer”, diz Brasil. No hospital, o cirurgião geral que estava de plantão, Doutor Aymoré Drumound, explicou que seria necessária uma grande cirurgia de risco. “Doutor, faz o que for, mas salva meu parceiro, faz o que precisar”, disse Brasil, que assinou os documentos se responsabilizando pelo colega. O médico voltou à sala de cirurgia, com poucos recursos, e iniciou os procedimentos. “Fizemos o que podíamos, era uma cirurgia com muitos detalhes, ficamos aguardando, sempre na expectativa de dar certo ou não.” Alma, esposa de Sergio, soube do ocorrido somente à tarde. Conseguiu chegar à cidade com ajuda de um vizinho. Aguardou em um banco na frente do hospital até o final do dia, quando Aymoré foi observar Sergio novamente. “Naquele momento, a ajuda que tivemos foi somente da família, de colegas e pessoas conhecidas. De resto, deram as costas”, afirma Sergio. Alma ficou hospedada aquela noite na casa da família do cirurgião que salvou seu marido. “Tivemos sorte de encontrar aquele doutor, atento aos pacientes, e caridoso”, comenta Alma. Quando Sergio recobrou os sentidos, falou com o médico: “Doutor, me cura, porque eu preciso trabalhar.” Esta frase marcou o médico. Alma e o filho conseguiram realizar visitas, com os esforços de Brasil e dos colegas durante algum tempo, até Sergio ser transferido. SEGUIR EM FRENTE A família precisou buscar vários especialistas. “Com certeza, eles não serão as mesmas pessoas, uns se tornam pessoas melhores, outros poderão ter dificuldades de confiar. Trabalhar nestas condições é muito difícil”, afirma a psicóloga Édna Bello. “O trauma que cada um passa afeta diretamente no convívio social”, completa. Sergio passou por mais cinco cirurgias durante os anos seguintes. “Nunca deixei de trabalhar. Precisava sustentar minha família. Sempre com problemas de saúde, o auxilio que eu tinha direito, eu não tive”, diz Sergio. Seguir em frente, vencer os obstáculos, não se deixar intimidar, superar dificuldades e comemorar a vida, os amigos e a família de Sergio sabem fazer isto muito bem, pois ele tem um grande motivo para isto, viver. Os bandidos que lhe causaram os danos foram pegos, condenados, cumpriram pena na prisão e agora estão livres. A vida de Sergio quase foi interrompida. Ele ainda busca seus direitos, mas está tranquilo. Apesar de lembrar todos os dias o que passou, ele comemora dois aniversários, o de nascimento e o do dia em que sobreviveu e, com muita garra, reiniciou sua vida.

reiniciar no mundo virtual

Recomeçar um sistema ou um programa informático.

impressões de

repórter

Quando tive a ideia de fazer a matéria a partir da palavra reiniciar, achei que conseguiria contá-la facilmente. Não foi o que aconteceu. Muitos detalhes precisaram ser recuperados, e muitas entrevistas precisaram acontecer. O tempo sempre é inimigo nessas horas. E, mais ainda, o cuidado com relação à importância do caso, por ser de fundo criminal e, ainda, por não estar de fato encerrado. O que mais angustia é a responsabilidade de apurar a matéria contra o tempo, porque a cadeia de acontecimentos até chegar às vias de fato, que são as entrevistas, é muito tumultuada e o prazo se torna curto. Enfim, quando a imersão está sendo feita, surgem dúvidas: escrever logo o que está ouvindo ou ouvir todos primeiro? Vai dar tempo, ou não? E as conclusões surgem dando rasteiras, o tempo está acabando! A história precisa de mais detalhes! É preciso entrevistar mais pessoas! Ter que ir a outras cidades, arranjar tempo! Aprender na prática não é fácil, aprender a controlar a emoção durante a entrevista, entender na marra que nem sempre conseguimos cumprir tudo o que estabelecemos como objetivo, que nem sempre seremos compreendidos, que jamais saberemos tudo o que necessitamos saber, que nos falta muito e mais um pouco. Estou aprendendo a sobreviver.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 105


renderizar

U

no mundo real

e u q a s e r p m e a m O processo de levar uma alimentação saudável às pessoas Por Greice Nichele. Fotos de Fernanda Schmidt

V

ocê já deve ter ouvido falar de pessoas com intolerância à lactose, correto? E intolerância ao trigo? Pois então, apesar de um pouco mais raro, isso existe. E foi a partir de uma situação dessas que surgiu a Secale Pães Orgânicos. Rosângela Isidoro Cabral, 57 anos, tem uma amiga com intolerância ao trigo. Essa amiga comentou, certo dia, da dificuldade de se conseguir produtos integrais que fossem totalmente livres de farinha de trigo. A maioria dos pães tem em sua composição de cinco a dez por cento de grãos integrais e a receita é completada com a farinha de trigo tradicional e colorida com corante caramelo. Assim, a moça precisava comprar pães importados em grandes quantidades e os congelar, para poder consumir no decorrer de um longo período. A partir dessa necessidade específica, Rosângela realizou uma pesquisa de mercado, constatando a possibilidade de crescimento de um nicho que até então era pouco ou mal explorado. Assim, em 2004, ela ingressou na Incubadora Tecnológica Empresarial de Alimentos e Cadeias Agroindustriais, do Instituto de Ciência e Tecnologias dos Alimentos da UFRGS. Lá, pôde estudar e testar receitas na busca da produção de alimentos totalmente orgânicos e livres de aditivos químicos, antes mesmo que houvesse, no Brasil, a exigência da certificação. Esses alimentos, porém, não podiam ser produzidos em grandes quantidades, devido ao espaço físico reduzido da incubadora. Em setembro de 2005, Rosângela, já então sócia-proprietária da Secale, mudou-se com a empresa para seu atual endereço, no bairro São Geraldo, em Porto Alegre, sem perder o vínculo com a incubadora.

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Hoje, a empresa produz uma média de 750 pães por dia, sendo divididos entre linhaça, trigo integral, multigrãos, centeio e cucas. Os pães são comercializados no Rio Grande do Sul, nas cidades de Porto Alegre, Pelotas e Garibaldi, e nos estados do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo. O cuidado e o respeito com a saúde de seus consumidores começa a partir da seleção das matérias-primas e segue até o processo de embalagem dos pães. Com certificação orgânica concedida pela EcoCert Brasil, os pães da Secale utilizam matéria-prima proveniente de agricultura familiar e insumos com certificação de não-transgênicos. Jocelem Cabral, 59 anos, funcionária da Secale, diz que é difícil adquirir insumos não-transgênicos: “A frutose, por exemplo, nós importamos de Israel, pois é a única que conseguimos com a certificação de não-transgênico”. A gordura tradicional dos pães industrializados foi substituída por óleo de palma, que apresenta saturação somente em temperaturas acima de 200 graus, enquanto os pães são assados a 180 graus. Além disso, esse óleo é extraído pelo método de prensagem mecânica, sem adição de solventes ou substâncias químicas. Consequentemente, não apresenta gordura trans em sua composição. Outras características do óleo são a dissolução uniforme quando de seu aquecimento e a solidificação quando resfriado, formando uma estrutura que impede os pães de se quebrarem, aumentando a durabilidade dos produtos. O açúcar foi substituído pelo mel de abelha que, apesar de doce, se consumido em pequenas doses, não faz mal a diabéticos. O sal é marinho, que não passa pelo processo normal de refinamento como o sal comum e ainda contém 84 elementos que trazem benefícios à saúde, como, por exemplo, o iodo proveniente das algas marinhas. Esse tipo de iodo é biologicamente melhor assimilado e distribuído no organismo. O trigo é integral, o que mantém a fibra, essencial para uma boa digestão, e o gérmen, fonte de sais minerais e vitaminas. A farinha de centeio, a aveia, a semente de

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surgiu da cria tivi da

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n Os insumos

utilizados são orgânicos e nãotransgênicos, o que garante um produto saudável no final do processo produtivo

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renderizar no mundo virtual

gergelim, de linhaça, o fermento, assim como os demais ingredientes, são todos orgânicos. E o processo de produção é sempre feito de um dia para o outro. Com uniformes impecáveis, os funcionários têm todos os cuidados necessários para manter a assepsia do local, que é organizado e rigorosamente limpo. O ingresso da nossa reportagem ao interior da fábrica só foi possível após nos munirmos de toucas descartáveis e de higienizar as mãos. Já na entrada, o cheiro do pão saindo do forno torna-se uma provocação para quem está com fome, e puxa da memória aquele aroma de pão feito em casa pela mãe ou pela avó. Quando um fornecedor chega com seu material para a entrega, a primeira atitude tomada é a conferência das certificações dos produtos. Jocelem explica que esse reconhecimento é necessário não somente para garantir a qualidade dos pães, como também para comprovar a origem das matérias-primas durante as auditorias de certificação que ocorrem uma vez por ano. Após descarregados, os produtos são acondicionados em recipientes devidamente identificados. Com as farinhas, insumos e sementes separados, Jocelem realiza uma pesagem para separar os ingredientes de cada receita que serão produzidos no dia seguinte. Fracionados, os ingredientes passam por uma batedeira industrial que transforma a mistura em massa, em poucos minutos. Da batedeira, a massa vai para as mãos habilidosas de Roberto Carlos Correa, que separa e pesa os pães para serem colocados nas formas por Givanildo Silva Santos. No caso das cucas, Givanildo as cobre com a farofa de sementes previamente preparada. Nas formas, os pães “descansam” por cerca de três horas, enquanto aguardam pelo efeito da fermentação, antes de serem levados ao forno. Jocelem explica que o excesso de fermento e os processos de aceleração da fermentação tendem a provocar azia nos consumidores. Por isso, as receitas dos

pães produzidos pela Secale utilizam pouco fermento e passam pelo processo de fermentação natural, levando assim mais tempo que os tradicionais. Cada fornada produz 72 pães, que, após retirados das formas, ficam em uma outra sala, onde são resfriados. Posteriormente, os pães são fatiados e embalados a vácuo, de onde seguem prontos para o consumo. Rosangela explica que a embalagem a vácuo retira o oxigênio e injeta gás carbônico e nitrogênio, aumentando a vida útil do produto sem causar danos à saúde. Dentre as vantagens, os pães da Secale são ricos em fibras. O que gera um baixo índice glicêmico e consequentemente, um baixo efeito dos carboidratos sobre os níveis de açúcar no sangue. Ou seja, a digestão dos produtos é mais lenta, o que proporciona ao organismo uma fonte estável de energia, prolongando a sensação de saciedade, promovendo níveis saudáveis de colesterol e diminuindo o risco do diabetes. A renderização em processos digitais leva ao público um produto final capturado, roteirizado, selecionado, editado e finalizado. Assim como a renderização digital, a Secale Pães Orgânicos também leva a seu cliente um produto final capturado (fornecido de cooperativas e agricultores familiares), roteirizado (com receitas estudas e testadas na busca de uma alimentação saudável), selecionado (com ingredientes orgânicos e não-transgênicos), editado (pelo processo de transformação das receitas em pães e cucas saborosas) e finalizado (fatiados e embalados, prontos para o consumo). Dentro da imensa variedade de produtos visuais que nos é colocado à disposição, escolhemos aqueles que melhor nos identificamos. Com nossa alimentação, não é diferente. E conhecendo mais sobre como os alimentos chegam a nossa mesa, seus processos de criação e produção, poderemos formar nossa própria opinião sobre o melhor a ser consumido.

Processo pelo qual pode-se obter o produto final de um processamento digital qualquer. Esse processo se aplica essencialmente em programas de modelagem em duas ou três dimensões, áudio e vídeo. O processo de tratamento digital de imagens e sons consome muitos recursos dos processadores e pode tornar-se pesado de modo que sua realização em tempo real fica inviável. Neste caso, os softwares trabalham em um modo de baixa resolução para poder mostrar uma visão prévia do resultado. Quando o projeto está concluído, ou em qualquer momento que se queira fazer uma aferição de qual será o resultado final, faz-se a renderização do trabalho.

impressões de

repórter

Escrever sobre alimentação saudável parece fácil à primeira vista. Mas as coisas nunca são como a gente espera. A proposta inicial era encontrar uma cooperativa que atuasse com produtos oriundos de agricultura familiar e, com isso, buscasse a inserção de produtos livres de agrotóxicos no seio da cidade grande. Para minha surpresa, a Secale Pães Orgânicos não é uma cooperativa, e sim uma empresa. Mas nem por isso o propósito mudou. É uma empresa, sim. Mas uma empresa que nasceu de uma necessidade especial e que se preocupa não só com seus consumidores, como também, e principalmente, com a origem de seus produtos. Tanto que suas matérias-primas são originárias da agricultura familiar e todas possuem certificação de produtos orgânicos ou não transgênicos. Num período de diversas preocupações e correrias, quando reina o império dos fast foods e self services, encontrar, numa capital como Porto Alegre uma empresa preocupada em fornecer saúde certificada a seus consumidores foi, para mim, uma grande alegria e uma completa surpresa.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 129


resetar no mundo real

Um dia de cada vez Maria do Carmo Nunes Pinto, uma mulher forte que aprendeu diariamente a superar a dor Por Juliana Borba. Fotos de Mégui Moraes

M

aria do Carmo Nunes Pinto, 57 anos, pedagoga, viu sua vida mudar nos últimos dez anos, quando diagnosticou câncer na mama esquerda. No tratamento, Maria realizou três seções quimioterapias antes da cirurgia, depois mais seis sessões de quimioterapia e procedimentos de controle, finalizando o tratamento em dezembro de 2003. Durante esse período, Maria viu sua vida se transformar, e seu casamento não resistiu às mudanças. “Estava mais preocupada com a minha saúde do que com meu casamento”, lembra. Maria vive em uma casa simples, mas aconchegante, no bairro Restinga Nova, zona extremo-sul de Porto Alegre, com a filha única Alessandra Nunes Pinto, 24 anos, estudante de Publicidade e Propaganda da Unisinos, mesmo local em que atua como auxiliar administrativo. Além da filha, Maria conta com o apoio e carinho do seu cachorro. Bola, da raça Collie, de quatro anos. Durante a entrevista, Bola apareceu diversas vezes na janela para ver como estava a dona. Maria é um exemplo de alguém que consegue enfrentar barreiras e sempre recomeçar, pois o câncer foi apenas o início de uma difícil trajetória. Maria nos recebeu no quarto, local onde passa a maior parte do dia. De longe, ouvimos sua voz, pedindo para irmos até lá vê-la. Um crucifixo pendurado na cabeceira faz companhia para as caixas de remédios, o controle da televisão, três celulares e uma escova de cabelo, tudo colocado cuidadosamente ao seu redor para ser utilizado a qualquer momento, com o menor esforço possível. Uma questão muito complicada para diversas mulheres no período de tratamento do câncer é a perda dos cabelos, símbolo de beleza e feminilidade. Contudo, Maria contornou fortemente o sentimento e se acostumou com o novo visual.

