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pi primeira impressão
QUE SOM É ESSE?
editorial
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om o som do despertador, acordamos. O telefone toca para avisar que alguém quer falar conosco. A música nos emociona. O rádio nos traz notícias. O bebê chora de fome. O sino indica que alguém da comunidade morreu. Os sons estão presentes em praticamente todos os momentos da nossa vida de uma forma tão naturalizada que às vezes esquecemos que eles existem. Até o silêncio é necessário para uma boa noite de sono, ou para nos concentrarmos na biblioteca. Tudo soa. Foi pensando nisso que os repórteres e fotógrafos da Primeira Impressão escolheram o som como tema desta edição. Foi, na verdade,
Tudo soa um desafio, pois escrever e fazer imagens sobre esse assunto em uma revista impressa não é tarefa das mais fáceis. Para isso, os futuros jornalistas tiveram que procurar histórias de pessoas que têm uma relação especial com os sons, ou de lugares em
que o barulho e o silêncio assumem significados importantes. Pessoas que odeiam alguns sons, outras que não conseguem mais ouvi-los, ou ainda aquelas que dependem deles para viver foram entrevistadas pelos alunos. O resultado você pode conferir nas próximas páginas. E, se quiser, você também pode ouvir o som de cada uma das reportagens. Basta acessar o conteúdo digital da revista. O link e o QR code estão disponíveis nesta página. Boa leitura e boa audição! Thaís Furtado
Professora editora de texto
http://bit.ly/1dXA5Ed
Flávio Dutra
Professor editor de fotografia FRANCIÉLEN SEVERO
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A festa dos fones O som ao alcance das mãos
Imagens sonoras Caminhos opostos Uma vida em mono
Os ruídos da irritação
Quem canta seus males espanta Tocar com alegria A voz que guia
É proibido falar Um chute no escuro
A fé em melodias
Movimento da cultura alemã Eles estão de volta e a todo volume
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Muitos registros, nenhum som
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Cantemos, aleluia! Santini esqueceu uma gaita Abrindo os ouvidos A evolução dos sons no cinema Emoções traduzidas em som Elis, uma voz que apaixona Imponente badalada O poder da Elfa O relógio da vida Surdez forjada pelo trabalho Para narrar futebol, concentração e emoção Imaginário criativo A voz dos pássaros Redenção da serenata
ROBERTO CALONI
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A festa dos fones Balada que ocorre em Porto Alegre conta com headphones sem fio e três canais musicais disponíveis para os visitantes POR BÁRBARA BENGUA FOTOS FRANCIÉLEN SEVERO
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s baladas surgiram com o intuito de gerar interação entre as pessoas. Um local escuro, com bebidas alcoólicas à disposição dos maiores de idade, muita gente a fim de curtir a noite e ter histórias para contar e, é claro, muita música bem alta. No entanto, o som estridente que às vezes atrapalha moradores locais não é mais um predicado obrigatório para as festas dos dias atuais. Imagine uma casa noturna tradicional, com palco, DJs, pista de dança e luzes coloridas, mas sem música tocando. Parece impossível? Pois, para os criadores da Quiet: a festa dos fones, essa ideia ousada foi colocada em prática e deu muito certo. Cerca de 500 fones de ouvidos sem fio são distribuídos na entrada da boate e cada pessoa pode escolher um dos três canais de músicas disponíveis. Qualquer um pode dançar à sua maneira e curtir o som que mais gostar, no volume que preferir. O silêncio do ambiente é quebrado por casais que querem flertar, amigos que querem conversar, ou, então, pela cantoria dos frequentadores que estão com os fones.
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Inspiradas em boates europeias, essas “festas silenciosas”, como são batizadas, foram idealizadas por ecoativistas preocupados com os efeitos da poluição sonora. E, quando a novidade chegou ao Brasil, a aceitação foi imediata. Em Porto Alegre, a festa dos fones foi criada há cerca de quatro anos pelos produtores do Grupo 203, empresa que gerencia duas casas noturnas na capital gaúcha. Um deles, Hudson Pereira, explica que a referência veio do Rio de Janeiro. “O pessoal do Rio estava produzindo essas festas, com esses mesmos fones. Mas lá elas eram semestrais. Aqui, no Rio Grande do Sul, decidimos implantar a ideia de forma diferente, sem periodicidade certa, mas com mais frequência.” Se você está achando muito estranho, saiba que os baladeiros de plantão, desde o começo, acharam o máximo. “A juventude está sempre sedenta por novidades. Por isso, uma galera logo quis experimentar a experiência, que foi totalmente aprovada”, recorda. E, à medida que
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o tempo foi passando, mais e mais pessoas aderiram a tão intrigante festa, fazendo com que ela seja uma das mais procuradas pelos jovens gaúchos. Mas não é só na capital que rola essa balada. Pereira participa ativamente do processo de disseminação da festa por todo o Estado e conta que a Quiet tem edições em diversas cidades. “Há pouco, estávamos em Santa Cruz. E, antes, em Caxias do Sul”, exemplifica. Além disso, a festa dos fones ocorre tanto no Beco 203 RS, aberto na cidade desde 2004, quanto no Anexo B, inaugurado em fevereiro de 2015, ambos pertencentes ao Grupo 203. Mas quem pensa que tocam sempre os mesmos estilos musicais, não poderia estar mais enganado. A cada edição, rolam canais diferentes. Há noites em que tem pop, hip hop e funk. Outras contam com músicas brasileiras, rock clássico e indie, por exemplo. E por aí vai. As pessoas podem saber qual estilo os outros estão ouvindo a partir da luz do headphone: ver-
de, azul ou vermelho. Mas o que importa mesmo é os convidados não ficarem parados nem por um segundo, pois se a pessoa não gostar da música que está ouvindo, é só trocar o canal que uma batida diferente começará a tocar. Outro fator interessante sobre a festa é a competição que existe entre os DJs para ver quem está agradando mais o público. Há dois anos discotecando na balada, o profissional das pick ups Kinsey garante que é divertido ter o playlist mais ouvido. “É muito legal quando a galera começa a cantar alto a música que eu estou tocando”, revela. Quem colabora com essa opinião é o produtor da balada e também DJ, Hudson Pereira. “Quando o Kinsey mete Anna Julia, dos Los Hermanos, ou Carla, do LS Jack, ele mata todo mundo.”
ESTREANTES Os motivos para ir à Quiet: a festa dos fones são muitos. Apesar
“O tema “Sons” poderia ser muito bom ou muito ruim, dependeria apenas da pauta que eu escolhesse. Minha ideia inicial era falar sobre como os fones de ouvido afetam a nossa sociedade. Afinal, a maioria das pessoas os utiliza diariamente – seja em casa, no trabalho, no transporte. No entanto, ao conversar com Franciélen, a fotógrafa, sobre minha proposta, ela lembrou da Quiet: a festa dos fones, que ocorre no Beco 203. Imediatamente, achei incrível e já reconstruí a pauta em minha cabeça. Mas outro problema surgiu: quando teríamos a oportunidade de ir a esta balada? Eis que no dia 20 de abril, uma segunda-feira, antes do feriado de Tiradentes, ocorreu uma edição da festa. Não no Beco, mas no Anexo B, uma segunda casa noturna pertencente aos mesmos donos. Convicta de que a balada renderia boas histórias, conversei com a fotógrafa para irmos à Porto Alegre, e ela logo topou, apesar de eu morar em Novo Hamburgo e ela, em Esteio. As situações lá dentro foram as mais inusitadas possíveis, pois ninguém estava esperando ser entrevistado dentro de uma casa noturna”
de a balada já acontecer em Porto Alegre há certo tempo, tem muita gente que ainda não tinha se jogado nessa experiência. Este é o caso da Rita Peres, 22 anos, que já frequentava o Anexo B e o Beco 203, mas nunca tinha ido à balada dos headphones. A moça alta, risonha e de cabelos curtos ressalta: “Sempre tive curiosidade de ir a essa festa, pois é uma proposta diferente. Adorei a edição de pop, swag e funk. Essa foi, sem dúvida, uma das melhores baladas que já fui.” Amanda Amorim, de 21 anos, também fez, recentemente, sua estreia na festa dos fones. “Achei incrível! Consegui aproveitar a balada com as minhas amigas de maneira que nunca tínhamos feito antes“, comemora, sublinhando que os canais permitem que pessoas com gostos musicais diferentes possam curtir a mesma festa. Quem também se divertiu muito foi Cíntia Correa, 19 anos. Ela decidiu ir a Quiet pois seu amigo estava louco para comparecer à balada, e não se arrependeu de acompanhá-lo. “Essa festa é muito
engraçada e muito boa! Quero voltar várias vezes”, elogia.
INFLUÊNCIAS Para alguns convidados, existem ainda outros fatores peculiares sobre essa balada. Mateus de Souza Gonçalves, de 26 anos, ressalta que nunca havia visto algo parecido e conta sobre a curiosidade em desvendar qual som as outras pessoas estavam ouvindo. Isso porque, depois de algumas bebidas, os baladeiros se soltam, dançam e cantam de uma maneira que é impossível não notar. Quando a música agrada a maioria, todo mundo adere àquele canal. “Eu ficava curioso para ouvir o que eles estavam escutando e trocava de canal para sintonizar naquele ritmo. A facilidade são as luzinhas que têm na lateral do fone”, opina. Thiago Canali, 26 anos, sente a mesma sensação de Gonçalves. “Eu tenho vontade de descobrir a música que eles estão cantando, pois às vezes é difícil entender o coro. No entanto, se eu gosto, eu fico nesse canal. Caso
contrário, troco novamente”, diz. Camila Maurer, 31 anos, já foi a mais de uma edição da Quiet. Ela acredita que essa balada faz com que as pessoas se soltem mais, percam a vergonha e se sintam mais livres. Afinal, o fone dá a sensação de que você está sozinho quando, na verdade, está rodeado de pessoas. “Eu acho muito divertido”, constata. Quanto à curiosidade em descobrir o que os outros estão ouvindo, ela resume em uma história: “Numa das edições, estava dançando na minha vibe, curtindo o som. Quando vi, dois rapazes pararam na minha frente para me ver dançar e, imediatamente, tiraram os seus fones para sintonizar no meu canal e captar o meu ritmo. Foi, sem dúvida, superengraçado”, finaliza. Mais do que uma simples novidade, a festa dos fones se consagrou como uma das mais divertidas e descoladas do Estado. Quem vê de fora, pode achar estranho. Mas com fone, tudo ganha outra atmosfera. Para isso, bastar sintonizar no seu canal preferido e se jogar na pista de dança! PRIMEIRA IMPRESSÃO
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O som ao alcance das mãos Iniciado em 2014, o projeto Piano Livre liberta as pessoas da rotina ao inserir instrumentos em locais públicos e aproximá-las da música POR PEDRO DE BRITO FOTOS VICTORIA SILVA
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rotina da Rodoviária de Porto Alegre parece uma grande dança não ensaiada. Entre embarques e desembarques, ônibus dão lugar a ônibus e gente dá lugar a gente. É um grande fluxo não interrompido, em que pés ligeiros e malas de rodinha seguem os mesmos movimentos, como que predeterminados. No corredor central, que se divide ao final para dar nos boxes de embarque, é onde se concentra a maior parte do comércio dentro da Rodoviária. Ali, pessoas agarram-se em suas malas como se elas fossem bebês recém nascidos e formam pequenas ilhas sentando-se nos bancos que envolvem os pilares do corredor. Um segurança avança lentamente, os olhos examinando todos os cantos, atento a qualquer som que quebre o padrão que envolve conversas, passos, ônibus, tilintar de talheres e pratos, rodinhas das malas no chão de pedra e a voz da central indicando a partida e chegada dos transportes. Aproxima-se do espaço entre as bancas Miscelanea’s
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e Só Bom, onde há alguns meses um intruso foi deixado. Observa-o por alguns segundos e então baixa a proteção das teclas, puxando o banco, preso por um pequeno cabo, para mais perto do instrumento. De um lado do corredor, um vendedor repreende o segurança pela ação, trocando um sorriso em seguida. O piano é menos convidativo com as teclas escondidas. Ainda assim, atrai a curiosidade dos passantes. Um senhor, aparentando ter superado a casa dos 50 anos há algum tempo, manca até o instrumento. Por um momento, o olhar se perde tentando traduzir a frase descascada disposta no espelho, no nível dos olhos de quem toca. “ I PESSO I SÃO P ANO”, algo que, há algum tempo, já significou “as pessoas são pianos.” Analisa a pintura quadriculada, como uma bandeira de fórmula 1 desenhada sobre a madeira, contrastando com o enfeite no estilo plumas de uma cor que se reveza entre o rosa e o roxo de acordo com a luz. O homem dá uma tragada no cigarro e segue seu caminho, ultrapassado pela pressa dos demais. Do balcão da banca Tio Patinhas, os vendedores têm visão
privilegiada dos músicos e curiosos que fazem uso do piano. Há 40 anos registrando a Rodoviária através das lentes, o tagarela “Castelhano Fotógrafo”, como é conhecido no local, reclama dos que não conseguem domar as teclas do instrumento. “Quase nunca tem alguém que saiba tocar. De dez, dois são bons”, comenta, com o sotaque de quem já não sabe se fala a língua mãe ou a estrangeira. Do outro lado do balcão, vem a resposta
com gritos da vendedora. “O piano é livre, Castelhano!” Outra vendedora da banca, Lourdes Sosmaiar, 32 anos, se diverte com a cena. “Vale a pena. A gente se acostuma, às vezes aparece alguém tocando e dá show.” Na banca em frente, a Express Cafeteria, Salete Duarte Baptista, 53 anos, parece compartilhar da visão do Castelhano. Reclama do ouvido castigado pela experimentação dos menos dominantes da prática musi-
cal. “Tem muita gente que só faz barulho. Gosto quando aparece uns aí que tocam Elton John, John Lennon, daí a gente até aplaude.” Apesar de fazer parte do grupo que não domina o instrumento, Salete não abriu mão de experimentar. “Já tentei tocar, já tentei sim. Às vezes a gente vai ali, quando não tem ninguém. Mas não posso, né? Porque daí fazem B.O., vou presa pelo barulho”, brinca. Do outro lado do corredor, na
banca Só Bom, Hildo Depauli, 60 anos, corre os olhos rapidamente para o intruso instrumento cada vez que um músico ou curioso em potencial se aproxima. Um conhecido aparece para marcar um café. Enquanto conversam, os dois pares de olhos se mantém fixos no piano. “Ainda vou aprender a tocar isso aí, tu vais ver”, comenta o homem ao se despedir. Há 40 anos trabalhando como atendente na Só Bom, Hildo já conhece de vista PRIMEIRA IMPRESSÃO
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os personagens que costumam trazer boa música. “Tem uma senhora que passa aqui diariamente, acho que é professora. Toca uns quinze minutos e vai embora”, conta. No Mercado Público, outro piano já se tornou parte da paisagem. Entre as diversas bancas, no centro do mercado, o instrumento é alvo de fotos ao mesmo tempo em que se camufla enquanto algumas pessoas se debruçam e outras tocam. Moradora de Estância Velha, a família Soares da Silva se encantou pelo intruso. Enquanto a filha Livian, 10 anos, tenta extrair melodias das teclas, os pais Tobias, 41, e Marinês, 39, observam sorridentes. “Ela nunca tinha tocado, é um instrumento difícil de termos acesso”, comenta Tobias. A sensação é a mesma para Solange Novaes, 31 anos, moradora do Humaitá. Acompanhada da mãe Delcia, 61, ela observa a filha Alice, 10, conversar em silêncio com o instrumento. “Ela via as pessoas
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tocando piano na novela e também queria tocar. Achei muito bom esse projeto, não conhecia”, conta. Os vendedores das bancas próximas ao instrumento compartilham do olhar zeloso encontrado na Rodoviária. Entre os sons característicos do local, quase não se escuta quando alguma tímida alma tenta produzir algo teclando no instrumento. Do segundo andar do mercado, os seguranças observam atentos o movimento em torno do piano, quase o olhar de uma mãe que cuida o filho brincando à distância. A conservação dos instrumentos conta com fiscalização feita regularmente. De qualquer maneira, a ajuda também parte dos demais guardiões do piano; os que compartilham do espaço com o intruso barulhento. Na banca 25, Jaqueline Silva Vargas, 33 anos, se preocupa com a condição do instrumento. “Já vimos gente que vem pra estragar, fica batendo nas teclas. A gente nota quando eles vêm pra estragar e já
avisamos os seguranças. Esses tempos a gente conversou com o fiscal e tinha quebrado uma tecla”, conta. Jaqueline é mais uma que aprova a ideia de trazer os instrumentos para perto das pessoas. “Tem tanta coisa errada no mundo, não é? Acho importante quando têm essas ações, a gente vê as pessoas motivadas”, comenta.
DEZ PIANOS EM PORTO ALEGRE Os pianos da Rodoviária e do Mercado Público são apenas dois de uma família maior que compõem o projeto Piano Livre. No final de 2014, a parceria entre a produtora Mata Hari e a Secretaria de Estado da Cultura, responsável pelo financiamento, distribuiu dez instrumentos em locais estratégicos dentro da capital gaúcha e região metropolitana, levando em conta o volume de trânsito de pessoas e potencialidades culturais,
“Minha proposta, depois de acompanhar textos do escritor Gay Talese em outra disciplina, foi de tentar me aproximar de sua narrativa, toda construída em cima da observação. O desafio seria encontrar tempo para reunir dados suficientes que me possibilitassem invocar as imagens que eu queria dentro do texto. Felizmente, os locais em que os pianos foram colocados têm certa rotina que me deram a segurança para construir um cenário próximo do real. As pessoas com que conversei nos locais também me passaram informações próximas, confirmando a fala do outro, e isso me convenceu de que seria possível dar vida ao local. Ainda muito longe do grau de excelência de Talese, que acredito ser dificílimo alcançar, procurei focar no que estava mais próximo e nos personagens comuns. Nunca havia feito o exercício de observação antes, apesar de ser fã assumido do jornalismo literário, e vejo que foi um passo interessante e importante. Quanto ao tema, julguei ideal para o tipo de texto, pois traz personagens inanimados passíveis de descrição, como são os instrumentos”
O mapa da música O projeto Piano Livre distribuiu 10 pianos em pontos estratégicos da capital gaúcha, aproximando o público da arte l Escola Municipal Professora Judith Macedo de Araújo Artista: Lídia Brancher Tema: musicalização infantil
lEstação Mathias Velho do Trensurb, em Canoas Artista: Cadu Peixoto Tema: jazz
l Escola Municipal José Mariano Beck Artista: Cauan Rolim Tema: musicalização infantil
l Bairro Restinga (Esplanada da Restinga) Artista: Daniel Eizirik Tema: música brasileira
l Rodoviária de Porto Alegre Artista: André Venzon Tema: tango
estudantis e turísticas. A iniciativa foi inspirada no inglês “Play Me, I’m Yours”, que tomou a Europa em 2008 e, até hoje, já levou mais de 1,3 mil instrumentos a mais de 40 cidades por todo o globo, atingindo cerca de 6 milhões de pessoas e incentivando a cultura através da inserção da música em locais públicos. Em Porto Alegre, os pianos foram decorados por artistas locais, cada um com um tema e personalidade diferente. E foi ao encontrar o instrumento trabalhado pelo artista André Venzon, com o tema tango - aquele mesmo que traz a frase “as pessoas são pianos” em letras descascadas -, uma das poucas vezes em que Camila Prado, 20 anos, tocou piano. Acostumada com o som das teclas do teclado Yamaha em que começou a tocar aos 8 anos, a estudante de Relações Públicas da UFRGS aproveitou o tempo livre após a aula para procurar o instrumento na Rodoviária. “Eu sabia do projeto e que tinha
l Mercado Público de Porto Alegre Artista: Ananda Kuhn Tema: ragtime e blues l Bairro Floresta (Rua São Carlos, esquina com Gaspar Martins) Artistas: Victor Nievas e Barbara Benz Tema: jazz
um piano aqui, mas não sabia onde. Então estava procurando”, conta. Camila senta-se no banco preso ao instrumento por um pequeno cordão, inspira, e desanda a experimentar diferentes notas e acordes, até se decidir pela balada Just Like a Woman, de Bob Dylan. Devagar, os passantes param e se aproximam. Outros diminuem a velocidade para tentar extrair o máximo do momento. Algumas pessoas conversam entre si, outras apenas elogiam pelo olhar. A velha rotina de dança não ensaiada é quebrada, e, por um momento,
l Restaurante Universitário da UFRGS Artista: Angela Longo Tema: música experimental e contemporânea lHospital de Pronto Socorro de Porto Alegre Artista: Carla da Cunha Barth Tema: música erudita l Usina do Gasômetro Artista: Chana de Moura Tema: lúdico
todos são espectadores de outra dança, formada por dedos e teclas. O tempo de Camila acaba. Ela precisa ir embora. Assim que ela levanta do banco, os aplausos iniciam. Alguns se aproximam para elogiar. Camila parece satisfeita. “Isso é importante. É importante por mostrar que a cultura é para todos”, diz. O momento mais uma vez se perdeu, e a dança continua na mente daqueles que, por um momento, formaram uma grande orquestra. Uma orquestra que inclui uma pessoa tocando um piano, e um piano tocando as pessoas. PRIMEIRA IMPRESSÃO
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Imagens sonoras O papel do som na apreensão do mundo pela faceta de quem não enxerga POR JOYCE HEURICH FOTOS GLAUCIA DAMAZIO
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s óculos escuros disfarçam o que a bengala revela. É com a ajuda dela que Valdir da Silva, 39 anos, dribla os obstáculos que bloqueiam a sua passagem quando se desloca de Porto Alegre até Canoas - cidade vizinha. Todos os dias, pega dois ônibus e dois trens. No caminho, sons que se misturam. Conversas paralelas. Cachorros latindo. Carros e motos acelerando. Músicos de rua tocando. Crianças chorando. Buzinas gritando. Ah, o som da COMPANHEIRA buzina, bibiiiiiiiiiiiii, é o barulho Cego há 15 anos, que mais desnorteia Valdir. “Inco- Valdir da Silva nunca moda muito e atrapalha a minha viu o rosto da filha concentração para atravessar a Vitória, que o auxilia rua”, comenta. Se em alguns nas caminhadas pelo momentos o som atrapalha, em Centro da Capital muitos outros ajuda. As botoeiras sonoras instaladas nas sinaleiras emitem um som quando o sinal está verde e avisam ao deficiente visual que a pista está liberada para o trânsito dos pedestres. “Isso facilita bastante, mas não são todas que contam com esse recurso”, observa Valdir. “Ô, ceguinho, sobe aqui!” Alguns motoristas já o conhecem. Caso contrário, o jeito é pedir ajuda para as pessoas que também aguardam por um ônibus na parada. Se, por ventura, o ponto estiver
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vazio... Bem, aí Valdir tem um problema. O jeito é aguardar e prestar mais atenção ainda nos sons. E, enquanto espera, perde algumas oportunidades. Só que esses contratempos já não o incomodam mais. Passados 15 anos do acidente, já está vacinado. Valdir trabalhava em uma fábrica de calçados, na região do Vale do Sinos. Tinha 24 anos. Auxiliar de montagem, ele ensinava um iniciante a lixar uma palmilha quando a ponta de uma tacha atingiu o seu olho esquerdo. A reação involuntária de Valdir, por conta da dor, acabou agravando a lesão. O olho também foi atingido por um solvente. No hospital, após uma infecção generalizada, o direito acabou afetado. A visão foi se perdendo aos poucos e, à medida que os objetos começavam a ser substituídos por luzes e formas em preto e branco, os demais sentidos iam sendo potencializados. “O som, para nós cegos, é a nossa
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visão”, ressalta o homem que garante ouvir, por vezes, até mesmo o barulho de insetos caminhando. Ele não é super-herói, mas poderia, muito bem, ter inspirado a criação do personagem de quadrinhos da Marvel Comics Demolidor, o segundo herói cego de HQ, que possui os sentidos apurados. O primeiro foi o Doutor Meia-Noite. Valdir conta que sempre foi, predominantemente, visual. Hoje, percebe o quanto os outros sentidos enriquecem sua apreensão do mundo. “Esse som, por exemplo, é um cego que está vindo, passando aqui atrás”, presume. “Pelo cheirinho, é cachorro-quente. Pelo barulho, está passando um ônibus agora”, ele tenta adivinhar. São signos que fazem sentido no imaginário de alguém que enxergou por 24 anos. Na mão direita do homem de cabelos escuros e barba média, dois anéis de pedra vermelha, que sempre o acompanham. Na esquerda, uma aliança. Valdir
é casado com uma mulher que enxerga e o auxilia nas tarefas diárias. Ela é madrasta de Vitória, filha de três anos de Valdir, fruto do antigo relacionamento. Ele já havia sofrido o acidente quando se tornou pai. Nunca viu o rosto da filha, mas, na sua imaginação, construiu a imagem da menina de cabelos castanhos na altura dos ombros, olhos azuis e pele branca – conforme lhe descreveram. Tem acompanhado o desenvolvimento dela através da voz, desde os primeiros murmúrios, até que dominasse a fala, suficientemente, para pedir o algodão doce da Peppa Pig, caindo nas tentações que permeiam o centro da Capital. Sem lembrar que o pai não pode enxergar, enquanto passeiam, Vitória aponta para tudo o que lhe chama atenção. “Olha, papai!”, ela grita. Fiel escudeira de Valdir, quando vão ao supermercado, é Vitória quem dita o caminho. “Eu digo para ela me levar até o local onde ficam os pães, ela me leva. Agora, para saber os preços e se é integral, ou não, aí fica um pouco mais complicado”, ele conta em tom de brincadeira. Também nunca viu a atual esposa, mas a reconhece pelo perfume e pelo som de seus passos. Sabe como está o seu humor através da energia que transmite. Pelo tom de sua voz, pode definir se ela está triste, ou feliz. “Antes, eu não conseguia distinguir essas coisas, não tinha essa sensibilidade tão desenvolvida”, lembra Valdir. Ele se utiliza dos mesmos elementos para fotografar. Apurou tanto os sentidos, após o acidente, que descobriu que podia fazer fotos que pessoas que enxergam, provavelmente, não fariam. Registrar pessoas e lugares virou sua paixão. “Não fotografo alguém pela beleza, mas sim pela energia que ela transmite, pelo seu estado de espírito. Fotografo a essência”, revela. Os objetos mirados pela lente de Valdir são determinados, principalmente, pelo som e pelo toque, aliados à memória do tempo em que enxergava. O neuropsicólogo Marcelo Rigoli explica que existem evidências de uma maior ativação de áreas cerebrais, normalmente visuais, em tarefas não visuais em pessoas cegas se comparadas a pessoas que enxergam. Em alguns casos, acontece um redirecionamento das populações de neurônios, que originalmente seriam dedicadas ao sentido perdido, para os que permanecem funcionais. “Esse processo tem como objetivo geral compensar as funções perdidas ou lesionadas com o acidente”, esclarece.
AUDIÇÃO APURADA
tremer. É como se ela enxergasse o mundo através de um vidro embaDados do Censo de 2010 do çado, ainda que utilize dois óculos Instituto Brasileiro de Geografia e Es– um, especialmente, para leitura, e tatística (IBGE) revelam que, no Brasil, outro para uso diário. Mesmo assim, mais de 500 mil pessoas são cegas precisa ficar a menos de um palmo e cerca de seis milhões têm grande dos livros, do celular, ou do notebook, dificuldade permanente de enxergar. para conseguir ler os textos. “O olho Paula Neves, 17 anos, está neste sedói para ler”, reclama. A professora gundo grupo. A menina, moradora de inglês, Cíntia Mello, observa que de Gravataí, na região metropolitana a escrita da ex-aluna fica aquém da de Porto Alegre, tem aulas de inglês fala, já que a comunicação verbal e há cinco. Já consegue expressar suas a pronúncia das palavras dependem ideias na língua estrangeira sem titude um ouvinte atento, enquanto o bear, defendendo seu ponto de vista estudo da gramática exige muita leicom clareza. Tamanha facilidade na tura. “Os exercícios de compreensão comunicação pode ter relação com auditiva são muito fáceis para ela. A a doença do gato, como é conhecida Paula apresenta uma discriminação popularmente. muito boa de vogais”, elogia a proPaula tem toxoplasmose congêfessora. Em busca do sonho de viajar nita – uma doença infecciosa transmipara a Inglaterra – desejo que deve se tida da mãe para o feto, em decorrênconcretizar em 2016 –, a adolescente cia da ingestão de carne mal passada deixou a vergonha de lado e adotou contaminada. Tal condição lhe trouxe essa postura não só nas aulas de dificuldade para enxergar – problema inglês, mas na sua rotina. “Aprendi que foi se agravando com o passar do a me comunicar bastante para comtempo. Hoje, tem 3,5 graus de miopia pensar a dificuldade de enxergar. Eu no olho esquerdo e 5,5 no direito. Seu tive que aprender a não ser tímida, olhar fica ziguezagueando porque dependo muito todo o tempo, mas Paula ATENÇÃO REDOBRADA das pessoas”, explica. diz que nem percebe ele Paula Neves tem Paula faz Magistégrande dificuldade de enxergar devido à toxoplasmose
rio e está no terceiro ano do Ensino Médio. Utiliza o transporte público para se deslocar. “Ainda não tenho idade para dirigir e já sei que, mesmo quando fizer 18 anos, não será possível”, lamenta. Assim como Valdir, ela conta com a boa vontade das pessoas para entrar no ônibus certo. Ao atravessar a rua, não consegue enxergar os carros que, aos poucos, se aproximam. Nesses momentos, conta com o auxílio da audição, que foi ficando cada vez mais apurada. Na escola, usa um notebook onde aumenta as letras e digita o conteúdo conforme o que os colegas ditam para ela. “Não consigo enxergar o quadro, aí conto com a ajuda dos amigos”. Quando a turma está agitada, a dor de cabeça começa. “Não entendo nada quando tem muita conversa aglomerada e me incomoda, porque os sons são muito notórios para mim”, comenta. Dois perfis diferentes, um ponto de interseção. Para Valdir e Paula, o som adquiriu uma importância crescente na rotina. A audição virou protagonista entre os sentidos e assumiu o papel de interpretar e encenar a realidade que, diante dos olhos, faz-se obscura.
“Quando o tema da edição foi escolhido, logo me pareceu desafiador. Contar uma história relacionada a sons, traduzir sons em palavras. Foi muito prazeroso e instigante o processo de escrita dessa reportagem e os personagens escolhidos colaboraram espontaneamente para que assim fosse. Não economizaram nos detalhes. O que Valdir e Paula deixaram de mencionar, pude captar através da observação, exercitando o olhar atento que todo jornalista deve ter. Os dois fizeram eu me sentir muito à vontade, enquanto repórter, para abordar um assunto delicado, à primeira vista. Com direito a cafezinho e algodão doce (para a Vitória), foram bate-papos muito agradáveis, que me surpreenderam. A deficiência visual carrega uma carga dramática que procurei desconstruir a partir de um texto leve, como a leveza que encontrei nos depoimentos, na maneira como enxergam o mundo e levam a vida, mesmo diante de alguns obstáculos. Despedi-me de pessoas dignas, que têm seus problemas como todos nós, mas que encaram tudo isso com os sentidos apurados e uma dose de bom humor”
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“Caminhando e cantando e seguindo a canção. Somos todos iguais, braços dados ou não. Nas escolas, nas ruas, campos, construções. Caminhando e cantando e seguindo a canção”.
D 15.03.2015 Manifestantes gritam pelo impeachment da presidente
Pra não dizer que não falei das flores e os movimentos políticos atuais POR LUANA CHINAZZO MÜLLER FOTOS FABIANO SCHECK
ia 12 de março de 2015, no Largo Glênio Peres no Centro de Porto Alegre, foram ouvidos os acordes de um dos maiores hinos políticos nacionais. Pra não dizer que não falei das flores (ou Caminhando, como é popularmente conhecida), música de Geraldo Vandré, foi apresentada pela primeira vez ao público no Festival Internacional da Canção da TV Globo, em 1968, pelo próprio compositor, ficando em segundo lugar, atrás de Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. Logo Caminhando se tornou um símbolo da resistência ao regime militar, sendo adotado na luta contra o governo autoritário pelos movimentos civis e estudantis da época. No dia 12, a música foi trilha para a luta de diversas siglas diferentes: CUT, MST, CONAN, CPERS, UJS, MNLM, CTB, Movimento das Mulheres Campesinas, Movimento Negro. De partidos de esquerda e do Partido dos Trabalhadores, Governo Federal atual. A manifestação chamada pela Central Única dos Trabalhadores foi em defesa da Petrobras e do governo da Presidente Dilma Rousseff. Logo a voz de Vandré foi acompanhada por gritos e cantos organizados: – Essa luta é nossa, o petróleo é do povo! – Quem não pula é golpista! (cantada em meio aos saltos dos manifestantes). – Povo na rua para resistir, para lutar. Povo que avança para o poder popular! – Reforma política tem que acontecer, eu quero ver o povo e as mulheres no poder! A manifestação, que aconteceu em Porto Alegre no dia 12 março e no resto do Brasil no dia seguinte, tinha como bandeira a luta pela reforma política, o desejo de maior presença popular na política nacional e a exigência de que os votos que elegeram a presidenta em novembro do ano passado sejam respeitados. E ainda outras demandas particula-
res a cada movimento, como maior investimento na educação, defendida pelo Centro dos professores do Rio Grande do Sul e pela União da Juventude Socialista, e a reforma agrária, defendida pelo MST e pelo movimento Campesino. “Se a burguesia quiser dar um golpe de novo, nós vamos ocupar e acampar nesta praça, e preparar uma marcha para enfrentar os golpistas em Brasília”, gritou João Pedro Stédile, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, do alto do carro de som estacionado na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini. A fala de Stédile completava as vozes da banda da Via Campesina, que acabara de cantar: “O nosso direito só a luta faz valer”.