110 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 111


“Na primeira queda de cabelo, senti bastante. Na segunda vez, eu mesma colocava um balde do lado e puxava os maços de cabelo”, diz Maria. E recorda: “Não usei lenço. Na época trabalhava em uma escola com crianças que perguntavam porque meu cabelo estava caindo. Expliquei que era uma doença e que para ficar bem durante o tratamento perdia o cabelo. As crianças logo entenderam”, conta. Enquanto ela reconstituía aos poucos a longa trajetória de dor, seu cachorro, o Bola, se apoiava na janela e começava a latir e observar atento a dona. Nessa hora, interrompemos a entrevista, pois parecia que o Bola não queria recordar tantos momentos de sofrimento. Ele latia e pulava na janela. Mãe e filha desistiram

n Bola, um Collie

de quatro anos, faz companhia para Maria do Carmo

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de tentar controlá-lo e começaram a rir e brincar com ele. Como toda mulher, Maria também teve sua autoestima abalada, mas, ao invés de optar por uma rotina mais reclusa, saía. “Careca, gorda e bem pintada pelas ruas. Não tinha nada a esconder”, recorda. No decorrer da entrevista, Maria mostrou suas cicatrizes da cirurgia para retirada dos nódulos. “Não quis reconstituir a mama, seria mais tempo de hospital e mais uma cirurgia.” Ela ressaltou que, ao contrário de muitos pacientes, não teve enjoos ou dores no período de tratamento. No dia 19 de abril de 2004, quando Maria começava a se recuperar do câncer e reorganizar a vida, sofreu uma queda.

resetar no mundo virtual

Ação de apagar, desfazer opções escolhidas ou configuradas anteriormente.

Fraturou o pé direito, precisando mais uma vez ser internada no Hospital Porto Alegre. No período em que ficou hospitalizada, precisou colocar um pino e uma placa de titânio no pé. Após sete anos, o corpo de Maria iniciou um processo de rejeição dos pinos, por isso foi necessária uma intervenção cirúrgica para retirá-los em função de uma infecção. De acordo com suspeitas de mãe e filha, por negligência no atendimento prestado no hospital. A infecção no pé direito afetou a coluna e corroeu as cartilagens, causando uma infecção conhecida como discite. Por essa razão, Maria tem sérios problemas de locomoção e não consegue ficar muito tempo em pé ou sentada na mesma posição. Durante a entrevista, Maria passou a maior parte do tempo deitada. Em poucos momentos, com a ajuda de uma bengala, levantou, sentou, passeou um pouco pela casa e logo nos pediu para voltar para cama, pois as dores já começavam a surgir. Maria também foi acometida por osteomelite, que corroeu os ossos do calcanhar, ocasionando a retirada dos pinos. Segundo ela, nesse procedimento cirúrgico foi contaminada por infecção hospitalar. Após diversos exames, como biopsia e densitometria óssea, a causa da infecção (conhecida como discite) continua desconhecida dos médicos e de Maria, mas as consequências ela aprendeu rapidamente a conviver. Atividades simples, como ir ao banco, supermercado ou farmácia, não podem mais ser realizadas por ela. Hoje as atribuições estão a cargo da filha, que se divide entre os cuidados com a mãe, o trabalho e as aulas do curso de Publicidade. “Os papeis se inverteram, hoje sou eu quem cuido dela e não mais ela que cuida de mim. Para mim foi difícil, pois estava acostumada com uma mãe que fazia tudo”, diz Alessandra. Maria conta sem esperanças que o único tratamento que realiza atualmente


é de analgesia, ou seja, ela apenas mantém uma regularidade de analgésicos para aplacar a dor. Maria não possui mais resistência óssea para receber outros pinos ou realizar cirurgias, devido à sensibilidade e falta de resistência dos ossos, ocasionada pelo tratamento de quimioterapia. Além disso, ao fazer uma cirurgia, ela correria o risco de perder todos os movimentos das pernas, isto é, não conseguiria mais andar. Bem humorada, Maria conta com maturidade sobre sua doença, suas limitações e sofrimentos. Confessa que, além dos remédios para dor, também mantém um tratamento com antidepressivos. Não faz terapia, pois teria dificuldade para chegar às sessões. Para vencer a depressão, Maria é taxativa: “Vivo um dia de cada vez. O amanhã eu não sei, só o hoje, um dia de cada vez”, diz decidida. A grande transformação aconteceu quando, nos últimos dois anos, Maria precisou abandonar quase todas as atividades que realizava pela dificuldade de locomoção. A partir desse momento, sua filha Alessandra precisou assumir todas as tarefas. Maria deixa tudo minuciosamente anotado, o que Alessandra deve comprar, quanto custa, o troco e o saldo que ficará na conta. Essa foi a forma que Maria encontrou para se manter ativa e participativa nas ações diárias. A mãe de Alessandra toma mais de dez remédios, só para dor são nove por dia. Aposentada por invalidez desde 2004, Maria gasta R$ 500,00 com remédios, dos R$ 1.400,00 que recebe. Segundo Maria, o grande problema são as crises que a levam ao sofrimento extremo e necessidade de chamar o atendimento móvel de saúde. Por morar em um bairro afastado, muitas vezes espera durante uma hora ou mais por atendimento. Ela não esconde o sonho de encontrar um tratamento e conseguir um dia voltar a andar normalmente, para realizar trabalho voluntário com crianças, nas escolas do bairro que mora há 32 anos. Maria desistiu de consultas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pois cada consulta leva um ano para acontecer. Quando questionada sobre possíveis pesquisas para novos tratamentos, os olhos dela brilham e a esperança é nítida. Maria recebe visitas. Os mensageiros da esperança, do Centro Espírita, lhe dão passe e fazem preces. O cabeleireiro também faz o corte de cabelo de Maria em casa. Mesmo com as visitas, Maria sente-se presa “Eu vivo numa prisão, imagina uma pessoa que sempre estava saindo, ativa, que ia ao shopping, agora não pode nem ir à farmácia comprar um remédio”, diz frustrada. Ao final da entrevista, quando todas as fotos já haviam sido registradas e o gravador desligado, Maria pediu para acompanhá-la até o quarto, pois estava sentindo dores por ficar sentada no sofá da sala. Ela se acomodou na cama e, depois de um momento de silêncio, desabafou: “Coisas pequenas, que antes tinham um grande significado, hoje não fazem a menor falta. Percebi que a companhia é algo tão simples e extremamente importante na vida, me sinto muitas vezes sozinha”, diz emocionada, enxugando algumas lágrimas que insistem em aparecer. Na despedida, Maria nos levou até o portão, cumprimentou alguns vizinhos que passaram pela rua e nos convidou diversas vezes para visitá-la novamente. Ao sairmos, enxergamos Maria voltando vagarosamente, com auxílio da bengala, para dentro de casa, sozinha.

impressões de

repórter

A história da Maria surgiu de maneira inusitada, durante uma das noites em que eu voltava da Unisinos, enquanto comentava sobre o tema da revista com duas colegas que voltam comigo. Uma delas, a Alessandra, contoume a história de sua mãe. Assim que ela contou a história, logo percebi que devia saber mais sobre a mãe dela e a luta constante para sobreviver. Alessandra começou a contar os detalhes e notei que a história de Maria se encaixava exatamente no verbo resetar, pois, de certa forma, ela está sempre reiniciando, recomeçando. Devido às várias enfermidades que sofreu, para continuar a viver, ela precisa ter muita fé e força de vontade para não deixar se abater pela tristeza e pelas limitações que precisa conviver diariamente. O que mais nos chamou atenção foi a solidão e tristeza profunda que vimos na mãe de Alessandra. Por mais forte e alegre que possa parecer, não foi difícil perceber o fardo que ela carrega e, principalmente, o quanto se sente sozinha. Não é fácil, como a própria Maria disse durante a entrevista. Porém, é a realidade dela, que precisa viver da melhor forma possível, procurando encontrar força e esperança nos pequenos e raros momentos de prazer que consegue ter.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 113


salvar ANDIONARA BOARO

no mundo real

n Maria é viúva há

32 anos e cria diversos tipos de animais, que lhe fazem companhia

114 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


Paixão animal

Maria, Isabel e Marta compartilham experiências semelhantes de amor e fidelidade com seus mascotes Por Simone Ludwig. Fotos de Andionara Boaro e Angélica Pinheiro

C

om passos lentos, Maria Fragoso, de 77 anos, caminha em direção aos fundos da sua casa, localizada no interior de Feliz, no Rio Grande do Sul. Ao chegar ao espaçoso local, seus olhos são guiados e sua visão acaba atingindo um ângulo de 180 graus, suficiente para enxergar seus bens mais preciosos: os animais. Seu quintal é habitado por um casal de araras, um faisão, um papagaio muito conversador e diversas outras espécies de pássaros, um mais exótico do que o outro. “Eu amo cada um deles. Tenho meus bichinhos para passar o tempo. Desde pequena, adoro e tenho fascinação por animais”, relata. Não é de hoje que estudos relatam o quanto a presença de um animal de estimação faz bem para o ser humano. De acordo com o psicólogo e mestre em Psicologia Clínica Rodrigo Souza, esse contato pode se mostrar importante de diferentes formas. “Um animal ajuda a estabelecer a capacidade de empatia pelo outro. Muitas pessoas

têm dificuldade no campo afetivo, mas podem aprender a desenvolver esta habilidade com a presença de um animalzinho em sua vida”, ressalta. Para o psicólogo, um bicho proporciona uma troca de afetos baseada única e exclusivamente na confiança, sem a espera de alguma coisa em troca. “Nas diversas relações que estabelecemos ao longo da vida, muitas vezes temos grandes frustrações e tristezas. O animal possibilita um tipo de relação que pode ser laboratório para a convivência social, baseado na confiança, na parceria, no afeto sem interesse, coisa que tem sido uma busca incessante das pessoas”, esclarece. Outro ponto é a grande contribuição que eles podem ter na vida de pessoas que tiveram perdas. “O animal não substitui a pessoa que se foi, mas ajuda na transição do luto, com uma companhia por vezes silenciosa, mas permeada de muito afeto e simplicidade”, acrescenta.

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 115


FOTOS ANGÉLICA PINHEIRO

n Marta (a esquerda)

resgata cachorros de rua e ajudou a salvar Mel, a poodle de Isabel

A relação homem-animal vai muito além de uma boa companhia, e pode se tornar um dos melhores remédios contra muitas doenças e, principalmente, contra a solidão. É o caso de Maria, que nunca mais se sentiu sozinha depois da chegada dos animais. Viúva há 32 anos e sem filhos, Maria fica com os olhos brilhando quando fala de seus amados companheiros. Para ela, os bichanos são seus filhos, e todos juntos formam uma linda família. “Todos os dias pela manhã, eu troco a água, dou comida e limpo a gaiola de cada um deles. Não sossego enquanto não dou comida para todos. Eles são minha prioridade, só depois eu tomo café”, descreve. Todo carinho transmitido para eles é retribuído com muito amor. “As araras até falam comigo. Quando fecho as portas, elas dizem tchau e me chamam de mamãe. E o melhor é que elas cantam pelos cotovelos a canção: ‘Atirei o pau no gato’ ”, relata entusiasmada. “Quando eles cantam, eu fico doida. Abro a porta de casa só para ouvir eles cantarem. É muito lindo e me traz uma paz de espírito”, admite. Maria conta com orgulho o quanto os animais são dotados de “inteligência”. “A coisa mais bonita é ver os pássaros tomando banho. Uma vez por 116 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

semana, todos precisam tomar, para tirar o estresse. Coloco um pote de água dentro de cada viveiro e eles vão se lavando aos pouquinhos. Tem alguns que não gostam muito, mas acabam indo”, explica. “As araras também são muito inteligentes. São elas que precisam abrir a casca da banana. Se eu descascar, elas simplesmente não comem. Já as bergamotas, eu corto no meio e elas espremem com as patinhas e tomam o suco”, acrescenta a mãe coruja. Os bichos também são dotados de sentimentos que são comuns entre as pessoas. “As araras, por exemplo, brigam entre elas quando sentem ciúmes de mim. Eu tenho paixão por eles”, ressalta. Para completar a coleção de felicidade, tem também os cavalos, que são o xodó de Maria. “O carinho deles é tão sincero, é verdadeiro”, revela. Maria enche os olhos de lágrimas ao contar da égua que foi recentemente mamãe. MEL ESTÁ SALVA Foi por pouco que Isabel Cristina dos Reis, de 41 anos, não perdeu sua amada poodle, de 5 anos. Mel, tão doce quanto o nome, começou a ficar doente em junho. Desde então, não se alimentava mais e, apesar dos medicamentos, seu quadro de saúde só piorava.

No hospital veterinário, onde permaneceu internada por cinco dias, o veredicto era de que iria morrer. Muito triste, Isabel contou a história para Marta Ferreira, uma vizinha que abriga 40 cães em sua residência. Ela aconselhou a trazer o quanto antes a cadelinha para casa. “Ela estava com insuficiência renal crônica e, segundo os veterinários, se eu levasse a Mel para casa, dentro de dois dias ela iria morrer. Mesmo com poucas esperanças, eu a trouxe de volta. Com a ajuda da Marta, nós compramos todos os medicamentos e ela começou o tratamento”, conta Isabel emocionada. A partir de então, Mel começou a ser medicada, recebeu soro, água e comida através de seringas. Para a surpresa de todos, aos poucos foi apresentando sinais de melhora. “A gente não conseguia pensar em outra coisa. Parece que os olhinhos dela pediam ajuda para não a deixar morrer. Nós estávamos desesperados. O meu filho chegava a soluçar de tanto chorar”, relata. Pela casa, Isabel mostra os vestígios deixados pelos cuidados especiais dedicados a Mel, como soros pendurados em vários lugares. “Se fôssemos pela orientação do veterinário, hoje ela poderia não estar mais conosco. No primeiro momento de dificuldade, os veterinários já disseram que não tinha mais


o que fazer”, relata indignada. Sempre carinhosa, Mel ainda tem um olhar pidão. O amor entre Isabel e a cadelinha é visível. “Melzinha, cadê a mamãe, minha princesa?”, chama a mãe coruja em direção a poodle, que corresponde prontamente. Caminhando no final da tarde de sábado, depois de buscar Mel no Pet Shop, os passos de Isabel eram alegres. Mel ainda tem muitas histórias e travessuras para viver. AMOR INCONDICIONAL Cabelo amarrado, camisa azul, calça rosa e bota emborrachada, foi assim que Marta Ferreira, 57 anos, a vizinha de Isabel, abriu o portão de sua casa no sábado. Não foi preciso entrar para notar a presença de um grande número de moradores no local. Muito simpáticos, fizeram questão de cumprimentar com uma grande sinfonia, com diferentes arranjos e vocais. “Isso acontece toda vez que chegam pessoas aqui. Todos começam a latir juntos. Eu vou lá, e só bato no vidro e eles param. Existe um respeito mútuo entre nós”, conta Marta, que abriga 40 cães em sua residência. Marrons, pretos e também de pelugem branquinha, alguns são mais gordos, outros mais magrinhos. Cada um tem sua história de vida e carrega cicatrizes deixadas por maus tratos. Mesmo sendo tão diferentes fisicamente, todos têm uma coisa em comum: foram encontrados na rua. Os olhos de ternura dos bichanos quando enxergam Marta são indescritíveis. São animais dóceis, com uma quantidade de carinho que chega a transbordar em cada movimento. Ela não esconde a sua paixão. Embora todas as dificuldades financeiras que têm para mantê-los, não há um dia que não seja amorosa. Ao entrar pelo portão, é possível notar os três canis improvisados no pátio. Dois no lado direito e um no esquerdo. Mas não é só o pátio da frente que acomoda os cães. Os fundos da casa também abrigam os bichinhos. E para não deixar ninguém sem teto, Marta fez ao lado de sua residência, na parte de fora da cerca, um verdadeiro cafofo, com

plásticos e caixas de papelão. “Aqui dormem três cães muito bem acomodados. É quentinho, e em dias de chuva eles não se molham”, mostra, apontando para todos os detalhes. Já faz 18 anos que Marta, juntamente com a sua irmã Susana, resgata cães, trabalho iniciado pelo pai. Elas acolhem animais abandonados e doentes e os tratam até ficarem bem. Depois são feitas tentativas de adoção, porém é complicado achar um lar para os bichanos. “Geralmente as pessoas procuram animais de pequeno porte e recém nascidos, mas, mesmo assim, nunca deixo de prestar socorro”, diz. Os gastos para manter os animais são elevados. “Eu me deprimo às vezes, porque é muito serviço. Sem falar que as doações são praticamente nulas. Gastamos mensalmente 430kg de ração e 150kg de arroz para cachorro. Fora a luz e água que dá mais de R$300, pois preciso lavar os canis todos os dias”, conta. Fora o custo com alimentação, também tem o veterinário que precisa ser pago. A situação impossibilita Marta de trabalhar, já que passa o dia em função dos animais. Por isso, quem arca com as dispensas é Susana que é vitrinista.

salvar

no mundo virtual

Gravar um arquivo em disco para preservá-lo; conservar intacto, fazer com que algo não desapareça; registrar dados num suporte; gravar e guardar; reservar alguma coisa para uso posterior; defender; conservar; tirar ou livrar do perigo da perda.

impressões de

repórter

O jornalismo é fascinante pela capacidade que tem de nos surpreender todos os dias. O repórter vai até uma fonte para uma pauta e muitas vezes se depara com uma muito melhor. Foi assim que conheci Maria. Em busca de um case de uma idosa vaidosa, cheguei até ela e encontrei muito mais do que uma senhora que cuida de si, mas sim alguém que zela por um quintal repleto de animais. Quando surgiu o tema da Primeira Impressão, logo me veio em mente ela, uma pessoa sem filhos e que encontrou nos animais um motivo a mais para viver: o antídoto contra solidão. Foi uma experiência incrível, que me cativou desde o primeiro momento que entrei no portão de sua casa. E sabe quando uma pauta faz você ter esperança na humanidade? Foi assim que me senti quando conheci Marta. Ela escolheu viver para os 40 cães que acolhe em sua casa. Para mim, passa longe de ser um case corriqueiro, pois não conheço ninguém que divida seu espaço com tantos animais. E como a vida é cheia de surpresas, saindo da casa de Marta, encontrei Isabel, alguém que lutou com unhas e dentes pela vida de sua poodle.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 117


scanear no mundo real

118 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


O baile das ruas físicas e virtuais Manifestações políticas foram articuladas nas ruas e nas redes sociais Por Marcos Reche Avila. Fotos de Luis Felipe Matos

O

s smartphones e as redes sociais modificaram as formas de comunicação interpessoal e a disseminação de informação em massa. Por sua vez, essas tecnologias influenciaram no cenário físico e virtual dos protestos de rua de 2013. O professor de sociologia Carlos Gadea, em entrevista, explica como vê a relação entre os fenômenos. Propõe, também, uma tese sobre a motivação das massificações. PRIMEIRA IMPRESSÃO – Como você enxerga a relação das redes sociais com as manifestações de junho? CARLOS GADEA – As redes e as novas tecnologias da comunicação foram centrais. Isto é algo que vai determinar muito o novo comportamento político. Fica cada vez mais visível que a população jovem está utilizando maciçamente este tipo de comunicação. Aqui, um tempo atrás, houve a questão de Porto Alegre com o Tatu Bola. Então, houve pequenos ensaios de mobilizações através da rede propriamente. Foram gerando, se somando a outros descontentamentos em outros lugares do Brasil. Mobilizações maciças, de grande população, de milhares e milhares que ocuparam as ruas. Chega-

ram até a Brasília, o lugar onde está o poder executivo. Eu manejo uma tese da carência da república. O Brasil é um país que, embora seja uma república, não tem uma cultura política adequada ao que seria uma verdadeira república. República vem da coisa pública. No Brasil ainda permanecem muitos vestígios do império. Muitos privilégios públicos da ordem imperial. Hierarquizações, culturas de classes muito sólidas, racismo, discriminações: por pobreza, por cor, sexo, região onde você mora, lugar de onde vem, lugar onde você nasceu. PI – Como você caracteriza a juventude de hoje? GADEA – Esta população é de uma juventude que foi, de certa forma, educada com outros critéPrimeira Impressão n Dezembro de 2013 n 119


rios. É uma juventude globalizada. Uma juventude com muita informação do Exterior. Conhecem outras realidades. Convivem com outras pessoas. É uma juventude muito mais aberta de cabeça. Isto possibilita também a abertura para novas formas de ver o mundo e o aspecto da condição política. Isto é positivo. Porque surgem coisas como estas manifestações por temas que parecem menores, mas que não são. A apropriação de espaço público. O dinheiro mal gasto, por exemplo, para a Copa do Mundo ou para as Olimpíadas. Você junta tudo isto e vai gerando uma espécie de grande descontentamento que não tem uma forma canalizada, uma forma política concreta. Não se canaliza num movimento social concreto, num movimento político concreto. São pessoas que não aspiram chegar ao poder. Não aspiram mais que a própria ação do descontentamento. Esta é a grande chave para poder entender este tipo de movimento. PI – E, na sua opinião, qual o futuro do movimento? GADEA – Não se pode perguntar aonde vai este tipo de movimento, porque o ir é justamente o fato de estar presente. A lógica clássica de se ver sempre os movimentos sociais é pensar como uma questão meio teleológica. Teleos, o fim, o último. Temos que fazer outra análise, outra relação. A forma de expressão não 120 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

scanear no mundo virtual

Percorrer com um scanner ou digitalizar alguma coisa usando um scanner. Em alguns contextos, a palavra scanear também pode significar vasculhar ou averiguar.

se disciplina mais dentro de movimentos sociais, sindicatos ou partidos políticos. São indisciplinados. PI – E os grupos que surgiram, como o Movimento Passe Livre e o Black Bloc? GADEA – Você tem um esvaziamento dos espaços da sociedade civil que são próprios do protesto, que são próprios das reivindicações. Estes espaços ficaram um pouco vazios, na medida em que muitos atores que antes ocupavam estes espaços passaram a fazer parte dos governos municipais, estaduais. Foram atores que, de certa forma, os maquinários do Estado foram absorvendo. É uma lógica natural. Estes espaços estão sendo preenchidos por novos atores e atores de diversas índoles. Suas linguagens são diversas. Você tem o Mo-

vimento Passe Livre, o Black Bloc. Tem movimentos sociais clássicos, como movimentos indígenas, movimentos de jovens estudantes. Você pode ocupar estes espaços, porque estão aí, de certa forma, bastante livres na sua semântica. Estão esvaziados de um discurso político social concreto. Refiro-me a um discurso político de diagnósticos da realidade e de propor alternativas. O Black Bloc também está ocupando esta parcela deste cenário fragmentado da sociedade, sob algo muito interessante que é o uso da violência. Não temos que entender a violência como desvio. A violência é uma linguagem no sentido de querer dizer alguma coisa. É também uma discursividade. Não é um projeto político. Atacam determinados símbolos, supostamente o capitalismo e o estado democrático de direito. Por considerá-los arbitrários, autoritários. Então, você tem uma reação que, a partir do uso da violência, está dizendo alguma coisa. Porque os espaços onde você poderia dizer algo já foram, digamos, colonizados por alguns atores. PI – E o Movimento Passe Livre é diferente? GADEA – No Movimento Passe Livre e nos outros a violência é sempre um elemento que está presente. É uma forma também de construir o antagônico. O “contra quem estou”.


Operação Sete de Setembro

impressões de

repórter

Gadea coordena o curso de sociologia da Unisinos, por isto sua eleição como fonte oficial. O interessante é que o sociólogo veio ao encontro, coincidentemente, com o que eu via como lacunas deixadas pelos jornalistas, e seus respectivos chefes, ao trabalharem as manifestações como fato. A complexidade das expressões humanas é muito grande. Um exemplo são os cartazes com eventuais brincadeiras que foram desmerecidos e julgados sem valornotícia. “Corta pra mim!”, estava escrito em um deles. Existem aspectos culturais aí. Se coisas simples são ignoradas por alguém legitimado a ser mediador, coisas como a estratégia Black Bloc, em seu alto nível de complexidade, nunca serão entendidas. Se não são ouvidos, não existem. Violência, depredação e incêndio não precisam ser “ouvidos”, porque são visuais. O fato mal interpretado não é um fato, é um conto. Minha principal impressão é que a imprensa, em geral, brinca de fazer jornalismo.”