“Pelos campos há fome em grandes plantações. Pelas ruas marchando indecisos cordões, ainda fazem da flor seu mais forte refrão. E acreditam nas flores vencendo o canhão” Pra não dizer que não falei das flores foi escrita logo após a Marcha dos 100 mil, que em 26 de junho de 1968 levou milhares de pessoas às ruas do Rio de Janeiro para pedir o fim da ditadura. Mesmo que haja declarações atuais de Vandré negando intenção de protestar contra os militares, fica evidente a conotação política da letra feita pelo Guevara de Ipanema, como fora apelidado o cantor por causa das semelhanças físicas com um dos líderes da Revolução Cubana. Em 15 de março de 2015, a avenida Goethe foi palco para uma manifestação de ideologia oposta à do dia 12. Nesta, milhares de pessoas marcharam contra a corrupção, pela privatização da Petrobras e pelo impeachment da presidente Dilma. Em comum nos dois grupos políticos, apenas a música de Vandré, que, desta vez, retumbava acompanhada por gritos de: – Fora PT! – O povo acordou! – Polícia armada, também é explorada! – A nossa bandeira jamais será vermelha! E outros, todos direcionados especialmente à presidenta, ao exPRIMEIRA IMPRESSÃO
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-presidente Luís Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores. Os gritos estavam acompanhados de apitos e cornetas nas cores da bandeira nacional. O ambulante Feles Fernando Oliveira dos Reis cobrava R$10 por corneta e afirmava que era o item que mais saía: “Já vendi mais hoje do que durante a Copa no ano passado”. O empresário e morador de Porto Alegre Moacir Cabrera não foi um dos clientes de Seu Feles nesse dia, ao ser questionado quanto à origem da buzina que carregava, ele riu: “Comprei na Copa”. Outro instrumento presente eram as panelas, já consideradas um dos símbolos da manifestação antigoverno. A dentista Angela Fernandes, que protestou com uma frigideira, disse que aderiu ao utensílio desde o panelaço que aconteceu durante um pronunciamento da presidente Dilma em rede nacional de televisão
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no início de março. Outro elemento musical recorrente na manifestação verde e amarela era o Hino Nacional, cantado a plenos pulmões pelos manifestantes, mas logo substituído novamente por gritos de “Fora PT”. O que chamava atenção nessa manifestação era que a música não tinha um papel tão relevante, o que ganhava o público eram os gritos de guerra, pronunciados com toda a força. Para a professora Aline Cadaviz e para o comerciário Angelo Borba, que saíram de São Leopoldo, cidade a cerca de 35 quilômetros de Porto Alegre, para “ver o que estava acontecendo”, a opção pelas palavras de ordem exemplificam bem o caráter do protesto: “O ódio junta as pessoas. Eles querem pôr esse ódio para fora, é um desabafo da indignação”, defendeu Aline. “Mas não há muita coerência no discurso.
A raiva é irracional quando não canalizada para o caminho certo”, completou Angelo.
“Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição de morrer pela pátria e viver sem razão” O hino da resistência feito por Geraldo Vandré não passou despercebido pelos militares. Após a emissão do Ato Institucional Número Cinco (AI-5) em 13 de dezembro de 1968, que instaurou os anos de chumbo no Brasil, com a prisão dos cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso, Vandré, temendo o mesmo fim, fugiu para o Chile, onde viveu exilado os anos seguintes. O cantor voltou ao Brasil em 1973 após um acerto com os militares que garan-
tia sua segurança. Chegando ao Brasil, Vandré deu uma entrevista à Rede Globo afirmando que não tinha nada contra os militares e voltava ao país para fazer canções de paz e amor. Em 12 de abril de 2015, um grupo de cerca de 200 pessoas marchou pedindo a intervenção militar. Com cartazes com dizeres como Want action, contitutional military now (“Queremos ação, intervenção militar constitucional agora”) e “SOS Forças Armadas”, os defensores do regime militar caminhavam em um silêncio que só foi rompido em dois momentos: durante a execução do Hino Nacional e durante os acordes de Pra não dizer que não falei das flores. Dessa vez, a letra original foi substituída por uma paródia que dizia: “Lula vai embora que o Brasil não quer você e leva a Dilma junto, vagabundos do PT”. Embora possa haver certo estranhamento em ouvir as notas de Caminhando em um contexto tão diferente ao usado historicamente, há quem diga que Vandré passou a ser um amante das Forças Armadas, escrevendo inclusive uma música em homenagem à Força Aérea Brasileira. A música chamada Fabiana soa como um contraponto
12.04.2015 Manifestantes brandam pela intervenção militar
à Caminhando em alguns momentos, como no refrão: “Vive em tuas asas todo o meu viver, meu sonhar marinho, todo amanhecer”. Em um momento com movimentos e ideologias tão distintas no cenário político nacional, encontrar uma semelhança que os une é de certo modo surpreendente. Desconsiderando as diferentes conotações políticas que são atribuídas à obra de Geraldo Vandré, ainda hoje, 47 anos após sua criação, Pra não dizer que não falei das flores segue como uma das músicas mais relevantes para a política brasileira. Seguimos:
“Caminhando e cantando e seguindo a canção. Aprendendo e ensinando uma nova lição”
“Para mim foi muito interessante acompanhar os movimentos políticos em Porto Alegre durante os meses de março e abril para compreender melhor nosso cenário político atual e reafirmar minha posição nele. Ao todo, acompanhei cinco manifestações, embora mencione três na reportagem. A ideia de retratar os diferentes anseios políticos por meio da mesma música aconteceu conforme descrito no texto: Pra não dizer que não falei das flores teve papel de destaque na sonoridade nas manifestações mencionadas no texto, em todos os momentos sendo cantada com força e emoção pelos manifestantes. Gostaria de ter conversado com Geraldo Vandré sobre o significado atribuído por ele à canção, mas, como desde a volta do exílio o autor evita conversar com jornalistas ou dar entrevistas, minhas informações foram reunidas por pesquisa indireta, principalmente com o documentário O que sou nunca escondi, produzido por alunos de Jornalismo da PUC-SP em 2009”
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Uma vida em mono
A história de uma bailarina com audição parcial que quebrou paradigmas e superou os limites impostos pelo som POR BÁRBARA MÜLLER FOTOS ROBERTO CALONI
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udo na vida emite algum som, que nos remete a algo, nos lembra de alguém. A música, por exemplo, desperta em nós emoções. Algumas até que preferiríamos deixar dentro de uma caixinha bem pequena no canto de um quarto escuro. Outras nos fazem querer pular, cantar, gritar, dançar, estar em movimento, deixar o corpo falar de acordo com o ritmo musical. Se fôssemos como canais de áudio, poderíamos ser classificados como mono, stereo, ou até mesmo mute. “Vivemos mergulhados em um oceano de sons. Mergulhados em sons. E em música. Em todo lugar, a qualquer hora. Respiramos música, sem nos darmos conta disso.” A citação é do musicólogo italiano Gino Stefani, e é uma das reflexões preferidas da bailarina Maria Tereza Furtado, ou Teté, como muitos a chamam. Olhos castanhos, cabelos na altura dos ombros, andar suave e mãos inquietas, sincronizadas com a fala. Simpática, bem-humorada, alto astral, uma mulher adulta que não deixou o seu espírito infantil enrijecer com o passar dos anos e que ama, em todos os sentidos possíveis, a música e a dança. Consequência da rubéola que a mãe, Nina, contraiu aos dois meses de gestação, o mundo de Teté é mono. Todos os sons que são emitidos ao redor dela só podem ser escutados através dos 80% de audição que ela possui no ouvido direito. À época, na década de 1970, a maioria aconselhava o aborto, já que o bebê poderia nascer cego, surdo, ou com deficiências físicas e mentais. A recomendação não foi seguida pelos pais, e no dia 30 de maio de 1977 nasceu aquela que viria a ter uma relação curiosa com a música e a dança. “De certa forma, a história do meu nascimento foi determinante para eu ter essa paixão pela música”, diz Teté com entusiasmo. Ela conta que sua audição sempre foi estimulada desde os primeiros dias de vida, quando a mãe colocava canções de um vinil da Turma da Mônica para ela dormir. O médico ginecologista e obstetra Leandro Netto explica que não existe um tratamento efetivo para a rubéola na gestação. “A melhor forma de tratar é prevenindo com a
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vacinação obrigatória nas meninas até os 15 anos (vacina tríplice viral contra o sarampo, caxumba e rubéola) e evitando o contato com adultos e crianças infectadas”, explica. Netto ainda recomenda: “Caso a mulher engravide sem estar vacinada, deve, logo após o parto, mesmo no período de amamentação, ser vacinada, evitando a transmissão em uma futura gravidez”. Para a bailarina, ser mono não é um problema. “Sabe quando tem aquele festão ao lado da sua casa e você quer dormir? E quando você é quem está no maior festão e quer falar no celular, no meio da pista de dança? Ou quando você quer sentar em um restaurante e conseguir entender o noticiário na TV mesmo sem volume, com a leitura labial? Pra mim, isso é muito tranquilo”, conta entre uma risada e outra. Aos seis anos, Teté começou a dançar por diversão, mas não queria fazer balé. “Eu gostava mais daquela dança de academia, mais agitada”, comenta. Quando começou a dançar, não sabia que era surda, descobriu aos oito anos. “Comecei a notar quando eu atendia ao telefone e ouvia mais ou menos em um ouvido, e não ouvia nada no outro. Eu pensava que aquilo era normal, que todo mundo também era assim, e aí a minha mãe me contou a história da gravidez”, explica. Foi se dedicar à dança como profissão somente aos 22 anos, quando trocou um emprego estável em uma agência publicitária para ser professora de dança e dona do seu próprio negócio. “Sou formada em Publicidade e Propaganda. Eu tinha um emprego ótimo, mas precisava fazer o que eu realmente amava. Então juntei dinheiro e larguei tudo para abrir uma escola de dança”, revela.
QUEBRANDO A BARREIRA DO SOM Dançar no ritmo da música, seguir uma coreografia, não ouvindo completamente aquilo que está tocando não parece ser uma tarefa fácil. Talvez possa até parecer impossível. Mas para Teté não é. Porque ela se deixa envolver pelo sentimento, sente a música e não apenas segue a contagem de “cinco, seis, sete, oito”.
É como se a dança fosse uma parte externa do corpo dela. Ela recorda, com carinho, um dos momentos mais inesquecíveis de sua vida: “Uma vez, dancei no Teatro Bruno Kiefer, na Casa de Cultura Mario Quintana, em um espetáculo com sessões especiais para surdos. Todo o público era de pessoas surdas. Foi muito estranho pensar que poderíamos ter dançado sem música. Ao final do espetáculo, todos de pé, levantaram os braços e sacudiram as mãos (aplausos em Libras). Sem dúvida, um dos momentos mais lindos que vivi com a dança”. Teté conta que desenvolveu, com o passar dos anos, a técnica da leitura labial: “Quando a pessoa não consegue escutar, ela se torna mais observadora, acaba aguçando os outros sentidos”. Em janeiro deste ano, a bailarina fez um curso de Libras. Foi colega de pessoas que, assim como ela, possuíam alguma deficiência auditiva, e outras que eram parentes de surdos. “No fim do curso, tivemos uma saída de campo. Nós só podíamos nos comunicar em Libras, e, na ocasião, tínhamos que comprar uma caneca. Então, foi uma situação bem diferente, porque as pessoas que nos atenderam não sabiam como reagir. Fomos em um 1,99 e o atendente foi muito atencioso. Depois fomos a um supermercado e o gerente foi muito grosseiro com o grupo”, lembra. A dançarina também criou uma coreografia inspirada em Libras chamada Balada, que foi premiada no 5º Festival de Dança de Florianópolis e no Festival de Dança de Joinville de 2014. “A Balada foi inspirada em uma experiência que tive quando fui a uma danceteria na época. Tinha rompido um relacionamento há pouco, e uma amiga me convidou para sair. A noite foi um desastre. Detestei. Procurei expressar bem todo o tédio que eu senti durante a noite”, revela bem-humorada.
O PRIMEIRO SOLO Na área da dança, uma das pessoas que mais marcou a vida de Teté foi Heloísa Bertoli. “Foi ela quem me deu o primeiro solo de dança contemporânea, gosto muito dela”, comenta
“O tema ‘Sons’ não me agradou muito no início. Fomos desafiados a buscar pautas que fossem interessantes, pertinentes e que não deixassem a revista repetitiva, o que não foi tão fácil assim. Mas conhecer a Teté, ouvir e ter a oportunidade de contar a história dela foi o que de melhor aconteceu com a minha pauta. Eu e o Roberto Caloni, fotógrafo, fomos em um sábado à tarde a Porto Alegre para fazer a matéria. Fomos sem roteiro, ou ensaio, não tínhamos a menor ideia de como seria a entrevista, ou se ela aceitaria e teria paciência de fazer fotos que fugissem do retrato. A experiência saiu muito melhor que a encomenda. Foram cinco horas de muita conversa, histórias, risos e até uma palhinha do show que a bailarina dá quando dança. Tivemos a sorte de encontrar um personagem que fosse de corpo e alma o tema desta Primeira Impressão. A história de Teté é mais um dos presentes que o jornalismo me deu. É mais um aprendizado para a coleção de histórias que eu já tive a felicidade de contar”
DANÇA Para Teté Furtado, o que começou como uma brincadeira se tornou sua profissão a bailarina. Apaixonadas por dança, as duas já se conhecem há mais de uma década. “Quando eu a conheci, ela ainda não dançava contemporâneo. Dei a ela o primeiro solo. É o que todo mundo quer, mas o coreógrafo só dá quando vê que o bailarino tem potencial”, explica Heloísa, e completa: “Têm bailarinos que só passam pela vida da gente, têm outros que ficam. A Teté é como uma filha para mim”. Sobre Teté, a professora é só elogios. “O bom bailarino é aquele
que dá o melhor de si, que é assíduo nas aulas, que dança bem, que é disciplinado. E ela tem todas essas características. Não tem professor e coreógrafo que não se agrade com o jeito dela”, conta em um tom carinhoso. Atualmente, Teté já não é mais diretora da escola de dança que abriu. “Eu vendi porque vi que estava cuidando mais da parte burocrática do que fazendo o que mais me faz feliz”, justifica sem arrependimentos. Hoje
ela dá aula de dança em quatro escolas para crianças e adolescentes entre seis e 17 anos, ao total são 126 alunos. No ano passado, Teté concluiu o mestrado em Artes Cênicas na UFRGS. Fez um estudo relacionando o método utilizado pela coreógrafa alemã Pina Bausch com a psicanálise. “Não estou interessada na maneira como as pessoas se movem, mas no que as faz mover”, declarou certa vez Pina. Teté encontrou em sua própria história um motivo para dançar. PRIMEIRA IMPRESSÃO
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Os ruídos da
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omo você reage ao ouvir alguém mastigar, assoviar, roncar, fungar, gorgolejar ou bater uma caneta? Saiba que esses ruídos podem levar algumas pessoas à ira. A maioria consegue viver suas vidas comumente e compreende que tais barulhos fazem parte do cotidiano. Porém, existe uma pequena parte da população que desenvolveu uma sensibilidade
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extrema a sons de atos específicos, como esses mencionados acima. E essa aversão tem nome: misofonia. Conhecida como Síndrome de Sensibilidade Seletiva de Som, ou S4, a doença foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde somente na década de 90 e pesquisada pelos neurocientistas americanos Pawel Jastreboff e Margaret Jastreboff. A enfermidade é pouco estudada e, para muitos, ainda é um mistério.
O termo misofonia significa “ódio ao som”, e a condição pode ser desencadeada por uma ou mais experiências negativas ou traumas relacionados aos ruídos. A fonoaudióloga Paula Ferreira Ranheri, de Porto Alegre, ressalta: “Não são todos os barulhos que geram desconforto aos misofônicos, são sons específicos”. Entre os mais comuns estão mastigação, roncos, o roer das unhas, pingos d’água e vozes específicas de pessoas.
Sensação de raiva devido a sons específicos, como os da mastigação, não é à toa. É sintoma de uma doença pouco conhecida: a misofonia POR ANA PAULA ZANDONÁ FOTOS MARIANA BLAUTH
irritação Inclusive, é importante ressaltar que, embora relacionada a sons, a misofonia é basicamente emocional: “É muito mais conectada com o sistema límbico (emocional) do que com o auditivo”, revela a fonoaudióloga. Segundo o site britânico Misophonia, os sintomas da síndrome podem aparecer em qualquer idade. Os portadores da enfermidade costumam reagir com irritabilidade, raiva, pânico, isolamento e, às vezes,
violência quando expostos ao ruído o qual detestam. A fonoaudióloga diz que já presenciou casos em que portadores optaram por se retirar de locais onde havia os barulhos “irritantes”: “Um paciente meu estava sentado na sala de espera do consultório quando uma senhora entrou e começou a comer um pacote de bolachas. O rapaz saiu do consultório porque não suporta o barulho da mastigação”, conta.
A reação de cada um para determinado som é bastante relativa: “Não tem a ver somente com a característica física do som e a sensação desagradável. Mas também com o perfil psicológico da pessoa e o contexto com que aquele som foi desencadeado”, pontua. Guy Fitzmaurice, criador do site Misophonia UK, sugere que a doença pode ser distinta em 11 diferentes níveis. A gravidade é medida em PRIMEIRA IMPRESSÃO
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uma escala de ativação da síndrome, sendo zero uma sensação nula de desconforto e o grau 11 desejos de cometer atos de violência a si mesmo, terceiros ou animais. A misofonia, inclusive, pode ser confundida com outras síndromes como Transtorno Obsessivo Compulsivo, bipolaridade e síndrome do pânico. “O diagnóstico é bastante complicado, porque as reações são parecidas com as de certos distúrbios e, por isso, não é fácil identificar a misofonia”, diz Paula. E ela credita isso, também, a pouca divulgação: “Não há muitas pesquisas sobre o assunto”. A Síndrome de Sensibilidade Seletiva de Som é diagnosticada de forma multidisciplinar. “O paciente deve passar pelo otorrinolaringologista e pelo fonoaudiólogo para fazer a avaliação da parte auditiva e descartar algum problema periférico com uma bateria de exames. Além disso, faz-se uma avaliação com psicólogo ou psiquiatra”, assinala Paula. “Não há um teste certeiro para classificar a misofonia”, continua. Infelizmente, a síndrome altera a maneira como os portadores levam
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suas vidas, e, segundo Paula, chega a um ponto que a misofonia acaba interferindo na rotina da pessoa. Ela ainda narra uma história de uma paciente que já não convida mais seu pai para jantar porque não tolera ouvir o som de sua mastigação.
OS PORTADORES Diagnosticado com misofonia, Paulo*, de Alfenas, Minas Gerais, conta que descobriu que poderia portar a síndrome quando assistia a aulas na faculdade de Medicina e percebeu que tinha suas atividades limitadas por causa disso. Os sons que mais o incomodam são a mastigação de alimentos e o roer de unhas. No entanto, a sociedade ainda não é consciente em relação ao incômodo que os misofônicos sentem: “Quando peço para parar (com o barulho), me chamam de chato, ficam com raiva e ridicularizam. As poucas pessoas a quem contei sobre a doença não levam a sério e não entendem o quanto sofro com os sintomas”, lamenta Paulo.
A moradora de Florianópolis Sílvia Guimarães também sofre diariamente com a síndrome. Pequenos barulhos como o “tique-taque” do relógio e o som que algumas pessoas produzem ao tentar limpar os dentes já a irritam profundamente. Inclusive, ela relata: “Já tive vontade de voar na pessoa e fazê-la jurar que nunca mais faria aquele barulho”. A fonoaudióloga afirma: “Existem pessoas que evitam passar por aquela situação para que não sintam o desconforto”. Isso ocorre com Sílvia: “Me isolo mesmo e só saio com quem eu quero. Ah! Os fones de ouvido são meus grandes aliados”, completa. O site americano Misophonia sugere uma maneira de fazer com que as pessoas compreendam o impacto que a síndrome tem na vida dos portadores. Pense no som de unhas arranhando um quadro negro, por exemplo. Grande parte da população não gosta do barulho e poderia, inclusive, pedir que parassem de gerá-lo. Porém, há uma linha que divide o “detestar” e o “sentir-se péssimo”. Geralmente, quando expostos a este ruído, misofônicos passam mal de forma involuntária e sentem diversas emoções negativas.
É possível compreender a seriedade com que a síndrome deve ser levada ao reparar as reações que misofônicos têm ao serem confrontados com certos barulhos. A técnica em radiologia Larissa Cruz, de Monte Alto, em São Paulo, conta que sofre com os sentimentos provocados pela doença: “Me tranco no quarto, ligo o som a todo volume, choro. Fico com o corpo inteiro ‘duro’, com falta de ar, dor de cabeça. No fim, fico triste por sentir tudo isso”. Mas os portadores dessa síndrome geralmente buscam tratamento. Alguns deles foram sugeridos pelo “Protocolo de Controle da Misofonia”, mas grande parte acaba optando pelos tratamentos mais comuns. De acordo com o criador do site Misophonia UK, um dos tratamentos mais sugeridos pelos médicos é a Terapia Cognitiva Comportamental, proposta por psicólogos e psiquiatras, que consiste em sessões de terapia clínica em que o paciente busca compreender especificamente o seu problema. Além disso, pode-se utilizar o método de hipnose – não aceito por todos os médicos –, que auxiliaria o portador da síndrome a
se tornar mais calmo e sentir-se mais relaxado em relação à misofonia. Outros tratamentos alternativos podem ser requisitados pelos médicos, e isso vai depender do profissional e da reação dos misofônicos. Uma das grandes reclamações dos misofônicos é a falta de conhecimento das pessoas acerca da síndrome e, principalmente, a falta de compreensão. Muitos sofrem com o fato de não conseguirem conviver em sociedade e não poderem contar com a ajuda do próximo. Informar-se sobre a misofonia é essencial. E aceitar o outro do jeito que é também. (*) O nome do entrevistado foi trocado para preservar sua identidade
DIFICULDADE Pequenos barulhos corriqueiros irritam profundamente os misofônicos, que acabam passando mal de forma involuntária
“Minha família costuma se chatear comigo porque sempre reclamo dos barulhos que eles produzem, especialmente o da mastigação. Já ocorreram diversas brigas e, por vezes, tive que me retirar do ambiente por simplesmente não aguentar o barulho. E foi justamente por isso que resolvi escrever essa matéria. Eu me pegava pensando: será que isso é neura minha? Comecei a pesquisar sobre o assunto e me deparei com uma reportagem do programa Fantástico, com diversos depoimentos de misofônicos e especialistas. Então, percebi que muitas pessoas sofrem com essa doença pouco conhecida, que desencadeia uma série de sentimentos negativos devido a pequenos ruídos. Durante a apuração, entrei em um grupo no Facebook em que portadores da síndrome dividem suas chateações. Participar dessa discussão foi muito importante para compreender com mais clareza a síndrome e notar que muitos têm suas vidas afetadas por causa disso. Minha ideia era poder mostrar que a misofonia é algo sério, e que a população não deve julgar esse tipo de comportamento. Mas, principalmente, mostrar que, não, isso não é neura delas. Nem minha”
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ESTÍMULO Por meio da música, Hélio ajuda Roger a melhorar sua comunicação e a interagir com outras pessoas
Quem canta seus males espanta “O
A musicoterapia traz benefícios para o corpo e para a mente POR EMILENE LOPES FOTOS CAROLINA SCHAEFER
Roger está caminhando. O Roger está caminhando perto do xilofone. O Roger parou perto da câmera”. Tum, tum, tum, tum. Era por meio dessas palavras e do xilofone que o estudante de musicoterapia Hélio Marcon dos Santos tentava chamar a atenção de Roger, 8 anos, para fazê-lo interagir. Essa situação aconteceu em uma sessão nas Faculdades Est, em São Leopoldo. Para entender a musicoterapia, devemos nos voltar para o nosso cérebro.
UM GRANDE ESTÍMULO É difícil ficar imune à música. Até podemos não prestar atenção na história do colega que está falando sobre sua última briga com o atendente de telemarketing, mas é quase impossível que o som de uma música passe despercebido por nós. O cérebro é dividido em dois hemisférios. O hemisfério esquerdo corresponde ao racional, objetivo, lógico, concreto, matemático, linear e com visão convergente. O hemisfério direito PRIMEIRA IMPRESSÃO
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terapia com o objetivo de trazer qualidade de vida, reabilitação e melhora na saúde do paciente. Diferente de uma simples audição musical, ela faz uso da linguagem musical, de seus elementos e de instrumentos musicais com propósitos terapêuticos. Depressão, ansiedade, hiperatividade, dores crônicas, déficit de atenção, síndrome de down, autismo são alguns dos problemas que podem ser tratados com a musicoterapia. A sessão é planejada para que possa atender as necessidades de cada paciente. Por exemplo, para alguém que passou por algum trauma e não consegue falar sobre determinado assunto, o musicoterapeuta pode usar o canto de canções específicas ou o manejo de instrumentos como forma de expressar seus sentimentos, desbloquear a fala e lidar com o problema.
“O SAPO NÃO LAVA O PÉ” está relacionado ao simbolismo e ao abstrato, é metafórico, artístico, com visão ampla e divergente. Assim como outros sons, a música entra pelos ouvidos mas, diferente de um barulho externo ou de uma fala, segue diferentes caminhos no nosso cérebro. Estudos realizados por meio da neuroimagem mostram que, quando escutamos música, o hemisfério direito é responsável pela percepção e aspectos relacionados à melodia, harmonia e ritmo. O hemisfério esquerdo processa rápidas mudanças de frequência e intensidade, tanto com relação a palavras quanto ao som. Isso significa que a música tem o poder de ativar o cérebro como um todo. “Quando ouvimos uma música, estimulamos a área motora, visual, cognitiva e a memória”, afirma a musicoterapeuta e coordenadora do curso de musicoterapia das Faculdades Est, Maryléa Elisabeth Ramos Vargas.
OS ANTIGOS JÁ SABIAM O canto e o uso de instrumentos para produzir sons sempre existiram em todas as culturas. Mesmo sem nenhuma tecnologia parecida com a que temos hoje, os povos da antiguidade já
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acreditavam no poder da música sobre o nosso corpo. As causa das doenças muitas vezes eram relacionadas ao sobrenatural e mágico. O ritmo e a melodia das músicas ajudavam a expulsar os “maus espíritos” e a restabelecer o equilíbrio físico e mental dos doentes. Mas, somente a partir de 1940, a musicoterapia se estruturou como profissão, sendo oferecidos os primeiros cursos de formação na área, com a difusão da atividade em todo o mundo. Como o próprio nome diz, a musicoterapia é a junção de música com
Aquela sessão na clínica de musicoterapia da Faculdade Est foi difícil para Roger. Eram muitos fatores novos. Roger da Silva Micheli, 8 anos, ainda está se adaptando a Hélio e aquela havia sido sua segunda sessão depois de seis meses afastado. O menino alto, de cabelos negros e pele branca foi diagnosticado com autismo quando completou o primeiro ano de vida. Diferente de alguns autistas, ele consegue manter contato visual, beijar, abraçar e cumprimentar. Sua mãe, Raquel Jaqueline da Silva, 46 anos, explica que Roger é o autista clássico,
que tem o intelecto preservado, mas possui dificuldades de socialização e comunicação. Raquel e o marido, Rogério Micheli, 53 anos, moravam com Roger e seus dois irmãos, Juan Felipe e Leonardo, em Canoas. A mudança para São Leopoldo foi em função da busca pelo melhor tratamento para o filho: uma escola dedicada somente para autistas. A procura por alternativas que fizessem bem para Roger também levou o casal à musicoterapia. Aos seis anos, Roger começou seu tratamento na clínica das Faculdades Est. No início, Raquel tinha que entrar junto, mas logo ele já estava adaptado. Os pais contam que a evolução de Roger com a musicoterapia foi grande. Durante as sessões, ele era estimulado a cantar o clássico infantil “O sapo não lava o pé”, e isso acabou se refletindo na sua fala, que, segundo os pais, desenvolveu bastante no período. “Em casa, nós sempre estimulamos ele a falar. Lembro que pedíamos para ele dar bom dia e ele respondia: bom dia, papai”, conta Rogério. Além disso, a musicoterapia deixou Roger mais tolerante ao som, o que facilita a sua socialização e integração pelos meios em que circula. A importância do tratamento com a música ficou ainda mais evidente no ano passado, quando uma reestruturação nas Faculdades Est impossibilitou o atendimento de Roger por seis meses. Os pais contam que ele regrediu muito nesse período: o som da fala ficou baixo, muitas vezes é inaudível, e os sons altos, como buzinas, ônibus, carros e trem, voltaram
a perturbar. “Eu tenho um rádio na garagem, onde fico ouvindo minhas músicas. Ele passou a não tolerar mais. Ia até lá e desligava”, conta Rogério. Este semestre está sendo de mudanças para Roger. Ele voltou para a musicoterapia e está estudando em uma escola regular de São Leopoldo, onde tem o acompanhamento especial de uma monitora. Roger adora o computador e a internet. Tem facilidade em aprender jogos virtuais e faz downloads de seus games favoritos. Mesmo que tenha tocado pouquíssimas vezes no violão que o pai comprou, todos a sua volta percebem o impacto positivo que a musicoterapia tem na sua vida. Um mês depois da sua volta às sessões de musicoterapia, sons como a campainha da escola e o barulho dos colegas já não incomodam tanto Roger. Raquel conta que ele está participando das aulas de educação física e interagindo mais na escola. Agora o foco das sessões de musicoterapia é explorar o lado verbal dele, por meio das canções. Hoje, “O sapo não lava o pé” se tornou infantil demais para Roger e o desafio é encontrar uma música que ele goste e que o motive a cantar. Enquanto isso, Raquel vai comemorando as pequenas vitórias do dia a dia. Coisas que parecem banais, como ao não encontrar o controle remoto da televisão, Roger ir até os pais e falar: “Controle!”. O poder da linguagem não verbal da música abre canais de comunicação com o mundo exterior, facilitando a conexão de Roger com o todo.
“Quando escolhi a musicoterapia como pauta para a minha matéria da Primeira Impressão, fiquei tranquila. Não conhecia nada além do óbvio que está no nome e achei que fosse um tema fácil de abordar. Como muitos, acreditava que a atividade se resumia a cantar para pessoas doentes em hospitais. Foi ao começar a pesquisar que percebi o quanto era amplo e complexo o assunto. O primeiro desafio foi entender como a música afeta o cérebro e porque ela traz benefícios para o ser humano. Depois, claro, foi explicar isso na matéria. Conhecer o Roger também foi muito importante. Ele é um ótimo exemplo de como a musicoterapia contribui para a saúde e reabilitação. Além disso, seus pais, Raquel e Rogério, foram muito solícitos desde o início e contribuíram muito com a matéria contando a história de Roger a da família. É admirável a dedicação desses pais para que o filho se desenvolva e tenha qualidade de vida. Fazendo essa reportagem, aprendi muito e redobrei a admiração pela magia do som que vem de um instrumento ou da voz humana”
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Orquestra WBK quer contagiar o público ouvinte através dos sons instrumentais POR FABRICIA BOGONI FOTOS DAIANE TREIN
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omingo, 29 de março de 2015. Na rua, faz muito sol. Há cheiro de pneu queimado no ar e é possível ouvir o ronco de motos por toda a parte. As motocicletas circulam por um corredor especial, ao lado de uma calçada, onde caminham os pedestres. Em um espaço cercado por arquibancadas, vê-se que o asfalto está marcado por rabiscos pretos, em sua maioria circulares, os quais foram deixados por manobras de motociclistas de grupos artísticos. Bem em frente, nota-se um morango gigante. Trata-se do Morangão, o símbolo da Terra do Moranguinho.