No final do mês de junho, o grupo ativista “Anonymous” agendou um evento, via Facebook, intitulado “Operação Sete de Setembro”. Quando chegou o dia, o fotógrafo Felipe Matos e eu acompanhamos os acontecimentos em Porto Alegre. Sindicalistas e integrantes de movimentos sociais saíram da Prefeitura e foram para a Praça dos Açorianos. O tradicional desfile militar de 7 de setembro iniciou na Avenida Loureiro da Silva, em frente a praça, e terminou próximo a avenida João Pessoa, onde outros movimentos sociais e o Black Bloc estavam. Quem desfilou não veio de encontro aos manifestantes. Entre eles, havia a cavalaria da Brigada Militar e a polícia do Exército Brasileiro. Os manifestantes confrontaram a polícia com palavras de protesto. O Black Bloc enfrentou a polícia teatralmente na “Esquina Democrática”. Os integrantes do bloco subiram o arco da estação Mercado da Trensurb, picharam paredes de prédios e seguiram até o parque Farroupilha, conhecido como Redenção. Negociaram com militares para ocupar uma barraca militar e chamaram as pessoas para ouvirem e debaterem sobre suas ideologias e propostas. Em sua maioria, são jovens, muitos ainda adolescentes. Suas ideologias variam entre o Punk e o Anarquismo. A maioria das pichações é de mensagens, como: “Poder ao povo” e “RBS mente”. Dois integrantes do Black Bloc aceitaram dar depoimentos, sob o uso de pseudônimo, e outro teve apenas seu sobrenome publicado. M. Jost fala que a organização é “involuntária”. Os eventos são marcados no Facebook e às pessoas os divulgam. “O povo nunca teve tanta liberdade de informação como está tendo hoje em dia. Não só para se reunir, mas para saber a verdade”, acredita Jost, se referindo primeiramente à circulação de informações nas redes sociais e contrariando as informações das empresas midiáticas, que considera manipuladoras. Jost é contra a depredação, por causa do uso que a imprensa faz dos atos. Caco, por exemplo, é contra depredação de pequenos comércios. Porém, Pantera acredita que é necessário depredar qualquer estabelecimento que represente o funcionamento do capitalismo, sem distinção. “Primeiramente, a gente deveria passar a nossa ideologia. É dali que sai o sentido”, fala Pantera sobre as depredações. Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 121


stalkear no mundo real

EspiĂľes da vida 122 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


MARIANA STAUDT

O ofício daqueles que revelam os segredos mais íntimos Por Luísa Venter. Fotos de Gabriela Giralt e Mariana Staudt

N

n Adultério é a especialidade do casal de detetives Sílvia e Leandro

alheia

em Sherlock Holmes, nem Hercule Poirot. A inspiração do detetive Ábacus foi Robert Baden-Powell, militar inglês fundador do escotismo. Ainda garoto, quando conheceu a história do ídolo, decidiu o que faria da vida: iria seguir os passos de Baden-Powell. E seguiu. Foi escoteiro, militar, se dedicou a barcos à vela e à investigação. “Fiz tudo o que ele fez, do meu jeito”, conta o detetive particular de 53 anos, que atua há mais de 30 no ofício. Com um escritório próprio em Porto Alegre desde 1985, Ábacus atua em todas as áreas: criminal, médica, empresarial, familiar, fraudes bancárias e seguros. Na era digital, parece fácil seguir os passos de uma pessoa, mas levantar um passado obscuro, ou desvendar mistérios fora da internet, não é para todos. Mais do que câmeras microscópicas, escutas e aparelhos de GPS, é preciso saber investigar. A última estimativa é de que até 2012 existiam mais de 60 mil detetives particulares no Brasil. Os cursos são rápidos, o lucro é certo e as possibilidades são muitas. De adultérios a homicídios, são diversos os casos que passam pela vida de um profissional da espionagem. Mas a maioria das pessoas que procura um detetive quer mesmo é uma investigação conjugal. E o adultério é a especialidade do casal de detetives Leandro e Sílvia, à frente do escritório Detetive Bella. O personagem feminino escolhido para o nome do escritório chama a atenção de um público exigente e desconfiado, as mulheres. Sílvia explica que muitas vezes elas querem uma voz feminina do outro lado da linha, pois se sentem mais seguras. Mas o casal trabalha junto. Começaram em 2005, depois que Leandro, ex-policial, fez um curso de detetive e adquiriu experiência trabalhando para outro profissional da área. “Sempre gostei

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de investigações, percebi um mercado pouco explorado e resolvi me aventurar”, conta Leandro. Aparatos tecnológicos, como câmera, GPS, gravador e microfone, são sempre bem-vindos, mas se engana quem acha que são essenciais. Para os detetives, é uma unanimidade: nada substitui a presença do profissional na investigação. Ábacus tem na obstinação seu bem mais valioso. Segundo ele, não há passado distante o suficiente que não possa ser descoberto. “Todo mundo deixa um rastro”, garante. Para montar o dossiê de um investigado, conversas com conhecidos são um ótimo começo. O morador da outra ponta da rua sempre tem o que falar, e as perguntas certas podem render informações importantes. Saber ouvir é imprescindível, e o detetive nunca pode deixar a ânsia por descobrir os fatos atrapalhar a investigação. Com calma, palavra por palavra, a verdade vai saindo. “Basta perguntar, as pessoas falam tudo o que você quer saber e mais um pouco”, diz Ábacus. Quando se trata de investigação empresarial, muita paciência também é necessária. O serviço é contratado quando há uma desconfiança: desvio de mercadoria, de dinheiro, sabotagem e até espionagem por concorrentes. Por vezes, para saber tudo o que ocorre dentro de uma empresa, é preciso olhar de perto. Para conseguir a confiança das fontes que irão revelar os segredos, é necessário um agente infiltrado, que trabalha normalmente durante meses até obter as respostas de quem mais interessa. Ábacus revela que já colocou detetives por três meses em empresas para revelar manobras ilegais. GRATIFICAÇÃO Este mundo de pesquisa, de espionar a vida alheia, não agradou Sílvia logo de cara. No começo da carreira do marido, foi contra o trabalho. Mas foi acompanhando uma investigação com Leandro que a vontade de ser detetive despertou. O caso em questão era de uma mulher que maltratava a filha de um primeiro casamento, queria sua guarda apenas para garantir a pensão generosa que ganhava do ex-marido. 124 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

O casal de detetives colheu as provas necessárias e entregou ao juiz, que reviu o caso e passou a guarda para o pai. “Solucionar o problema de uma pessoa, acabar com um sofrimento, é gratificante”, afirma Sílvia, emocionada. Muitas histórias de vida, problemas e emoções passam por esses profissionais. Ábacus garante: já viu de tudo e se arrepende de muito pouco. “Sou contratado para descobrir a verdade, que sempre acaba por beneficiar uns e prejudicar outros”, explica. O detetive gaúcho se diz um dos únicos a trabalhar em casos criminais. Em um dos mais importantes de sua carreira, desvendou o homicídio de uma senhora em Porto Alegre. O serviço começou como uma investigação de desaparecimento em 2002. Colocou 14 detetives na rua para procurar a senhora que havia sumido havia um mês. Passados alguns dias, percebeu que o caso se tratava de um crime. Dez dias depois, uma notícia de última hora parou as máquinas da impressão de um jornal da capital. A manchete da capa mudou: “Detetive particular resolve crime: sobrinho matou tia”. Ábacus encontrou o corpo e conseguiu a confissão do assassino. Depois de brigar sobre uma dívida, o rapaz afogou a senhora na piscina do seu condomínio, a escondeu em um armário e levou o corpo para fora da cidade durante a noite. Para os detetives, quando algo é escondido, boa coisa não é, e merece ser revelada. “Quem está fazendo algo errado fica mais desconfiado, se cuida mais”, explica Leandro. Por isso, todo cuidado é pouco quando se está perseguindo o investigado. A reação de quem percebe que está sendo espionado pode não ser das melhores. Na carreira de investigações do escritório Detetive Bella, estão momentos tensos, abordagens policiais, idas forçadas à delegacia, enfrentamento de seguranças particulares e investigados que passam a perseguir os detetives. Quando se trata de flagrante de infidelidade, as reações são diversas. “Há quem queira ir junto pegar o companheiro com outra pessoa, ver com os próprios olhos, mas a maioria não tem coragem de abordar o cônjuge”, conta

stalkear no mundo virtual

Vigilância exacerbada que uma pessoa faz a outra, com monitoramento constante de suas redes sociais, de tudo o que ela faz ou fala online. É uma perseguição cibernética, uma obsessão.

Sílvia. Porém, em alguns casos, o casal se enfrenta, e a situação fica complicada. Em um trabalho da Detetive Bella, a contratante queria confirmar o adultério do marido, um policial da brigada militar, e acompanhou a perseguição. Quando chegaram no apartamento da amante, a esposa esperou o cônjuge descer e, assim que pôs as mãos nele, começou a agredí-lo. Depois de muito apanhar, o homem conseguiu fugir até o carro, com a mulher atrás dele. “Em um certo ponto, tivemos de interferir, pois, para ir embora, o marido poderia ser capaz de revidar as agressões”, relata Leandro. O casamento acabou, mas a mulher traída teve o que queria, e saiu de alma lavada. A promessa de uma vida emocionante, de caçadores da verdade, intriga as pessoas há séculos. Grandes espiões estão presentes nos livros, filmes, histórias em quadrinhos, desenhos animados, séries e telenovelas. Mas o ofício requer muita discrição e uma entrega total da profissão. Para quem escolhe ser um espião, não há glamour nem reconhecimento. O bom detetive vive nas sombras, recorre a disfarces e dificilmente colhe os louros da fama. O nome Ábacus claro que não é real. Veio da ferramenta milenar utilizada para cálculos desde a época da mesopotâmia. A vida pessoal do detetive, assim como seu nome, permanecem um mistério, que ele e seus colegas de profissão fazem questão de manter vivo. Da intimidade do casal por traz da Detetive Bella, um único detalhe: o CPF de Sílvia inicia com o número 007, parece que a carreira na investigação já estava predestinada.


MARIANA STAUDT

n O detetive Ábacus

desvendou um crime, e sua descoberta fez o jornal mudar a manchete de capa

impressões de

repórter

Nunca imaginei que seria tão difícil falar com detetives particulares. Sempre muito atarefados e desconfiados, não tinham tempo para me receber. Quando me recebiam, era em lugares públicos e raramente se deixavam fotografar.

Mesmo quando ligava no telefone principal de uma grande empresa de investigação, a resposta para a pergunta “com quem eu falo?” era sempre “com quem quer falar?”. Entre os casos curiosos, está o de uma detetive especializada em adultério, que cancelou

as entrevistas por estar com problemas no relacionamento. Ela descobriu uma traição por parte de sua companheira (e me contou isso!). Ao final, consegui personagens interessantes e que concordaram em falar sobre o mundo misterioso das investigações.”

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 125


trollar no mundo real

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Milionário por um dia A história de Jair Quadro e outros 35 apostadores que ganharam, mas não levaram o prêmio da Mega-Sena Por Augusto Turcato . Fotos de Cristina Link

M

aria Eduarda se esforça para não errar nenhuma parte da música. São só três anos de idade, mas ela gosta de cantar Claudinho e Bochecha. “Avião sem asa, fogueira sem brasa, sou eu assim sem você.” O esforço é aplaudido pela mãe e pelo pai, Jadir de Quadros, 42 anos, motorista, que enche os olhos de gosto pela caçula. Duda nasceu em meio a uma história que até hoje não

teve fim, mas que Jadir está lutando para que tenha, e de forma feliz para a família que ainda tem mais dois membros: Bernardo, de sete anos, e Carolina, 19, filhos da sua irmã que morreu há alguns anos de câncer de mama. Jadir os adotou por assim dizer. Adotou não só eles, mas também os outros 34 ganhadores “trollados” no bolão da Mega-Sena que não foi registrado em 2010. As seis dezenas, 28, 40, 41, 51 e 58,

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n Jair diz que

tem 100% de esperança de ainda ganhar o prêmio

que poderiam mudar a vida da pequena Duda, são motivo de dor de cabeça e de esperança para um futuro melhor. É nisso que Jadir crê: “Tenho 100% de esperança. Eu vou ganhar”. Motorista, sem horário fixo para trabalhar – ora de madrugada, ora no raiar do dia – Jadir resolveu fazer uma nova aposta em um bolão oferecido pela lotérica Esquina da Sorte, em Novo Hamburgo. Ele fazia isso todo mês quando ia pagar as contas da floricultura que mantinha onde hoje é sua residência. O estabelecimento, que fora vendido dias antes da fatídica aposta, era cliente do local que mudaria a sua vida para sempre. “Minha sócia me ligou perguntando quantos números eu tinha que acertar. Ela conferiu e disse que acertamos. Aguentei aquela noite toda, quieto, matei no peito e segunda-feira estava aqui”, conta. Jadir estava rico. Havia mudado de patamar. Sua cabeça não parava quieta. Quantos sonhos, quantas possibilidades 128 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

a fatia de R$ 1,35 milhão do total de R$ 53 milhões poderia render. Que futuro promissor o aguardava? “Ih, e já vieram os planos na hora. Fiquei pensando quanto custava para reformar a casa das minhas filhas, a minha casa, ampliar minha frota.” Porém, o destino não seria esse. “Isso foi no domingo. Segunda-feira, quando abro o jornal, vi meu próprio bolão estampado na página e o aviso que houve erro de digitação, e o jogo não valia.” A queda foi dura. A tristeza e a incredulidade tiveram seus momentos de vitória. Apesar desse fato, ele se dirigiu até a lotérica para reivindicar o seu prêmio. E ouviu da boca do proprietário do estabelecimento, José Paulo Abend, que o valor não poderia ser-lhe pago. Naquele mesmo dia, a Caixa Econômica Federal fechou o local onde, hoje, funciona uma loja de doces. “Não tive dúvidas. Naquele mesmo momento liguei para o advogado.”