Acontecia ali, na cidade de Bom Princípio, no Rio Grande do Sul, desde a sexta-feira, o 5º Moto Morango: Encontro Internacional de Motociclistas. A programação do último dia de evento previa a apresentação da Orquestra WBK. Por volta das 15h, o palco no Parque Municipal estava com as cortinas fechadas. Pelos fundos, jovens de bandana na cabeça, óculos de sol e camisetas coloridas subiram por uma escada. Eram os músicos da Orquestra WBK. Tão logo assumiram seus lugares, afinaram os instrumentos musicais. Quem os orientava era o maestro Davi Dessotti, que caminhava de um lado para o outro a estalar
Tocar com alegria
os dedos no ritmo da melodia. Minutos mais tarde, a última passagem de som foi realizada. Na na na na... Na na na naaa... Na na... Na na na na na na... Para um fã de Abba, impossível não cantar: “Mamma Mia... Here I go again... Mamma... How can I resist ya?”. “Já chega, pessoal. Não vamos entregar o ouro!”, brincou o maestro. A Orquestra WBK também possui nome em alemão: Winterschneise BlasKapelle. “Winterschneise é o nome antigo do vilarejo que se transformou em Bom Princípio e BlasKapelle quer dizer Orquestra de Sopros”, explica Dessotti. Em abril de 1996, o prefeito daquele ano, César Luiz Baumgratz, e a então se-
cretária de educação, Tânia Maria Baumgratz, procuraram por Dessotti a fim de convidá-lo para formar a orquestra do município. O objetivo era abrilhantar os eventos da cidade, unir a comunidade bom-principiense através da música e realizar belos concertos artísticos. Atualmente, 38 músicos compõem a Orquestra WBK, que, por sua vez, conta com flautas, clarinetes, saxofones, trompetes, trombones, bombardinos e tuba, além de teclado, contrabaixo, guitarra, bateria e percussão. Eram quase 16h quando o maestro abriu manualmente as cortinas, virou-se para os instrumentistas e fez a contagem em voz baixa: “1, 2, 3,
4”. Ele levantou, então, os braços e, em seguida, apontou os dois dedos indicadores para os músicos. Começou a apresentação. Tãã tã tã tã tã tããã... Tãã tã tã tã nã nã... Jump era a primeira música. O regente não usava batuta, apenas as mãos. Dirigia instruções, arrumava microfones e cantava alguns sons. Tã dã dã... Dava pulinhos no ritmo da música. Além de maestro, Dessotti é professor de música em Bom Princípio e em São Sebastião do Caí. Foi com ele que alguns músicos da Orquestra WBK aprenderam a tocar seus instrumentos. “Todos os integrantes foram meus alunos de música em algum momento; alguns aprenderam PRIMEIRA IMPRESSÃO
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apenas a teoria musical comigo e partiram para instrumentos de cordas ou percussão”, conta. A instrumentista Larissa Selbach Dries toca clarinete na WBK e foi aluna de Dessotti, com quem aprendeu a teoria e a prática musical. “Ele sempre teve uma grande capacidade de deixar os alunos e os músicos à vontade, fazendo todos sentirem-se capazes de tocar qualquer coisa com a qual se comprometessem”, revela Larissa. Ela foi convidada pelo professor a entrar para o grupo. “Sempre fui meio tímida e
minha reação inicial foi de resistência, mas os argumentos que ele usava me convenceram, dizendo que faria grande diferença para minha prática, que o grupo era muito receptivo, que estávamos todos sempre aprendendo e que ele não tinha dúvidas de que eu gostaria”, comenta. Ela vê como inspiradora a habilidade de Dessotti com os instrumentos. O maestro e professor teve sua primeira experiência com flauta doce, quando tocava na Igreja Evangélica Assembleia de Deus, de Caxias do
Sul. Posteriormente, dedicou-se ao trombone de vara e ao piano clássico. Além da formação em Teoria e Harmonia pelo Instituto Johann Sebastian Bach, de Caxias do Sul, estudou regência, arranjo e composição e, atualmente, é estudante de Licenciatura em Música na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), de Montenegro. Dessotti diz que se tornou maestro por sentir uma necessidade de liderança. “Sempre tem alguém que sabe um pouco mais, mas que não assume a frente do trabalho. Eu busquei conhecimento para ter a capacidade de liderar um grupo, quer seja coral ou orquestra.”
DINÂMICA ANIMADA Com o término de Jump, o público aplaudiu. O maestro falou ao microfone para anunciar uma hora de show com músicas de rock, especialmente selecionadas para o evento. Dali em diante, seguiram Don’t Stop Believing (Journey/Glee), The Final Countdown (Europe), Flashdance… What a Feelling (Irene Cara/Glee), Everything I do (Bryan Adams), Man! I Feel like a Woman (Shania Twain), Viva La Vida (Coldplay), além de medleys e pot-pourri. “O nosso repertório passa de 100 músicas”, calcula o regente. Dessa forma, eles se aventuram em outras sonoridades e ritmos, tais como da cultura brasileira, alemã, italiana, latina e gaúcha, e das trilhas de filmes, desenhos e seriados. A partir desse conjunto, afirma que a principal sensação que a WBK quer provocar no público é a alegria. “A alegria que eu estou sentindo em tocar que eu espero que tu estejas sentindo, vai além só dos sons, dos instrumentos”, afirma. Larissa também relata esse sentimento. “O melhor de tudo é pensar que podemos proporcionar um momento bom a quem nos escuta.” Tum Tum Pá. Tum Tum Pá. “We Will, We Will Rock You!” Quando Queen foi convocado, os músicos entraram no clima. Pé direito. Pé esquerdo. Bate palma. Inclusive o maestro, que, nesse momento, deu às costas aos instrumentistas a fim de envolver o público nessa dinâmica. “A gente quebrou um pouco esse paradigma de ter que tocar muito
DESCONTRAÇÃO Como maestro da WBK, Dessotti fica atento à execução das músicas enquanto faz brincadeiras para contagiar o público
formal e tem essa irreverência. Sempre tendo o cuidado de tocar bem também. Não pode pecar na parte musical em detrimento de fazer uma coreografia, um show, e, de repente, a parte musical ficar num nível mais baixo. A gente cuida muito esses dois itens e tenta contagiar o público com a brincadeira”, salienta Dessotti. O comportamento do maestro no palco não é ensaiado, embora as performances de grupo sejam planejadas. “Quando surge a ideia inicial de uma coreografia, por exemplo, vêm contribuições de todos os lados, todos querem fazer daquilo a melhor experiência possível”, diz Larissa. Eram 17h quando a orquestra encerrou a apresentação. O público pediu bis. Ao que parece, o carisma está presente na trajetória do grupo de Bom Princípio. Em 2008, a convite da Orquestra de Grimma, da Alemanha, a WBK participou do 6º Musikantentreffen. “Nós participamos com músicas brasileiras e tiramos o primeiro lugar, concorrendo com outras orquestras de países de fora da Alemanha”, explica Dessotti. Em 2011, participaram da sétima edição do fes-
tival com outro repertório e conquistaram o bicampeonato. “Enquanto outras orquestras tocavam jazz, um repertório mais light, o pessoal ficava sentado assistindo. Quando a nossa orquestra tocava, eles dançavam. Então, começou a contagiar, virou carnaval”, compartilha. O regente acredita que isso conquistou o público. Como não havia jurados, a plateia decidia as melhores apresentações. “Tecnicamente, tinha orquestras bem superiores a nós, uma verdadeira perfeição. Mas não tinham essa energia que a gente tem, de tocar com alegria”, conclui. “Nosso humilde intuito era fazer com que aquelas pessoas, que nos recebiam tão bem, pudessem sentir na nossa música a alegria, tão característica do povo brasileiro, e se deixar levar por ela”, opina Larissa. Com o olhar de quem integra esse grupo tão animado há cerca de 10 anos, ela diz, por fim, que os instrumentistas se divertem tanto quanto quem os ouve tocar. “Essa energia é fruto não só do nosso comprometimento como orquestra, mas também do nosso vínculo de amizade.”
“Por vezes, a prática jornalística nos surpreende com pautas que aparentemente caem para depois se reinventarem. Queria mostrar a função do maestro em uma orquestra e como as notas musicais de uma partitura se transformam em som. Aprendi uma porção de coisas sobre regência preparando-me para uma entrevista que não chegou a se realizar por conta de uma agenda lotada. Minha colega fotógrafa, Daiane Trein, falou-me de um maestro de Bom Princípio. Em pesquisa na internet, através de vídeos no YouTube, vi o regente Davi Dessotti dançar e envolver tanto os instrumentistas quanto o público nas apresentações. Foi quando percebi que meu trabalho seria descrever a animação da Orquestra WBK. Pude observar as expressões do maestro porque estava no palco, um ponto de vista privilegiado. Literalmente, senti o chão tremer com a vibração do som. Quanta energia! A alegria de músicos como Larissa Selbach Dries é contagiante. Palavra da repórter que cantou junto enquanto anotava tudo no bloquinho”
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A voz que guia A importância da fala dos pais no desenvolvimento dos sentidos do bebê enquanto ele ainda está no ventre materno POR FELIPE GAEDKE FOTOS RODRIGO FREITAS
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pa! É ele, eu sei que é ele. Não tem como confundir; sinto de longe. A porta do apartamento se abre e, só pelo raspar dos passos no assoalho, pela respiração mais longa e pesada, já sei que é ele chegando do trabalho na gráfica pra me ver. Quanto mais se aproxima, mais forte sinto o imenso calor que ele transmite. Não sei de onde vem esse calor, mas me sinto tão bem, tão feliz, tão contente. Cada vez que ele chega assim pertinho e nos toca, tudo fica ainda mais rosa e aconchegante. Geralmente eu não me contenho, fico tão alegre que dou chutes e cambalhotas. Eu sei que já
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ATENÇÃO Eduardo e Letícia conversam com a filha Carolina desde os primeiros meses de gestação
sou grande demais pra fazer isso, afinal, já tenho 36 semanas, mas não consigo me segurar, adoro quando ele está por perto. Reparei que ele parece ser um cara tímido, pois quase não fala comigo. Minha mãe também já tinha comentado isso durante uma de nossas conversas. Essa sim, sempre
fala comigo quando estamos sozinhas. Nessas horas, conversamos sobre tudo: o tempo que falta pra eu conhecê-la, algumas coisas do dia a dia, sobre a gigantesca pilha do Pedrinho, meu irmão, que está animadíssimo com a minha chegada. Não temos uma hora exata para conversar. Geralmente é quando ela
está deitada e confortável, porque eu já sou uma menina grande, quase grande demais pra ela, mas mamãe entende que logo logo eu saio e tudo então vai ser diferente. Ah, onde estão meus modos, nem apresentei toda nossa família. Desculpe, não estou muito acostumada a interagir com outras pessoas
que não eles. Meu nome é Carolina Lírio Augusto e sou filha da loira com aquela barriga linda da foto ali em cima. O nome dela é Letícia Costa Curta Lírio Augusto, uma porto-alegrense nascida exatamente na metade da década de 1980, casada há quase nove anos com meu pai, Eduardo Griündler Augusto, que nasPRIMEIRA IMPRESSÃO
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ceu em Canoas, mas não chegou a completar nenhum de seus 37 anos na cidade; mudou-se ainda pequeno para a capital do Estado. Os dois são pais do Pedrinho, meu irmão mais velho com seis anos e muita energia pra se pendurar na pequena árvore que fica no pátio do nosso bloco e me deixar tonta agitando a barriga da mamãe. Hoje, moramos no Rubem Berta, um bairro no fim da Zona Norte de Porto Alegre, em um apartamento com dois quartos, banheiro, sala, cozinha e área de serviço, do tamanho certinho da nossa família. Já ouvi algumas conversas de que, quando eu sair aqui da mamãe, vou dividir um quarto com meu irmão. Estava CARINHO Se depender do estímulo da família, a pequena Carol já vai nascer falando e cantando
um pouco apreensiva com isso, pois estamos acostumadas – ele e eu – a ter um lugar só nosso: ele lá no quarto com seus homens de ferro e patriotas, e eu aqui, no meu mundinho rosa. Mas já prometeu pra mamãe que vai cuidar de mim. Vai precisar de ajuda, mas vai cuidar de mim. Pedrinho é uma peça à parte. Está sempre agitado e agitando as pessoas ao seu redor com muita energia e velocidade. Tem momentos em que ele me deixa zonza com o tanto que mexe comigo e pergunta “o que ela tá fazendo?”. Não para um minuto. Só temos uma folga quando ele senta na frente da TV e fica vidrado assistindo aos Power Rangers ou ao Bob Esponja no Cartoon, seu canal favorito. Porém, ainda que seja irrequieto desse jeito, ele é um garoto muito atencioso, disposto a ajudar a mamãe com o que pode, e um irmão extremamente cuidadoso, sempre nos abraçando, beijando e fazendo carinho. Às vezes, exagera um pouco nos cuidados e não deixa as pesso-
as chegarem muito perto de mim, se tornando um pouco ciumento e possessivo, mas, que irmão não é!? Mesmo tendo seus momentos de ciúmes, o Pedro sabe que, quando eu chegar, além da atenção de nossos pais e do espaço em nosso quarto, vamos ter que compartilhar outras coisas. Na verdade, algumas delas já começamos a partilhar nos últimos meses, como a Dra. Ana Lúcia Marques, ginecologista e obstetra que vem cuidando de mim desde as primeiras semanas e acompanhou meu irmão durante os nove meses que antecederam a chegada dele. A Dra. Lúcia dá grandes dicas pra mamãe e sabe como é importante que ela e o papai conversem, cantem, contem histórias para mim desde já, enquanto ainda estou aqui no quentinho gostoso da barriga dela. Esses dias estavam conversando com a minha mãe e ouvi um papo de que o som da voz dos pais ajuda no desenvolvimento da capacidade linguística e dos sentidos do bebê
ainda no útero da mãe. Lembro da voz da Dra. Lúcia dizendo que “a relação de afeto que os pais criam com seus filhos se inicia ainda dentro do útero. O conversar com o bebê é muito importante para o seu pleno desenvolvimento e traz benefícios até a vida adulta”. Depois, ela disse que “a voz dos pais é reconhecida e reconfortante para o bebê. Assim que ele nasce, a voz dos pais acalma e gera uma lembrança da época em que a criança estava segura dentro do útero da mãe. Esse conversar também estreita o vínculo dos pais com o bebê e aperfeiçoa o seu aprendizado da linguagem. Quanto mais precoce este contato, mais seguro ele se desenvolverá, e uma criança segura aprende mais fácil e se relaciona melhor”. Não sei bem o que é útero, muito menos o que significa “capacidade linguística”, mas sinto algo diferente cada vez que meus pais ou o Pedrinho falam comigo, parece que tudo está menor perto de mim ou que eu já estou grande demais para continuar aqui. Além da Dra. Lúcia e da minha família, tem um casal que está sempre por perto chamando pela “Carolzinha”, pela “Carolinda”. Eu sei que seus nomes são Adriano e Daniela, e também sei que ele é o irmão mais novo do meu pai, só não entendi direito porque eles se preocupam tanto comigo mesmo a gente ainda nem tendo se conhecido pessoalmente. Mesmo que eu não responda quando me tocam ou falam comigo – afinal, como disse, ainda não entendi direito quem são –, eles estão sempre dispostos a auxiliar meus pais com o que for preciso. Inclusive, foi o Adriano que ficou pra cima e pra baixo com minha mãe durante toda a função da lista do chá de fraldas – outra coisa que não entendo: porque alguém usaria uma fralda para fazer chá? De qualquer forma, pelo que pude notar, enquanto essas pessoas estiverem por perto, não tenho com o que me preocupar. Qualquer coisa que aconteça meus “dindos” vão estar por perto para me acolher.
SOU MUITO CALMA Comparando com meu irmão, que é uma espoleta, sou extremamente calma. Tirando quando mamãe
está desconfortável, o que me deixa incomodada, ou os momentos em que ela e papai conversam comigo, não costumo me agitar muito. Os dois acham que não vão ter muito trabalho comigo – sonho. Dizem que, mesmo que um bebê novo seja um desafio e que uma criança a mais vai mexer com a rotina da casa, aprenderam muito com a experiência do Pedrinho e não terão tantas dificuldades quanto tiveram quando ele chegou. Papai, inclusive, já se programou pra tirar 20 dias de folga na gráfica e cuidar da mamãe e de mim. Meu irmão também vai morar um tempo com a vovó até tudo se acalmar. Aos poucos, as coisas vão se encaixando e a vida vai voltando ao normal. Quem sabe, daqui uns dois anos, mamãe já possa voltar a cursar a faculdade de Administração e papai termine o curso de Engenharia de Produção que os dois trancaram. Mais tarde, talvez mudemos para outra casa, onde Pedrinho e eu possamos ter um quarto para cada um. Um cachorro? Quem sabe o que o futuro nos reserva? Papai e mamãe não fazem planos para o meu. Querem que eu cresça feliz e tenha a liberdade de escolher meu próprio caminho. Mas, uma coisa é certa: enquanto ouvi-los me apoiando e tiver suas vozes como guia, poderei andar sem medo.
“Depois de superadas as dificuldades iniciais que tive, como uma traumática troca de fonte e problemas em conseguir me encontrar com os novos personagens, a construção de minha matéria correu rápida e natural. Tive apenas dois encontros com a família Augusto, porém, esses momentos foram tão intensos e fiquei tão envolvido com a gestação (a essa altura crescimento) da Carolzinha que sinto como se todos fossem membros da própria família Gaedke. Depois de passar algumas semanas conversando com minhas fontes apenas pelo Whats App, consegui encontrar com a Letícia, o Eduardo e, por consequência, a Carol, para uma conversa primaria em um shopping. Após esse primeiro momento, marcamos uma visita, o fotógrafo Rodrigo e eu, em uma agradável tarde de domingo, quando tivemos a oportunidade de conhecer a casa onde vivem e o último membro da família, o Pedrinho. Apesar de todos os contratempos que ocorreram antes de tudo realmente começar, essa pauta se mostrou muito agradável de conviver e aprazível de escrever”
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Quando o silêncio é a regra, os barulhos da repressão são os sons mais audíveis
É proibido falar POR GUILHERME ROVADOSCHI FOTOS ANELISE DURLO
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o espaço ainda provisório, localizado no terceiro andar da Casa de Cultura Mário Quintana, no Centro de Porto Alegre, duas meninas cochicham. Ou, ao menos, tentam. Um som agudo de risadas se ouve repetidamente. O local é a Biblioteca Pública do Estado, criada oficialmente em abril de 1871. O problema é a falta de silêncio, percebida, ao longe, pela diretora Morganah Marcon, de 47 anos. Com a delicadeza que só a experiência da rotina diária de trabalho lhe deu, através dos 22 anos como bibliotecária, uma rápida piscada com o olho direito bastou para as estudantes se calarem e seguirem sua rotina de estudos. A repressão do barulho na biblioteca é uma constante no trabalho de Morganah. “Tem pessoas que não entendem quando nós chamamos a atenção ou pedimos silêncio. A maioria respeita e aceita as normas”, afirma a diretora, frisando que as regras são necessárias para o melhor aproveitamento do ambiente. Em locais como este, onde o silêncio é regra básica de convivência, a tranquilidade e a concentração
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CALMARIA Os frequentadores da biblioteca da Casa de Cultura Mário Quintana colocam as leituras – e até o sono – em dia
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são companheiras de quem se aventura por uma tarde de pesquisas e leituras. A busca por um lugar mais calmo, segundo a bibliotecária, faz com que a biblioteca seja utilizada como um local de descanso. “Por mais que o ambiente seja voltado para as pesquisas, muitas pessoas acabam descansando aqui, em um local calmo, com total silêncio para se concentrar em leituras ou até, muitas vezes, para dormir”, admite Morganah. Quando o silêncio é quebrado, o barulho que mais se ouve, segundo a diretora, são os sons produzidos pelo celular. “Nós sempre orientamos os visitantes sobre o telefone. O ideal é deixar ele desligado ou, em último caso, no silencioso”, declara. Morganah lamenta que o espaço físico da biblioteca ainda não possibilite ter uma sala de estudos. “Infelizmente não temos um ambiente em que os estudantes possam fazer trabalhos em grupo e debater, dando um tempo no silêncio que predomina aqui”, frisa a diretora. A contradição fica por conta de Morganah gostar de trabalhar com barulhos e sons, mesmo passando cerca de oito horas por dia em um local plenamente silencioso. “Eu produzo melhor quando faço mais coisas ao mesmo tempo, como, por exemplo, ouvindo música”, frisa. A bibliotecária é definitiva ao afirmar quais os ritmos musicais favoritos na sua playlist diária: “Ouço Queen, INXS, bastante jazz e clássico. Mas se for pra ouvir funk ou pagode, eu prefiro o silêncio”, brinca.
O SILÊNCIO DOS INOCENTES Em um ambiente bibliotecário, vários perfis de pessoas – silenciosas ou barulhentas – se misturam em meio aos livros e ruídos brancos, que é um tipo de ruído produzido pela combinação simultânea de sons
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de todas as frequências. Segundo Gabriela Mayer Martins, de 20 anos, estudante do curso de Direito, o silêncio é essencial para os seus estudos na biblioteca. “É um requisito para eu prestar atenção no que estou fazendo. Qualquer barulho me desconcentra. O silêncio sempre é bom e acaba ajudando”, garante a aluna. Segundo a amiga de Gabriela, Betina Bittencourt, de 21 anos, estudante do curso de Enfermagem da Unisinos, o local ajuda nos momentos de estudo. “Com os barulhos eu me distraio fácil. O silêncio no trabalho também é ótimo, embora hoje em dia, poucos respeitem a normativa de silêncio”, define Betina. Trabalhando na Biblioteca da Unisinos no Acervo de Obras Raras, Susana Schneider Holtz, de 52 anos, atua há 18 na profissão. Para ela, a biblioteca deveria ser um lugar onde
o barulho é permitido. “Deveria ter locais apropriados de silêncio, para que pessoas como eu, que precisam de silêncio para ler, possam ficar à vontade, mas com liberdade no ambiente para falar. Historicamente se criou a imagem que a biblioteca deveria ser um local silencioso, por isso quando as pessoas falam nos celulares os atendentes mandam ir para fora”, afirma a funcionária. Para Rosana Silveira, de 34 anos, auxiliar administrativa da Biblioteca da Unisinos, a tranquilidade que a biblioteca traz é um dos momentos mais calmos de seu dia. “A biblioteca é boa para estudar, porque é bem silenciosa e eu gosto disso. Quando estou trabalhando nos acervos, a calmaria também me faz muito bem, me relaxa, tranquiliza”, garante, demonstrando prazer em trabalhar no local.
SONÍFERA ILHA
Muitos estudantes utilizam a biblioteca como refúgio depois de uma jornada de leituras e pesquisas. Leonardo Fraga, de 22 anos, estudante do curso técnico em Administração, é um deles. Focado nos estudos para o vestibular de inverno em várias universidades, o aluno passa cerca de oito horas diárias frequentando diversas bibliotecas da região metropolitana de Porto Alegre. Entre uma obra e outra, sempre há tempo para um cochilo, segundo ele, de não mais do que vinte minutos. “Dormir durante as leituras me faz bem. Consigo descansar e ficar revigorado. A biblioteca tem essa mágica, parece que dá sono”, avalia o estudante.
Mesmo durante seus estudos – e momentos de sono -, Fraga não desgruda de seu celular e dos fones de ouvido. Para ele, a concentração é reforçada com o aparelho e suas praticidades. “Às vezes tenho dúvida sobre determinado assunto que eu leio nos livros e, rapidamente, pesquiso pelo celular”, salienta, garantindo que a música nos ouvidos é para “contrapor o silêncio”. Entretanto, este silêncio que inexiste nos ouvidos de Fraga, é tratado como regra para Victor Oliveira, de 17 anos, estudante de Sistemas de Informação. Para ele, os momentos de estudo são sagrados. “É como se fosse um ritual. Eu paro, sento e leio. Sem pressa. Se tiver barulho, já me irrito”, declara, garantindo que já discutiu ao pedir silêncio em uma biblioteca. “O cara estava gritando no telefone. Levantei e falei pra ele se retirar. Quase deu confusão”, lembra, com um sorriso no canto da boca. O sono, segundo Oliveira, surge após o bocejo das pessoas que frequentam a biblioteca. “Eu não sinto sono quando leio. Só que todo mundo começa a bocejar e eu acabo cochilando em cima da mesa de estudos”, afirma, justificando o ato com a desculpa do cansaço. “Tem dias que eu passo a tarde inteira na biblioteca. É normal ver as pessoas dormindo e ficar com vontade”, sentencia o estudante.
EM MENOS DE UMA HORA Um dado interessante indica os motivos para que o barulho apareça nas bibliotecas. Uma pesquisa realizada nos laboratórios Orfield, em Minneapolis do Sul, nos Estados Unidos, mostra que ninguém suporta ficar em um silêncio absoluto, sem nenhum tipo de ruído, por mais do que 45 minutos.
De acordo com os pesquisadores, isso acontece porque nossos ouvidos são adaptados para buscar sons. Em um local silencioso, como uma biblioteca, as pessoas passam a ouvir sua respiração, seu estômago e até os batimentos cardíacos. E essa experiência seria tão desorientadora que as pessoas costumam perder concentração e foco, reforçando a necessidade do mínimo necessário de barulho no ambiente. Na sonífera ilha dos livros, o silêncio segue sendo o barco de refúgio mais seguro para quem quer estudar, ler ou apenas dormir. Se o barulho aparecer, não se incomode. Os sons de quem pede silêncio também irão ecoar pelos seus ouvidos.
“Conheci uma nova biblioteca. Os livros, pesquisas e a busca pelo conhecimento deram lugar aos roncos, cochilos e pedidos de silêncio incessante. Os poemas de Fernando Pessoa calaram-se em meio aos sussurros. O epílogo de Erico Verissimo emudeceu perante o descanso da cabeça do estudante que pediu para não ser acordado. As travessuras das histórias de Monteiro Lobato pararam para acompanhar o barulho do celular que apitava com as últimas fotos da rede social favorita. Nada era mais importante que o silêncio – ou a falta dele. Quem criticava o barulho, bradava contra os ‘barulhentos’. Quem o defendia, falava ainda mais alto contra os ‘moralistas’. No final, o silêncio inexistia. Ou existia e ninguém ouvia. Os sons reverberavam, ecoavam e ressoavam. Um eterno zunido em cada ouvido. Pouco tempo depois, fui alertado: era apenas Jorge Amado, querendo libertar um dos maridos de Dona Flor do armário. Ainda bem. Torço para que o silêncio perdure em nossas bocas. Os livros, naturalmente, têm sempre muito mais o que nos dizer dentro de uma biblioteca”
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BELISA LAZZAROTTO
RICARDINHO Eleito quatro vezes o melhor do mundo, o atleta marcou os quatro gols da vitória da AGAFUC contra a APADV/SP
Disputado por atletas cegos, o futebol de cinco necessita de três coisas para ser jogado: som, silêncio e talento POR GUSTAVO EV FOTOS BELISA LAZZAROTTO E TAINÁ HESSLER
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pita o árbitro. Mas antes… “Silêncio, por favor! Silêncio”, pede ele. O motivo é simples: vai começar um jogo de futebol de cinco, modalidade praticada por deficientes visuais. Agora sim, começa a partida. A Associação Gaúcha de Futsal para Cegos (AGAFUC) começa com a posse da bola. Ricardinho logo a recebe de seu companheiro e dispara para o ataque. Nesse momento, o som da bola, resultante de guizos posicionados entre a câmara de ar e o forro, é superior aos pequenos ruídos feitos pelas chuteiras dos atletas, aos gritos e sinais dos goleiros – que enxergam –, aos berros dos chamadores e aos barulhos de impacto nas placas de proteções laterais. Lateral, nesse jogo, não existe. A bola bate com frequência na proteção ao lado da quadra - o que acaba sendo uma ajuda ao jogador para a percepção do espaço. O único momento em que a bola sai de quadra é pela linha de fundo. Seja para a reposição do goleiro ou para o tiro de canto. E é, a partir dessa forma, que a AGAFUC consegue o primeiro gol. O escanteio foi cobrado, e Ricardinho recebeu a bola. Marcado por dois adversários, ele tratou de driblá-los, trouxe os dois até o centro da quadra e, com muita velocidade, voltou pela mesma lateral. Na entrada da área, ouviu o sinal de “gol”, emitido pelo chamador, quando o jogador está posicionado em direção à goleira adversária, e chutou cruzado para marcar. Estava aberto o placar. 1 a 0 para a AGAFUC contra a Associação de Pais e Amigos e Deficientes Visuais de São Paulo (APADV/SP). Engana-se quem pensa que o jogo não é disputado. São dribles espetaculares, potência nos chutes, grandes defesas dos goleiros e fortes esbarrões. Sobre essas divididas de jogo, é necessário que o atleta sempre exclame a palavra “vou”, para poder evitar qualquer tipo de lesão. O primeiro tempo acaba. A AGAFUC lidera com um placar de 3 a 0, e, praticamente, pela qualidade técnica, é impossível que o adversário consiga reverter o resultado. No segundo tempo, o jogo fica mais equilibrado. O time de Ricardinho consegue segurar o placar até
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um pouco antes do fim, porque o melhor do mundo ainda faz mais um. O quarto da AGAFUC. O quarto dele. Final de jogo: 4 a 0.
O MELHOR DO MUNDO “Quando eu tinha seis anos, eu enxergava normalmente. Então, entrei na escola e comecei a ter problemas de visão, dificuldade de desenhar, escrever meu nome. A minha professora percebeu, mandou um comunicado para os meus pais e fui levado aos médicos”, explica Ricardo Steinmetz Alves, o Ricardinho. Ao perceberem isso, os pais o levaram ao médico para fazer uma série de exames. Foi quando diagnosticaram que o garoto estava tendo descolamento da retina. Durante dois anos, Ricardinho fez tratamento. Passou por cinco cirurgias. A visão melhorava no início e depois piorava. “Aos oito anos, eu perdi totalmente a visão, e os médicos
AGAFUC Elenco reunido após a vitória contra a APADV/SP
falaram que não havia mais nada a fazer”, conta de forma tranquila o atleta, que não se importa em explicar a sua história. Por ser uma criança muito ativa, ele teve que se adaptar. O sonho de ser jogador de futebol por um instante parecia ter sido perdido, até se mudar para Porto Alegre – ele é natural de Osório – e estudar no Instituto Santa Luzia, onde conheceu o professor Dodô, que trabalhava com alunos cegos. “Ele tinha uma escolinha de futebol e me convidou. Eu fiquei pensativo: ‘como cego joga bola?’. Então, comecei a treinar com ele. Aos 10 anos, ele me falou que no Brasil tinha clubes, existia a seleção brasileira, e eu voltei a sonhar em ser um atleta profissional”, lembra. Rapidamente, Ricardinho se destacou. Aos 15 anos, teve seu primeiro clube. Aos 16, já estava na seleção. Para ele, a realidade de se tornar atleta veio de forma rápida. A dedicação ao futebol de cinco é diária, são treinos e mais treinos de uma rotina que ele agradece todo o dia. “Eu me sinto um atleta privilegiado”, diz ele. A estreia em mundiais foi em 2006, na Argentina, quando tinha 17 anos. Lá, ele foi eleito o melhor do mundo pela primeira vez, mas o Brasil ficou com o vice-campeonato. Em 2008, surgiu a oportunidade de disputar a primeira paralimpíada, em Pequim, na China. O resultado: ouro para o Brasil. Depois, uma breve linha do tempo resume o
histórico vitorioso de Ricardinho: campeão mundial em 2010, em Hereford, Reino Unido; bicampeão paralímpico em Londres 2012, também no Reino Unido; e bicampeão mundial, no Japão, em 2014, quando novamente se tornou o melhor do mundo. Nas partidas, os atletas se baseiam apenas pela audição. Para Ricardinho, o início da prática é difícil. “Além de estar muito bem treinado, com a audição aguçada, é exigida muita concentração do atleta. Porque, se desviar a atenção auditiva um instante que for, podemos perder a referência de tudo, ou seja, perdemos a referência do som da bola e as orientações do goleiro, do treinador, que fica na lateral da quadra, e do chamador”, explica Ricardinho, que complementa: “é algo bem complexo, mas não é impossível. Basta muito treino e concentração”.
A VOZ DO GOL “Direita, na tua direita, na tua direita, na tua direita. Esquerda, na tua esquerda. Vem no meio, no meio. Gol, gol, gol, gol, gol”, orienta o chamador Dariano Tolfo, antes de sair comemorando o último gol da AGAFUC. Durante a partida, é ele o responsável por comandar a equipe, indicando as jogadas a serem realizadas. O posicionamento BELISA LAZZAROTTO
TAINÁ HESSLER
Conquistas do esporte Nas vésperas dos jogos paralímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, a seleção brasileira já vem se preparando para manter a hegemonia no esporte. Desde as Paralimpíadas de Atenas, em 2004, quando a modalidade foi inclusa nos jogos, só deu Brasil. “Após jogos de Londres 2012, começamos um novo ciclo para o Rio de Janeiro, com uma nova comissão técnica. Além de ser uma competição muito importante, vamos jogar em casa e queremos fechar com medalha de ouro”, destaca Ricardinho, o melhor jogador de futebol de cinco do mundo. Confira os principais títulos da seleção brasileira de futebol de cinco: l Mundial de 1998, no Brasil
l Mundial de 2000, na Espanha
l Mundial de 2010, na Inglaterra l Mundial de 2014, no Japão
l Paralimpíadas de Atenas, em 2004
l Paralimpíadas de Pequim, em 2008
l Paralimpíadas de Londres, em 2012
dele em quadra é atrás da goleira adversária. As suas chamadas indicam o caminho do gol. Além disso, ele também é responsável para guiar o atleta em alguma cobrança de bola parada. Até mesmo quando o lance é a favor, ele faz sinais para identificar onde está a goleira, fazendo barulho em ambas as traves e chamando no centro do gol. Dariano, que já era amigo de Ricardinho e conhecia os integrantes da equipe há algum tempo, começou a trabalhar com eles no final de 2013. “Foi quando me propus a participar mais, ajudar nos treinamentos e, por necessidade, acabei me tornando chamador”, conta ele, que já foi jogador de futebol profissional e atualmente é sócio em uma corretora de seguros.
IDADE NÃO É PROBLEMA, BASTA SABER JOGAR Pedro Beber e Carlos Remus são mais experientes. O primeiro tem 55
EXPERIÊNCIA Aos 46 anos, Carlos Remus encontrou no futebol de cinco uma nova oportunidade para a prática de esportes
anos. Além de ser auxiliar administrativo, também é presidente da AGAFUC. O segundo, já é aposentado, tem 46 anos. Ambos tiveram a mesma reação quando lhes convidaram a praticar o futebol: impossível. Era apenas uma primeira impressão, logo já estavam jogando. “Eu renasci para o esporte e para a sociedade”, diz Pedro, que antes de perder a visão era praticante fanático pelo esporte. “Achei que nunca mais poderia encostar o pé na bola”, lembra. Entretanto, ninguém disse que seria fácil. “O mais difícil foi a adaptação. Precisávamos saber a noção de espaço e a velocidade da bola. Não é simplesmente chegar aqui e jogar”, lembra Carlos. Para se adaptar, é preciso saber ‘enxergar’ de uma outra forma. “A audição para mim são meus olhos. No momento em que eu escuto o barulho da bola na quadra, ou qualquer outro som, eu estou enxergando. Essa sensação é de enxergar, e não de ouvir”, reforça Carlos, em sua percepção.
“Sou um apaixonado por esportes. Gosto mais ainda de descobrir histórias daquelas modalidades que, normalmente, não são divulgadas pelas mídias. Quando surgiu a pauta sobre o futebol de cinco, não tive dúvidas, era sobre isso que eu ia falar. Já conhecia o esporte, mas pessoalmente nunca tinha visto. A minha primeira impressão ao entrar no ginásio e ver os atletas jogando foi sensacional, afinal o jogo acontece apenas na base dos sons, seja da bola, do goleiro ou do chamador. No mais, o silêncio é absoluto. Ao ver Ricardinho jogar, aquela minha primeira impressão se transformou em um misto de espanto com orgulho. O que o atleta fez durante o jogo é justificável com o posto de melhor jogador do mundo. Foram dribles pra lá, dribles pra cá e muitos gols. Extra pauta, alguns casos curiosos aconteceram, como a lesão de Ricardinho, que adiou a entrevista, e o descarrilamento de um trem, fazendo com que eu cancelasse um dos compromissos. Mas, ao final, cada detalhe foi um aprendizado diferente e muitos conhecimentos foram adquiridos”
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A fé em melodias POR JACSON DANTAS FOTOS RENATA SIMMI
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é. Duas letras. Unidas formam a palavra que representa a crença de alguém em um deus, um objeto, uma pessoa. Uma expressão tão pequena e ignorada por alguns, mas que pode realizar grandes feitos. Música. Seis letras que representam uma combinação de sons, de ritmos específicos e pausas ao longo de uma linha de tempo. Traduz os mais profundos sentimentos humanos, inclusive os relacionados à fé. A origem da música está intimamente ligada ao surgimento da religião, da crença, e datam da pré-história. Desde o tempo das cavernas até a era da globalização, a combinação música e fé tem sido utilizada e explorada com grande êxito. Sejam católicos, protestantes, de religião com vertente Africana, ou de outras denominações religiosas, homens e mulheres do mundo inteiro utilizam a música para expressar a adoração àquele ou àquilo a que servem. Ordenado padre no final da década de 1990, Paulo César Batista Junior, 47 anos, é um dos responsáveis pela Paróquia Divina Providência, no bairro Vila Elza, em Viamão, cidade localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre. Para ele, a música dentro da liturgia da missa Católica representa a presença de Deus na igreja e prepara o coração dos fiéis para ouvirem a proclamação do evangelho. “Cada canto ajuda a pessoa a exprimir o que está rezando. É um momento para expressar sua experiência de fé com Deus”, relata o sacerdote. Tendo um órgão como instrumento principal, a Igreja Católica possui o que chama de ministério de música. Assim é denominado o grupo responsável por cantar durante as missas. Formado por oito pessoas, o grupo também utiliza violão, teclado, baixo e bateria para louvar a Deus. Cada ritmo e tipo de canções são escolhidos de acordo com o público, segundo o padre. Em um encontro de jovens, por exemplo, os louvores são mais descolados e, em ocasiões especiais, há apresentações de danças.
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Música e religião. Uma combinação que perdura desde a pré-história até os dias atuais
EVANGÉLICOS Para membros da igreja Assembleia de Deus de Porto Alegre, o louvor Ê uma das formas de se cultuar a Deus
“Não tem como entender a fé católica sem a música”, comenta o padre Paulinho, como é conhecido na comunidade. Segundo ele, a história do povo hebreu, relatada na Bíblia, mostra o quanto eles são festeiros e a relação que possuem com a música, tendo, inclusive, um livro específico de canções; o livro de Salmos. Daí provém a tradição católica em utilizar músicas em suas missas.
CONVERSA COM OS ORIXÁS Seguindo os passos dos pais, Raphael Cascaes, 29 anos, frequenta há mais de uma década a casa umbandista Ilê Denise de Doia, em Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Cascaes, que é pai de santo, comenta que tambores, atabaques e ages (instrumento musical constituído por uma cabaça envolta numa malha de fios de contas, de sementes ou búzios) são utilizados durante os cultos desta religião de vertente africana. As músicas, segundo ele, servem para que os orixás respondam aos pedidos de “seus filhos” (praticantes da religião). “A música para nós está relacionada a identidade da entidade”, comenta Cascaes ao mencionar que cada entidade tem uma música própria e que por meio desta canção é reconhecida a entidade manifestada em determinada pessoa.
A MÚSICA PARA OS EVANGÉLICOS O louvor atraiu o então jovem rapaz Santo Elijo a frequentar os cultos de mocidade da Igreja Evangélica Assembleia de Deus (AD), em 1974. A conversão à religião protestante, fundada pelos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg em 1911 no Brasil, veio em seguida. De espectador, Elijo aprendeu a tocar violão e gaita, bem como a participar de corais. “O louvor abre a porta para ouvir a palavra de Deus”, comenta o homem, que atualmente tem 58 anos e é um dos pastores da sede gaúcha da maior denominação evangélica do país. Segundo Elijo, todos os corais, grupos e conjuntos, bem como a orquestra da igreja localizada em Porto Alegre, vão até o local não para reali-
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zar uma apresentação musical junto aos demais fiéis, mas, sim, prestar um culto de adoração a Deus por meio do louvor. Elijo afirma que a música, quando cantada com sinceridade, chega “como cheiro de incenso suave às narinas de Deus”. É o que ele chama de “perfeito louvor”; aquele que agrada a Deus. “Quem escuta também é beneficiado. O louvor assenta no coração, faz bem à alma e edifica espiritualmente”, ressalta. Todos os membros desta denominação podem participar de corais específicos (denominados de coral das crianças e adolescentes, de jovens, de homens e de mulheres). Também é possível participar do chamado coral misto, onde todos os fiéis, independente da idade ou sexo, podem participar. Ministro de louvor na Igreja Encontros de Fé de Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre, William Werberick, 30 anos, afirma que a música, além de trazer a palavra de Deus dentro dela, ajuda a fortalecer as pessoas em momentos de angústia do dia a dia. “A alegria da música pode contagiar pessoas a cantarem e adorarem a Deus por horas, saindo renovados e fortalecidos em sua fé”, destaca. Segundo ele, o louvor traz paz, restaura a comunhão das pessoas com Deus e liberta do mal. “O louvor tem um peso muito grande na fé das pessoas e se você estiver sofrendo: louve! Se estiver chorando: louve! O nosso louvor, seja em pedido ou em gratidão, irá tocar o coração de Deus.”
MERCADO FONOGRÁFICO Eternizar a música preferida com a compra de CD’s ou DVD’s não está restrito a fãs de Rolling Stones, Michel Jackson, Ivete Sangalo ou Gustavo Lima. Uma gama de cantores evangélicos se profissionalizou nos últimos anos, e suas canções têm conquistado inúmeras pessoas, cristãs ou não, no Brasil e até no exterior. Este aspecto, bem como o aumento do número de evangélicos no país – cerca de 22% da população, segundo o último Censo do IBGE, realizado em 2010 - , fez com que as grandes gravadores começassem a observar este segmento com outros olhos. No final da década passada,
começaram a surgir os primeiros investimentos de grandes gravadoras para ter em seu casting nomes consagrados do gospel, ou música evangélica, nacional, bem como a criação de selos específicos para atender a esta demanda. A Sony Music é um dos exemplos. Em 2010, a gravadora criou o selo Sony Music Gospel. Já a Som Livre, além de criar o selo “Você Adora”, em 2009, também criou o Troféu Promessas para reconhecer os melhores artistas do ramo. A premiação só teve três edições (2011 -2013) e até hoje o seu encerramento não foi justificado. Conforme o diretor executivo da Sony Music Gospel, Mauricio Soares, em dois anos, o selo já se tornou “saudável economicamente”. A expectativa da gravadora era que isso ocorresse em um prazo de cinco anos. Nos últimos dois anos, as vendas de CD’s e DVD’s deste segmento representou 15% do resultado líquido da gravadora. “É um número bem interessante em se tratando de uma gravadora com artistas tão relevantes”, menciona Soares. Atualmente, a gravadora possui em seu casting de cantores evangélicos 30 artistas nacionais, entre eles , Leonardo Gonçalves, Jamily, Eliane de Jesus, Mara Lima, Paulo César Baruk e Damares. Esta última é a artista de maior vendagem da casa, com mais de 300 mil cópias vendidas do ábum “Maior Troféu”. “Em 2014, Leonardo Gonçalves destacou-se em vendas com o lançamento do DVD Princípio e hoje ele é um dos mais importantes artistas do segmento”, destacou o diretor. O interesse das gravadoras não fica restrito ao universo gospel. Padres da Igreja Católica também têm obtido bastante espaço neste mercado fonográfico, como Marcelo Rossi (Sony Music), Reginaldo Manotti (Som
CATÓLICOS Dentro da liturgia da missa realizada na Paróquia Divina Providência, em Viamão, a música representa a presença de Deus na igreja e prepara o coração dos fiéis para ouvirem a proclamação do evangelho
Livre), Fábio de Mello (Sony Music), entre outros. Pouco conhecidas da população em geral, religiões com vertente africana também possuem a comercialização de CD’s com as canções entoadas em seus cultos. Pela internet, o produto pode ser adquirido por R$5,50, a unidade. Independente do credo, a importância que a música tem em cada religião é indiscutível. Seja católico, evangélico, umbandista, do candomblé, de qualquer outro credo ou até mesmo ateu, cante! Independente do motivo, cante! Tenha uma experiência única com a música todos os dias.
“Realizar esta pauta foi um grande desafio. Primeiramente porque ela não era a minha pauta inicial. Segundo, pelas dificuldades em realizar as entrevistas. Gostaria de ter entrevistado pessoas ligadas ao islã, mas não obtive êxito. Percebi, em uma conversa com um responsável pela religião no Rio Grande do Sul, muita preocupação e desconfiança sobre o conteúdo da publicação. Notei, nesse bate papo, que eles preferem ficar escondidos, sem serem vistos, devido ao trabalho de jornalistas que somente os procuram para tratar de assuntos tendenciosos relacionados aos conflitos no Oriente Médio ou aos ataques provocados pelo Estado Islâmico em países da Europa. Após uma semana de espera da confirmação da entrevista, fui informado que não seria possível realizá-la, que eles não teriam o que falar sobre musicalidade no islamismo, já que só realizavam orações. Uma pena. A matéria poderia ter ficado mais rica. Entretanto, utilizo este espaço para relatar o quanto eu e a fotógrafa Renata Simmi fomos bem recebidos pelos adeptos desta religião em sua mesquita, no início da tarde do dia 17 de abril, uma sexta-feira, na Capital Gaúcha. Realizar esta pauta foi uma grande experiência”
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s casais se posicionam em círculo – homens ao centro e mulheres ao redor. Em seguida, os rapazes se ajoelham e as moças giram o vestido com expressões faciais de negação. Insistentes, os homens deitam no chão com as mãos juntas, erguem-nas e imploram às parceiras, que giram o vestido novamente. Como última tentativa, eles deitam e beijam o chão. Atitude que arranca aplausos e assovios da plateia, quando notam que as mulheres estendem as mãos, com um sorriso nos lábios, e saem bailando com os parceiros. Todos esses gestuais são representados por duplas que utilizam trajes típicos alemães. Esse foi o trecho final de uma das diversas coreografias apresentadas no 25º Encontro de Danças Alemãs em Feliz, no Rio Grande do Sul, em um sábado de abril. Rafael Auler, presidente do Grupo de Danças Folclóricas Alemãs (GDFA) de Feliz, destaca que nessa edição eles comemoraram 48 anos de existência. “A história começou junto com o Festival Nacional do Chopp, que celebrou, igualmente, a 48ª edição, em 2015. Somos pioneiros do Rio Grande do Sul, por sermos o grupo mais antigo do Brasil e que nunca parou de dançar”, diz. A novidade dessa edição do Encontro foi o lançamento da categoria juvenil. “Já tem 15 integrantes. Não são todos casais, faltam ainda alguns meninos. Hoje, é a primeira vez que vão se apresentar”, noticia o presidente do GDFA de Feliz.
OKTOBERFEST DE MUNIQUE: RETORNO ÀS RAÍZES Em 1967, Victor Ruschel passeou na Alemanha, conheceu e se encantou pela Oktoberfest de Munique. Então, decidiu fazer algo semelhante em Feliz. Assim surgiu o primeiro grupo de dança alemã em terras canarinhas. Curiosamente, foi o primeiro do país a se apresentar na Alemanha, em 2014. “Nós conseguimos a façanha de nos apresentarmos na Oktoberfest. Teve pessoas até chorando. Eles também gostaram, fomos elogiados, receberam-nos muito bem”, relembra Auler. “Os organizadores se comoveram com a nossa história. Conse-
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PIONEIROS Grupo de Danças Folclóricas Alemãs de Feliz é o mais antigo do país, com 48 anos de atividades ininterruptas
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Grupos de danças folclóricas alemãs se reúnem para preservar as tradições transmitidas de pai para filho no Sul do Brasil POR JÉSSICA SOBREIRA FOTOS DAIANE TREIN
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guimos entrar contando a questão do Victor Ruschel, que foi para lá, conheceu a Oktoberfest, quis montar um grupo aqui, mesmo não existindo danças folclóricas na época. Sem falar de todos os acontecimentos históricos, dos alemães que vieram para o Brasil em busca de melhorias de vida e encontraram o oposto do que imaginaram”, ressalta. Geferson Schmitz, coordenador do GDFA de Feliz, já tinha conhecido a Oktoberfest em 1998 e desde então lutou junto ao presidente e diretoria do grupo para que fossem conhecer. “Tínhamos o dever de ir lá, e o pessoal se surpreendeu. Foi fantástico, porque fomos o primeiro grupo sul-americano a se apresentar no cerne da Oktoberfest, que tem seis milhões de visitantes! É uma festa que você pode explicar e explicar, mas não vai mensurá-la. É o maior festival folclórico do mundo, regado à música folclórica alemã”, salienta. Schmitz explica que ainda existem muitos laços. “Se tu fores hoje para lá, existem nos museus da Alemanha aqueles fornos à lenha para fazer pão. Aí, eles vêm para cá e veem, em vários lugares do interior, o pão feito no forno. A cuca, por exemplo, é um bolo primitivo. Não se tinha chocolate nem nada parecido, então se fazia pão doce, com açúcar e manteiga em cima. Atualmente, existe a cuca aqui bombando e lá estão sendo reeducados a fazê-la. Claro que alguma coisa muda com o tempo também, mas existe esse vínculo”, observa. Mesmo sem dançar, Viviane Bender Christ comparece, quando consegue, aos eventos de danças folclóricas e, por vezes, leva os alemãezinhos Lucas e Bruno, que encantam a todos por onde passam com seus trajes típicos adaptados para crianças de dois anos. “Ultimamente, eu não estou indo muito aos encontros por conta dos bebês. Em 2014, ajudei a todos em Munique
TRADIÇÃO Viviane incentiva seus filhos, Lucas e Bruno, a participarem de eventos folclóricos
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CULTURA Grupo de Danças Folclóricas Alemãs de Feliz foi o primeiro brasileiro a se apresentar na Oktoberfest de Munique, na Alemanha, em 2014 e levei os gêmeos junto”, menciona Viviane, integrante que começou no grupo há 21 anos, com apenas 15 anos, sendo a que está há mais tempo participando.
BRASIL-ALEMANHA: PRESERVAÇÃO DA CULTURA “Eu, orgulhosamente, moro em uma propriedade que foi passada adiante desde que foi recebida pelo governo gaúcho, quando ocorreu a imigração alemã. Em 1846, meus antepassados receberam a propriedade e nós continuamos com ela. Assim, moro em uma casa de estilo enxaimel. Isso fez com que eu estudasse a língua alemã e danço há 24 anos”, destaca o coordenador do grupo, Schmitz. Igualmente descendente de alemães, o presidente do grupo de Feliz argumenta: “Embora o meu sobrenome não seja difícil de pronunciar, Auler é da etnia germânica, então, cresci com essas tradições na minha família. Desde os 14 anos, eu participo do grupo, mas antes disso eu já dançava nas escolas”, conta. O lema do GDFA de Feliz é “Preservar e promover para não esquecer”. “Passamos adiante a cultura, os trajes, a língua, comidas típicas, a dança. Assim, mostramos um pouco do nosso trabalho”, conclui. Com muito orgulho, vestindo trajes típicos, Veridiana Elisa Erig conta que em sua cidade natal, Maratá, há muito incentivo na preservação da cultura alemã, com a realização da Oktoberfest, das festas de kerb e a preservação da arquitetura enxaimel
dos prédios públicos, por exemplo, o que chama atenção desde cedo. “Começamos pequenos com grupos infantis e depois evoluímos para os grupos dos casados, ou para o grupo oficial. Esse último é mais intenso. Tem a dança, a visitação por todo o Estado, além de Santa Catarina. Retribuímos, ainda, a visitação aos outros grupos, que nos prestigiam em encontros bianuais. É comum essa integração”, diz a integrante do Grupo de Danças Folclóricas Alemãs Vollerschwung, presente no encontro em Feliz. Veridiana, estudante de Direito da Unisinos, incentiva os familiares e amigos a conhecerem a dança. “No grupo, eu tenho primos, além de amigos, que entraram neste ano. Começaram por influência minha. As pessoas talvez participem pouco por não conhecer. Depois que fazem parte, não querem mais sair”, aponta.
Quem incentiva também a tradição na família é José Edolar Schrammel. Ele mora no Vale do Taquari, localidade com tradições germânicas. “Integro há 22 anos o Grupo de Danças Folclóricas Alemãs Musikfreunde, da cidade de Poço das Antas, e tive o privilégio de dançar três anos também em Ivoti, porque nós somos de lá. É uma coisa de raiz, que veio de berço”, ressalta. “Hoje, a minha esposa e meus filhos também estão no grupo. Minha filha tem 14 anos. Como o meu guri tem cinco anos, no ano que vem ele também entra, porque eles começam a dançar apenas com seis anos. Então, é tradição, de geração a geração”, complementa Schrammel. Dessa forma, os descendentes alemães encontraram na dança uma maneira de transmitir as tradições e histórias de vida, há mais de 190 anos, no Sul do país.
“Entrei em nostalgia durante o 25º Encontro de Danças Folclóricas Alemãs, em Feliz. Vi pessoas orgulhosas em vestir os trajes típicos, em preservar as tradições: desde a culinária até as características desse povo (pontualidade, organização, respeito pelo próximo e alegria). Quando pensei no viés que iria dar para essa matéria, levei em consideração as danças folclóricas alemãs. Já tinha visto algumas apresentações na minha infância e me recordei de como eram difíceis e bem executadas aquelas coreografias, devido à dedicação aos ensaios e à determinação dos integrantes. Falei para a fotógrafa Daiane Trein sobre essa minha ideia, então ela me comentou sobre um grupo que ela conhecia, que já tinha ido até para a Oktoberfest de Munique na Alemanha. Comecei, então, a realizar uma pesquisa sobre esse grupo e descobri que iriam realizar um encontro para comemorar o aniversário de 48 anos, com a presença de vários outros: todo o contexto que precisava para mergulhar na apuração. Assim, pude reviver um pouquinho das minhas origens, ao ver pessoas contando e preservando tradições por meio da cultura, da música e da dança alemã. Fiquei muito grata pela oportunidade de escrever essa reportagem e em dar voz a um povo com sobrenomes e sotaques tão marcantes e fascinantes quanto suas histórias”
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Eles estão de volta e a todo volume Apesar de todo avanço tecnológico das mídias digitais, em pleno século XXI, o vinil retornou com força total POR FRANCINE MALESSA FOTOS FRANCINE MALESSA E HERCILIO RIBEIRO
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uitos decretaram o seu fim na década de 1990. Outros fizeram filas em frente às lojas e trocaram uma pilha de discos por um Compact Disc. Mas quem poderia imaginar que em pleno século XXI, em meio a uma grande onda de avanços tecnológicos das pla-
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taformas digitais, o vinil voltaria com força total e a todo volume? E, apesar de se tratar de uma commodity que figurou muito pelos anos 1940 até 80, grande parte dos novos consumidores é de jovens que desde cedo já são apresentados aos bolachões. As feiras de vinis começaram a ganhar forma nos últimos anos. O radialista Cagê Lisboa e a empresária Va-
nessa Szortika são exemplos de que o movimento tem dado certo. Cagê tem investido no seu itinerante Bazar do Vinil, enquanto Vanessa saiu das feiras para se tornar sócia de Juliano Oster na Groovaholic, uma loja de discos aberta no mês de março, em Porto Alegre, que combina multiexperiências aos apreciadores de arte, unindo cultura, gastronomia, cerveja e artes visuais.
HERCILIO RIBEIRO
É com esse conceito que a Groovaholic, formada ainda pelas sócias Ariana Silvestrin e Daniele Espindola, tem atraído cada vez mais público ao ambiente vintage da casa que abriga a nova loja de discos, bar, café e galeria de arte na capital gaúcha. Vanessa comenta que o vinil nunca parou de ser fabricado, comercializado e colecionado. “A única
coisa que aconteceu é que os colecionadores deram uma parada”, diz. Antes de a ideia da Groovaholic tomar forma, Vanessa e o marido, dois colecionadores de vinis, viajaram para São Paulo, onde tiveram a oportunidade de participar de uma feira. Trouxeram a ideia para o Rio Grande do Sul e começaram com a Feira do Vinil POA. A primeira edição, em 6
de outubro de 2013, contou com 300 discos, enquanto a que aconteceu em novembro do ano passado, na Casa de Pandora, ofertou mais de 1,2 mil discos novos lacrados. Já neste ano, a feira está com um novo formato, contando com mais de 2 mil discos entre novos e usados. Juliano Oster era também um frequentador da feira. Ele e Vanessa conversaram algumas vezes e Oster foi o responsável por criar o conceito da Groovaholic. “Partimos da ideia de fazer uma loja de disco mesmo. Mas não era só colocar o balcão, os discos e esperar o cliente chegar. Queria integrar mais formas de experiências de arte e cultura, agregar cerveja, gastronomia e até artes visuais. Hoje em dia, as pessoas buscam experiências mais completas”, explica Oster. Quanto à ideia de investir em uma loja de discos em pleno século XXI, Vanessa é categórica. “Não somos nós, é o pessoal que está investindo. As pessoas estão procurando mais qualidade. Querem se aprofundar na questão cultural, querem valorizar o artista. Hoje, acho que está muito em alta comprar produtos artesanais. O disco, embora seja em série, tem uma qualidade superior ao material digital. Pegar os encartes, folhear, olhar as letras das músicas, acho que as pessoas estão em busca dessa profundidade”, afirma. O público que frequenta a loja é tão diversificado quanto os estilos dispostos nas prateleiras. Quem procurar a Groovaholic, poderá encontrar encartes de rock – em vários estilos e anos –, funk, metal, black metal, jazz, soul, blue, afro, hip-hop e reggae. E quem procura pelos bolachões não são somente os senhores de 60 e 70 anos. Como relata Vanessa, há jovens, há adultos e há adolescentes que estão tendo a oportunidade de ouvir o seu primeiro vinil. “Tivemos uma disputa estes tempos. Postamos que estava vindo um disco do Nirvana, o Never Mind. Logo uma pessoa reservou, enquanto outra ligou pedindo pelo disco. Informamos que caso o primeiro não chegasse até determinada hora, o disco seria reservado para a outra pessoa. Quando vimos, veio o pai com uma filha, uma menina que deveria ter uns 12 anos. Ela levou pra casa o Never Mind e outros dois discos”, relata Vanessa. PRIMEIRA IMPRESSÃO
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VINIL TEM MAIS QUALIDADE, SIM Cagê tem autoridade para falar sobre vinis. Ele mesmo afirma que a sua história com os bolachões vem de longa data. Como sempre gostou de música, as únicas maneiras de colecionar as faixas era pelos vinis ou pelas fitas k7. Ao iniciar a sua carreira na rádio, em 1988, também só se tocava vinil. Na época, havia dois pratos, e o radialista mixava os dois discos, enquanto o operador de áudio auxiliava no restante da transmissão. Cerca de cinco anos depois é que surgiu o CD. “Foi uma comoção geral. Todo mundo que gostava e colecionava pensou ‘aí está o futuro’. O som é mais puro, não tem a fritação de ovo – devido ao contato da agulha com o acetato. Foi
uma coisa revolucionária. Tu chegavas nas lojas, levavas dez vinis e trocavas por um CD. Hoje eu penso ‘como a gente foi burro’. Todo mundo fez isso, eu fiz isso. Saí com um CD embaixo do braço e achava que estava fazendo um baita negócio. Tempo depois, passando o primeiro momento de histeria coletiva, as pessoas começaram a se tocar que tinha uma coisa diferente”, lembra Cagê. Para o radialista, o CD omite alguns detalhes. “Tinha, por exemplo, um álbum duplo do Allman Brothers, que vinha num CD só. Ou seja, tinha quatro lados de vinil num disco de CD. Nesse processo, perdia muita coisa, e as pessoas foram começar a se dar conta disso no decorrer do tempo. Perdia detalhes em obras do Pink Floyd, algumas fases dos Beatles, são detalhes que a gente que gosta muito HERCILIO RIBEIRO
nota”, explica. Mantendo o seu itinerante Bazar do Vinil, Cagê afirma a percepção de um novo movimento de consumidores que estão buscando retomar as origens dos discos. Entre eles, Cagê destaca ainda os eternos amantes dos vinis que nunca deixaram de consumir e colecionar discos. No entanto, são escassas lojas que ofertam discos, estando aí um dos segredos do sucesso das feiras. Cagê comenta ainda a retomada das fábricas de vinis, inclusive, de uma que fica situada no Rio de Janeiro que fechou em 2009 e reabriu em 2012 devido à alta procura e, também, ao movimento de alguns artistas que começaram a lançar suas obras em discos, como Pitty, Titãs, Nei Lisboa, Nando Reis, Cachorro Grande, entre outros. Para Juliano Oster, a ideia de lançamentos em vinis tem ainda outra possibilidade: evitar a pirataria na indústria fonográfica.
COLEÇÃO COM MAIS DE 500 DISCOS Entre os frequentadores da Groovaholic, um deles se destaca: Rogério Ragagnin. O engenheiro civil, que foi conhecer a loja junto com a namorada, Tanira Lebedeff, contou, sentado em uma das mesas enquanto tomava um chop, que em casa guarda sua coleção com mais de 500 discos, desde a época em que era universitário e deixava de comer na semana para comprar um novo vinil. Ele chegava a gravar em fitas seus discos para passar aos colegas. “Parei de comprar vinil quando lançaram o CD e ainda demorei um tempo pra me render a ele. A gente, atualmente, não curte mais música. Baixa cinco ou seis músicas na semana, escuta alguns segundos e passa pra outra. Devo ter mais de 500 vinis e gosto de todos. Naquela época, pelo preço que tu pagava, tu tinha que escutar todo o disco. Hoje, com o valor que cobram – que continua alto – tu tem que comprar se realmente gostar”, conta o engenheiro civil que sempre escolheu seus discos pela capa
MISTURA Groovaholic oferece uma experiência cultural completa a seus clientes
FRANCINE MALESSA
e pelo gosto alternativo. Tanira também cresceu ouvindo vinil. “Há alguns álbuns que tem a ver com a minha vida, eu tenho os Beatles, por exemplo”, relata. Para a jornalista, há ainda outra característica que faz do disco um item especial: o romantismo na hora de sua produção.
CD É O NOVO ITEM EM EXTINÇÃO Se até alguns anos atrás muitos acreditavam que o vinil estava desaparecendo, hoje, para Cagê, quem está no limbo é o CD. “É o que mais corre risco de desaparecer. Porque ou tu ouves o som numa qualidade melhor ou numa qualidade menor, mas numa plataforma muito mais prática. Num celular, tu coloca 5 mil músicas, não precisa um CD. E se tu quiseres ouvir som com qualidade, vais ouvir o vinil. Ou vais ouvir música fazendo outras coisas, pedalando”, comenta. No entanto, essa retomada do vinil ainda não é tão grande quanto aparenta. Cagê comenta que atualmente, no Brasil, o vinil representa 8% das formas de se ouvir música. “É bem menos que o CD, mas está crescendo, sem dúvida, é o
ITINERANTE O radialista Cagê viaja o Estado com o seu Bazar do Vinil
que mais cresce”, afirma. Além de comandar a Groovaholic, Juliano Oster também faz discotecagem. Há cerca de quatro anos, iniciou a discotecagem em vinil. “O pessoal não chega a pedir o vinil, mas valoriza porque aguça mais os sentidos, torna a seleção musical mais valorizada. O som é puro. O disco é cultura, não é à toa que se diz isso. É uma obra de um artista”, reforça.
“Como uma amante da música – estou sempre escutando algo desde o momento em que acordo até quando vou dormir – procurei buscar algo que me atraísse, fosse interessante ao leitor e, também, me proporcionasse boas experiências. Por eu ter nascido e me criado na transição do analógico para o digital, o disco de vinil foi algo que fez parte da minha infância. O meu primeiro bolachão foi da dupla Sandy & Júnior. Depois, fui ganhando outros vinis que acabaram se perdendo no tempo. Há alguns anos, o disco voltou a tocar na minha casa. Peguei o Que país é este?, da minha tia e ganhei mais três: Dois, As Quatro Estações (Legião Urbana) e Cazuza – O tempo não para. Foi o suficiente para frequentar algumas vezes as lojas e buscar por mais vinis. Percebi, então, que eu não estava sozinha. Havia muitas pessoas que ainda gostavam dos bolachões. Encarando os meus discos, pensei ‘Por que não falar da volta do vinil?’. Tive a sorte, ainda, de contar com fontes dispostas, que me ajudaram a contar um pouco da trajetória dos discos e me fazer compreender como é este novo movimento. Além, é claro, de conhecer novos lugares e estilos. É incrível o poder da música”
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Sem poder ouvir, Wesley conhece estรกdio de futebol e explica como se ouve um jogo sem sons POR DIOGO ROSSI FOTOS ARTHUR ISOPPO
Muitos registros,
nenhum som
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céu da manhã do domingo, dia 3 de maio, não parecia o mais apropriado para uma visita ao estádio de futebol, mesmo que os indicativos fossem, sim, os melhores possíveis: final do Campeonato Gaúcho, um Gre-Nal. Acanhado na Avenida Borges de Medeiros, em Porto Alegre, embaixo de uma parada de ônibus junto ao seu pai, Wesley Scheneider de Scheneider, 14 anos, movimenta os olhos e as mãos em uma velocidade incrível. Tudo parece novo. Ele é surdo. No caminho até o estádio Beira-Rio, Wesley e o pai conversam a todo momento. Os braços em movimentação acelerada davam o tom do bate-papo frenético e ansioso dos dois. O garoto nunca tinha ido a um estádio de futebol. José Gilberto Santos Scheneider, 43 anos, pai do menino, também vivia a novidade: “Eu nunca fui a um estádio, não gosto da agitação, mas eu não podia privar meu filho dessa oportunidade única”, ressaltou. Ambos vestiam seus fardamentos azuis. Torcedores gremistas, queriam ver o time do coração, mas no estádio do maior rival. Próximo do Beira-Rio, Wesley sacava do bolso sua máquina e registrava, a todo momento, aquilo que via. O pai explicou que os deficientes auditivos registram cada cena, todos os detalhes. As fotos ajudam a guardar
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esses momentos. Wesley, assim, jamais os esquece, ao rever em casa todos os registros feitos. Era uma final, e a confusão sempre foi parceira desse jogo que é o futebol. Filho e pai tiveram de se desfazer do seu azul e aderir a camisetas vermelhas. Eles iam aos camarotes do estádio do Inter. Wesley não parecia se importar com isso. Antes da entrada, um estouro. A polícia precisou apartar a confusão dos torcedores gremistas, e o susto foi grande. O barulho inesperado foi mais rápido que o processo necessário para adequar o som aos ouvidos no aparelho que Wesley utiliza. No ouvido direito, 20% da audição, no esquerdo, 40%, ainda sim, nenhuma distinção de palavras.