E a história se prolonga. Jadir tomou à frente da situação. Não que ele tenha adotado os outros apostadores. Na verdade, foi ao contrário. Ele foi escolhido como uma espécie de pai, ou então líder daqueles que reivindicam na justiça a fatia do prêmio sorteado naquele bolão que nunca foi registrado na Caixa. A SAGA, O ARGUMENTO E O COMBUSTÍVEL “Aquele bolão nunca existiu, assim como todos os outros que participei.” Jadir e outros 14 integrantes do grupo – os demais optaram por não participar do processo, ou então tentar individualmente o prêmio – estão processando a lotérica Esquina da Sorte e também a Caixa Econômica Federal. “Foi azar deles e sorte nossa que saiu o prêmio total”. Eles [lotérica] pegavam o nosso telefone e nosso nome, com aquele papel que não valia nada. E


pensava que antes de sair eles me ligavam. Só saíam os prêmios baixos, e aí eles bancavam”. Ele fala sobre algo maior. Uma espécie de esquema de bolões que nunca são registrados pelas lotéricas na Caixa. O valor de R$ 11 reais que ele pagou naquele dia 20 de fevereiro, mais o de tantos outros esperançosos apostadores, teria ficado integralmente para a Esquina da Sorte. “Tanto que nem temos nada contra a menina [caixa da lotérica]”, fala, sobre Diane da Silva, que faz parte do processo, acusada de estelionato e que, segundo ele, passa por depressão e uma forte pressão perante o quadro atual. “A partir daquela dia, a Caixa começou a espalhar cartazes para proteger o seu jogo”, emenda. O telefone toca uma, duas, três vezes. “Pode atender, seu Jadir.” Era um cliente. Precisava de um táxi no dia seguinte em frente ao seu apartamento. “Pontualmente às 16h ele estará lá. Pode ficar tranquilo.” Jadir finaliza a ligação, pensa por um momento onde a conversa havia parado. “Não posso parar nunca”, diz. Pois é justamente aquele que não pode parar quem está cumprindo com o seu lema. Ele não para de lutar pelo que entende que é de direito seu. Tanto que neste momento o processo encontra-se no Superior Tribunal Federal, após perder todas as instâncias na justiça gaúcha. A tendência é que o caso seja julgado somente no começo de 2014. “Teve processos perdidos porque teve gente que queria R$ 5 milhões de indenização. Nós queremos R$ 1,35 milhão para cada um. Hoje, com correção, está R$1,5 milhão. Queremos só o que ganhamos por direito”, explica. Mas a luta para primeiro liderar o grupo de apostadores e depois seguir em frente pela batalha junto de três advogados ganhou um empurrão importante, ainda em 2010. Na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, perante engravatados, rostos estranhos, ele teve um espaço de 20 minutos para falar sobre o seu caso. “Rapaz, eu não sabia o que dizer”, lembra, com a sinceridade que pode ser notada ao longo de toda a entre-

vista. “E antes de descer do púlpito eu fui aplaudido”, completa, orgulhoso. “Comecei pedindo desculpas para eles. Depois, nenhuma pergunta foi feita. Só me ouviram. E sabe como é, né? Lá geralmente não te ouvem, ficam se abraçando, se despedido. E eu fui aplaudido”, lembra. “A partir dali eu pensei que ninguém mais ia me segurar”, emenda. De fato, o combustível que ele precisava. DEBOCHES, PACIÊNCIA E FÉ NO FUTURO “E aí, milionário! Ô, milionário, como tu me compra (sic) um bilhete que não vale, homem?”. Essa é uma das frases que Jadir escuta nas ruas e lembra a toda hora. Ouve aos gritos. De alguém do outro lado da rua que reverbera àqueles que transitam pelo local. Esses acontecimentos o incomodam, não esconde. Mas Jadir tenta escapar de um jeito ou de outro. “Eu retruco: ‘calma, eles ainda estão contando’”, diz e faz uma pausa silenciosa. Alguma lembrança parece vir à mente, e Jadir para de falar por alguns segundos. Olha fixamente para uma das tantas reportagens feitas sobre o seu caso. Folheia um caderno com recortes de jornais e revistas. Parece não procurar nenhuma em especial, mas para os olhos e aponta. É uma reportagem da revista Veja. “Está vendo essa aqui? O cara me arrebentou. Entrou na minha vida. Com a passageira do meu lado, ele atrás e me perguntou coisas que ninguém nunca perguntou. Desde que acordei, com quem eu falei, o que eu comi.” A estranheza causada logo foi desfeita. “Isso me incomodou e eu perguntei: ‘Mas por quê tem que saber tudo isso?’ E ele disse que quando a pessoa começar a ler as duas primeira linhas ela vai te enxergar.” E o que pode se enxergar, logo ao lado da mesa onde a entrevista estava sendo feita, foi a pequena Duda, novamente na sala já no fim da conversa. Com seu vestido floreado, apontou para uma foto do seu batizado. Tímida, espremida no canto da parede, diz. “Olha o papai careca”

trollar

no mundo virtual

Zoar, chatear, tirar o sarro.

impressões de

repórter

Jadir de Quadros teria 1,35 milhão de motivos para não sorrir, fechar a cara, evitar o assunto e ficar desgostoso sobre perguntas acerca do prêmio da loteria que ele acabou não recebendo. Mas o que eu pude ver foi um homem de bem com a vida, trabalhador e muito compenetrado no que faz. Tanto é verdade que a entrevista marcada para às 17h, daquele 13 de setembro, iniciou com 40 minutos. Seu Jadir, taxista, havia recebido o chamado de um cliente, realizou a corrida e chegou para a entrevista: “Não é fácil ganhar 20 mil por mês, hein”, brincou, emendando um pedido de desculpas que nem era necessário. Durante a entrevista, que durou cerca de 30 minutos, ele pegou recortes de jornais, lembrou histórias de outras entrevistas que deu. A fala era contínua, o pensamento era recorrente. Sempre vinham lembranças à mente e, na velocidade com que elas chegavam, ele acrescentava às suas respostas. A sua história contada não pode fugir ao contexto da casa, da sua filha de três anos, Maria Eduarda, que acabou me recebendo com um abraço – a bem da verdade, orientado pelo pai, mas ainda sincero. Lembranças, recordações e esperança. Jadir contou os detalhes dos dias que passou, do sofrimento e da luta para ter o prêmio de R$ 1,35 milhão da Mega-Sena. Sua confiança em ganhar a bolada ficou evidente, nas suas palavras e no seu trato com a reportagem.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 129


twittar no mundo real

Das cavernas aos centros urbanos Graffiti, uma arte contemporânea Por André Pereira. Fotos de Deivid Duarte e Thaís Zimmer Martins

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á pelo menos 40.000 anos o homem descreve sua história através da arte. Entre os mais diversos modos de propagação da arte, o precursor foi a pintura nas paredes das cavernas, usadas para registrar a história, os costumes, os territórios, as ações e a cultura dos povos. Do sangue, saliva ou qualquer outro recurso que lhe permitisse marcar as paredes, o homem passou bem mais tarde a usar a tinta spray com o mesmo objetivo: registrar a história. Em todas as vias de grande circulação dos grandes centros urbanos existe esta mesma forma de registro descrita em mensagem de forma rápida e em um espaço limitado. O que começou com as pichações para simples demarcações de territórios de gangues ou da própria inscrição do nome ou apelido do indivíduo (denominado ‘tag’ pelos grafiteiros) adentrou salões de arte pelo mundo todo através do graffiti.

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Dentre os grafiteiros mais conhecidos do mundo, está o americano Jean-Michel Basquiat, que no final dos anos 1970 despertou a atenção da imprensa de Nova Iorque pelas mensagens poéticas que deixava inscritas nos prédios abandonados de Manhattan. Posteriormente, ele foi reconhecido como um dos artistas mais significativos do final do século XX, ganhando o rótulo de neo-expressionista. Criticado por uns, marginalizado por outros e admirado por muitos, o graffiti hoje é aceito como expressão artística contemporânea, mas ainda alimenta muitas discussões sobre os limites da arte livre. Em outubro de 2011, foi inaugurado o Museu Aberto de Arte Urbana de São Paulo, constituído por 66 painéis de graffiti instalados nas pilastras que sustentam o trecho elevado da Linha 1-Azul do Metrô de São Paulo. O projeto do museu foi elaborado a partir da prisão de 11 grafiteiros, no mesmo local,

que não possuíam autorização legal do Metrô. Ainda na delegacia, os artistas amadureceram a ideia e apresentaram o projeto à Secretaria de Estado da Cultura, ao presidente do Metrô e à diretora da SP-Urbanismo. Observando os muros, buscando compreender as assinaturas (ou tag’s) e adquirindo informação, Ricardo Dias, que trabalha com graffiti em Porto Alegre há oito anos com a tag ‘Rikardo’, conta que a conscientização é o primeiro passo para uma melhor aceitação e diminuição do preconceito. “Hoje as pessoas param para olhar e admiram o trabalho, pouco se importando se temos autorização para pintar naquela parede. Mas antes éramos marginalizados e repreendidos.” Um dos proprietários da loja Grafftche Graffiti Shop, de Porto Alegre, Italo Osório, que assina com a tag ‘Holie’, lembra que sua relação com o graffiti começou quando ele se mudou de uma escola particular para uma pública e


DEIVID DUARTE

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 131


n Segundo Ítalo Osório, o verdadeiro graffiti é autoral, feito na rua e com latas de spray

passou a andar com um pessoal da periferia. “Eu tinha um amigo que assinava a tag dele nos banheiros. Eu sempre tive muita criatividade, então começamos a brincar desenhando caricaturas dos colegas na sala de aula e eu me identifiquei com isso.” No bairro onde ele morava, havia uma cena muito forte de graffiti, vários vizinhos seus grafitavam. “Então passei a acompanhar o trabalho deles e fui criando os meus. Depois, participei de encontros e conheci pessoas das quais fui absorvendo conhecimento.” THAIS ZIMMER MARTINS

Enquanto o graffiti possui inúmeras formas, trabalha com muitas cores e não há competição entre os artistas, a pichação tem o sentido de protestar contra algo. Os pichadores procuram lugares inusitados e difíceis de pintar e seus traços geralmente são retos e verticais, utilizados para competir e demarcar territórios. Essas competições podem ser percebidas, por exemplo, ao trafegar pela Avenida Farrapos em Porto Alegre. Diversas inscrições são feitas ao longo dos edifícios desde a Estação Farrapos da Trensurb até o viaduto da Conceição, no Centro. Os pichadores escalam pelas marquises das lojas até os locais mais difíceis de realizar a pichação e algumas vezes podem ironizar descrevendo até a própria dificuldade. “São dois mundos diferentes com objetivos diferentes. Como no setor da saúde, onde há o médico e o enfermeiro. Eles trabalham no mesmo plano, mas são funções diferentes. Só usamos a mesma ferramenta, que é o spray”, afirma o proprietário da Grafftche. GRAFFITI COMERCIAL Mesmo ganhando espaço como manifestação artística, para os grafiteiros, vender o produto ainda é complicado. Nem sempre o cliente possui o entendimento do conceito de graffiti na hora de contratar os profissionais. O graffiti mesmo é o feito na rua com latas de spray. É autoral. “Quando uma empresa pede para fazermos um desenho, eles querem na realidade uma decoração e não um graffiti. A decoração é colocar na parede a ideia que está na cabeça do cliente com o meu estilo, mas não segue a linguagem da origem do graffiti, que é a letra, o personagem, algo mais abstrato. E isso geralmente tem pouca aceitação comercial”, conta Ítalo. Mesmo assim ele acredita que esta realidade está mudando, e as pessoas estão compreendendo melhor a essência desta modalidade como arte. ”Um exemplo foi quando um cliente me contratou para fazer um graffiti em uma parede do apartamento dele e me deu toda a liberdade para desenhar o que eu quisesse. Ali eu percebi que ele estava valorizando meu trabalho. Esse é o real lado artístico”, conclui.

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DEIVID DUARTE

twittar no mundo virtual

Escrever uma postagem na rede social Twitter limitado ao número de 140 caracteres.

impressões de

repórter

O meu interesse pela pauta sobre graffiti vem de muito tempo. Lembro quando eu voltava da escola, com meus 12 anos, e no muro de uma escola próxima da minha casa na Zona Norte de Porto Alegre um rapaz marcava as paredes do ginásio com algo semelhante a um pedaço de carvão. Parei do outro lado da rua e fiquei observando. Ele desenhava muito bem. Os traços arredondados de uma parte daquele paredão branco e todo rabiscado de pichações foi sendo preenchido. Tão logo concluiu o desenho marcado a carvão, reconheci que era o rapper norte americano Tupac Sakur, o “2Pac”, que estava retratado no paredão, o mesmo de um pôster que estampava a parede do quarto que dividia com meu irmão mais velho. O rapaz parou, analisou, fez mais uns rabiscos e abriu a mochila que estava ao lado, tirando as latas de tinta spray. Começou um carnaval de cores que ilustravam aquela enorme parede branca. Ao poucos, surgiram mais de 20 pessoas ao redor observando. Uns contrariando a obra e fazendo caras e bocas, e outros parabenizando o jovem pelo belo desenho. Bem abaixo da pintura, beirando o chão assinou: “Gringo”. Semanas mais tarde, todos os espaços estavam preenchidos e, o mais interessante era que os pichadores não riscavam por cima do graffite. Mais semanas se passaram e os responsáveis pela escola pintaram todo o paredão de novo. Voltaram as pichações, mas voltou também a arte do graffiteiro com novas imagens. Depois desta, a escola não voltou a pintar. Minha única frustração de escrever essa reportagem foi que, por mais que eu tenha procurado, não consegui encontrar o tal Gringo para entrevistar.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 133


upar

Experimentação do riso

no mundo real

Humor é a receita da ONG Doutorzinhos no auxílio para a recuperação de pacientes de hospitais Por Jorge Leite. Fotos de Thaís Zimmer Martins

H

á momentos difíceis na vida em que tudo parece ter um peso maior do que podemos suportar. Quando problemas acontecem, nunca aparecem juntos da solução, logo um pensamento negativo parece transformar isso em um efeito dominó. Quando é a saúde que está em jogo, as coisas podem parecer mais críticas ainda. Quem nunca passou por uma situação difícil, com um familiar ou um amigo? Toda superação parte da aceitação, de você enxergar que está com o problema e partir para luta. Mas nem sempre depende apenas de você. O apoio de amigos, familiares e profissionais é extremamente importante. O isolamento nunca é a melhor escolha. Nesses momentos, a ajuda pode vir de onde menos se espera, e ainda de uma forma inusitada. Ninguém imagina que pode vir de desconhecidos, de caras pintadas, nariz vermelho, com pinta de doutor e sorriso de palhaço. A ONG Doutorzinhos, grupo voluntário conhecidos também como doutorespalhaços, conta atualmente com 27 membros que buscam a humanização hospitalar. Eles acreditam que o humor promove uma atitude positiva, contribuindo diretamente na recuperação dos doentes. Assim, proporcionam para pacientes, familiares e funcionários o que chamam de experimentação do riso, estabelecendo uma conexão dos sentimentos de cada um. O humor, a alegria, o sorriso, podem não ser a solução para todos os problemas, mas poderão ser o alento e a ponte para superação. Todo ser humano causa impacto nos outros. Por que evitar a relação entre paciente e médico? Esse é um questionamento levantado no filme, Patch Adams – O Amor é Contagioso, dirigido por Tom Shadyac. A obra conta a história de Patch Adams, interpretado pelo ator Robin Williams, um personagem que acredita na humanização dos profissionais

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Veja como é o trabalho da ONG Doutorzinhos


Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013 n 135


upar

no mundo virtual

Palavra de origem inglesa. Usada no meio digital tanto para referir-se ao envio de arquivos para rede, assim como em jogos online, ao mudar o nível dos personagens. Em ambos os casos uma referência ao significado da palavra original, up, ou seja, elevar, subir, evoluir.

como parte essencial no processo terapêutico. O filme é fonte de inspiração para o fundador e voluntário Mauricio Bagarollo, o Dr. Zinho. Segundo Mauricio, ao assistir o filme, foi tudo instantâneo, ele sabia que, a partir daquele momento, era aquilo que queria fazer. Em 2004, ele começou a colocar em prática seu sonho, iniciou como contador de histórias na ONG Viva e Deixe Viver, mas aquilo não era suficiente. Ainda pela mesma ONG, em 2006, resolveu começar sua carreira como doutor-palhaço. Em 2008, devido a algumas dificuldades burocráticas, resolveu junto a um colega, Anderson Pinto, encaminhar o processo de abertura de uma nova Organização. Todos os gastos são por parte dos voluntários. A ONG não possui nenhuma forma de arrecadação de verba. Até mesmo porque somente em 2013 o projeto foi aprovado no Ministério da Cultura, e só a partir de agora estão aptos para captação de recursos. Nem mesmo os empecilhos burocráticos e o apoio financeiro fizeram com que o grupo deixasse de executar o belo trabalho, que já desempenha há tantos anos. Maurício, que é empresário e sócio de uma escola de idiomas, diz que ama seus hobbies, seu trabalho e o voluntariado, e faz pelo menos três visitas na semana. No dia em que não pode realizar uma das visitas, já sente que lhe falta algo. Esse esforço e determinação lhe trazem bons resultados. “Mesmo nos dias que não tenho visitas, estudo. Leio 136 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

pelo menos um texto ou vejo um vídeo, assim me aperfeiçoo”, diz. “No entanto, não basta ser um palhaço bom, acima de tudo tem que ser uma pessoa boa”, completa Maurício. No final, o aprendizado é mútuo, e com isso tem uma certeza: “Quanto mais você ama as pessoas, mais você quer amar”. Outra voluntária assídua nas visitas é a Dra. Tum Tá, a cardio-palhaça. Assema Moura, dentista aposentada, começou o voluntariado na Viva e Deixe Viver há sete anos como contadora de histórias e há um ano na Doutorzinhos como palhaça. “Porque só serve para viver, quem vive para servir”, cita ela, ao falar sobre suas motivações. Ela faz pelo menos três visitas

durante a semana e também não se sente cansada. “É tudo recompensador, mas a maior recompensa é o sorriso”, completa. AS VISITAS De ala em ala, seguem eles, o Dr. Zinho e seu amigo Silvio, um cachorro imaginário. As cadeiras e macas dispostas em um círculo, ocupadas por familiares, amigos e pacientes, formam ali uma ala de pré-atendimento. Ao sentirem a presença do doutorpalhaço, o primeiro momento é um olhar de estranhamento e surpresa. Mas, ele vai interagindo, de uma forma natural, como se pertencesse


àquele ambiente. A interação com os funcionários ajuda a transformar a intervenção em algo espontâneo. Aos poucos, Dr. Zinho vai ganhando a confiança dos pacientes. De riso em riso, o que antes era uma ala de pessoas exaustas e cansadas, transforma-se em uma plateia atenta e encantada. A alegria vai contagiando a todos. Já não há mais espaço para cara feia. Todos parecem se sentir à vontade com a presença do especialista em risos. Mesmo os mais sérios, por mais sutil e rápido que seja, desenham o esboço de um sorriso no canto da boca. Os comentários são compartilhados tão quase instantaneamente quanto os sorrisos. Pessoas que estavam ali, até o momento da chegada do convidado, talvez não tivessem trocado uma simples palavra entre si. Logo, já estão comentando os benefícios da visita e do entretenimento. Segue o espetáculo, e a plateia parece querer interagir de alguma forma. Alguns timidamente respondem a uma pergunta feita pelo palhaço com um gesto de cabeça, de afirmação ou negação, mesmo quando a pergunta não lhe é direcionada. Outros querem entrar na brincadeira e fazer piadas, participar do show. Silvio, o cachorro magricela, que não pode ser visto, é notado por todos. Ele é uma atração à parte. A imaginação transforma todo ambiente mórbido do hospital em um verdadeiro picadeiro. O doutor-

palhaço, além de seu fiel cão imaginário, usa truques de mágicas e canções como terapia do riso. Sua bagagem é repleta de instrumentos da alegria. Às vezes, o “faz de conta” é o grande trunfo. Ali, não parece ter um contrato, com cláusulas, do que pode e não pode ser feito. A regra fica clara através do retorno, do sorriso e das palmas. Engana-se quem pensa que o sucesso é somente entre as crianças. Não, o palhaço é disputado entre os adultos. Os senhores e senhoras da terceira idade são os que mais requisitam a atenção dele. Enquanto uns interagem e aproveitam o momento para dar boas risadas, outros aproveitam e registram com câmeras de celulares. Talvez seja para compartilhar com algum familiar ou amigo posteriormente. Há os curiosos que não se aguentam e perguntam: “Ele é médico de quê?”. A resposta é quase que irônica: “Ele é um doutor-palhaço”. “Mas qual é a especialidade dele?” e a resposta é mais rápida : “A alegria, o sorriso. Veja, dá até receita. Abraços, risos, canções...”. E quem acha que a felicidade é passageira, errou novamente. Por alas, corredores, saguões, salas, pátios, a alegria permanece, pois é contagiante. E assim vai acontecendo a experiência do riso, do involuntário, do inesperado, da transformação do humor, um up na experiência hospitalar.

impressões de

repórter

No começo da pauta, me questionei inúmeras vezes se era capaz de seguir em frente com essa matéria. Porque sempre me cobrei demais, queria fazer o melhor. Achava a pauta boa demais e talvez ela fosse contada melhor por outra pessoa. Talvez não, talvez estivesse apenas inseguro e com um frio na barriga de iniciante. Enfim, o importante é que segui em frente, e o resultado obtido, me surpreendeu positivamente. Essa parte social do jornalismo sempre me encantou mais, principalmente a que envolve vidas e histórias das pessoas. Se tem uma coisa que instiga na comunicação e nas ciências “não exatas” é o fator surpresa. Nada parece tão óbvio que não possa nos surpreender. Ao elaborar o roteiro das entrevistas, imaginava respostas óbvias. Nada disso aconteceu. O que mais gostei foi a parte de descrever o que acontecia no hospital partir da minha observação. Nessa parte, foi encantador. Eu não era a figura que chamava atenção ali, como geralmente é o repórter. Era um elemento que estava fora do campo de ação dos fatos, mas não longe suficiente que não pudesse escutar ou ver o que acontecia. Observação, sem sombras de dúvidas é algo inspirador. A cada momento que eu olhava e analisava, cascatas de ideias surgiam imediatamente. Escrever essa matéria foi, de certa forma, orientador. Achar um pedacinho de mim, que descobriu um prazer em escrever sem muitas cobranças.”

n Maurício, que conta

com o auxilio da Dra. Tum Tá, se inspirou no filme Patch Adams para criar a ONG Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 137


viralizar RAISA TORTEROLA

no mundo real

A ideia é multiplicar a ideia O

que faz uma pessoa que possui vida e futuro organizados e planejados abandonar tudo isso? Uma ideia. Um vírus. Não se trata de doença, muito menos de loucura. Basicamente, a questão gira em torno de ter contato com determinada ideia, filosofia ou crença, identificar-se com a mesma, interiorizá-la e passá-la adiante. Essa é a fórmula simplificada do viral. Outra pergunta: como você imagina um rapaz de 30 anos, formado em direito, com emprego fixo e bom salário daqui a 10 anos? Se sua resposta foi com residência própria, esposa e filhos, ela passa um tanto quanto longe do que imagina o personagem em questão. Tiago Martins Lamas Vital, natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, se vê como sacerdote. “Percebi o chamado recentemente, em

138 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

Como uma crença se espalha como um vírus na vida real Por Darlan Schwaab. Fotos de Angélica Pinheiro e Raisa Torterola

2010. Participava do movimento Regnum Christi, da Igreja Católica, e estava em um retiro onde um padre do México contava sua história e tudo que representava para ele o sacerdócio.” Na ocasião, ao lado de Tiago estava a namorada com quem planejava se casar. “Meu sonho era ter oito filhos”, lembra. Mas a ideia de encontrar a mesma felicidade que o tal presbítero mexicano demonstrava foi mais forte. Evangelização é uma forte viralização. Contudo, ao invés de clientes, tem-se os fiéis. E o produto dá lugar a uma série de crenças. Mas igualmente se é infectado pela ideia e tenta-se retransmiti-la a outros. Para aqueles que têm esse mesmo vírus da vontade de discernir a vocação e acham que o sacerdócio é seu caminho, existe o Kairós. A palavra vem do grego e significa “momento oportuno”.


n O Seminário Maior de Viamão recebe mensalmente jovens para retiros com o objetivo da evangelização

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 139


n Tiago (à direita) resolveu ser sacerdote quando participava de um retiro. O padre Cláudio D’Angelo Castro, coordenador da Pastoral Vocacional da Arquidiocese de Porto Alegre, diz que as pessoas que seguem esse caminho normalmente já são envolvidas com a igreja

FOTOS RAISA TORTEROLA

Trata-se de um grupo composto por padres e seminaristas do Seminário Maior de Viamão que organiza um retiro mensal com o mesmo nome para jovens que buscam responder a pergunta que mudou a vida de Tiago: o que Deus quer para mim? De certa forma, é um marketing com nicho bem específico. Se a evangelização por si já visa transmitir um conjunto de pensamentos e vivências, agregando novos adeptos, no caso do ‘momento oportuno’ são presbíteros falando claramente sobre esta vocação específica a pessoas que se sentem chamadas ao mesmo caminho. Segundo o coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da Unisinos, Sérgio Trein, as pessoas têm a necessidade de compartilhar informações. Em se tratando de algo positivo, que lhes traz felicidade, esse compartilhamento ocorre de maneira exponencial. “O viral constrói grupos de afinidade”, sublinha. Nesses casos de propagação na vida real, diferentemente do virtual, existe uma estratégia de persuasão e carisma na qual as pessoas são canais de distribuição. Não é mais um clique que faz a diferença, mas sim uma ação cotidiana. “Minha maior vontade é oportunizar para os outros isso que vivi”, ressalta Tiago. Sua evangelização começou em casa, no exemplo familiar. Ele conta que tem em sua vida o forte testemunho da madrinha de sua mãe. “Ela viveu até os 90 anos, sendo que, nos últimos 50, tinha como alimento exclusivo a comunhão”, garante. Para os católicos, a hóstia consagrada é o próprio corpo de Cristo. Desde muito cedo, Tiago convivia com questões relacionadas à fé. Quando adolescente, deu seus primeiros passos em grupos de jovens que visam a evangelização, como 140 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