O JOGO QUE ELE OUVIU A massa vermelha era enorme e o barulho quase ensurdecedor, mas para Wesley pouco importava. Ele não ouvia, mas via o seu jogo. O juiz apitou e a massa veio abaixo. Atento a todos os detalhes, preferiu focalizar o olhar na movimentação dos torcedores. Os braços se movimentavam e empurravam o Internacional. O jogo era apreensivo. Um gol e tudo mudaria para um dos lados, afinal, valia um título. Wesley não parecia
angustiado com isso, apenas nervoso pela nova experiência. Assim, preferiu prender o olhar em uma moça ao seu lado, que digitava no celular quase que sem olhar para partida. Em campo, a velocidade do jogo era incrível. A bola corria como os olhos do garoto, que buscava a todo momento algo novo para registrar. De repente, o gol. O Inter abria o marcador, e Wesley começou a comemorar, batendo as mãos e vibrando. Mas espera! Esse não era o seu time! Não tinha problema. A emoção pela experiência era muito grande, e a alegria veio de forma espontânea. Sentado no assento do camarote 4119, no lado norte do estádio, Wesley demorou a se soltar. Aos poucos, ele levantava e sentava sem parar, buscando novos detalhes do jogo. O pai puxava assunto e buscava entender se o filho estava aproveitando. Ansioso, José estava apreensivo, pois já havia destacado que Wesley era tudo para ele. A sensação dos dois era diferente, mas o pai transparecia o mesmo medo que normalmente tem ao deixar o garoto no ônibus para escola, todos os dias. “No começo, a mãe ia com ele e esperava até o fim da aula. Hoje, ele já vai sozinho”, comentou o pai, preocupado com a situação. Aos poucos chegaram a pipoca e o refrigerante. A tarde parecia completa. Porém, Wesley ainda surpreenderia. Com a mão direita, o garoto conversava com o pai. A mão fazia movimentos diferentes dos vistos, até ali, naquela tarde. De prontidão, o pai explicaria o que isso significava, e disse que o filho o afirmara que estava muito feliz de ver o jogo. Contudo, a conversa não acabou ali. As mãos mais uma vez começaram a se movimentar, assim como os olhos, que pareciam querer dizer algo e, sim, eles disseram. Wesley, sem nunca ter ido em um estádio, sentia aquilo que todos sentiam, a emoção do futebol. “O dia de jogo tem um jeito próprio”, nos contou o pai falando o que dizia o filho. Mas e o jogo? Bom, o resultado não foi bom para o time de Wesley. O Inter acabou ganhando e se sagrando campeão. Ainda assim, a tarde não terminava ali. Lembram-se da confusão? Pois bem, ela voltou a acontecer. Do parapeito, Wesley viu os torcedores do Grêmio arremessarem assentos das cadeiras contra os torcedores do Inter. A todo momento ele ia e voltava,
mostrando ao pai o que os torcedores estavam fazendo. Ele não parecia estar com medo, mas sim nervoso e preocupado. Segundo o pai, os deficientes auditivos possuem um senso de segurança impressionante. Eles se protegem e temem pelos outros. No fim, tudo acabou bem. No caminho de volta para o carro, Wesley já parecia cansado, o que era natural, afinal de contas, eram muitas emoções em um só dia. Mas ainda havia um pedido feito pelo filho ao pai. Ele queria voltar outras vezes ao estádio. “Arrumei uma encrenca”, brincou o pai, que também parecia contente com tarde de futebol com o filho.
É DIFÍCIL ACEITAR Wesley nasceu deficiente auditivo. Segundo o pai, até os 4 anos ele e a mãe não entendiam o motivo de seu filho não falar, até que buscaram um especialista. Com a realização dos exames, o resultado foi definitivo: deficiência auditiva. José e a esposa não aceitaram a primeira avaliação e seguiram buscando outras respostas até os 6 anos de Wesley. “Não foi fácil. Quando o médico disse que tínhamos de ser fortes, o nosso mundo todo veio ao chão!”, lembra o pai. Wesley e o pai se comunicam
bem. Além de aprender com o filho, José fez cursos e buscou se especializar para estar sempre pronto para se comunicar e manter uma boa relação com ele. Moradores de Alvorada, Wesley encara todos os dias as conduções para chegar à Escola Municipal de Ensino Fundamental Especial para Surdos (Emees), que fica em Gravataí. Lá, ele tem acesso a um ensino especializado, mas regular. De acordo com José, muitas pessoas associam deficiência auditiva a deficiências cognitivas, mas isso nem sempre se aplica. Por isso, eles buscaram um ensino que pudesse dar um futuro ao garoto e deixaram de optar, por exemplo, por uma APAE. Quem sabe um dia Wesley possa contar para alguém essa experiência. Use as imagens das fotos que tirou para lembrar de tudo que viveu naquele domingo.
RECEOSO José Scheneider admite que não poderia privar para sempre o filho da oportunidade de assistir a um jogo de futebol no estádio
“Ser repórter não é fácil, contudo, sempre é importante que se tenha nesse meio amizades e bons contatos. Gostaria de agradecer ao Internacional pela disponibilidade dos ingressos para partida e apoio para compartilhar a experiência. As fontes serem gremistas? Não foi um problema, mas tivemos que adaptar, afinal, estávamos no camarote colorado. Isso não atrapalhou a nossa pauta. Vejo até como acréscimo. Dificuldades que engrandeceram a matéria. Quanto aos sentimentos, fiquei realmente impressionado. Para mim, em especial, foi algo totalmente diferente. Convivo profissionalmente, pois trabalho em uma rádio, com o som, com os barulhos a todo o momento. Porém, na matéria, apenas silêncio. Uma visão totalmente nova. Agora, tenho oportunidade de saber que vamos além do ouvir um cântico. A mão que balança, o telefone que acende a luz, são tão importantes quanto os sons que somos capazes de ouvir. Todos somos capazes de compartilhar esses sentimentos próprios, como, por exemplo: a emoção. Por fim, queria destacar o meu companheiro e repórter fotográfico, Arhur Isoppo. Além de um grande trabalho, foi incrível ver a participação dele e o envolvimento emocional dele com a matéria. Obrigado”
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Cantemos, aleluia!
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o Século XXI, e diversos gêneros musicais ainda surgem, crescem, caem, voltam, se fundem com outros, criando novos gêneros. São músicas cantadas, declamadas, com uma frase, duas, uma palavra, com refrão, sem refrão, sem letra, enfim. Entre todos esses ritmos, um ainda quer manter a tradição que vem desde os primeiros séculos depois de Cristo: o canto gregoriano. Esse gênero é a mais antiga manifestação musical do Ocidente e tem suas origens nas tribos pré-cristãs, que influenciaram o rico e rígido ritual judaico. O cristianismo nasce a partir do judaísmo, e as primeiras comunidades cristãs usavam os cânticos e textos sagrados dos judeus para se encontrar. Tinham, além disso, a novidade de dar testemunho dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo. Então uma nova modalidade de culto se apresentava, baseada na tradição musical das sinagogas, mas também com influência grega. Neste contexto, nasce uma nova forma musical que valoriza o texto, com suaves melodias que oscilam. Já no século II, se tem registros de peças que atualmente ainda são cantadas no ritual Católico Romano. Segundo André Delair, técnico em Música pela Fundação Municipal de Artes (Fundarte) de Montenegro e graduando em Licenciatura em Música pela Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo, o canto gregoriano tem a finalidade de servir a liturgia. “É importante dizer que todo ele é em latim, língua oficial da Igreja. Às missas e demais ofícios católicos foi permitido o uso do vernáculo, língua nativa de um país, no caso o português, mas está absolutamente correto e aconselhável, inclusive o uso do latim ainda atualmente”, aponta. No século VI, o Papa São Gregório Magno (inspirador do calendário atual, denominado, aliás, de gregoriano e dos rudimentos da contabilidade) reuniu os cantos que eram praticados em catedrais e mosteiros. Ao fazer isso, criou uma uniformização da liturgia, mandando compor o que faltava para completar o calendário litúrgico. A partir dessa época, outras peças do gênero foram compostas. Até o século XVII ainda se produziram novas obras. O canto
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Capela Musical São Gregório Magno busca manter viva a tradição do canto gregoriano POR JULIAN DE SOUZA FOTOS RUDINEI MACHADO
gregoriano é o alicerce da música ocidental. Sobre ele foi construído o sistema tonal. O nome das notas musicais são tiradas das iniciais do Hino a São João Batista. O canto passou por estudos e práticas através de monges. Foram eles que mantiveram essa tradição, principalmente através do monge Dom Mocquereau, no final do século XIX, que vivia no Mosteiro de São Pedro de Solesmes, na França. Nesse mosteiro iniciou o exercício da paleografia (estudo dos manuscritos antigos) de canto gregoriano e de
PREPARAÇÃO O regente André Delair instrui o grupo na arte do canto gregoriano desde 2013
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recuperação dos sinais escritos. As melodias desse gênero foram utilizadas também por compositores europeus das diversas épocas. “Compositores como Mozart, Beethoven e Gounod colocaram o gregoriano em um pedestal inatingível, como um gênero que não rivalizava com suas próprias composições, pelo caráter sublime e de espiritualidade inatingível”, narra Delair. Com reformas recentes na Igreja, como o Concílio Vaticano II (19621965), se difundiu o uso de outros gêneros musicais dentro da Igreja.
Porém, documentos de cunho oficial e demais orientações direcionam a utilização do patrimônio musical e cultural da Igreja, onde o gregoriano aparece com predominância aos demais. A partir desse período, o canto gregoriano foi contando com menos adeptos ao longo do tempo.
O ENCANTO PELO GÊNERO André Delair iniciou seu contato com o gregoriano aos 14 anos,
quando cantava em um coral litúrgico. “Ensaiávamos algumas peças deste gênero no coral coordenado pelo padre Renato Schuh. Dos 16 anos até 19 me dediquei a um grupo de estudos e performance do gregoriano, chamado Vox Noctis.” Hoje com 40 anos, ele aponta que, apesar dos 24 anos dedicados ao estudo do canto gregoriano, em sua carreira como músico este não é o único gênero que o norteia. “Desde os 18 anos estudo canto lírico com renomados professores do país e do cenário internacional. Partici-
pei de oito montagens de óperas, além de concertos de câmara, bem como das principais orquestras do sul do Brasil.” Atualmente ele reje nove grupos de canto coral, em sua maioria ligados às igrejas cristãs tradicionais, sobretudo a Católica. Ele geralmente coloca obras do gênero em meio aos coros católicos para que o apreço e a tradição prossigam. E foi através desta prática que, ao final de 2013, Delair iniciou os trabalhos com o grupo Capela Musical São Gregório Magno na Catedral São Luiz Gonzaga, localizada no município de Novo Hamburgo. Esse grupo se dedica exclusivamente ao canto gregoriano, apresentandose todo quarto domingo nas missas da Catedral, bem como em outras cidades do Rio Grande do Sul. “O nosso grupo é o único, fora dos círculos eclesiásticos mais herméticos, como mosteiros, conventos, abadias e afins, que se dedica ao gregoriano como principal manifestação musical. Estudamos o canto dentro do contexto litúrgico, embora seja formado por homens leigos, ou seja, que não estão dentro da hierarquia eclesiástica”, explica Delair. Entre os estudos estão o de repertório, para que esteja de acordo com as leituras em português. Lucas Cardoso, 30 anos, analista de sistema, que participa do grupo desde fevereiro de 2014, relata que o canto gregoriano é importante para a liturgia das missas. “A liturgia não é criada pelos homens e sim inspirada por Deus, logo não pode ser mudada, nem separada da missa.” Ele explica que esse modo de cantar é ausente de ritmo, pois é a voz humana que coordena a melodia. “Assim é que percebemos que o canto gregoriano é totalmente uma oração”, destaca. André situa que as comunidades onde se apresentam são bem receptivas. “Evidentemente a falta de cultura e de conhecimentos da própria religião assola a todos. E por este motivo, muitas vezes, em determinados lugares, causa algum tipo de estranheza ou curiosidade. Não tenho notícia de desagrado ao gênero propriamente, mas ao não entendimento das palavras cantadas em latim. Esse problema é solucionado com a distribuição de panfletos com tradução do que está sendo cantado.”
O trabalho da Capela Musical São Gregório Magno não é arqueológico. Segundo Delair, todas as peças são executadas com caráter e padrão estético atual, sem a tentativa de um modelo antigo. “A intenção é manter viva a tradição do canto gregoriano, isso é visto na quantidade de convites ao grupo para participar de importantes cerimônias da Igreja e em acontecimentos relevantes.” Além de abrilhantar os ouvintes e fieis com a entoação dos cânticos, os membros também contam com sentimentos de satisfação ao exercer essa atividade. “Não há como não se sentir especial em retomar um tesouro da Igreja Católica e ajudar a preservá-lo”, garante Cardoso.
“A boa e velha arte de escrever somada ao descobrimento do novo, mesmo quando envolve algo que te cerca diariamente. Eis uma das minhas concepções do que é o jornalismo. Essa arte que exige o conhecimento em tudo que cerca e depende da imparcialidade de quem conta e o interesse público de quem lê. A proposta para esta revista vinha ao encontro dos pensamentos acima. Falar de sons através de foto e texto é, no mínimo, desafiador. Mas um bom repórter gosta de um desafio. Após enfrentar problemas com minha primeira pauta, comecei a pensar em algo relacionado aos meus campos de conhecimento que tivesse uma temática relevante. Encontrei uma prática da Igreja Católica que me agrada: o canto. E, dentro dessa prática, a partir de pesquisas, descobri um grupo de cantos curioso em meio aos demais que existem no Brasil. O canto gregoriano é um tema que me despertava curiosidade e vontade de conhecê-lo. Acreditava que poderia encontrá-lo da forma que o Capela se apresenta, somente na Europa. Porém fui surpreendido”
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Santini esqueceu uma gaita N
Com quase seis décadas de dedicação ao instrumento, o técnico em conserto de acordeões relembra sua história POR KARINE KLEIN. FOTOS JULIANA FRANZON
o bairro Leodoro Azevedo, na cidade de Canela, Serra Gaúcha, existe uma rua cujos dias, assim como as pessoas que nela cruzam, passam sem pressa. Como se fossem uma melodia dos tempos de outrora. Em frente a um Ipê, no número 117 da Rua Professora Frida Haack, há, no alto, uma placa com simplicidade e sem pretensão alguma que permite ler: “conserto de acordeões”. Calmamente, alguns passos percorrem o gramado, e um senhor – com cabelos brancos e fala pausada que entregam sua idade, – abre um portão trancado a chaves. Talvez a rua não seja tão tranquila assim. Ele nos recebe com um sorriso que não esconde a timidez. Veste calça social cinza escuro, sapatos bem lustrados, uma camisa tão azul quanto seus olhos e uma jaqueta bege. E por falar em olhos, ele os têm emoldurados por óculos que sempre tira para as fotos. Olhando assim, nem dá para dizer que só enxerga do olho direito. Ary Nelso Santini é dessas pessoas com uma singeleza no olhar, de quem não entende por que gente sem afinidade alguma com música lhe procura
para saber sobre seu trabalho. Ele nos conduz até seu escritório. Nas paredes, além de lembranças de Canela e da Serra Gaúcha confeccionadas em madeira, que durante muito tempo garantiram o sustento de sua família juntamente com o conserto das gaitas, se pode ver também um pôster do Esporte Clube Juventude. Ao lado há uma portinha. É ali que tudo acontece: a oficina onde Santini trabalha. Local onde a harmonia da afinação preenche os espaços de cada cantinho da peça. Os acordeões que entram naquela sala, sem afinação, fora do tom, ou com as marcas e desgastes do tempo, nunca mais serão os mesmos, saem outros. Novos. A oficina de consertos é um cômodo reduzido onde disputam espaço com as gaitas uma série de ferramentas que um leigo jamais poderia supor para que servem. Junto delas e penduradas nas paredes, ficam pinceizinhos e frascos, peças e mais peças. E todas as três mil, que compõem um acordeom completo, Santini conhece muito bem. Aos 78 anos, há muito o que recordar. Entre uma nota e outra, Santini
começa a falar sobre seu passado. Natural de Flores da Cunha, nasceu no interior do município, na colônia, em uma localidade chamada Parada Cristal. Viveu lá até os 20 anos. Desde menino frequentava os salões de baile, e seu pai tinha amizade com vários gaiteiros. Talvez aí tenha iniciado o gosto pelo instrumento. Os primeiros trabalhos como técnico em conserto de acordeões iniciaram-se por curiosidade. Santini tinha um amigo que trabalhava na fábrica de acordões Storielli em Vacaria e todo sábado de tarde ia para a casa dele e o ajudava com os consertos. Não demorou muito e ele também começou a trabalhar nessa fábrica. Lá sua função era “limar a música”, ou seja, fazer a limadura das palhetas do acordeom até chegar ao tom adequado.
A MUDANÇA Em 1957 foi chamado para trabalhar na fábrica de acordeões Frascatti, em Caxias do Sul. Quase completando um ano de serviço no local, Santini recebeu uma carta com uma proposta de trabalho da Sonelli, PRIMEIRA IMPRESSÃO
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fábrica de instrumentos musicais que existiu em Canela de 1953 até 1982. Ao ler a carta, não pensou duas vezes. Pegou um ônibus e, mesmo sem saber onde ficava Canela, foi. “Pedi para o cobrador me avisar quando chegasse à cidade, eu não fazia ideia de onde era”, lembra. A partir da década de 1970, a fábrica passou também a confeccionar móveis, extinguindo por completo a produção de instrumentos musicais em 1975. De 75 a 82, a Sonelli manteve 800 funcionários e produzia cerca de 120 caminhões de mercadorias por mês. Fato que foi interrompido em 1º de abril de 1982, quando um incêndio destruiu as instalações, obrigando os sócios a fecharem as portas e decretar falência. Durante seu período de maior ascensão, a Sonelli foi considerada a maior indústria do município de Canela. Enquanto esteve na Sonelli, Santini foi responsável por vários setores. Quem lembra bem desse período é Pedro Caberlon, que também conser-
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ta instrumentos e hoje dá aulas de música. Os dois viveram na mesma pensão durante cinco anos, logo que chegaram em Canela. “Tínhamos uma boa amizade. Santini sempre foi um bom chefe”. Junto na mudança para Canela e em muitos outros acontecimentos da vida do técnico, sempre esteve Alice Bauermann, 70 anos. São casados há 53 anos. Frutos da união do casal, nasceram três filhos; uma mulher e dois homens. Alice é uma esposa dedicada, se preocupa em cuidar do marido e sempre lhe prepara agrados gastronômicos. Conversa com desenvoltura e carisma, contrastando com o jeito tranquilo e reservado do marido. Ao olhar para trás, Santini reflete sobre como teria sido sua vida se não tivesse feito a escolha pela mudança. Com emoção lembra o que o motivou: “Vim para cá com a proposta de crescer na profissão. O que eu queria eu alcancei,” comemora. Ao todo foram 25 anos de trabalho dedicados à Sonelli.
DEDICAÇÃO Entre as três mil peças que compõem um acordeão, não há o que a habilidade das mãos e a apuração do ouvido de Santini não resolvam Depois que a fábrica fechou as portas, Santini começou a ampliar os consertos em casa e a fazer divulgação de seus serviços como técnico. Nessa mesma época, também começou a confeccionar artesanatos em madeira que vendia no comércio da cidade. Estima ter feito em torno de 100 mil peças. Quando se aposentou, resolveu dedicar-se exclusivamente aos serviços de técnico em conserto de acordeões. E, hoje, a rotina de trabalho inicia às 9h e vai até perto das 20h. Todos os dias, inclusive finais de semana. Para ajudar a manter o corpo aquecido no frio da Serra, Alice conta que sempre leva uma xícara de café com graspa para ele enquanto trabalha.
O trabalho é tanto que já atendeu clientes de todo o Estado, consertou todas as marcas e modelos. Entre a clientela, ele é conhecido pelo bom ouvido e por seguir seu trabalho da forma menos mecânica possível. E os fregueses sempre saem satisfeitos, pois com 58 anos de profissão não há o que a habilidade das mãos e a apuração do ouvido de Santini não resolvam. Um dos seus clientes mais antigos, que há cerca de 20 anos conserta acordeões com Santini, é Anibo Frank, 68 anos, um músico de uma banda típica alemã que vive em Linha Araripe, interior de Nova Petrópolis. Anibo é proprietário de uma relíquia, a gaita número oito da Sonelli. “Gosto do trabalho do Santini, ele faz bem feito, sem contar que é uma pessoa boa de conversar”, conta o músico. Santini trata de seu trabalho com dedicação total. Não gosta de sair, não gosta de tirar férias, muito menos de ir à praia. Todo domingo vai à missa. Compromisso. Há 15 anos a única distração que encontra é, todas as sextas-feiras, jogar cartas com os amigos da “Confraria da Canastra”. São 20 pessoas que, garante ele, não jogam a dinheiro, apenas se divertem na casa de um deles para passar o tempo. Cada semana um dos confrades fica responsável pelo jantar. O dia do técnico coincidentemente fora um antes desta entrevista, e ele puxa um papelzinho do bolso para mostrar o cardápio que escolheu: yakisoba. Com relação à música, a que mais lhe agrada os ouvidos é a gaúcha. E o gaiteiro que tem como ídolo é Albino Manique. “Ele tem uma execução fora de série. Tem outros que são bons, mas ele é muito bom”, afirma. Os sons, sejam eles dos acordes fora do tom, do ruído das ferramentas usadas para limar as palhetas, do diapasão, que é a base da afinação, ou mesmo das notas bem afinadas, sempre fizeram parte da vida de Santini. “Desde criança sou apaixonado pelo som do acordeom. É o que mais meus ouvidos aceitam. A música tocada no acordeom para mim é a mais bonita que existe, em nenhum instrumento fica tão bonito”. Porém, em meio a tantos acordeões, existe um esquecido, tomado pela poeira do tempo: o seu. “Eu acho que ainda tenho um, ele deve estar
“Quando alguém abre a porta de sua casa para que entre um desconhecido, por si só já é uma demonstração de confiança. Mais ainda quando essa pessoa tentará contar – através de sua percepção – uma parte da vida daquele que lhe deixou entrar. O ápice ocorre no momento em que essa pessoa vai se soltando, se deixando desvendar. Assim foi com Santini. No início, só respondia o que eu perguntava. Depois, começou a falar espontaneamente, revivendo na memória os principais passos que tornaram o profissional que é hoje. Dizem que todas as pessoas têm boas histórias, basta sensibilidade e apuração no olhar para ultrapassar a barreira do cotidiano. Eu acredito nisso. E não foi diferente com Santini, dono de uma grande história. Transformar tudo que me foi contado, 78 anos de vida, em oito mil caracteres foi uma tarefa que necessitou bastante esforço, pois não é fácil ter de suprimir partes da vida do perfilado, por respeito a tudo que ele viveu e pela confiança em contar isso a um repórter. Nesta singela tentativa de perfil, as alegrias foram muitas; pudemos conversar sem pressa. Várias vezes, pessoalmente e por telefone. A elaboração desta reportagem, além de servir como um exercício jornalístico, foi também um aprendizado de que é preciso ter paciência, não só para saber a hora certa de perguntar, mas principalmente o momento de somente ouvir”
lá”, fala com dúvida. Sua gaita, uma Sonelli de 120 baixos, estava há anos guardada no sótão de sua casa, até que um dia, há cerca de três anos, Alice lhe pediu que voltasse a tocar, e a levou para o quarto do casal. Mas, mesmo assim, não adiantou. Ele nunca abriu o estojo sequer para vê-la. Há 40 anos, esse que vive do som de
gaitas alheias não quer mais ouvir o de sua própria. Entre uma nota fora do tom e um acorde bem afinado, Santini passa os dias na sua oficina, construindo sua vida com o trabalho que sempre sonhou e com a certeza de que uma vida “afinada” é aquela em que é permitido viver do que se gosta. PRIMEIRA IMPRESSÃO
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Abrindo os ouvidos Quando escutar é descobrir nos sons uma paisagem POR KARLA OLIVEIRA FOTOS BETINA ALBÉ VEPPO
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oncentre-se na leitura e imagine. A motocicleta rangendo, a buzina do carro que está apressado, o cachorro da vizinha que não para de latir. Uma mulher usando um sapato de salto alto passa, “ploc ploc”. Pessoas conversam na televisão que está ligada quando você passa por uma loja de eletroeletrônicos. Uma criança chora no colo da mãe, um senhor mexe nas chaves que estão no bolso, a catraca do ônibus gira, moedas caem da mão do cobrador. Tudo isso que você acabou de mentalizar são as chamadas soundscapes, ou paisagens sonoras. De tão comuns, essas cenas urbanas surgem naturalmente na imaginação. Elas aparecem acompanhadas de imagens, sons e
sentidos. São o universo sonoro que nos rodeia. Esse conceito foi criado pelo canadense Murray Schafer, compositor, libretista, pedagogo musical, escritor, educador e investigador do ambiente sonoro, além de artista plástico e cenógrafo, em seu livro A afinação do mundo, publicado em janeiro de 1977. Schafer definiu como paisagem sonora qualquer ambiente que soe. Qualquer porção do ambiente pode ser vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e gravações, em particular quando consideradas como um ambiente. O conceito data 38 anos e compõe parte da chamada arte sonora. Como explica Thaís Aragão,
CRIATIVIDADE Fios, cabos, vidros, mãos. Tudo se mistura e se complementa na criação das instalações sonoras de Armani pesquisadora da cidade pelo som e integrante do Grupo de Pesquisa Identidade e Território (GPIT-UFRGS), a pergunta “o que é arte sonora?” é, por si só, uma grande discussão que há algum tempo é feita e que ainda vai render bastante. Em uma explicação geral, arte sonora compreenderia um diverso grupo de práticas artísticas que têm como principal objetivo dar noções variadas sobre o som, escuta e audição. Assim como o conceito de paisagens sonoras, o de arte sonora é amplo e ainda gera muitas dúvidas. Tanto um quanto o outro, no Brasil, parecem não ter alcançado a difusão suficiente para chamar a atenção de novos artistas. Na região Sul então, é difícil encontrar uma grande variedade de representantes desse tipo
de arte. Mas o fato de o som ainda não ter ganhado tanto destaque no mercado da arte no território brasileiro não intimida Marcelo Armani, um dos representantes gaúchos da arte sonora.
“NÃO POSSUÍMOS PÁLPEBRAS NOS OUVIDOS. ESTAMOS CONDENADOS A ESCUTAR”. MURRAY SCHAFER
Dois anos depois do nascimento das soudscapes, nascia Armani, 36 anos – que não poderia ser mais fiel ao estereótipo de artista. Com o visual de “estou pouco me importado com a moda”, o gaúcho veste uma camiseta simples, calça jeans, um par meio
sujo de tênis All Star e tem o cabelo bagunçado. Para completar, uma personalidade hiperativa lhe acompanha, o que dá o tom de artista maluco à sua figura. “As pessoas devem estar pensando: que cara louco é esse?”, fala enquanto passa a mão no cabelo repetidas vezes e balança as pernas sem parar. É, ele não para. Já foi à Argentina, Chile, Venezuela e México e, em agosto de 2015, vai para São Paulo junto com uma de suas obras, a Instalação Sonora Processual, TRANS(OBRE)POR #08, projeto contemplado no 16º Rumos Itaú Cultural. Mas essa curiosidade e vontade de criar não são de agora. Na infância, já escutava atento o avô tocando sanfona. “Quase fiquei surdo”, lembra rindo. Morou PRIMEIRA IMPRESSÃO
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em Carlos Barbosa, Caxias do Sul e, posteriormente, em Encantado, cidades do interior do Rio Grande do Sul. Lá passava os dias na escola rural e acompanhava os pais na roça em tarefas de plantio, colheita e cuidado com os animais. “Ah, os trovões! Com certeza eles”, exclama ao pensar no que mais gostava de ouvir quando era pequeno. “Se armava chuva, não dava outra: lá estava eu no meio do campo. Minha mãe tinha que estar atrás de mim”, conta. Quando não estava no meio campo, estava em cima dos galpões que a família mantinha para guardar os grãos. Mas os estalos dos trovões e a tranquilidade do campo acabaram dando lugar ao fluxo intenso e urbano de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, onde a indústria crescia e tomava forma. Nessa mudança, os pais foram trabalhar em uma metalúrgica, e os ruídos das máquinas prenderam a atenção de Marcelo. Matriculado em uma escola com doutrina religiosa, Armani não gostou nenhum pouco das aulas. Preferia sentar na janela e observar o movimento externo a prestar atenção no quadro negro. “Eu matava aula direto. Não gostava da escola, ainda não gosto”, revela. Aos 14 anos, aprendeu a tocar bateria e passou a participar de grupos de música experimental, post-punk e post-rock. “Nada muito tradicional.” Aliás, a didática das aulas o incomoda até hoje. Começou a cursar licenciatura em Música, mas logo desistiu, era tudo muito quadradinho. “Eu queria fazer algo diferente, misturar os ruídos. Os professores não achavam que aquilo era música”, afirma. O espírito autodidata do artista sonoro e músico improvisador eletroacústico nunca se modelou aos padrões de “decorar”, em vez de “questionar”. Em 2009, ele já produzia trilhas para curtas e, em 2011, ao participar de oficinas dentro da programação do Festival de Arte Sonora TSONAMI em Buenos Aires, na Argentina, descobriu o que realmente queria produzir. Conheceu dois artistas mexicanos, Manuel Rocha, artista sonoro, e Rodrigo Sigal, músico eletroacústico. As oficinas marcaram a trajetória de Armani, que largou a faculdade de Engenharia Mecânica na UFRGS e começou a se dedicar exclusivamente à arte sonora.
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“SOU TODO SOM” MURRAY SCHAFER
A partir dali, a carreira profissional e a realização pessoal passaram a andar juntas. Mesmo sem um espaço definido nas artes, Armani viu nas novas tecnologias um lugar em que suas captações e criações de som poderiam se encaixar. Virou “caçador de editais de arte”, como ele mesmo diz. Seu trabalho consiste em andar pelas ruas da cidade acompanhado de sua mochila. Lá dentro tem espaço para um gravador, um notebook e microfone, os equipamentos básicos para registrar o som dos locais. “Eu ando por aí e o som me acha”, explica Armani. Quase que como mágica, artista e obra se encontram, tendo a cidade como pano de fundo de toda a criação. Thais Aragão, que mantém o blog Escuta Nova, voltado para estudo do som, explica como a captação implica em mais do que apenas ouvir. “O pintor francês Émile Bernard, amigo de Van Gogh e Cézanne, tem uma frase interessante: ‘Três operações. Ver, operação do olho. Observar, operação do espírito. Contemplar, operação da alma.’ Quem quer que chegue a essa terceira operação está entrando no domínio da arte. Podemos mudar o sentido (sistema sensorial) da primeira frase pela audição. Daí teremos: ouvir, operação do ouvido, e ainda podemos chegar ao mesmo lugar”, contextualiza. Armani vai além. Busca as particularidades de cada lugar, em Recife, percebeu como as passeatas religiosas tomavam a cidade, fez uma obra crítica, na qual registrava o áudio do lugar e reproduzia em um salão arte. “O pessoal não gostou muito, mas eu não dei muita bola. Já estou acostumado”, fala sem se mostrar muito ofendido. Afinal, instalações sonoras não são
muito populares em espaços de arte que normalmente são tomados por um silêncio absoluto ou por um som ambiente. Artistas como Marcel Duchamp, John Cage, Pierre Scheaffer, entre tantos outros, servem de inspiração para Armani. Entre ruídos dos carros e o latido do cachorro da vizinha, ele faz uma pausa para dizer: “Oh, isso é pura paisagem sonora. É ótimo”. Na sua casa, mantém um estúdio improvisado. Fios, cabos e antigas obras se misturam com o mobiliário comum de um quarto. As paredes não apresentam nenhum elemento visual, apenas duas molduras de quadros sem fundo. Ao que parece, o som domina todo o espaço. Não sobra muito para o visual, tudo gira em torno da arte sonora. Começa a improvisação no teclado da mesa de som, entra em transe, se esquece do que está à volta. Como quem medita, se eleva a outras dimensões. Armani parece flutuar entre os ruídos. Tudo se mistura: o barulho da cafeteira, o maquinário industrial, as notas do teclado, passos de alguém, o trem chegando. Tudo em um mesmo balaio, em uma musicalidade complexa
“Ouvi falar sobre arte sonora em 2013 quando registava imagens em um projeto de intervenções artísticas em Porto Alegre. Foi ali que conheci um pouco do trabalho do Armani, mas não tinha noção da amplitude do assunto. Quando o tema da edição ficou definido, fiquei completamente perdida. Não conseguia pensar em nada que não fosse óbvio. Até que, como em um estalo, lembrei que conhecia um artista sonoro. Devia se encaixar de alguma forma no tema. E não é que deu certo! Uma de minhas conversas com Armani foi em um café, o lugar ideal. Os sons de outras conversas, dos pedidos, do
e difícil de digerir. Não é para qualquer um. Esses sons rotineiros atravessam os ouvidos, mas só entram quando há permissão. Segundo Thaís, pode-se ampliar para “o som do mundo como arte sonora”, para se pensar melhor. John Cage, um dos compositores mais influentes do século XX, por exemplo, em uma de suas obras mais famosas, chamada 4′33″, traz a simplicidade à tona. “Faz com que algumas fichas caiam”, completa a pesquisadora. Cage fez uma composição totalmente baseada em sons que ele nem mesmo controlava, que vinha da própria sala onde ele a apresentou. Sentava-se ao piano e ali aparentemente não fazia nada. No entanto, fazia: contemplava. E tudo que soava, tornava-se 4′33″. O título é o tempo que a música dura. Talvez seja nessas pequenas sacadas que a arte sonora se baseie. Ela desmitifica o barulho, resignifica espaços através do som. Ela mostra, amplia e invade por meio do que não se dá atenção. Armani garante que vê com os ouvidos, talvez seja isso que falte para a população. Abrir, de fato, os tímpanos, ver de outra forma.
café sendo preparado, se misturavam com a conversa que estávamos tendo. No meio disso, fui descobrindo que nesses sons, rotineiros, banais, estavam as paisagens sonoras. Saí dali prestando atenção nos áudios das cenas que me cercavam: um músico sertanejo, alguém vendendo cigarro, o barulho do ônibus. Tudo me pareceu diferente. Comecei a lembrar dos sons de infância, o som do ferro da janela no qual bati minha cabeça incontáveis vezes, os passos na brita, a chuva que observei ao lado do meu avô. Percebi que tudo soa e que é impossível não soar também”
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A evolução dos sons no cinema
O cinema mudo nunca foi silencioso. O som sempre esteve presente, mesmo que de maneira discreta. Com o passar dos anos, tornou-se essencial para os filmes POR MATHEUS FREITAS FOTOS ANA FUKUI
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o dia 28 de dezembro de 1895, um grupo com cerca de 30 pessoas começou a acomodar-se no salão Grand Café, em Paris. Eles estavam ansiosos para assistir ao evento que Louis e Auguste Lumière iriam exibir ao público. Os irmãos Lumière, como também eram conhecidos, apresentaram naquele dia sua mais nova invenção chamada cinematógrafo. Esse projeto retratou, pela primeira vez de forma comercial, um filme, por muitos considerada a primeira obra do cinema. Quando as imagens começaram a ser exibidas e o trem do filme L’Arrivée d’um Train à La Ciotat chegou na estação, aproximando-se da tela, os espectadores presentes assustaram-se. Acharam que a locomotiva iria atropelá-los. Mas logo perceberam que aquilo não era de verdade, que a comitiva não era real, eram apenas imagens de um novo modo de entretenimento que em alguns anos iria se espalhar pelo mundo. Assim nascia o cinema. A obra dos irmãos Lumière deu início a um gênero que seria predominante até a década de 30: o cinema mudo. Mas o cinema mudo, de fato, nunca foi totalmente silencioso. Apesar de não haver diálogos, apenas intertítulos, falas ou outras frases que apareciam entre algumas cenas para explicá-las melhor, os filmes sempre tiveram som. Na obra dos irmãos Lumière, havia o acompanhamento de uma melodia tocada por piano. Essa sonância dos pianos esteve no cinema mudo durante anos. Nem sempre os pianistas conseguiam acompanhar o ritmo das cenas, mas sempre havia um ruído nos filmes. O som sempre foi primordial para a composição do cinema. Conforme os filmes falados começaram a dominar a indústria cinematográfica, a sonoridade deixou de ser importante e passou a ser fundamental. O longa-metragem Don Juan, lançado em 1926, é considerado o primeiro a introduzir efeitos sonoros. A obra foi pioneira no uso do recurso vitaphone
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(apetrecho formado por um disco, colocado junto ao projetor). Com ele, os produtores podiam sobrepor efeitos sonoros junto à trilha dos pianos que tocava ao fundo. Dois anos depois, a Warner Bros., estúdio responsável pela criação do aparelho, inovou mais uma vez ao colocar diálogos em um de seus filmes e lançou aquela que é considerada a primeira obra falada do cinema: O Cantor de Jazz (1928). Com a criação desse dispositivo, a Warner Bros. começou a revolucionar a indústria cinematográfica e deixou de ser um pequeno estúdio e consolidou-se no cinema Hollywoodiano. Os sons no cinema foram ganhando vida e tornando os filmes mais atrativos. O espectador, agora, não precisava mais só assistir, também poderia ouvir os personagens conversando, escutar as músicas e as diversas trilhas sonoras, entre outros sons. O cinema falado foi evoluindo e, junto com ele, os sons. Novos gêneros foram criados, entre eles o musical. A principal premiação do cinema mundial, o Oscar, criado em 1929, tem como objetivo premiar, em diferentes categorias, os melhores filmes de cada ano. Atualmente dedica quatro categorias aos sons. As duas primeiras surgiram
em 1935: Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original. As duas últimas são categorias mais técnicas em relação aos efeitos sonoros: Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som. A primeira chegou ao Oscar em 1963 e teve como vencedor o filme Deu a Louca no Mundo. E Dança com Lobos foi o primeiro a receber o prêmio de melhor mixagem de som, em 1991.