Curso de Liderança Juvenil (CLJ) e Juventude Missionária. Participante dos encontros Kairós, ele afirma que entre 17 e 27 anos teve cinco namoradas e nunca sequer pensara na possibilidade de se tornar sacerdote. Quando parou para refletir sobre a vontade de Deus para sua vida, tudo mudou. Agora ele aguarda a chegada do mês de janeiro de 2014 para ingressar no Seminário de Gravataí, onde passará um ano vivendo o propedêutico – período em que os aspirantes ao sacerdócio são introduzidos à vida de seminaristas e estudam para prestar vestibular. Passado este primeiro ano, Tiago deve se mudar para o seminário de Viamão, onde morará enquanto cursa as faculdades de filosofia e teologia. O rapaz ressalta que todo esse período é para discernimento. “Deus sempre dá os sinais. O discernimento é um processo que ocorre aos poucos. Trata-se de um abandono, uma intimidade maior com Cristo.” Tiago revela ainda que as pessoas de fora da igreja costumeiramente se colocam contra sua entrada no seminário. Para ele, quem não tem a dimensão da fé e do reino de Deus não vai entender esse passo tão importante. “Por mais que eu tente teimar, é isso que Deus demonstra querer para minha vida”, salienta. Padre Cláudio D’Angelo Castro, 42 anos, gaúcho de Canoas, é o coordenador da Pastoral Vocacional da arquidiocese de Porto Alegre. Ele, juntamente com outro sacerdote, está à frente da organização dos encontros Kairós desde março deste ano. Segundo Cláudio, este chamado acontece dentro da Igreja. É dom de Deus, enquanto o jovem auxilia na comunidade. Ele observa que os homens que procuram dar esses passos de

discernimento mais maduro sempre são pessoas muito envolvidas com a paróquia e acabam se identificando e se sentindo impelidas a ser como o padre. Ou seja, o exemplo é fundamental nesta viralização. “Minha função é acolher e motivar esses jovens. Hoje em dia é muito fácil surgir um desânimo com tantas opções e tanta efemeridade”, conclui. O sacerdote afirma ainda que, por mais que sempre pareça que a “ordem natural” seja o casamento, também é natural que o homem sirva a Deus. Então, para quem se sente chamado, isso não é nadar contra a corrente. Pelo contrário, é o caminho seguro. A ideia dos encontros é, além dessa formação voltada à vocação, conversar sobre as dificuldades que surgirão. “Não se trata de uma propaganda enganosa, onde só mostramos o que é positivo”, assegura. Para os vocacionados, evangelização é ajudar a pessoa integralmente – independente das contradições do mundo. “O sim ao sacerdócio implica ser fiel, ser honesto. Porque a pessoa vai viver intensamente o que se propôs”, finaliza o padre. O publicitário Sérgio Trein salienta que na comparação entre propaganda comercial e viral, percebe-se uma clara diferença. É a função proativa versus a receptiva. O comercial é algo que simplesmente se recebe, no conforto de casa. Enquanto isso, o viral gera uma ação do cliente: um clique, por exemplo. “As igrejas, em especial as neopentecostais, trouxeram muito esses virais, pois buscam seu rebanho no boca a boca”, constata. TRABALHO DE MISSIONÁRIOS E é nessa tática milenar citada pelo professor que se baseia a viralização da


ANGÉLICA PINHEIRO

n O mórmon Elder Nonato deixou a Paraíba para passar dois anos em Porto Alegre divulgando a “palavra de Deus” Igreja de Jesus Cristo dos santos dos últimos dias – popularmente apelidada de Mórmons, em função de um de seus livros base. Esta religião conta com o trabalho dos missionários. São jovens que se afastam de família, amigos e do território onde cresceram para divulgar a palavra de Deus por dois anos. Ao partir para a missão, todos os rapazes recebem o nome de Elder e todas as mulheres passam a se chamar Sister – apenas o sobrenome permanece. Neste contexto, Helamã Gomes da Silva, 20 anos, natural da Paraíba é o irmão Elder Gomes. Residindo em Porto Alegre, junto com ele, está Raimundo Nonato, 25 anos, natural do Piauí – agora conhecido como Elder Nonato. Ambos optaram por sair de sua comodidade e bater de porta em porta para tentar falar de sua fé. Antes de desembarcarem em solo sul rio-grandense, eles passaram por um treinamento de 12 dias. A ideia é abordar as pessoas para falar sobre a importância da família e das bênçãos de Deus. Sempre no fim da conversa, eles sugerem que se pergunte ao Senhor se isso que foi falado é verdade. “É importante que a pessoa faça sua oração e peça a revelação”, fala Gomes. Helamã já nasceu em uma família com raízes na religião, enquanto Raimundo tornou-se membro recentemente. Ele conheceu esta vivência de fé por meio de um missionário em 2011. “Foi numa época em que eu visitava várias igrejas tentando me encontrar. Procurava meu lugar”, lembra. Os missionários que o visitaram disseram que Nonato não

precisava acreditar neles, mas que rezasse pedindo uma resposta. Ele seguiu o conselho e, na mesma noite do diálogo, mudou sua trajetória de vida. Em um sonho, encontrou um senhor de idade e perguntou se o caminho que percorria era o certo de volta para sua casa. O senhor respondeu que não. Mas um rapaz que estava próximo afirmou que ele poderia mudar de caminho e tomar o rumo certo. Desde então ingressou na igreja. “Nós não queremos converter as pessoas. Queremos passar a mensagem e indagá-los a perguntar a Deus qual é a verdade”, diz Elder Nonato. O que faz uma pessoa mudar completamente o rumo de sua vida? Uma ideia, uma filosofia, uma religião. Deus. Ou simplesmente um viral bem sucedido.

viralizar no mundo virtual

Forma de marketing muito presente na web, em especial nas mídias sociais. Trata-se de uma propaganda que os consumidores gostam, percebem algum vínculo consigo e espalham. Por isso a imagem de um vírus.

impressões de

repórter

Uma das questões que mais me chama atenção no jornalismo é ter a oportunidade de vivenciar ao máximo a reportagem. Por isso, ao escolher os cases para fazer a matéria sobre virais, decidi participar com eles dos momentos sobre os quais eu descreveria. Assim sendo, passei um fim de semana no Seminário de Viamão desfrutando do Kairós. Infelizmente não tive o mesmo tempo para ficar com os jovens da Igreja de Jesus Cristo dos santos dos últimos dias, pois seu trabalho é realizado durante a semana. Mesmo assim, foram experiências e aprendizados incríveis. Nas duas situações, a questão vai além da viralização. As pessoas têm a fé como centro de suas vidas, e tudo se decide a partir dela. É interessante perceber que questões que parecem ser problemáticas para quem vê de fora são tratadas com máxima naturalidade e alegria pelos vocacionados a essas missões. São jovens comuns que se desprendem de suas vontades para realizar o que se acredita ser um desígnio divino. Certamente fui viralizado pela acolhida de todos citados nesta matéria e pelo intrigante e diferenciado brilho no olhar que eles carregam.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 141


visualizar DANIEL GRUDZINSKI

no mundo real

142 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2013


LETÍCIA FAGUNDES

Rotina cega Alenir desejava ser piloto da Força Aérea Brasileira, mas um acidente interrompeu seu sonho e sua visão Por Letícia Fagundes. Fotos de Daniel Grudzinski e Letícia Fagundes

C

erta vez, fiz um exercício em que a professora mandou os alunos andarem pelas ruas olhando para os lados, para frente, para cima e depois escreverem o que viram. Ela só queria que exercitássemos o poder de visualizarmos o que temos em nossa volta. É incrível como a cegueira está presente na nossa rotina, mesmo para os que não são cegos. A CASA O bairro não é classe média alta. A casa fica na descida de uma lomba e tem como endereço Rua Braille, bem sugestivo. O portão foi aberto assim que apertei o interfone. Segui um corredor extenso, e, ao fundo, alguém já me esperava. Uma senhora com roupa e touca de cozinheira, a Nelci. Ela me apresentou um dos moradores da Associação de Cegos Louis Braille, Casa Lar do Cego

Idoso, que foi o guia turístico tanto do lar quanto para nos apresentar uma nova visualização de vida naquele domingo frio, cinza e chuvoso. O CEGO Alenir Moraes da Silva, 60 anos, casado algumas vezes, é pai de uma filha, de 22 anos, e avô de Diogo, de um ano e oito meses. Estatura média, pele morena e olhos castanhos escuros. Um sonho: ser piloto de avião da Força Aérea Brasileira. Aos 18 anos, Alenir ainda vivia na cidade que nasceu, São Francisco de Paula, 112 quilômetros da sua cidade atual, Porto Alegre. Ainda adolescente, sofreu um acidente com um trator enquanto trabalhava na roça. “O trator caiu em cima de mim enquanto trabalhava. Sofri um esmagamento no crânio.” A carreira de piloto na Força Aérea Brasileira ficaria no sonho, pois o Exército o dispensou

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 143


LETÍCIA FAGUNDES

FOTOS LETÍCIA FAGUNDES

n Lar abriga 49 idosos com deficiências físicas por causa do acidente. Passados dois anos e com o trabalho contínuo na roça, Alenir sentiu uma forte dor de cabeça e não deu muita importância. Ao adormecer, perdeu a visão. “Quando deitei na cama, não dei muita bola para aquela dor de cabeça, parecia uma gripe. Dormi e, quando acordei, não conseguia enxergar mais nada.” O diagnóstico dos médicos dizia ser um mau súbito. “Eu acredito que o que me deixou cego mesmo foi este acidente que tive na roça, aquilo ali que me prejudicou.” Com energia, juventude e uma vida toda pela frente, Alenir saiu de sua cidade natal e terminou seus estudos no colégio Santa Luzia, em Porto Alegre, já cego. “Aceitar uma delimitação é algo ruim, mas não é impossível, ninguém está preparado para se adaptar a uma deficiência.” Foi na capital que Alenir começou sua nova vida, com um novo jeito de visualizar sua rotina e os demais que o cercam. Há 40 anos cego, a rotina dele é outra. “É diferente uma criança que nasce cega para uma pessoa que tem que se

144 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

acostumar a ser cega, como eu, que nasceu com a visão. Quando converso com as pessoas, tenho lembranças e tento imaginar como elas são.” Com apenas um ano e alguns meses vivendo na Associação, por um problema neurológico e as constantes dores de cabeça, Alenir convive com outros idosos que apresentam além da cegueira outras deficiências físicas. “Hoje o lar abriga 49 idosos, sendo nove homens e 40 mulheres. Pagamos a mensalidade com nosso salário, mas o lar necessita de doações e ajuda, afinal cada idoso equivale até dois mil reais para ter os cuidados que temos”, explica. Não há luxo, mas o essencial para viver com dignidade e segurança. Com uma área total de 2400 metros, quatro pavimentos, 15 quartos, com duas ou até três camas, enfermagem, consultório odontológico, onde é possível dentistas voluntários realizarem trabalho semanalmente. Os idosos cegos são bem assistidos, conta Alenir. “Aqui é bom porque eu sei que não sou sozinho, há mais pessoas para conversar, e eu também não fico só aqui dentro.

Saio, pego ônibus, visito meus parentes e eles me visitam.” RESPEITO Diferente do Dicionário Aurélio, onde a palavra cegueira significada “o estado de alguém que tem a razão obscurecida, o discernimento ou raciocínio perturbado, ou a falta de lucidez, inteligência, de bom senso”, o que notei no entrevistado foi alguém que soube retirar o melhor de tudo da deficiência. “O ser humano nasce ignorante, e muitos morrem ignorantes, pois não fazem questão de olhar para o outro.” Mesmo que nosso aparato tecnológico esteja no nosso ambiente de trabalho, nas nossas casas e na rua, no nosso bolso, é importante olharmos ao redor e notarmos que ainda ignoramos muita coisa. O relacionamento com o próximo é uma dessas coisas. Quando Alenir e uma outra idosa cega se cruzaram na subida da rampa para os quartos e, sem querer, bateram de frente e com um sorriso e um abraço se pediram desculpas e ainda ficaram conversando, perce-


bi como existia respeito entre eles. Ser aceito é o que todo mundo quer. “Reaprender a se relacionar com as pessoas e aprender a aceitar a rejeição das outras pessoas é uma tarefa difícil para quem tem deficiência”, afirma Alenir. Enquanto até mesmo os próximos se vendavam, e não queriam ver a deficiência de Alenir, ele tornava sua nova vida mais interessante “A família pensava que eu era um inválido, um incapaz. Mas não é assim, eu, por exemplo, comecei a estudar, fiz curso de massoterapeuta e ganhava muito mais que algumas pessoas que enxergavam”. Quando indaguei Alenir sobre os deficientes físicos e as empresas, ele simplesmente foi verdadeiro. “A falta de qualificação dos deficientes é um grande problema, mas os deficientes têm que reivindicar e mostrar que podem fazer e não só esperar pelo patrão, porque muitas vezes o patrão nem quer ver.” Alenir já enxergou, mas hoje ele apenas lembra como são os rostos, as cores. Muitas vezes, os que possuem uma visão perfeita acabam também por serem cegos. Cegos que se deixaram levar pela

rotina do trabalho e esquecem que muitas vezes a essência da vida está na simplicidade, em tirar um tempo para viver mais perto da família, aprendendo a viver com as suas condições, sem viver na constante busca do mais. Alenir é cego, mas vive como se não fosse, pois durante toda esta matéria falou comigo sempre com o ouvido virado para minha boca, afinal os cegos aguçam muito audição. Diferente de muitos entrevistados que já conversei, que levam nomes conhecidos, cheios de honraria e medalhas, Alenir me enxergou.

visualizar no mundo virtual

Ver o que a pessoa escreveu, mas não interagir com o conteúdo.

impressões de

repórter

Acredito que estamos cegos em muitas situações de nossas vidas. Fiquei pensando como seria interessante se nos dedicássemos, não só como futuros jornalistas, mas como seres humanos, a estarmos mais atentos à história alheia, e não somente à nossa. Minhas últimas pautas na universidade, antes de ir como profissional formada para o mercado de trabalho, me exigiram falar com pessoas que tiveram que refazer suas vidas, modificar, justamente porque acredito que faltam seres humanos que queiram escutar os outros. Todos nós queremos falar, mas muitas vezes não queremos ouvir. Ficar cego não significa somente perder a visão, mas perder os valores, os sentimentos e o respeito pelo próximo. Perder as forças de ir além, de lutar pelo que se quer.”

Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 145


zapear MARINA CARDOZO

no mundo real

n Lori tem uma barraca cigana em frente à sua casa. É ali que ela passa a maior parte do seu tempo fazendo consultas espirituais

146 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013


A nação dentro de uma nação

FOTOS MARINA CARDOZO

A cultura cigana é tão forte que atravessou séculos quase sem a interferência de outros povos Por Jéssica Berger. Fotos de Daniel Grudzinski e Marina Cardozo.

H

avia uma barraca cigana em seu jardim. Esse era o ponto de referência para o nosso encontro em Esteio, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Às 9h, uma senhora com os cabelos negros caminhou em minha direção. Com uma das mãos abanava e com a outra segurava a ponta da longa saia que arrastava pela grama. Pelo olhar doce, mas inexplicavelmente penetrante, pude ter certeza: Lori Emanoela era uma cigana. O convite era para entrar em sua barraca erguida com lona, logo em frente à sua casa de alvenaria – que fica no fim do terreno – onde vive com o marido e três filhos. “Pode entrar, mas cuidado com o barro. Barraca cigana é assim mesmo, tudo simples”, explica. Em um extremo, uma cadeira com uma almofada macia, tapetes de couro e um altar para Santa Sara, a santa do povo cigano. Do outro lado, uma mesa com baralho de cartas, velas e joias dispostas a esmo. “É aqui que eu passo quase todo o dia. Ainda quero arrumar direitinho, colocar um fogão à lenha para deixar igualzinho a uma casa de acampamento.” Lori, 50 anos, me conduziu para a mesa onde trabalha. Colocou-se do outro lado da mesa como se fosse fazer uma consulta espiritual. A cigana acumula um punhado de funções. No total, são dez trabalhos que ela realiza em parceria com o governo Federal, Estadual e Municipal. Todos ligados à preservação da cultura e dos direitos ciganos. Também segue à risca o que foi passado de geração em geração na sua família: a leitura de mãos e de cartas. Com o olhar que percorria as minhas anotações, a cigana dava ares de ver o que eu não enxergava. “Ninguém entra na minha barraca de graça”, exclama, “sempre tem um motivo”. Lá, a energia parece correr de um jeito diferente. Sem hesitar, ela simplesmente começou a falar. Sempre que comentava sobre Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 147


as suas origens, procurava incluir o coletivo “nós” nas frases. Era como se soubesse todas as perguntas que deveriam ser respondidas. “O meu povo sofre com o preconceito em todos os cantos do país. O Rio Grande do Sul negava a existência dos ciganos aqui.” Com orgulho, insistia em estender sobre a mesa o mapa com todos os pontos de acampamentos ciganos, itinerantes ou não, que estão espalhados pelo Brasil. O material foi elaborado por ela em parceria com o Governo Federal. Hoje, são mais de 800 mil ciganos no Brasil. É o número mais representativo em toda América Latina. Essa é a única etnia que não consta no questionário do IBGE, mas Lori garante que é um levantamento preciso. Ela explica que é como se os ciganos formassem uma rede invisível por todo o país: “Eu consigo entrar em contato com qualquer um dos meus primos. Às vezes a gente fica sabendo que têm famílias passando necessidade no Rio Grande do Norte e aqui do Sul a gente dá um jeito de juntar alimentos ou dinheiro e mandar para lá”. O contato pode ser de boca a boca, por telefone, email. “Os ciganos adoram tecnologia”, confessa Lori. VIVER MUDANDO É LIBERDADE Há duas gerações a família de Lori deixou os acampamentos itinerantes. A avó, o avô e 12 filhos viviam nômades por terrenos baldios no Rio Grande do Sul. “Minha avó teve permissão para deixar o acampamento quando o marido morreu”, conta. “Ele foi morto por um fio de náilon quando cavalgava em Torres.” A história embrulha o estômago, mas ela continua, sem nenhum nó na garganta. Não existe rancor ou sentimentalismo em sua voz. Existe a vontade de externar tudo o que o seu povo tem sofrido há milênios, mas não entra em detalhes. No Brasil, os ciganos chegaram por volta de 1562. Não existem números precisos, assim como nada na cultura cigana pode ser preciso da forma como as outras etnias talvez esperem: o conhecimento é ágrafo, passa de uma pessoa para a outra, de uma boca para outra boca. “Querendo ou não, as pessoas têm que entender que fomos nós, os ciganos, com ajuda dos índios e dos negros, que construímos esse país”, diz Lori, categórica. Há mais de 450 anos os ciganos foram degredados de Portugal. Lá eram um povo nômade por opção. Nunca foram bem quistos na Europa. 148 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013

zapear no mundo virtual

Mudar constantemente de canal.

Quando aportaram no Brasil, os Kalon, clã do qual Lori faz parte, começaram a ser perseguidos e se tornaram nômades por opção. Os olhos da cigana são vivazes enquanto ela discorre sobre as terras que seus ancestrais percorreram: sempre em fuga. “O que tu acharias da tua mãe sendo apedrejada?”, respondeu sem que eu perguntasse o porquê da sua família ter deixado os acampamentos. Quando eu peço mais detalhes sobre o fato, a cigana escorrega nas respostas. São tão evasivos nos detalhes sobre a sua cultura quanto são do restante da sociedade que os persegue. Não foi por opção que os Kalon se tornaram nômades. Foram os gajen, os não-ciganos na língua romani, que os fizeram assim. Os ciganos precisaram se adaptar, explica Lori. “A gente trouxe isso para a vida da seguinte forma: tudo é bom, independente do lugar, o que muda a forma como tu olhas a tua vida. É a capacidade de recomeçar sempre.” O que sustenta esse povo são o mistério e a curiosidade que provocam no outro. Por isso, Lori só responde as perguntas que quer. “EU SOU CIGANO” O segundo encontro com Lori foi em um evento que ela organiza para celebrar o sangue cigano. Nem todos que estavam presentes na Casa de Cultura de Esteio naquela tarde eram dessa etnia. Mesmo assim, mais de dez mulheres rodopiavam ao som cigano de pés no chão. Lori dançava pelo salão e, sempre que a música entoava “eu sou cigano”, batia três vezes os pulsos e abria os braços para o público. É um gesto que deixa claro de onde ela vem. Ela só parou quando Rose Winter, 50 anos, também cigana, entrou no ambiente. Lori abriu um sorriso e, muito carinhosa, correu para os braços da amiga. Ao se abraçarem, faltou energia elétrica. Sem luz, sem música para dançar, as duas continuaram abraçadas por alguns minutos. “É uma troca de energia muito grande”, justificou Rose, “um encontro de afins.” Rose é descendente do Clã Sinti, originário da Alemanha. A família veio de navio para o Brasil no período

entre guerras no século XX. Aportaram no Rio Grande do Sul como gajen. Não queriam sofrer preconceitos na nova vida. Rose é fotógrafa e cresceu como não-cigana. O pouco que sabe da cultura foi sua vó quem ensinou. Diz que nasceu com dons ciganos e segue as tradições na medida do possível. Rose também tem um olhar doce e penetrante. A fala é calma e transmite paz. Segue o que parece regra na cultura cigana: os cabelos negros e esvoaçantes. É como se o corpo, os cabelos, o tilintar das pulseiras, tudo nas ciganas seja arranjado para dançar. Uma das atrações daquele dia era um músico. Com um violão debaixo do braço, ele entrou na sala. O cabelo negro e liso batia na cintura do homem magro, que carregava um violão e vestia uma camisa com motivos ciganos. Ele parecia dançar no corpo esguio. Paulo Lopes é irrequieto e logo puxou uma cadeira e logo tornou-se centro das atenções com o violão disposto na perna direita e os dedos correndo nas cordas. “Eu vou apresentar três músicas, três tarantas.” Taranta é uma música típica cigana, uma mistura entre a cultura árabe e a espanhola. É o tipo de melodia que fica solta no ar: não se prende às métricas. O pai de Lopes é cigano e a mãe, não. Nesta cultura, a mãe é a responsável por passar os ensinamentos. É a mulher o centro espiritual da família. Lopes, 56 anos, não é um cigano ortodoxo, mas de certa forma evidencia a cada frase que a cultura é predominante na sua vida. “Eu me casei seis vezes, nunca consigo ficar muito tempo em um lugar. Já rodei o Brasil e visitei vários países.” O músico flamenco não para muito tempo em um lugar. “Esses dias me ofereceram um contrato para trabalhar por um ano em São Paulo. Eu não quis. Imagine ficar preso por causa de um papel?” A fala de Lopes se completa com a definição de Lori sobre as mudanças constantes que fazem parte do sangue cigano. “A gente não precisa de um espaço para ser quem é”, diz Lori. A barraca é uma casa, inviolável. Tudo que está nela pode ser colocado na caçamba de um carro e levado para outro lugar – inclusive as latas que de véspera guardaram o alimento e mais tarde servirão de panela para o cozido com batatas. Os acampamentos itinerantes vivem com dificuldades, sustentados pela força e união que vem de sangue. “O cigano não luta por terra. Meu povo não quer ir nem vir, ele quer passar”, define Rose.


n Lori (abaixo) dança ao som

do violão do músico Paulo Lopes em evento na Casa de Cultura de Esteio que reúne simpatizantes da cultura cigana

FOTOS DANIEL GRUDZINSKI

impressões de

repórter

Com certeza, uma das reportagens que mais tive prazer de fazer. Poucas pessoas abrem mão do preconceito e imergem na cultura cigana. Eu agradeço a oportunidade de poder conhecer esse povo que está em todos os lugares, mas do qual os gajen pouco sabem. Lori Emanoela abriu as portas da sua casa, me apresentou os seus amigos e me deu a chance de contar a sua história. Nunca vou esquecer quando ela me perguntou se eu abraçaria uma cigana que lê as mãos nas ruas de Porto Alegre. “Não”, seria a minha resposta cheia de medo e preconceito. Nós temos medo do que não conhecemos. Hoje a minha resposta seria sim, mesmo com a absoluta certeza de que escrevo essa reportagem sem saber quase nada dessa cultura. Eu jamais terei a mesma percepção sobre a vida, os mesmos dons, tampouco o mesmo olhar que um cigano. Os olhos que não se decifram, as moedas que chacoalham pelo corpo simplesmente para fazer barulho, as pulseiras que tomam conta dos braços, as saias rodadas, suntuosas e os lenços de fios dourados que caem pelo corpo, são elementos que dificilmente vão ser compreendidos além do que se vê. Tudo porque, possivelmente, eles não querem ser decifrados.” Primeira Impressão n Dezembro de 2013 n 149


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Gustavo Fischer COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

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Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

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Disciplina de Redação Experimental em Revista Alessandra Fedeski, André Pereira, Anelise Durlo, Audrey Lockmann Barbosa, Augusto Turcato, Bibiana Kranz, Bira Costa, Bruna Henssler, Bruno Gross, Carol Santos, Carolina Chaves, Caroline Weigel, Daniela Flores, Darlan Schwaab, Dienifer Cecconello, Gabriel Pereira dos Reis, Greice Nichele, Jéssica Berger, Jorge Leite, Juliana Barcellos, Juliana Borba, Juliana Silveira, Karina Sgarbi, Laís de Oliveira, Letícia Fagundes, Lucas Brito de Barros, Luísa Venter, Marcos Reche Ávila, Mariana Zimmer, Marina Corte, Natália Dalla Nora, Paula Viegas, Rodrigo Karam, Simone Ludwig, Suzi Servo e Venise Borges MONITORIA: Juliana Spitaliere

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ARTE E PUBLICIDADE

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Editoração

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Thaís Furtado SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Leonardo R. Patikowski e Marcelo Garcia

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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Luciana Reis SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme PÁGINAS 2, 151 E 152 ATENDIMENTO: Renata Saraiva DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Carlos Pivetta REDAÇÃO: Vinícius Candaten

150 n Primeira Impressão n Dezembro de 2013




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