MIXAGEM E EDIÇÃO DE SOM Diferente de Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original, a partir das quais o espectador sabe escolher por qual interessou-se mais porque gostou de alguma em especial ou entende de música e sabe qual das concorrentes tem melhor potencial para vencer, as categorias de Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição de Som nem sempre são compreendidas pelo público leigo. Muitos que acompanham a cerimônia do Oscar não sabem a diferença entre as duas categorias. “Da maneira mais simples que eu posso explicar, funciona assim: a edição de som vai selecionar qual som vai para
qual momento do filme. E a mixagem vai definir qual volume que esse som vai ter no local em que ele foi inserido pelo editor de som”, explica Leonardo Bracht, designer de som que já trabalhou em diversas produções musicais e cinematográficas, entre elas o filme Porto dos Mortos, considerado o primeiro longametragem de terror feito no Rio Grande do Sul, lançado em 2010, e que ganhou diversos festivais internacionais. A captação de sons, que acontece durante a produção do filme, é trabalho dos editores, que são divididos em grupos. Comandados por um diretor geral de som, eles gravam os diálogos e toda a sonoridade realizada dentro do set de filmagens. Cada equipe tem sua maneira de trabalhar e pode utilizar diferentes recursos para captar os sons: microfones convencionais, fones, rádios, booms – microfone direcional pendurado em uma haste longa –, entre outros. Todo esse grupo de editores, mais o diretor de som, trabalham juntos com o cineasta MIXAGEM Em seu estúdio, Leonardo Bracht trabalha com edição de sons para filmes e produções musicais
Padrão George Lucas Leonardo Bracht dá uma dica para os cinéfilos porto-alegrenses: “A melhor sala de cinema para se ouvir um filme em Porto Alegre é a sala 4 do Cinemark do Barra Shopping”. A razão é simples: “É a única sala de cinema com a tecnologia THX”. O sistema THX proporciona um som de alta qualidade porque as salas de cinema com esse padrão apresentam um controle de reverberação, isolamento acústico do local e o uso de uma acústica especial para a parede frontal, onde são fixadas as caixas de sons. Para entender um pouco melhor do THX, é preciso ter uma rápida aula de física antes. Primeiro, se um objeto estiver muito próximo de uma pessoa e emitir um som, essa sonoridade será seguida por dois estímulos: som produzido e som refletido. O primeiro é o barulho imediato, sendo o segundo aquilo que nosso ouvido sente um pouco mais forte, caracterizando um fenômeno chamado “reforço”. Já quando o objeto em questão está mais longe e “lança” uma sonância muito alta, fazendo com que o intervalo de tempo seja menor que 0,1 segundo, a pessoa irá ouvir o som emitido e produzido ao mesmo tempo, acreditando que o barulho daquilo é mais alto. É como se uma bomba explodisse próxima a uma pessoa. O ruído que irá receber em seus ouvidos não existirá
mais, porque o artefato já explodiu, mas a sonoridade ainda pode ser sentida pela audição humana. Esse acontecimento chama-se reverberação. Uma sala de cinema com o sistema THX controla o volume da reverberação, dando a sensação de um som mais real e mais duradouro. “O THX é um ponto positivo para os espectadores. Cada vez mais, dentro das salas de cinemas, teremos uma experiência mais próxima daquela que os editores e mixadores de sons trabalham”, explica Bracht. O THX recebe esse nome por causa de seu criador, Tomlison Holman, que criou esse sistema junto com George Lucas (a letra X é em homenagem ao primeiro longa-metragem de Lucas THX 1138, lançado em 1971), quando ainda trabalhava na Lucasfilm, em 1983, para que o filme Star Wars – O Retorno do Jedi pudesse ter a sua trilha sonora reproduzida com a mesma qualidade em todos os cinemas. Hoje em dia, a imagem do cinema é bastante valorizada e cada vez mais filmes estão sendo lançados em versões em 3D ou em formatos Imax. Porém, não basta ser apenas visivelmente agradável, o longametragem que ter, também, uma sonoridade quase que impecável. Conseguir identificar os sons que as imagens produzem faz toda a diferença numa obra cinematográfica.
responsável por dirigir o filme. Após as gravações estarem concluídas, começa o trabalho de pós-produção. Nessa etapa do processo de conclusão do filme é que entram os profissionais de efeitos visuais e especiais e, também, a equipe que irá fazer o trabalho de mixagem de som. Os responsáveis por mixar o som utilizam todo o material sonoro dos editores para unir com sons que eles mesmos produzem, como explosões ou tiros. Eles podem utilizar também uma sonoridade externa, disponível em um banco de dados sonoros. “Nós tivemos poucos sons diretos no Porto dos Mortos. Depois redublamos todos os personagens para dar uma sonoridade diferente para o filme. Nós queríamos uma Porto Alegre completamente pós-apocalíptica. Não tinha sons
de animais e nem da cidade. Os únicos sons eram de alguns insetos bizarros, zumbis e, ao fundo, o vento. Então nós fomos para Aparatos da Serra e passamos o dia inteiro gravando o som do vento e tentando fugir do barulho dos passarinhos. Com essa captura, fiz um grande banco sonoro e acabei utilizando esses sons em outros filmes. Volta e meia o Davi (Davi de Oliveira Pinheiro - diretor do filme) me diz: ‘eu vi aquele filme lá, mas eu sei que o som é do Porto dos Mortos’”, conta Bracht. O designer de som ainda revelou alguns easter eggs (qualquer coisa que esteja oculta, mas pode ser descoberta em filmes, livros, games) escondidos no longa-metragem, como a melodia da principal música do filme que é tocada apenas com o barulho das gotas d’águas que caem na cena em que uma menina
“Sempre gostei de cinema e, por isso, tento escrever o máximo possível sobre esse assunto. É algo que leio e gosto bastante e costumo sempre procurar saber mais. Já tive a oportunidade de escrever sobre cinema, como colaborador em um jornal mensal, por quase dois anos e aprendi bastante. Porém, normalmente trabalhava com matérias focadas nos lançamentos do mês, ou em gêneros cinematográficos específicos, mas sempre acabava ‘linkando’ com algo atual em relação ao mês que o jornal era lançado. Até então, não havia tido a oportunidade de trabalhar com uma matéria que explorasse somente o lado sonoro das produções cinematográficas. Então, quando foi determinado que o tema da Primeira Impressão deste semestre seria ‘Sons’ e uma das pautas sugeridas era ‘Trilhas Sonoras’, vi essa oportunidade de trabalhar com a parte sonora do cinema (acabei não focando nas trilhas sonoras, mas no som em geral). Como não tinha sido eu que havia sugerido essa pauta, a primeira meta foi torcer para que ninguém a escolhesse. Depois que peguei a pauta, era hora de começar a trabalhar. Apesar da empolgação de trabalhar com esse tema, achei que não iria me surpreender tanto com as minhas fontes, mas foi ao contrário. Aprendi, de uma maneira geral, aquilo que pensei que já soubesse: mixagem e edição de som. Também descobri um tal ‘sistema THX’. Foi muito bom ter a oportunidade de trabalhar com esse assunto. Quero ter a oportunidade de escrever novamente sobre sons do cinema. Em resumo, foi um belo aprendizado”
vai matar um zumbi na banheira. “Quando um dos zumbis tem a cabeça esmagada, foi eu e minha equipe que fizemos o som ao esmagar uma melancia dentro do estúdio”, revelou Brach, contando mais um dos segredos da produção de Porto dos Mortos. “Em outra cena, um cara da rádio enlouquece e começa a quebrar todos os aparelhos, e éramos nós, de novo, que estávamos quebrando várias televisões velhas dentro do estúdio”, conta Bracht. O som nos cinemas evoluiu. Há cada vez mais recursos para fazer efeitos sonoros, mas ainda existem soluções simples, como esmagar uma melancia. Hoje em dia, ter sons nos filmes é tão fundamental quanto às imagens. Grandes produções de ação e aventuras tornam-se praticamente inacessíveis se não puderem ser escutadas. PRIMEIRA IMPRESSÃO
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CHORO DE DESESPERO m minuto e meio. Na noite do dia 22 de abril de 2014, a professora e publicitária Graziela Hansen saía da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC),
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onde lecionava, apenas pensando em chegar em casa. Ela se deslocaria sozinha de carro até seu apartamento em Estância Velha, através de um trajeto que costumava levar cerca de duas horas. Naquele dia, a viagem não se completou. O percurso foi de apenas um minuto e meio.
Emoções traduzidas em som Graziela Hansen é como todos nós: já chorou de alegria e de tristeza. Porém, no último ano, a professora viveu a experiência de derramar lágrimas ao extremo POR RAFAELA DILLY KICH FOTOS MARINA LEHMANN
Chorar, verbo intransitivo, cho-rar. De acordo com o dicionário Michaelis: derramar, verter dos olhos; exprimir em pranto
“A aula acabou por volta das 21h45min e eu não queria dormir em um hotel. Então, decidi ir para casa”, lembra. No caminho, entretanto, havia uma estrada esburacada. Com 31 anos, Graziela jamais imaginaria que sua vida estava prestes a mudar. Também não tinha noção da frequência
com que ela, no decorrer de um ano, ouviria o som característico de um choro. Tudo aconteceu na entrada de acesso à RS 287, bem próxima à saída da universidade. “Tinha um caminhão que ficava me pressionando. Então, decidi entrar por uma terceira pista para
ele me ultrapassar. O problema é que havia muitos buracos e o asfalto estava desnivelado. Foi aí que, provavelmente, o carro começou a picar, eu bati a cabeça no volante e desmaiei.” Depois, nada. “Eu não me lembro do que aconteceu. As testemunhas do aciPRIMEIRA IMPRESSÃO
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dente disseram que o meu carro foi para a pista contrária, onde havia uma subida. Provavelmente eu apaguei mesmo, pois aparentemente nem tentei frear. O carro que vinha na direção oposta não teve como desviar. Então, batemos”, recorda a professora. O acidente foi gravíssimo: Graziela ficou presa nas ferragens. O SAMU teve que chamar os bombeiros para tirá-la do carro. Quebrou o nariz, o fêmur, a costela e a perna direita foi esmigalhada: fraturou em quatro lugares. Além disso, perfurou o pulmão e teve hemorragia interna. “Minha boca ficou toda rasgada por dentro, inclusive a língua. E ainda tive queimaduras de terceiro grau, provavelmente por causa do motor do carro.” Graziela pouco se lembra de quando chegou ao hospital. “Tenho flashes: lembro de ter visto uma claridade e de pensar que tinha morrido. Também recordo do meu marido, o Vagner, com um olhar desesperado. Mas ali eu ainda não tinha noção do meu estado. Quando eu apaguei, depois de chegar no hospital, só fiquei consciente de novo cerca de uma semana depois”, explica ela. Aos poucos, com o retorno da consciência, a dor física não era o
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único tormento de Graziela. “Quando percebi a gravidade do acidente, fiquei muito preocupada. Eu não acreditava que todo mundo tinha saído vivo daquela batida. Eu chorei muito, muito, muito. Eu achava que a minha família estava escondendo algo de mim”, enfatiza a professora. De fato, no carro que se chocou contra o dela, havia outras pessoas – dentre elas, duas crianças. “Meu marido me explicou que todo mundo estava bem, mas eu não acreditava. Eu dizia: ‘pode me falar, eu sou forte, eu aguento’. Mas era muito difícil, na minha cabeça a culpa era minha, eu que tinha feito algo de errado. Eu chorava porque o sentimento era desesperador. Só acreditei mesmo quando a mulher do motorista do outro carro veio me dizer que eles só tinham sofrido lesões leves. E que, graças a Deus, todo mundo estava bem”, recapitula ela.
CHORO DE GRATIDÃO Graziela se submeteu a duas cirurgias complicadas no hospital. Durante esse período, recebeu muitas flores e várias visitas. “As visitas eram, certamente, um dos meus maiores
motivos de choro. Eu não chorava na frente delas. Tentava manter aquela postura de ‘ah, eu sou forte!’, mas, quando eles iam embora, eu desabava”, rememora a professora. “Eu chorava, chorava, chorava. Chego até a me emocionar agora”, frisa ela, com lágrimas nos olhos. “Era um sentimento ambíguo. Eu ficava feliz deles estarem lá, mas pensava: ‘eles se deslocaram cerca de duas horas até aqui, só para me ver’. E aquilo era tão significativo diante da situação. Eu me sentia muito querida.” Naquele período, ela recebeu vários presentes simbólicos: “Meus alunos vinham me visitar, fizeram vídeos e homenagens para mim. Colegas de trabalho, amigos, companheiros do mestrado, todo mundo vinha me visitar. Obviamente, eu morria chorando. Receber tanto carinho me confortava, me deixava bem diante de tudo que estava acontecendo.”
CHORO DE ALEGRIA Antes do acidente, Graziela estava tentando engravidar. “Eu não conseguia, então decidimos consultar um médico e fazer exa-
Por que choramos? O psicólogo Aldo Meneghetti, de Novo Hamburgo, explica que o choro é uma expressão humana fisiológica e natural. É a primeira forma de comunicação que os humanos externam ao mundo. Para os bebês, o choro é uma forma de comunicação, que representa seus desconfortos e suas necessidades.
mes para ver se estava tudo bem. Meu marido começou um tratamento de fertilidade, pois descobrimos que tínhamos apenas 5% de chance de ter filhos naturalmente”, pontua ela. Diante do acidente, o marido interrompeu o tratamento. “Pensamos: ‘agora é que não vai ser, né?’, lembra. Ainda mais diante da situação: ao sair do hospital, Graziela ficou três meses em cadeira de rodas, passou por mais de 100 sessões de fisioterapia e 50 de hidroginástica. Ao sair do hospital, a professora teve de ir morar na casa dos pais por um tempo, por conta do auxílio de que necessitava para realizar todas as atividades diárias. Somente quando ela conseguiu caminhar com auxílio de um andador que sua fisioterapeuta liberou a volta para casa. Então, veio a surpresa. “Aí, no nosso primeiro fim de semana em casa, eu engravidei!”, relembra contente. “Eu nunca imaginei que engravidaria. Nós já tínhamos até conversado sobre guardar um dinheiro para, no futuro, investir em uma inseminação artificial.” Mas a gravidez não foi prontamente detectada. “Eu comecei a passar mal, ter enjoos, desmaios e queda de pressão. A probabilidade maior era de que fosse estresse póstraumático, em decorrência do acidente. Meu médico recomendou que eu procurasse auxílio psicológico”, conta Graziela. “Um dia, o Vagner foi à farmácia e voltou com um teste de gravidez. Ele disse ‘pode fazer, porque tu estás grávida’. Só que eu não quis fazer na frente dele. Nós já tínhamos nos frustrado tantas vezes”, sumariza ela. Então, no dia seguinte, a pro-
Quanto aos benefícios do choro para os adultos, há controvérsias. “Em minha experiência profissional, percebo variações. Há algumas pessoas que se privilegiam do choro, esgotando suas tensões emocionais diante de suas experiências. Outras, ao contrário, parecem desencadear, através do choro, uma
maior intensidade no nível de ansiedade já existente”, relata. Assim, Meneghetti conclui que o choro é uma forma de comunicação que traz significados e rumos variantes ao longo do tempo. É, portanto, uma expressão que demonstra a singularidade dos processos de desenvolvimento de cada ser humano.
fessora esperou o marido ir trabalhar e decidiu fazer o teste. “Quando eu vi os dois risquinhos, chorei igual a uma louca! Pensei ‘como pode ser verdade? Como eu estou grávida? E como está esse bebê?”. Eu liguei pro meu marido e disse ‘vem agora para casa!’. Quando ele chegou, eu perguntei: ‘tu acreditas em milagre? Nós dois nos abraçamos e choramos muito.”
CHORO DE VIDA NOVA Apesar de só ter descoberto que estava grávida após dois meses de gestação e de ter se submetido a exames que não devem ser feitos por gestantes, Graziela ficou bem. Os meses restantes foram tranquilos e o bebê também se desenvolveu com saúde. No dia 13 de março de 2015, cerca de 11 meses após o acidente, nasceu Afonso Hansen Lahude. O nome é uma homenagem ao avô dela. “Graças a Deus ficou tudo bem. A cesárea não foi nada em relação às cirurgias complicadas pelas quais passei em função do acidente. Foi só alegria. Fomos abençoados. Eu realmente acredito que sobrevivi para poder ter o Afonso”, esclarece ela, pausadamente. E acrescenta: “Não tem outra explicação”. Para Graziela, o som do choro de seu bebê representa a melhor sensação do mundo. “A gente não se importa quando ele chora. Isso significa que ele está saudável, que ele está bem”, finaliza. Para ela, o melhor choro do mundo foi o de quando o bebê nasceu. Naquele momento, ela teve certeza de que tudo na vida tem um propósito.
“Preparar uma grande reportagem é sempre uma tarefa desafiadora. Diante da proposta da Primeira Impressão, que nos dá liberdade para escolher um tema e explorar diferentes formas de escrita, foi difícil definir uma pauta. Depois de algumas ideias derrubadas e um período de reflexão, percebi que tinha nas mãos a oportunidade de contar uma história incrível e inspiradora. Uma história que as pessoas mereçam conhecer. Foi assim que lembrei da Grazi. Ela nos recebeu muito bem em sua casa, na companhia do Afonso. Muitas vezes, enquanto ela nos contava sua trajetória, esquecíamos de que fomos visitá-la por conta de um trabalho da faculdade. Eu e a fotógrafa Marina escutamos atentamente o relato dela por cerca de 40 minutos. Todas nos emocionamos. Sinto-me privilegiada por ter tido a oportunidade de contar a história da Grazi. Hoje percebo que esta é uma das coisas mais bacanas do jornalismo: a possibilidade de relatar vivências extraordinárias, mas que sem um olhar apurado acabam passando despercebidas”
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Elis, uma voz que apaixona Uma das vozes que marcaram a história da música brasileira também foi pano de fundo para uma história de superação e paixão POR SABRINA STIELER FOTOS ANA FUKUI
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o número marca a morte de uma estrela. A cantora Elis Regina morreu aos 36 anos, na cidade de São Paulo. Foi uma mulher de gênio forte, não à toa recebeu o apelido de “Pimentinha”. Foi mãe de três filhos e marcou a história da Música Popular Brasileira. 36 também é a diferença de idade entre Edith e Débora*, duas fãs que se conheceram por causa daquela que encantou o Brasil. Essa história é sobre três mulheres que hoje estão no silêncio, mas que permitiram que a música embalasse suas vidas.
“Viver é melhor que sonhar. Eu sei que o amor é uma coisa boa” No ano em que Edith nascia, em São Paulo, Elis Regina Carvalho Costa já era criança, morava em Porto Alegre e nem sonhava com o seu futuro
brilhante. Filha de família humilde, Elis começou a cantar cedo, aos 11 anos. Quando pequena, tinha aulas de piano com uma vizinha. “Quando eu era menina, lá em Porto Alegre, minha família teve que escolher: ou a gente comia, ou comprava um piano para mim. O brilho que inventei então, sem piano, foi cantar e fazer de conta que era a maior cantora do Brasil”, profetizou Elis certa vez em uma entrevista. Edith era o tipo de pessoa que gostava de falar sobre tudo. Abraçava árvores e adorava passear com sua cachorrinha Kika. Lia sobre história, música, cinema e política. Talvez, um dos motivos por ter se tornado jornalista. Sem diploma, é verdade, mas por talento. Trabalhou em jornais em São Paulo e como freelancer em vários outros veículos. Quando cansou da vida agitada da capital paulista, e se encantou por Porto Alegre, na década de 1970, não pensou duas vezes: virou gaúcha de coração. Foi parar na cidade de sua cantora preferida. Ela, que conheceu Elis Regina em vida, que já havia assistido a alguns de seus shows, caminhava pelas ruas onde a “Pimentinha” um dia já havia passado. “Não tenho tempo algum, ser feliz me consome.” Edith repetia essa frase o tempo todo, era seu mantra. Quem sabe, para se convencer, ou convencer aos outros. Edith preferia viver ao invés de só sonhar. Sempre a “frente do seu tempo” – como afirma a amiga Carla Alves, 47 anos, que conviveu com ela 28 anos –, logo se encantou com as possibilidades que os computadores davam aos que trabalhavam com comunicação. Em seguida, veio a internet em sua vida, e não demorou muito para apropriar-se das ferramentas de conexão. Tinha mais
uma aliada para buscar informações e aproximar-se de Elis Regina.
“É um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta. Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta” Foi em um fórum de fãs de Elis Regina na internet que Débora, de Fortaleza, cruzou o caminho de Edith. As duas logo perceberam que suas afinidades iam muito além da paixão pela voz e pela vida de Elis. Das conversas no fórum, passaram para papos em chat privado, trocaram e-mails, telefones, até que Débora viajou de Fortaleza para Porto Alegre. Em 2005, o que era para ser alguns dias de férias de verão tornouse anos. Débora cancelou a passagem de volta e avisou sua mãe: “Vou ficar”. A diferença de idade e de experiências não foi problema para aquelas duas mulheres que viraram cúmplices e companheiras. Mereciam viver e amar como outra qualquer. A ida de Débora para Porto Alegre representou muito mais do que uma mudança de casa, ela mudou sua alma de lugar. “Quando cheguei a Porto Alegre, tive a felicidade de conhecer todos os caminhos por onde Elis passou enquanto morou na cidade (...). Não cheguei a entrar na casa de Elis, mas estive na mesma calçada em que ela pisou por diversas vezes (...). A sensação foi tão boa, que era o mesmo que ver a Elis, ainda criança, em frente a sua casa (...)”, registrou em seu blog dedicado à cantora. Para Débora, Elis Regina não era só uma voz a ser ouvida, mas uma ponte de ligação em sua vida - “Elis pra mim PRIMEIRA IMPRESSÃO
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REPRODUÇÃO FACEBOOK
FEITO TATUAGEM Débora eternizou o nome de Edith em sua pele
é a melhor cantora do planeta e a pessoa que me trouxe muitas coisas boas, mesmo que ‘sem querer’. Me trouxe a Edith, depois me trouxe a Porto Alegre (...) Elis, você mudou a minha vida. Eu agradeço!”.
“A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar” Em 2008, depois de ter sofrido, sem querer, uma batida no seio, Edith percebeu algumas mudanças na sua anatomia. Foi ao médico, voltou para casa com a receita de fazer apenas compressas de água quente no local. A dor aumentou, e o seio também. Procurou a opinião de outro profissional e, dois meses depois, foi diagnosticada com câncer de mama. Teve que fazer quimioterapia, antes mesmo de retirar totalmente o seio esquerdo. Fez radioterapia, seu corpo sentiu o peso da doença. “Foi pra matar, chegou uma época que ela não caminhava mais, tinha que levar ela no colo”, lembra a amiga Carla, que acompanhou a batalha contra a doença. Débora, apesar de muito frágil fisicamente – não passava dos 48 quilos – foi o suporte de Edith em todo o tratamento. “Na fase da quimioterapia a gente sempre precisa de alguém cuidando, em virtude das reações que tiram a gente do nosso normal, aquelas coisas que todo mundo sabe, enjôos, vômitos, fraqueza, respiração ofegante. A Débora sempre teve o pensamento bem positivo, sempre confiante no tratamento e na minha força de vontade pra passar por tudo. Ela, assim como tantos outros, confiou que eu poderia
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suportar”, declarou Edith no projeto do seu livro Vencendo obstáculos. A ideia de fazer um livro resultou das escritas que fazia em seu blog, de mesmo nome, onde relatava com detalhes o seu tratamento. Dessa forma, ela queria algo que “pudesse mostrar pra todo mundo que a gente pode enfrentar os mais terríveis obstáculos com alegria”. Infelizmente a página foi desativada. O livro teve algumas páginas escritas, alguns agradecimentos àqueles que estavam ao seu lado, mas permaneceu só como desejo de Edith. Não era apenas Elis Regina que encantava Edith no Rio Grande do Sul. Ela era apaixonada pelo seu time de futebol, o Grêmio. Dizia que ir ao estádio em dia de jogo renovava as suas energias, principalmente depois das radioterapias. Arrastava todos com ela, até quem não era gremista. “Quando eu a via uniformizada, já sabia, teria que ir junto ao Olímpico”, confessa Carla, que é colorada. Edith encarou o câncer como poucos conseguem. Não perdeu a alegria de viver e encorajava os outros a fazerem o mesmo. Gostava de dizer: “Não podemos escolher se teremos um grande problema ou não, mas podemos escolher o quanto vamos sofrer com ele”. Em 2009, recebeu a informação de seu médico que estava curada.
“Na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais” Não foi somente o timbre de Elis Regina que entrelaçou vidas. Em outubro de 2009, a cantora Sarah Brigthman
veio ao Brasil para apresentações nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Sem querer, Sarah conectou Cristianno Caetano à história de Edith e Débora. Fã incondicional da voz de Sarah, Cristianno, de 22 anos, também ligado aos fóruns de discussões na internet, conheceu Débora em uma dessas conversas virtuais. Tornaram-se amigos. Foi em uma rápida passagem no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, que Cristianno conheceu pessoalmente Débora. Um havia acabado de chegar do show de Sarah, o outro estava indo vê-la. Esse rápido encontro renderia um importante registro na vida de Edith. Na época, Cristianno estava gravando um filme sobre o tema do câncer de mama. Escrito e dirigido por ele, Chuva sobre nós contou com a participação de Edith. Em um depoimento, acrescentado ao final do longa-metragem, ela falou sobre sua luta contra a doença. A cena foi gravada em um dos lugares favoritos de Edith, no Parque Farroupilha – Redenção –, em Porto Alegre, acompanhada da cachorrinha Kika e de Débora. Tal registro pendurou na parede da memória a história de Edith. Em 2010, Débora decidiu fazer um blog sobre a vida de Elis. Elis Estrela revelou a admiração de Débora pela cantora, logo em seguida veio a página no Facebook, de mesmo nome. Essa vontade de expressar-se através da escrita fez com que Débora sonhasse em ser jornalista. Sonho que não se realizou. A história de Edith e Débora virou amizade. Depois da melhora de Edith, ambas seguiram caminhos diferentes. Em 2011, Débora conheceu uma nova parceira, se mudou para Goiânia e lá recomeçou a vida. Edith conviveu com outra companheira em Porto Alegre. As duas iniciaram novos relacionamentos, mais uma vez com a ajuda da internet.
“É mais um coração que deixa de bater. Um anjo vai pro céu” Em 2012, depois de passar alguns dias internada por causa de uma pneumonia, em uma visita a sua mãe, em São Paulo, Edith voltou para o Rio Grande do Sul e foi direto para o hospital. “Antes de piorar, ela disse que não queria saber quanto tempo ainda restava, não queria saber de mais nada. Começou a receber morfina direto na veia. Os
familiares vieram e ficaram até o fim”, lembra, com voz pesada, a amiga Carla. Edith faleceu na madrugada do dia 02 de agosto de 2012, aos 62 anos. Foi enterrada às 16h do mesmo dia, no cemitério São Miguel e Almas, na cidade de Porto Alegre. Estava com câncer terminal, apesar de fazer acompanhamento médico. “Analisando hoje, eu não sei se ela já não sabia que iria passar por isso. Melhorar e piorar logo depois. Não sei o que aconteceu”, indaga Carla. Débora, que já havia eternizado o nome de Edith em sua pele, com uma tatuagem no ombro esquerdo junto ao símbolo de combate ao câncer de mama, não conseguiu ir ao enterro, tudo foi muito rápido. “A Debrinha sofreu muito”, admite Carla. Em 24 de fevereiro de 2012, no dia do aniversário de Edith, e apenas sete meses da sua morte, o coração de Débora parou de bater, em Vale Verde, Goiânia. Débora não sabia, mas tinha leucemia, morreu precocemente aos 27 anos. “Debrinha era frágil, não comia direito. Sabe uma pessoa que não gosta de comer?! Débora era assim. Tinha anemia, estava sempre tomando vitaminas”, recorda Carla. “No sábado em que Débora morreu, eu estava em casa e lembrei-me das duas. Peguei um dos CDs da Elis
Regina para escutar, fiquei com todos que eram da Edith. A primeira música que tocou foi aquela: ‘Amigo é coisa para se guardar...’”. No dia seguinte, Carla recebeu a notícia do falecimento de Débora. Ela foi enterrada em Fortaleza, sua terra natal. “Elas devem estar por aí, fervendo”, deseja Carla, que é espírita
O BRILHO CONTINUA Os trechos das músicas que acompanham essas palavras escritas e o registro dessa história são do álbum de Elis Regina preferido de Edith e Débora: Falso brilhante. “O meu show favorito é o Falso Brilhante, que fez muito sucesso na década de 70. (...) até o último momento, as pessoas esperavam em filas enormes para comprar ingressos (...) em média 14 horas. Eu daria tudo para estar nesse show. Esperaria dias na fila (...)” , escreveu Débora em seu blog. “Estive lá! Vi o show no Teatro Bandeirantes. Emocionante! Fabuloso! Lindo!”, lembrou Edith em um dos comentários. Continue amando Elis. Ela merece!
“Duas pastas de capas pretas, com montagens de matérias e fotos de Elis Regina chegaram em minhas mãos. Cristianno Caetano, amigo das duas personagens principais desse texto, é meu amigo também. Ele recebeu de Carla tais pastas, que pertenciam à Edith e Débora. Quando soube de minha paixão por Elis, Cristiano entregou-me essas memórias. Fiquei emocionada com a história que estava por trás daquele aglomerado de recortes. Quando o tema da revista Primeira Impressão foi definido, pensei em uma pauta qualquer. Até que me dei conta que estava com uma narrativa incrível ligada ao som de uma das vozes mais importantes do país. Foi um desafio falar de quem está calado. Conversei com amigos e familiares. Li os blogs, perfis e todo material que fui encontrando de Edith e Débora. Hoje, sinto-me íntima das duas, como se as conhecesse há anos. Imaginei suas vozes e risadas quando lia aquilo que foi escrito por elas. Fico feliz de poder ter registrado um pouquinho da vida de pessoas que não tiveram medo de viver. Cristiano resumiu bem quando disse que ‘essa história é sobre amor’”
(*) Os sobrenomes foram preservados
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Imponente badalada U
m mundo sem som é praticamente inimaginável. O barulho de cada coisa diz muito sobre ela, tanto que você pode até não ver algo, mas, se ouvir, saberá do que se trata. É o caso dos sinos, por exemplo. Este objeto grande, comumente produzido em bronze, pesado e com ares magistrais, é colocado a metros e metros de altura, lá no alto das estruturas das igrejas. Praticamente blindado nas torres, é muito difícil vê-lo, mas é facílimo de ouvi-lo. Mesmo distante das igrejas e em meio ao trânsito caótico das cidades, narrado por buzinas, conversas e sirenes de ambulâncias, o imponente sino faz-se ouvir, carregando em seu som uma porção de significados, que podem variar conforme o momento e a situação.
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Misto de meio de comunicação e instrumento, os sinos se destacam de sons cotidianos POR BRUNA SCHNEIDER FOTOS ROBERTO CALONI
O pastor Hardi Brandemburg convive diariamente com a presença dos sinos. Membro há 13 anos da Igreja Ascensão, localizada na região central de Novo Hamburgo, o líder evangélico conta que na igreja pela qual é responsável há dois sinos: um grande e um pequeno. O maior é tocado para marcar o início de um culto ou um casamento. Já o menor não traz boas notícias. “Ele é tocado através de um pequeno martelo que bate no objeto, soando de forma aguda e breve. Ele representa o falecimento
de alguém da comunidade”, explica. Tais sinos foram trazidos da Alemanha no ano de 1922, quando a Igreja Ascensão possuía sede em outro local, com uma estrutura bem mais modesta. Foram comprados com recursos vindos de doações dos fiéis da época, além de uma verba de 500 marcos repassados pelo Conselho Superior Eclesiástico de Berlim, da Igreja Evangélica da Prússia. Foram produzidos pela empresa Bochumer de Mineração e Fundição, de Bochum, na Westfália, e trazidos gratuitamente pela Sociedade Marítima HamburgoSul-Americana. “Os recursos eram bem difíceis naquela época, ainda mais que o mundo passava pela 1ª Guerra Mundial. Mas com grandes esforços da comunidade, conseguimos comprar esses sinos, que hoje são figuras muito importantes em
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nossa igreja”, ressalta o pastor. Os significados que estes objetos transmitem aos evangélicos de Novo Hamburgo não se fundamentam apenas nos sons, mas também nas inscrições que neles foram inseridas, de forte caráter bíblico. No sino maior, que pesa 331 quilos, está escrito “Friede Auf Erden” (paz na terra), enquanto que o menor, 197 quilos, diz “Den Menschen Ein Wohlgefallen” (às pessoas quem Ele quer bem). Contudo, o Pastor Hardi não é o único que puxa as cordas que resultam no soar dos sinos. A figura ilustre que vai todos os domingos de culto fazer esta função é Carlos Eduardo Möbus, mais conhecido como Carlinhos. Próximo de completar 60 anos, o hamburguense leva a sua mãe Myriam, 84 anos, semanalmente para as celebrações religiosas. Mas seria este um trabalho para ele? “Faço isso porque gosto muito, é muito bom poder ajudar de alguma forma a comunidade a qual participo”, responde enfaticamente o animado Carlinhos. “Ele gosta muito de ser útil para os outros. A realidade dele limita algumas coisas, e ele não pode trabalhar, HISTÓRIA O pastor Hardi (acima) conta que os sinos da Igreja Ascensão, de Novo Hamburgo, vieram da Alemanha. Eles hoje são tocados por Carlinhos
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por exemplo. Então aproveita toda a oportunidade para colaborar”, acrescenta a mãe. Quando nasceu, Carlinhos sofreu com a falta de oxigenação no cérebro, o que resultou em uma disfunção no órgão. Aos dois meses, chegou a paralisia infantil, uma realidade dura para o pouco tempo de vida do garoto. Apesar dos 59 anos, sua mentalidade é de uma criança de 10. Contudo, apesar das dificuldades que a vida lhe impôs, ele e sua mãe não desanimaram e enfrentaram as adversidades de cabeça erguida. No currículo estão práticas esportivas, como natação, que até renderam medalhas para o corajoso Carlinhos. Hoje, após seis cirurgias para melhorar seus movimentos, ele pratica hidroginástica e musculação. Além disso, dedica seus dias a atividades como pagar contas e conversar com vizinhos do prédio. Myriam garante que o filho é bastante popular nas redondezas: “Mais conhecido que a Coca-Cola”.
CARRILHÃO DA INDEPENDÊNCIA Carlinhos diz que puxar as cordas dos dois sinos é “bastante fácil”. Porém, tarefa difícil seria o hamburguense tocar os sinos da Catedral Nossa Senhora de Lourdes, em Canela. Afinal, são 12! Doado à igreja em 1972, o conjunto foi batizado de “Carrilhão da Independência”. Uma das razões de tal nomenclatura é a data que eles foram colocados no templo: 7 de setembro. Diferente dos sinos da Igreja Ascensão, eles foram produzidos pela filial brasileira da fundição Giacomo Crespi, com sede na Itália. Cada objeto possui um tom diferente, que vai de Dó a Si, e inscrições únicas no material. O maior, pesando quase uma tonelada, representa os doadores dos instrumentos através da frase: “Carrilhão de 12 sinos, oferecido por João Bolognesi à Igreja Matriz de Canela (RGS), em memória de sua saudosa esposa Gilda Tanello Bolognesi - 26-05-1972”. As outras faces do mesmo objeto apresentam o Papa Paulo VI, o cardeal Vicente Scherer e o cônego João Marchesi. A frase que circunda o sino é bastante significativa: “Vivos voco, mortos plango, festa decoro, fulgura frango”, que em latim significa: “Convoco os vivos, choro os
PONTO TURÍSTICO A Catedral Nossa Senhora de Lourdes, em Canela, abriga o “Carrilhão da Independência”, que é composto por 12 sinos mortos, alegro as festas e afasto os raios”. Os outros 11 sinos também apresentam frases singulares e foram batizados com nomes dos familiares dos doadores. Ao contrário da Igreja Ascensão e da Catedral Nossa Senhora de Lourdes, que utilizam os sinos tradicionais, hoje é também possível instalar sinos eletrônicos nos templos religiosos. A facilidade é a principal característica do instrumento, uma vez que não requer que alguém o toque: basta programá-lo. Ele é comumente utilizado nas igrejas que optam por tocar o sino de hora em hora e por aquelas que não possuem estrutura suficiente para receber um dispositivo tão pesado quanto um sino de bronze. Caixas de som são instaladas no ponto mais
alto da igreja e são interligadas à central de controle. Os mais modernos permitem até conectar um microfone e emitir desde vozes até outros tipos de sons. Independente da forma, do tom ou da frequência com que são tocados, os sinos possuem uma maneira singular de se impor em meio a outros barulhos urbanos. Mais do que um instrumento, são meios de comunicação, seja para alertar o início de uma cerimônia religiosa ou o falecimento de alguém. Conectam histórias, pessoas, alegrias e tristezas. As notícias podem nem sempre ser boas, mas o sino continuará lá, escondido no alto da torre, encontrando seu lugar de destaque em meio ao caos cotidiano.
“Uma vez escolhido o tema da 43ª edição da revista Primeira Impressão, não titubeei ao decidir que o som sobre o qual eu falaria era o do sino. Fiz tal escolha por entender que este “barulho” é um dos mais imponentes que conhecemos, além de podermos ouvir a quilômetros de distância. Isso sem mencionar os significados que ele pode possuir. Tive a imensa honra de conhecer o pastor Hardi, senhor muito simpático, com forte sotaque germânico e cheio de histórias para contar. Foi muito atencioso ao explicar a história dos sinos da Igreja Ascensão, bem como tocá-los para mim. E, observe: não era horário de culto – suponho que a comunidade tenha ficado confusa com o badalar. Hardi me indicou Carlinhos como o tocador de sinos da Igreja. A sugestão da fonte não veio apenas pelo fato de ele fazer este trabalho voluntariamente, como pude descobrir depois. A indicação foi feita porque o pastor sabia que Carlinhos era um homem dócil, de coração enorme, cheio de vontade de ajudar quem precisasse. A conversa com ele e sua mãe, Myriam, não se resumiu apenas aos sinos, mas também foi sobre a incrível história que possuíam em sua árvore genealógica. Fatos até que me remeteram à Revolução Farroupilha. Sem sombra de dúvida, uma pauta de agradáveis encontros, grandes contos e repleta de significados”
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O poder da Elfa
A cantora Dêizi Nascimento inventou um alter ego que a ajuda no palcos POR CRISTIANE ABREU FOTOS WILLIAM MANSQUE
“À
s vezes é a Elfa que está no palco. Às vezes, ela está do meu lado”, revela a cantora Dêizi Nascimento sobre seu alter ego, uma personagem que surgiu por acaso em uma partida de RPG. Não bastava ser elfa, ainda havia o complemento: era Elfa Poderosa, a criatura que, apesar de fisicamente frágil, combatia inimigos gigantes. Dêizi gostou tanto da ideia que decidiu pegar um pouco desse poder emprestado e puxou a elfa das partidas para a sua realidade como cantora. “O negócio criou vida”, conta ela com a delicadeza típica desse ser místico de orelhas pontudas. Quem olha para Dêizi, com sua fala fininha e agitada, não imagina a proporção de sua voz quando canta. Talvez nem ela soubesse que poderia chegar tão longe. Mas a elfa sabia, ela já era, por premissa, poderosa e destemida. “Ela é muito corajosa, é ela que me dá energia”, explica. Como soprano, Dêizi participa de importantes concertos como solista. Também já participou de quartetos e duetos. Seu timbre é classificado com “ligeiro” (ou leggero, do original italiano), o que significa que sua voz possui a leveza perfeita para interpretar nas óperas personagens jovens e espevitadas. Mas não é simples subir ao palco, expor-se para a plateia, soltar a voz sem medo. Às vezes é mesmo necessário recorrer a um artifício, e é aí que entra o alter ego de Dêizi. Mas antes de contar com os poderes da elfa, ela já batalhava para concretizar o sonho de ser cantora. Dêizi conta que ainda muito jovem, com cinco anos, enchia os ouvidos das professoras tentando imitar o som da ópera. Começou a cantar no Coral Infanto-juvenil da Unisinos com 13 anos e ali se descobriu. E também foi descoberta, pois sua qualidade vocal já começava a chamar atenção. Os anos foram passando, e ela continuava cantando no coro, mas a vida real exigiu que procurasse
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experiências de trabalho fora da área da música. Chegou a cursar Serviço Social e Relações Públicas. Não concluiu nenhum, a vocação estava mesmo ao lado das notas musicais. Hoje, aos 37, ela reflete: “Naquela época eu estava tentando me enganar”. A cantora e professora de técnica vocal Lúcia Passos foi quem acreditou na qualidade que saltava aos ouvidos de todos e se tornou a principal incentivadora de Dêizi. “Vi que ela tinha potencial para ensinar, além de ser uma boa cantora”, conta Lúcia. A medida em que a agenda da professora de técnica vocal ia ficando mais apertada, ela repassava a Dêizi os alunos iniciantes. Assim, a elfa começou a dar aulas na Presto - Produções e Promoções Artísticas, em São Leopoldo. Concluiu o curso técnico em Canto na EST em 2010 e, em 2012, começou o bacharelado em música na UFRGS. Segundo o produtor cultural Ailton Abreu, hoje Dêizi é uma das professoras mais procuradas da Presto. “Ela tem um espírito jovial, um gosto musical com uma gama de coisas diferentes, o que faz com que as
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pessoas se identifiquem com a qualidade vocal dela”, diz Ailton.
CANTAR PARA DESCOBRIR-SE Foi procurando essa jovialidade que Thaís Conceição chegou até Dêizi. A professora e massoterapeuta procurava uma atividade que a desafiasse, que conseguisse tirá-la da zona de conforto por alguns instantes. Cantar era algo que ela nunca imaginou que pudesse fazer. Estava posto o desafio. Ela iria começar a ter aulas de técnica vocal. Naquela altura, não sabia nem qual era o seu tipo de voz. As denominações “contralto” e “soprano” pareciam demasiado abstratas. Resumidamente, a primeira trata-se da voz mais grave entre as mulheres e a segunda, da voz feminina mais aguda. “Os alunos chegam aqui achando que não são nada e aí se descobrem”, diz Dêizi. De fato, Thaís não está lá só para exercitar as cordas vocais. Durante a aula, ela também redescobre sua autoestima. Arriscando-se entre uma nota e outra, procura vencer a
REPERTÓRIO Mozart, Vivaldi e Handel estão entre os preferidos da cantora. Ao lado, Dêizi instiga a aluna Thaís a cantar timidez. Acha engraçado que, enquanto professora, nunca se sentiu intimidada na frente dos alunos, mas no canto ainda fica bastante nervosa. Respira e tenta de novo, dessa vez com mais confiança. Quem está ao lado dela, orientando cada respiração, é a Elfa Poderosa em sua versão humana, também alta e magra, mas obviamente sem as orelhas pontudas. Dêizi se esforça para extrair o melhor do aluno respeitando seus limites. E sabe fazer isso brincando, com uma naturalidade invejável. “A gente passa a aula inteira rindo”, entrega a aluna. Thaís comemora cada pequeno passo conquistado e entende que cantar é muito mais do que acertar as notas musicais. “É também trabalhar a personalidade para descobrir quem a gente é”, diz. Lecionou durante anos usando a voz que chama
de “fantoche”, agredindo sem saber as cordas vocais. Precisava gritar para se sobressair no barulho da sala de aula. “Como professora, eu forçava a minha voz. Poderia ter evitado isso se já tivesse conhecido as técnicas certas”, acredita. Na sala há somente Dêizi, Thaís e um piano, mas parece estar cheia. O som se multiplica e mistura-se entre risos. Certamente quem passa pela calçada do outro lado da rua demora a entender toda a barulheira. Thaís, que nunca havia se aventurado no mundo da música, hoje ensaia ópera em italiano. Treina respi-
ração, concentração, postura. No meio do ano haverá um recital de alunos na Presto e ela poderá brilhar no palco, assim como a elfa. Mesmo quando fala, Dêizi parece estar cantando. Quando ri, reproduz uma escala em staccato. É toda musical e, ao mesmo tempo, toda mística. Dá aulas com all star de salto e camiseta de super-herói. Soube salvar a si mesma quando teve a coragem de escolher viver de música. Sabia que qualquer outro caminho que não aproveitasse seu potencial musical estaria fadado ao fracasso. Hoje dedica-
se a cavar outros talentos. Descobre um pequeno cantor em cada aluno, ainda que a maioria, por vergonha e insegurança, prefira cantar somente para si. É possível que hoje ela precise menos da elfa do que quando começou. “Descobri que tinha me tornado adulta quando passei a fazer aula para ser solista”, revela. Foi ali que fortaleceu as bases da confiança em si e conseguiu ser mais Dêizi do que Elfa. Mas se, por acaso, a insegurança bater, pode soltar a voz sem medo, apenas ao imaginar estar portando um par de orelhas pontudas.
“Quando o tema da revista foi escolhido, não tive dúvidas: queria fazer um perfil da Dêizi. Conheço ela há anos e sempre fui uma admiradora da sua voz. Achei que traria uma boa contribuição para ‘o som da revista’. A resposta ao convite veio de forma assustada: ‘Ai, meu Deus, nunca dei uma entrevista!’. Mas tudo correu bem. O fotógrafo e eu fomos até a Presto e conhecemos um pouquinho mais sobre a rotina da Elfa Poderosa. Confesso que até então eu não entendia muito bem como funcionava essa história de elfa. Que tipo de personagem é esse? Será que ela canta vestida assim? Claro que não. Era só uma inspiração, um alter ego divertido. E divertidas também são as aulas de canto que assistimos. Não passam 10 minutos sem que alguém solte uma risada. Ao entrevistá-la, descobri que sua grande incentivadora foi a também cantora e professora de técnica vocal Lúcia Passos. Com mais de 30 anos de experiência no ramo, foi ela que ofereceu a Dêizi a oportunidade de dar aulas de canto e também a estimulou a continuar estudando música. Lúcia parece ser aquele tipo de pessoa generosa que, quando aparece na vida da gente, se torna uma espécie de anjo. Nem todos têm essa sorte. Mas a Dêizi teve e soube aproveitar muito bem”
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O relógio da vida
ssim como as batidas compassadas de um relógio, o coração produz som dentro do nosso organismo. Quando bem cuidado, pode durar bastante tempo. Mas quando esse relógio interno muda seu compasso, está indicando que algo está errado e que ele pode até parar. O coração bate cerca de dois bilhões e meio de vezes em uma vida, bombeando cerca de 150 milhões de litros de sangue continuamente através do sistema circulatório. Segundo a cardiologista Cátia Severo, que atua há cinco anos no setor da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Conceição, o coração significa vida. Ela explica que existem
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O coração precisa estar sempre no ritmo certo POR CÍNTIA RICHTER FOTOS PAULA FERREIRA
diferenças nos sons e nos ritmos dos corações dos pacientes que atende, e o que provoca o som no coração são as válvulas cardíacas que se abrem e fecham, em movimento de contração e relaxamento. A cardiologista diz que o ouvido de quem trabalha nessa área é treina-
do para ouvir os sons do coração. “É ouvir, ouvir, ouvir.” É como aprender música ou um idioma. A linguagem da ausculta cardíaca é um treinamento. Quando está descompassado - como uma música, ou um relógio -, o coração está desregulado. De acordo com a técnica de enfermagem do Hospital Psiquiátrico São Pedro Wanda Uczak, o batimento cardíaco é uma das funções vitais do organismo. Sem ele, nada funciona. Ela faz a triagem dos pacientes antes dos internamentos. Por isso, precisa conhecer bem o funcionamento do coração. Em um adulto, em atividade de rotina, os batimentos cardíacos devem ser de 60 a 80 por minuto. Se estiver abaixo disso, o paciente é considerado bradicardíaco, ou com
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arritmia. Se o coração estiver acima de 100 batimentos por minuto, ele está com taquicardia, pois está batendo demasiadamente rápido ou irregular. Nos dois casos, é importante o encaminhamento para um cardiologista, que fará exames e indicará o tratamento adequado. O cardiologista fetal e pediátrico Antonio Piccoli Júnior, do Centro Integrado de Imagens Ecofetal, diz que verificar o som do coração é importante desde quando o bebê ainda está dentro da barriga da mãe. Na gravidez da filha Helena, a microempresária Heleonora Garcia Leite, 27 anos, conta que, durante a realização da sua primeira ecografia, ao ouvir o som do coração do bebê, sua pressão arterial subiu e seus batimentos cardíacos aceleraram. “Parecia que meu coração ia pular
SAÚDE A técnica de enfermagem Wanda Uczak diz que o batimento cardíaco é uma das funções vitais do organismo
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para fora do corpo”, lembra. O mais provável é que Heleonora tenha se emocionado ao ouvir os batimentos cardíacos de sua filha. Mas foi só um mal estar passageiro, pois ela logo se recuperou.
EXERCÍCIO COM SAÚDE O cardiologista Picolli alerta para outra questão importante: para crianças e adultos é fundamental o acompanhamento de um médico antes da prática de exercícios físicos. Para os adultos, a prevenção deve ser maior ainda quando são fumantes, pois são os que mais apresentam problemas cardíacos. As academias conquistaram grande parcela da população. Hoje, mulheres e homens com idade mais avançada fazem exercícios como esteira e musculação, o que não acontecia com frequência no passado. Nem todas as academias, entretanto, pedem exames cardiológicos para seus clientes. Quem começa a treinar, logo percebe as mudanças nos batimentos do coração. Com o fim do
sedentarismo, as pessoas adquirem mais disposição, evitando a possibilidade de um ataque cardíaco por altos níveis de colesterol e gordura corporal. De qualquer forma, antes é preciso saber se está tudo certo com o relógio interno, para que ele não entre em descompasso. O aumento do colesterol no sangue, quando excede as necessidades do organismo, produz um processo degenerativo nas artérias chamado aterosclerose, formando placas com eventual fechamento dos vasos sanguíneos do coração e do cérebro. Isso pode provocar infarto e acidente vascular cerebral - AVC. Por isso a importância de praticar atividades físicas, principalmente as aeróbicas, que proporcionam aumento da circulação sanguínea e qualidade respiratória. Paula Pimentel, 27 anos, de Cachoeirinha, decoradora de festas e mãe de duas filhas, Sophia, de dois anos e Mariah, de cinco, frequenta a academia praticamente todos os dias. Ela conta que sempre fez exercícios, desde sua adolescência, parando apenas nas gestações. Nas atividades de maior velocidade, como bike ou na dança zumba – sua preferida – sente seu coração bater forte. “Sinto meu coração fazer um tum, tum, tum, bem rápido, um som forte. Ao colocar a mão no meu peito, escuto as batidas aceleradas”, diz. Paula revela, no entanto, que nunca fez exame do coração, mas também nunca passou mal na academia. Luana Gonçalves, 21 anos, é a professora de dança estilo zumba de Paula. Em suas aulas, a música é frequente e essencial para que o ambiente fique alegre e descontraído. Luana usa até um apito para estimular as alunas. Muitas relatam seu bem estar e grande melhora na disposição física após entrarem no grupo de dança. Luana também diz escutar seu coração em cada música e nunca teve problemas, porque está longe do sedentarismo. Mas ela, que é estudante de Educação Física, considera importante o laudo médico para as pessoas com mais idade. Caso alguma aluna relate qualquer tipo de problema de saúde, ela recomenda exames médicos para controle. O mais grave que pode ocorrer com uma pessoa com problemas car-
díacos é ter que fazer um transplante. Mas ele só é feito em casos de doenças cardíacas que ponham em risco a vida do paciente e quando comprovada a morte cerebral do doador. O coração deve ser compatível com o do paciente. Pessoas de todas as idades podem fazer transplante cardíaco, mas, para passar por este procedimento, o receptor tem que estar com os outros órgãos em bom funcionamento. O transplantado pode ter uma sobrevida de dez anos ou mais. A música é formada por três elementos: a melodia, os sons tocados em sequência; a harmonia, os sons tocados ao mesmo tempo; e o ritmo, o movimento regulado. O relógio também precisa estar batendo no ritmo certo para funcionar bem. Como a música e o relógio, o coração precisa estar batendo harmonicamente. Só vale a pena deixar que ele bata rápido demais quando for por amor.
O cuidado da família Uma repórter que se envolve com suas matérias leva a pauta para dentro de casa. Por isso, eu não poderia deixar de cuidar do coração de meus familiares. Principalmente porque minha avó Percília Dorneles morreu, no ano passado, por causa do coração. Pela preocupação, levei meu filho Camilo Richter Ribeiro, 10 anos, a uma consulta preventiva. Ele realizou exames cardíacos requisitados por sua médica pediatra, Giselda Rahde de Freitas, que o liberou para todas as atividades físicas. Ele está no 5º ano, gosta de lutas competitivas, faz futebol aos sábados, além de recreação na escola. Camilo diz que, quando corre, sente seu coração bater muito rápido. Minha irmã, Vivian Richter, 38 anos, advogada em Gravataí, é, para mim, um exemplo de saúde e disposição. Adepta da academia há mais de dez anos, faz dança, musculação e caminhadas diárias. O importante, para ela, é estar de bem com a vida. Já minha mãe, Maria do Carmo Marques Richter, 61 anos, aposentada, tem histórico de pressão alta. Tanto que teve que ir para o hospital com taquicardia devido a um abalo emocional. Nessa ocasião, descobriu que estava com o colesterol alto por estar acima do peso. Isso fez com que ela adotasse uma dieta. Em dez meses, emagreceu 15 quilos e hoje se cuida e está bem.
ACADEMIA O exercício físico controlado diminui os riscos de ataque cardíaco por alto nível de colesterol e gordura corporal
“Na escolha da pauta, os sons que eu gostaria de tratar foram escolhidos antes, então veio à mente ‘O som do coração’. Não imaginava como faria. Lembrei quando escutei os primeiros batimentos do coração do meu filho. Foi emocionante! Lembrei também do fim desse som, como no falecimento da minha avó Percilia Dorneles, 87 anos, que, passou muito tempo com insuficiência cardíaca devido ao ‘coração grande’. Quando fui escrever as impressões, comecei a chorar, lembrando quando a família esperava seu restabelecimento. Os enfermeiros sempre iam na sua casa medir sua pressão, verificar os sinais vitais e examinar os batimentos cardíacos. No ano passado, um marca-passo era última alternativa para manter o coração batendo. Foram duas tentativas, e o coração dela parou. Eu tento conter as lágrimas, mas lembro da minha última visita, dizendo ‘te amo vozinha’ e ela ‘a vó também te ama!’ Foi um adeus! Todos deveriam perceber a importância do som do coração!”
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Surdez forjada pelo trabalho Depois de 26 anos entre a forja e o martelo, Fofão não é mais o mesmo POR DANIEL STEIN ROHR FOTOS ARMIN HANISCH E TAINÁ HESSLER
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ofão… Fofão! FOFÃO!” São necessárias três tentativas para que Vildomar Santos da Silva, o Fofão, perceba que há alguém o chamando. Ao interromper o passo no saguão de entrada da sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas, no Rio Grande do Sul, ele gira o corpo com cuidado para não derrubar a garrafa térmica posicionada sob a proteção do antebraço direito. O olhar sem foco não engana: Fofão não sabe quem o chamou. Depois de 26 anos trabalhando na linha de produção de uma forjaria no bairro industrial da cidade, Fofão viu a confusão transformar-se em rotina. “Às vezes, ele parece um pouco distante”, observa a colega Rita Garrido, que trabalha no sindicato há um ano e meio. Não é para menos. Fofão é vítima de PAIR, uma sigla curiosa para uma doença comum no ambiente de trabalho: Perda Auditiva Induzida por Ruído. Às vésperas da aposentadoria, ele carrega cicatrizes invisíveis de sua vida na indústria – perdeu cerca de 70% da audição do ouvido direito e 50% do ouvido esquerdo.
UMA DOENÇA SILENCIOSA “Trata-se de uma doença silenciosa e irreversível”, classifica o coordenador do curso de Segurança do Trabalho do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Claudio Boézzio de Araújo. “Geralmente, o portador da doença não a percebe: quem nota são os familiares, porque o volume da televisão aumenta e a voz fica mais alta”, explica. Embora possa parecer alheio à realidade – e preso à intermitente vibração dos próprios tímpanos –, Fofão percebe e lamenta essa condição: “Muitas vezes, as pessoas ficam achando que eu falo gritando com elas, mas não é por mal”. Além da indesejada fama de “gritão”, Fofão percebe outras mudanças em sua rotina. São alterações pontuais e de pequena repercussão, mas igualmente notáveis. “Hoje, atender o telefone é um sacrifício para mim”, lamenta-se, ao apontar para o celular e deixar transparecer
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o desgosto resultante de más experiências com o aparelho. Mas a perda auditiva e o zumbido constante no ouvido não são as únicas consequências para a vida do trabalhador afetado pela PAIR. De acordo com o protocolo do Ministério da Saúde, divulgado em 2006, outros sintomas também são comuns. (Veja o quadro.)
MUITO ALÉM DOS LIMITES ACEITÁVEIS Considerado um agente de risco físico – grupo que engloba todas as formas de pressão, incluindo a sonora –, o ruído no trabalho é medido em decibéis (dB) e tem sua exposição regulamentada pelo Ministério do Trabalho. De acordo com a Norma Regulamentadora nº 15 (NR-15), o nível máximo permitido para uma jornada de trabalho de oito horas é de 85 dB, o equivalente ao som de um liquidificador de tamanho médio em operação. Na linha de produção da forjaria onde Fofão trabalha moldando peças há 26 anos, o ressoar dos martelos e das prensas supera com folga a recomendação do Ministério. “O Laudo da Plantadoria que eles entregam para mim indicou 99,7 dB de ruído”, conta Fofão. De acordo com a NR-15, o tempo máximo de exposição a um ruído dessa magnitude é de uma hora. Fofão, como outros funcioná-
Nove sintomas da PAIR n Dificuldade de compreensão da fala n Dificuldade de localização da fonte sonora n Dificuldade de atenção e concentração durante realização de tarefas n Intolerância a sons intensos n Alterações do sono n Dor de cabeça n Tontura n Irritação e ansiedade n Isolamento Fonte: Ministério da Saúde
rios, cumpre jornadas de oito. Não é preciso ser um especialista no assunto para prever as consequências dessa condição: a exposição a um nível de ruído tão elevado por tanto tempo fatalmente resultaria em danos à audição. E resultou. Comprovada em exames audiométricos, a lesão rendeu a Fofão uma indenização por danos morais, mas não foi suficiente para torná-lo – aos olhos da justiça – inapto à tarefa que realiza na forjaria. A médica do trabalho Rosylane Rocha explica que são utilizados critérios diferentes para essa decisão. “O trabalhador só poderá ser considerado inapto para determinada atividade se a perfeita audição for um dos ‘instrumentos de trabalho’, como, por exemplo, um mecânico de aviação que regula com precisão determinada peça do motor”, esclarece. Para moldar e forjar as peças, Fofão não depende de uma audição apurada. “No que tange a outras atividades laborais, não há que se falar em incapacidade laborativa, já que o trabalhador continua com capacidade para o desempenho de inúmeras atribuições que sejam compatíveis com sua habilitação técnica”, complementa a diretora de Ética e Defesa Profissional da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT).
CENÁRIO DE CONTRADIÇÕES A lei favorece os empresários. É isso que aponta Cláudio Araújo: há uma contradição entre a norma que determina o ruído máximo ao qual o trabalhador pode ser submetido e a norma que regula o barulho máximo ideal ao sossego domiciliar. Uma contradição a favor do empregador. Enquanto a legislação considera a exposição ao ruído de 85 dB uma condição ainda salubre para o empregado, ela também delimita que o valor máximo admitido em zonas industriais habitadas seja de 70 dB – nas zonas residenciais, o ruído tolerável cai para 55 dB. Esses valores foram determinados pela NR-10151, que avalia e regula o ruído em áreas urbanas e rurais. A contradição acaba facilitando a tarefa de quem tem a responsabili-
dade de atenuar o barulho. “É uma lei que favorece os empresários, porque você considera inaceitável para o sossego uma poluição sonora de 70 dB, mas permite que o trabalhador cumpra jornadas de oito horas exposto a 85 dB de ruído”, argumenta Araújo.
METAMORFOSE Depois de 26 anos forjando peças a base de marteladas, Fofão viu sua vida mudar. Atender o telefone, por exemplo, virou um sacrifício
EPIs NÃO SÃO A SOLUÇÃO
FUTURO INCERTO, MAS PREVISÍVEL
TAINÁ HESSLER
Os equipamentos de proteção individual (EPIs) atenuam o ruído, mas não devem ser concebidos como solução definitiva para o problema. É o que avalia o coordenador do Instituto Federal do Rio Grande do Sul: “O EPI não modifica a realidade. Ele deve ser a última alternativa da empresa”. É preciso compreender a hierarquia entre as medidas administrativas voltadas à prevenção da PAIR para entender essa relação. Araújo explica que, antes de recorrer aos equipamentos individuais, deve-se atuar sobre as fontes, reduzindo e abafando o ruído. “Isso pode ocorrer pelo enclausuramento das fontes ou pelo revestimento acústico”, exemplifica ele. Depois – ainda antes dos EPIs –, surgem as medidas prevencionistas de manejo da força de trabalho. Incluem-se, nesse aspecto, a redução das horas de trabalho, a redistribuição, o rodízio e o revezamento do corpo de funcionários. Após tudo isso, em último lugar, surgem os EPIs, na forma de abafadores acústicos ou protetores intra-auriculares. O que, mesmo assim, não significa solução. “Tem EPI, mas não abafa”, lamenta Fofão. O funcionário explica que a situação atual é melhor do que a de 1989, ano em que começou a trabalhar na linha de produção. “Mudou muito hoje em dia. Quando entrei, o próprio EPI era selecionado. Não era sempre que tinha. Volta e meia tinha
que trabalhar com estopa dentro do ouvido”, recorda-se. Fofão destaca que as mudanças surgiram depois que o Ministério do Trabalho autuou a empresa e cobrou soluções do corpo diretivo: “Dos anos 1990 para cá, eles começaram a fazer exames audiométricos de seis em seis meses, por exigência do Ministério do Trabalho”.
Fofão quer se aposentar. Com os olhos novamente desfocados, ele mira a parede vazia da sala, projeta o futuro e vê o descanso como recompensa: “Eu quero parar. Descansar”. Fofão cansou de bater o martelo e operar a prensa para forjar e moldar as peças, sim, mas está farto, principalmente, do ruído que o acompanha há 26 anos. Infelizmente, não há repouso que lhe devolva a audição. A disposição pode voltar, o cansaço pode diminuir, mas Fofão mudou. Sua audição está diferente. Ele não é mais o mesmo.
“Quando o tema ‘sons’ foi escolhido pela turma para nortear as reportagens da revista, tentei imaginar as consequências – também nefastas, por que não? – dos ruídos na vida das pessoas. A ideia de abordar a perda auditiva em virtude do trabalho veio em seguida, baseada em diferentes e recorrentes relatos a respeito. Na construção da matéria, previ que o maior desafio seria a comunicação propriamente dita com a vítima de PAIR. Me enganei. A principal dificuldade foi encontrar alguém disposto a conversar sobre o tema, que pudesse personificar o problema e humanizar o assunto – médicos, técnicos e especialistas dão conta da proposta, mas esfriam a reportagem e a distanciam dos principais afetados pela lesão. Não pretendo refletir aqui sobre a romântica missão do jornalista, tampouco quero versar a respeito do compromisso social: a universidade se encarrega de repetir esses dilemas à exaustão, e eu não teria propriedade para me arriscar nesse sentido. Mas preciso reafirmar a importância de explorar temas desconhecidos na prática de uma grande reportagem para consolidar o aprendizado teórico das disciplinas. Mais do que isso: para promover a vivência que só a vida real – com seus problemas reais – é capaz de garantir”
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Para narrar futebol, concentração e emoção Como a emoção de um narrador esportivo atravessa as ondas do rádio POR DÉBORA CADEMARTORI FOTOS GABRIEL DOS REIS
EXPERIÊNCIA Marco Antônio Pereira, o Marcão, trabalha em rádio há 34 anos
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m o c i o n a d o, m a s a o mesmo tempo concentrado. É assim que Marco Antônio Pereira – o Marcão, 58 anos – narra os jogos de futebol na Rádio Gaúcha, em Porto Alegre, há 23 anos. Usar a voz como ferramenta de trabalho possibilita envolver outra pessoa. Para isso, a emoção é imprescindível. Além de eventos esportivos, o rádio consegue transmitir de forma instantânea o que ocorre no mundo. Ter o equipamento como companheiro é “ver ” e entender o que está acontecendo através das palavras de quem está atrás do microfone. O envolvimento, no entanto, depende muito de quem empresta a voz para narrar os fatos. Em um jogo de futebol não é diferente. Marco Antônio Pereira lembra que atualmente existem muitas possibilidades do torcedor acompanhar os jogos do próprio time, mas o rádio tem uma atribuição maior. “Tem o jogo do estádio, tem o jogo da TV e tem o jogo do rádio. Quem está no estádio, tem uma sensação daquilo que está vendo. Quem vê pela televisão, está vendo outro jogo, com mais detalhes, com recursos tecnológicos. E quem só está ouvindo o jogo, bom, aí ele vai ouvir, ele vai ‘ver’ o jogo conforme aquilo que eu contar.” O narrador, que tem 34 anos de rádio, já passou por grandes emissoras, como Guaíba e Band, começando a carreira na Rádio Progresso, de Novo Hamburgo. A experiência o ajudou a criar um jeito único e com identidade. Além de detalhar as jogadas em campo, o profissional precisa ter cuidado com as palavras que escapam com o calor do momento. Alguns termos, de acordo com Marcão, podem incitar a violência, mas precisam ser ditos. Outros, como palavrões, foram abolidos. Com o tempo, o público renova, e a reciclagem do profissional se faz necessária. Apaixonado pelo que faz, ele assegura que
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não saberia fazer outra coisa na vida, mas que, ao mesmo tempo, é necessário aprender coisas novas todos os dias. “Eu continuo entusiasmado, me dedicando e a cada dia eu aprendo uma coisa diferente. Pequenas técnicas, por exemplo. Sempre tem uma coisa para aprender”, diz o narrador. A personalidade de Marco Antônio Pereira e a identidade de sua voz são marcantes. A vontade de estar ali, acredita ele, é o combustível para entusiasmar quem está o ouvindo. A intimidade, portanto, é conquistada à medida que o torcedor se identifica com o narrador. Os jogos da final da Copa do Mundo de 1990 e a última, aqui no Brasil, foram os mais marcantes narrados por ele. No último jogo do mundial de 2014, entre a seleção da Alemanha e Argentina, Marcão cantou uma música de provocação aos argentinos, chegando a falhar a voz em alguns momentos. O episódio, segundo ele, rende comentários até hoje, incluindo do chefe, Nelson Sirotsky. “Chega uma hora que tu tens que ser tu. Ouvia muito o Ranzolin e outros narradores de São Paulo, mas hoje eu tenho o meu jeito. Recebo muitos elogios porque eu sou apaixonado. O narrador é um contador de histórias”, define.
O OUTRO LADO Para torcedores fervorosos, acompanhar um jogo de futebol à distância pode parecer um martírio. A análise tática, a falta mal marcada, passes e o calor da torcida são situações que, dentro do estádio, são sentidas e vividas de forma diferente. Para Adriano Siqueira, 42 anos, uma partida de futebol longe do local do jogo é “pura adrenalina”. Segurança há dez anos de uma empresa de vigilância, o torcedor do Grêmio acompanha os lances escutando o rádio e “vê” cada disputa através da voz do narrador.
O rádio é a única forma que ele tem de seguir em tempo real o que acontece no estádio. Na portaria de um prédio comercial onde Adriano trabalha todas as noites, no bairro Azenha, em Porto Alegre, a televisão é proibida. Mas o segurança prefere o rádio mesmo quando há a possibilidade de assistir ao jogo. “Pra começar, se eu estiver em casa, eu tiro o volume da TV e ouço no rádio, porque ali tem muito mais emoção. Se eu estiver no estádio, o rádio está sempre comigo também. Não me imagino sem o bom e velho radinho”, garante. Para quem duvida sobre a eficácia de uma partida acompanhada somente através da voz do narrador, Adriano afirma compreender tudo o que acontece dentro de campo. “Eu consigo fazer a leitura técnica e tática do jogo ouvindo pelo rádio, claro que precisa entender um pouco de futebol e, modéstia à parte, eu entendo um pouquinho.” Como qualquer outro torcedor que deseja ver seu time vencer, a tensão em momentos decisivos é inevitável. “O rádio me coloca dentro do estádio. E vibro como se estivesse lá, só que discretamente, porque estou trabalhando naquele momento. Fica mais tenso de ouvir quando se tem uma decisão por pênalti, por exemplo. Aí é pura adrenalina mesmo, mas eu curto muito narração do rádio”, afirma. A tradição passa também para a outra geração da família. Marcos Siqueira, filho de Adriano, acredita que escutar o rádio traz outa sensação para o torcedor. O jovem aprendiz de 17 anos diz ficar imaginando cada lance informado pelo narrador e chega a comparar a transmissão da partida com um livro. “É muito mais emocionante estar ali ouvindo o narrador falando, dando toda aquela emoção. É legal aquela gritaria e bola no poste, bola na trave, bola aqui e carrinho pra cá e discussão pra lá. E é melhor isso porque te faz imaginar as coisas.
É como ler um livro: tu não estás vendo, mas estás imaginando as coisas”, define o filho de Adriano. Marcos concorda com a opinião do pai e afirma que se o ouvinte conhece as funções dos jogadores e tem noção das regras do futebol, ele conseguirá acompanhar e torcer da mesma forma, mesmo escutando apenas o narrador do jogo. Para o adolescente, o profissional que narra os lances possui condições de alterar o cenário, ao contrário da televisão, onde é possível enxergar o desempenho de cada jogador. “Às vezes o jogo está feio e o narrador consegue mudar a situação, dá mais emoção, a gente gosta mais mesmo quando o time não está rendendo. Eu acho bem melhor escutar o jogo do que olhar. Se eu tivesse só o rádio para acompanhar o jogo, eu não ficaria triste”, conclui. Para Marco Antônio Pereira narrador com mais de três décadas de experiência no rádio - a
EMOÇÃO Marcão já chegou a chorar durante o hino nas partidas da Copa
emoção não pode ficar de fora. “Eu me emociono. Na Copa, durante o hino, não tem jeito, o cara chora. Então precisa concentração para estar bem preparado. Tem que passar a emoção para o ouvinte. Ser narrador, pode não parecer, mas é uma tarefa muito importante”, conclui.
“O rádio está presente no cotidiano de quem quer companhia, quem quer informação ou música. Através do FM e do AM, jogos de futebol ganham outro sentido quando descritos por um narrador. A imaginação corre solta e vai além, possibilitando acompanhar e ‘ver’ o jogo com os olhos de outra pessoa. Conhecer a vida e rotina de Marco Antônio Pereira me fez compreender o que é necessário para cumprir bem o papel do narrador. ‘Emoção e concentração’ são sentimentos que ele revelou ter enquanto aguarda e, principalmente, quando a partida está em andamento. Sou uma apaixonada pelo rádio, assim como Adriano Siqueira, segurança de um prédio comercial que está sempre atento às condições do time do coração. Acompanhamos os jogos de futebol com a mesma emoção que Marcão transmite enquanto narra. Sempre em busca da precisão e dos lances, buscamos no som do radinho as informações necessárias para torcer e acompanhar toque após toque e gol após gol”
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GAMES O estúdio Yoho Musik Arsenal produz trilha sonora, locução e sons ambientais, como de animais, vento, ruído de objetos e passos
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A transformação que os efeitos sonoros provocam na experiência de jogar POR FILIPE ROSSAU FOTOS EDUARDO KLAFKE
ara além da diversão de crianças, os jogos há muito foram levados para o patamar de entretenimento de qualquer idade. Se nas últimas duas décadas os adultos passaram a ser também consumidores ávidos deles, é necessário lembrar que faz bem mais tempo que esses jogos são fruto de trabalho de profissionais. O desenvolvimento de jogos foi ganhando cada vez mais atenção a medida que as opções para esse mercado foram sendo abertas. Dentro dessa evolução, estão aprimoramentos que mexem com nossos sentidos, como a visão, com a qual enxergamos os cenários, personagens e objetos; o tato, que nos permite sentir um controle vibrando em um momento de maior emoção de uma partida ou de uma luta; e a audição, que nos permite ouvir gritos emitidos por monstros, a respiração de nosso próprio personagem, entre outros tantos sons. Os barulhos são revelados a cada movimento. Isso tudo para satisfazer a imaginação de quem quer ter o contato com seres e mundos onde tudo é possível. Há três anos, o Yoho Musik Arsenal trabalha na produção de som para jogos digitais. Luiz Reolon, de 24 anos, é diretor de planejamento do pequeno estúdio. Ele conta que no Yoho os desenvolvedores precisam planejar o trabalho para essa etapa da criação de games. Lá, eles fazem trilha sonora e sons ambientais, como de animais, vento, ruído de objetos sendo tocados, passos e locução. Mais do que isso, segundo Luiz, o objetivo é dar vida a novas ideias. “Além de fazer a produção do som, nosso objetivo principal é entender o projeto de quem vem até aqui, saber onde ele quer chegar com esse plano para, depois disso, viabilizar o projeto”, explica ele, que desde os 15 anos trabalha com áudio. Luiz iniciou montando equipamento em estúdios, até passar para a área de produção de música eletrônica e criação de jingles de campanhas. O Yoho Musik Arsenal conta com uma equipe de quatro integrantes, que se dividem nas tarefas de composição de trilhas e efeitos. Dentro da perspectiva de colaborar com projetos diversos, o primeiro trabalho de Luiz, como diretor de planejamento, é receber interessados em desenvolver um projeto. Ele conta que é bastante comum receber propostas que não
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contem com um aporte financeiro muito grande. “Chega gente aqui que, de cara, já diz que está com pouco dinheiro. Então a gente tenta enxugar a ideia para poder trabalhar. Sabemos da realidade do mercado, não é nenhuma maravilha. A gente sabe quanto esse pessoal trabalha. Nossa posição é ter um relacionamento fraternal.” Essa postura vai ao encontro da forma que ele próprio enxerga como a ideal para o fortalecimento da área. “É claro que a gente quer trabalhar, vender e lucrar, mas não adianta nada a gente crescer e o mercado não. Então, a gente precisa servir como uma base para auxiliar os parceiros que trabalham no mesmo ramo e que se esforçam para desenvolver algo interessante, e para isso precisa haver uma troca”, explica. O próprio estúdio incorpora o trabalho colaborativo em sua forma de ser. Com cerca de 20 metros quadrados, o espaço conta com quatro monitores e uma sala fechada, acusticamente isolada, onde são gravados os sons. Como legado do antigo espaço onde antes havia piscinas para natação, ficou um machado, que servia para cortar lenha e alimentar a lareira que mantinha tudo aquecido. O machado hoje é usado no trabalho de gravação de sons. Junto com ele, estão caixas com cacos de vidro, pedaços de metal, sacos de pancada e luvas de boxe. Até o isolamento acústico foi feito manualmente por Luiz e alguns amigos.
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Luiz começou trabalhando com montagem de equipamento de música eletrônica, para depois passar para a produção autoral de artistas próximos, seus amigos que desenvolviam trabalho independente. Luiz destaca o crescimento dos chamados estúdios indie – ou seja, independentes das grandes corporações. “O lixo cultural atinge também os jogos. Hoje, temos grandes produções, que arrecadam milhões, mas sem dar atenção para o trabalho artístico”, comenta ele, que traz o ponto de vista do outro lado. “Os desenvolvedores indie têm a proposta de fazer roteiros e estruturas mais elaboradas, que evidenciem a parte artística dos jogos, por mais simples que sejam”, explica.
BARULHO BOM Junto com a produção do som, se desenvolvem as tecnologias para os games, visando sempre criar produtos que mexam com os sentidos do jogador. “O contato visual não funciona sozinho. É preciso criar os efeitos para passar a sensação de que a pessoa está vivendo aquilo que o personagem vive. Se é um momento tenso, se é um momento leve, tudo precisa estar ambientado”, explica Luiz. Ele usa sua própria experiência para ilustrar a importância que vê nos sons. “Tem jogos que eu passei por todas as fases sem barulho e depois repeti com o som ativado para sentir a diferença.
A fluidez é maior, por exemplo, em uma situação onde há um inimigo que emite um barulho do lado direito do fone ou da caixa de som, e eu tenho a possibilidade de encontrar esse personagem. Essa questão do posicionamento dá total imersão no jogo”, relata ele. Em resumo, a ideia é lidar com as experiências pessoais de quem joga. “Quais são os timbres e os tons que lembram a sensação de tensão, medo e alívio, que deixam a pessoa emotiva ou vulnerável? É com a criação desse clima que a gente precisa trabalhar”, detalha. A fórmula parece ser eficaz para melhorar a experiência dos jogadores. “A gente chama de ambientação orgânica quando produzimos as faixas de áudio que concatenam diversos sons diferentes, que interagem em conjunto e não podem ser separadas, porque a vida é orgânica e os acontecimentos são simultâneos.”
A UNIVERSIDADE Se os profissionais do desenvolvimento dos jogos precisam ser mostrados por estarem por trás da atividade criativa das aventuras virtuais, é necessário ir ainda mais fundo e descobrir como é a formação de parte dessa galera. Há pouco mais de 10 anos, a Unisinos inaugurou seu curso de graduação em Jogos Digitais, sendo a pioneira no Brasil em ter uma graduação na área.
Nessa última década, o curso se consolidou, principalmente no sentido de se adequar ao cenário atual da produção de jogos. Na avaliação da coordenadora Chaiane Bitelo, a estruturação do currículo, que é moldado também com esse ideal, tem efeito direto no ensino. “Nosso currículo é centrado na computação, sendo a criação de jogos uma dissidência da Ciências da Computação. Se olharmos para as principais instituições de ensino do mundo, a área de games é vista da mesma forma. Para isso, a gente dá atenção para disciplinas de programação, de técnicas de processamento gráfico, com foco nas ciências exatas”, explica ela. Os efeitos podem ser sentidos no contato direto com o mercado e com as faculdades estrangeiras quando, por exemplo, graduandos saem de São Leopoldo para outros países e encontram lá metologias semelhantes as daqui. Da mesma forma, a graduação em Jogos Digitais da Unisinos equilibra o aprendizado, desenvolvendo também o lado criativo do aluno. “Narrativa, roteiro e desenho gráfico também fazem parte desse currículo, que sofreu uma alteração, há cerca de três anos, e agora será modificado novamente para compreender conhecimentos ligados a negócios, gerenciamento e empreendedorismo”, comenta a coordenadora. Ela lembra que essas mudanças acompanham
as transformações no contexto da carreira, que mudou nos últimos anos, principalmente no que se refere ao mercado. Segundo dados da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás, a indústria mundial de games já apresenta faturamento maior até mesmo que a do cinema. Em 2013, foram US$ 52 bilhões de dólares dos jogos contra US$ 50 dos produtos para as telonas. Um bom exemplo para ilustrar o fenômeno é o jogo Grand Theft Auto V, lançado em 2013, e que em apenas três dias após ser colocado para vendas já havia rendido US$ 1 bilhão. De acordo com o mesmo estudo, a previsão é de que, até 2017, o faturamento anual das empresas do ramo some algo em torno de US$ 100 bilhões. Os meses de abril e maio foram especiais para o Brasil, pois entrou no circuito comercial o jogo de aventura Toren, para o qual o Yoho Musik Arsenal produziu os sons ambientais. Toren, que ganhou versões para plataformas importantes como PlayStation 4 e computador, é o primeiro jogo brasileiro a receber recursos da Lei Rouanet (que permite a captação de recursos de empresas privadas para projetos culturais em troca de incentivo fiscal). Com certeza, abre também a possibilidade para novas criações brasileiras e aumenta o otimismo dos desenvolvedores daqui.
“Voltar ao universo dos games, não mais como simplesmente jogador, mas também como curioso, foi um grande prazer. Essa visita aos bastidores da criação – tanto em estúdio quanto no ambiente acadêmico – foi uma forma de reencontrar momentos que fizeram parte do meu lazer. Igualmente importante foi poder conhecer a trajetória de alguns dos profissionais que trabalham na área do desenvolvimento de sons para jogos, já que, mesmo em um mercado que ainda coloca obstáculos, continuam se empenhando em construir algo no qual acreditam. É, de muitas formas, inspirador para quem está no início de uma profissão ver pessoas idealizando um projeto e criando oportunidades para concretizar algo que enxergam como satisfatório. Ao mesmo tempo, vale o aprendizado que vem do desafio de encontrar uma pauta que requer atenção aos sons e ao ambiente onde eles são produzidos e a tentativa de traduzir isso em forma de texto, a fim de passar a mesma experiência para o leitor”
INUSITADO Acessórios, como um machado, ganham a mesma importância que os instrumentos musicais
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A voz dos pássaros Identificar uma ave através do som que ela emite é uma tarefa que exige tempo e habilidade POR HENRIQUE STANDT FOTOS JULIETE SOUZA E ROB WATERHOUSE
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m meio ao som de curiós, canários belgas e azulões, sentado em uma cadeira de praia com olhar fascinado pela beleza dos pequenos animais, está Evair Manuel Diogo. Criador de aves e entusiasta da classe desde quando tinha 12 anos, hoje, com 47, Evair faz parte de um grupo de pessoas que admiram, protegem e participam de diversos eventos ligados a esta área não muito conhecida de grande parcela da população. A habilidade de identificar a espécie através do som que ela emite, assim como a relação com as aves, é, geralmente, transmitida de geração para geração, em famílias de criadores. Segundo Evair, conforme o tempo vai passando, a experiência aumenta e o ato PRIMEIRA IMPRESSÃO
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de identificar o pássaro através do som torna-se mais fácil. Além disso, outros fatores ajudam na identificação, como a coloração das penas e o tamanho das aves. Fato é que, depois de 35 anos em contato com pássaros, o criador se diz capaz de identificar qualquer espécie que lhe for apresentada. Uma das maiores formas de expressão e comunicação das aves, é a vocalização, que pode manifestar-se como canto ou chamado. O canto é caracterizado por uma série de notas emitidas sucessivamente relacionadas entre si, formando uma sequência de sons bastante reconhecidos, e possui características de ritmo e de modulação que diferenciam as espécies. Além disso, o canto é controlado por hormônios sexuais e se relaciona com a época de reprodução das aves e com a defesa do território. Já o chamado é constituído principalmente por notas monossilábicas ou dissilábicas, quase nunca em número superior a quatro ou cinco notas, e aparece através das fases da vida dos pássaros e em tarefas como alimentação, migração e resposta a predadores. Entre as aves, é comum que alguns machos não consigam atrair a atenção das fêmeas. Normalmente, essa falta de atração está ligada à incapacidade do macho de cantar. Isso faz com que os machos não se relacionem com as fêmeas e dediquem
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seus esforços à caça e manutenção do bando. Alguns pássaros, ao encontrarem os parceiros ideais, podem passar o resto de seus dias juntos. O tempo de vida varia de acordo com a espécie. Por exemplo, o curió vive, em média, 18 anos – podendo chegar aos 30 se bem cuidado –, enquanto os Canários vivem aproximadamente cinco anos. Entre setembro e dezembro, além do desabrochar das flores e do crescimento das árvores, os pássaros ajudam a compor o cenário primaveril. Com serenatas que vão do raiar ao anoitecer do dia, os pequenos voadores aproveitam esta época para se reproduzirem. Em alguns casos, principalmente de pássaros silvestres, algumas fêmeas não conseguem encontrar o par ideal e acabam ficando solitárias. Os motivos que conduzem essas fêmeas à solidão podem ser os mais variados e, segundo os criadores, é difícil ter precisão neste diagnóstico. Por falta de acasalamento, desenvolvem um canto próprio, que é tratado como um canto de tristeza por especialistas em aves. Em contraponto à época em que eles mais cantam, existe o período em que deixam de cantar. Entre fevereiro e maio, quase não se escuta o som dos pássaros, devido à troca de penas. É chamada a época do descanso.
MERCADO DAS AVES Na economia brasileira, o setor de criação de pássaros movimenta cerca de R$ 1 bilhão ao ano. Dentro dessa estatística, estão os eventos – competições de canto, fibra, entre outros –, além de equipamentos e produtos para alimentação das aves e comercialização de espécies. Quando os criadores dizem que um pássaro tem fibra, referem-se à valentia do pássaro. E quando a ave canta com fibra, significa que ela não desafina. Existem pássaros que chegam a custar aproximadamente R$ 300 mil. São aves que possuem características muito específicas, como o canto ou o chamado, a coloração das penas, a idade e a espécie de maneira geral. Outro fator importante para definição do valor que o pássaro recebe é a fibra. As aves que cantam durante o maior tempo possível geralmente são comercializadas por uma quantia maior de dinheiro. Apesar da alta circulação de capital neste setor, existem fiscalizações para que os comerciantes ilegais de aves não consigam atuar no país. Algumas espécies, principalmente as nativas brasileiras, não podem ser comercializadas sem liberação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e da Secretaria do Meio Ambiente
(SEMA). A licença para inclusão na categoria de Criador Amadorista de Passeriformes da Fauna Silvestre Brasileira é concedida a pessoas físicas, nos termos da Instrução Normativa nº 15, de 22 de dezembro de 2010, e deve ser solicitada por meio de um sistema de cadastro, que tem por objetivo a gestão das informações referentes às atividades de criação amadorista. Entre a população, é comum o pensamento de que pássaros que estão em gaiolas devem ser infelizes, maltratados e que deveriam estar na natureza, onde é o seu lugar. No entanto, algumas espécies estão praticamente extintas e são encontradas apenas em cativeiros regulamentados que estimulam a procriação das aves. No Rio Grande do Sul, segundo o criador Evair, o preconceito com os criadores é forte, e as barreiras para que possa criar seus pássaros são ainda maiores que nos outros estados. “Tu és visto como um criminoso”, completa.
PALAVRA DE ESPECIALISTA Segundo a professora Maria Virgínia Petry, desenvolvedora de pesquisas nas áreas de biologia e ecologia de aves e animais marinhos, a comunicação sonora surgiu em diversos grupos de animais, principalmente insetos, como grilos e cigarras, e vertebrados anfíbios,
aves e mamíferos. A utilização de sinais sonoros é muito eficiente, pois eles percorrem longas distâncias e facilitam o contato entre os indivíduos em locais onde a visibilidade é reduzida, como o interior florestal. Cada espécie de ave possui um sinal de comunicação exclusivo, ou um canto específico, com diferentes números de notas e entonações, podendo ter variações entre as regiões, de acordo com a área de ocorrência da espécie. E são essas variações que possibilitam que Evair e todos os outros criadores possam identificá-las. Inclusive, a professora reafirma o que diz o criador: o conhecimento e a habilidade de reconhecer os animais se dá por meio de visualizações diretas em campo, onde é possível identificar as espécies e seus diferentes tipos de vocalizações. Com o avanço da tecnologia e dos equipamentos, hoje a bioacústica é uma importante ferramenta de estudos comportamentais e para vocalização das espécies. Essa ferramenta passou a ser utilizada a partir da década de 1980 e consiste em ser uma análise dos sinais sonoros das aves por meio de gravadores e softwares capazes de averiguar com mais profundidade cada sinal emitido. O canto também pode ser relacionado com bancos de dados de outras vocalizações já gravadas, o que facilita ainda mais a identificação da espécie e todas as suas particularidades.
“O objetivo de um repórter, como aprendemos na academia, deve ser o de levar a informação ao maior número de pessoas possível. Seja um assunto de importância vital, ou algo que apenas desperte curiosidade ou esclareça uma dúvida antiga. A forma de nos comunicar com o público deve ser informativa, clara e responsável. Com base nesse pensamento, escolhi falar sobre o som dos pássaros. Quando o tema da revista foi escolhido, tive a certeza de que escreveria sobre esse assunto para que, além de tudo, pudesse esclarecer a curiosidade sobre o processo de identificação das aves através do som. ‘Não devo ser o único’, pensei. E, com o desenrolar das entrevistas, com a troca de informação com os professores e colegas, tive a resposta que precisava. Realmente, nem todas as pessoas conhecem o universo das aves. Nem todos sabem como funciona o processo do canto, do chamado, da reprodução e, até mesmo, do comércio e das leis que envolvem este setor da economia. Espero ter conseguido apresentar de forma clara o fantástico mundo dos pássaros, e sanar as dúvidas de muitos, inclusive as minhas”
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Iniciativa promove a ocupação de espaços públicos de Porto Alegre à noite por meio da música POR THACIANE DE MOURA FOTOS AMANDA MENDONÇA
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ssim que a noite cai, as primeiras cangas são postas sobre a grama úmida. Aos poucos, grupos de amigos chegam e se espalham ao longo dos gramados do Parque Farroupilha – a Redenção –, em Porto Alegre. Equipamentos de som e de luz são instalados sob os arcos, deixando claro o ponto de encontro de pessoas de todos os gêneros, idades e estilos. É ali que a Serenata Iluminada acontece mais uma vez. A ideia é incentivar qualquer manifestação cultural, dando ênfase à música – tanto que carrega a palavra “serenata” no nome. Na página com mais de 5 mil curtidas no Face-
AMIZADE Ana Paula, Juliana e Mariana participaram da Serenata Iluminada que ocorreu em abril de 2015
book, fica clara a intenção de unir a celebração com o engajamento em usufruir dos locais de livre acesso mesmo sob o luar. “Levamos velas, lanternas, instrumentos musicais e manifestações culturais para fazer um encontro que mistura alegria, expressão e reflexão sobre o bom uso dos espaços públicos”, diz a descrição na rede social. O evento, registrado por Renata Beck em 2012 no portal colaborativo portoalegre.cc, é aberto ao público e reúne milhares de pessoas a cada edição. Além de Renata, mais quatro organizadores são responsáveis por garantir que tudo corra como o planejado: Aline Bueno, Dani Furlan, Guz Bozzetti e Pedro Loss. Juntos, eles realizam a Serenata em média uma vez por mês. “A energia é muito boa, maravilhosa, alto astral”, afirma Pedro. Segundo ele, isso é o que os motiva a continuar o projeto. No mês de abril de 2015, penúltima edição, foram mais de 5 mil participantes. No meio da pequena multidão concentrada no maior
parque da capital gaúcha, todas as diferenças eram deixadas de lado em prol de um objetivo maior: a liberdade. Liberdade de ir e vir, liberdade de andar em locais públicos à noite sem medo, liberdade de se reunir com os amigos em meio ao caos da cidade.
MISTURA DE RITMOS Dentro dessa heterogeneidade, a mistura dos diversos sons é o pano de fundo para a confraternização. É possível, em cerca de 500 metros, ouvir violões, bongôs, gaitas de fole e rodas de samba convivendo harmoniosamente e tomando os arredores do parque. No meio deles, as luzes difusas das velas tornam o ambiente ainda mais interessante. A sensação é de que nada atrapalha. Nem o orvalho, que molha a grama e as árvores, nem o breu que cerca aquele pequeno espaço são suficientes para incomodar ou amedrontar quem está ali. O
aconchego, o afeto e a diversão são o mais importante. Tudo isso em meio a uma trilha sonora que varia a cada passo. Dentre as diversas toalhas estendidas no chão, está as das amigas Ana Paula Verona e Juliana Krupp. Ambas acreditam que a preocupação social por trás da Serenata e de outros eventos tem bastante importância. O que as faz frequentadoras assíduas de eventos como esse, entretanto, são a música e o ambiente. Ana é categórica em dizer que o som mais marcante das três edições de que participou é o do violão. Ela explica que isso se deve ao fato de um de seus amigos ter levado o instrumento quando ela foi pela primeira vez. “Foi a vez que mais me marcou, porque são as músicas de que eu mais gosto, e ele toca muito bem, então foi bem legal”, relembra. Juliana, por sua vez, afirma que são mais fortes em sua memória os sons da gaita e dos tambores, apesar de também citar o do violão. Para ela, a percussão vinda das rodas de samba contagia o ambiente, o que faz com que o som a transporte para aquele momento novamente. “Era uma batucada, tinha bastante gente dançando, não tinha como ficar parado”, conta.
PELA REVITALIZAÇÃO E REOCUPAÇÃO Porto Alegre sempre teve um cenário cultural forte. Em movimentos musicais ou na literatura, a cidade tem tradição quando o assunto é arte. Com o tempo, os locais fechados foram se consagrando e deixando de lado os passeios ao ar livre. Como consequência, frequentar locais como a Redenção, o parque Marinha do Brasil ou o parque Moinhos de Vento se tornou motivo de preocupação. Mesmo durante o dia, há relatos de violência constantemente na mídia e nos feeds das redes sociais. Eles são ainda mais frequentes quando mencionam situações que acontecem depois do pôr do sol. À noite, a cidade parece fugir de qualquer possibilidade de se estar na rua como forma de prevenção e de proteção. De encontro a essa
realidade, cada vez mais surgem coletivos preocupados em retomar rotinas antes comuns à comunidade. Eventos de música, gastronomia e artes são responsáveis por, pelo menos enquanto ocorrem, devolver a liberdade daqueles que gostam de aproveitar os espaços públicos em qualquer horário. As iniciativas normalmente não têm divulgação ostensiva nos meios tradicionais – precisam apenas de um clique no botão confirmar no Facebook. De 100, passam para 1.000 confirmações em minutos. Além dos parques, convites para eventos em centros culturais, como a Casa de Cultura Mário Quintana, são frequentes. Com uma semana de diferença, brechós ao ar livre dão espaço às mais diversas feiras. Além deles, pontos históricos da cidade como o Largo Glênio Peres, ao lado do Mercado Público da cidade, são pano de fundo para o grito de socorro que vem das pessoas engajadas nessas iniciativas.
MÚSICA QUE APROXIMA De todas as propostas de reocupação dos espaços, a Serenata Iluminada é uma das mais difundidas. Acontecendo no Cais do Porto ou na Redenção, ela difunde costumes antigos, como as rodas de violão e os piqueniques improvisados sob o luar. Justamente por ser palco de inúmeros estilos e ritmos, é capaz de dar um recado ainda maior: a música é capaz de acolher as pessoas, de torná-las mais unidas. É indiferente o que se ouve ao redor, importante é estar ali. Importante é fazer parte dessa ação. Importante é resgatar a proximidade, deixada de lado em tempos de smartphones sempre conectados à Internet. Importante é fazer parte de algo que, acima de tudo, tenha uma preocupação social. Importante é ter histórias para dividir. Com o mote de reunir pessoas pela música, os organizadores tratam também de outros assuntos. O primeiro passo foi alertar para problemas de segurança pública. Com o tempo, os avisos partiram para mais campos, como o desperdício e
o descarte incorreto do lixo. Sempre atentando às questões que geram mais repercussão, a Serenata promove encontros extremamente ricos, instigando constantemente a diversidade cultural. Entre luzes, cheiros e sons, os sentidos se afloram. Mesmo com o orvalho ou o frio das noites porto-alegrenses, uma pequena multidão se reúne para passar o tempo em companhia de outros, para conviver. Convivendo, então, pode interagir e discutir algo macro, de bem-estar comum. Pode também reatar laços que se perderam com o passar do tempo. As amigas Ana Paula e Juliana ilustram bem o efeito da Serenata Iluminada. Ela é capaz de reunir e dissipar pessoas em um intervalo de poucas horas. Junto delas, há cheiros, cores e luzes únicos, que também vão embora ao fim do evento. Ali, infinitos barulhos se misturam, formando um som aconchegante e, ao mesmo tempo, caótico. Todos os estilos se mesclam em um mesmo espaço que antes só via escuridão e perigo, mas que agora pode voltar a ecoar risadas e música.
“Chegar à Primeira Impressão pode parecer o fim de um ciclo, uma vez que a revista é produzida nos últimos semestres de faculdade, mas, na verdade, ela se mostra o início de um desafio. Ter a responsabilidade de escrever para um veículo como esse faz com que a escolha da pauta seja talvez a parte mais importante de todo o processo. Dentro dos ‘sons da vida’, mote da publicação, pensar na Serenata Iluminada não foi difícil. Iniciativa recente, mas expressiva, ela carrega uma nostalgia necessária ao individualismo e à instantaneidade atuais. Velas e rodas de violão compõem um ambiente que, para a maioria de nós, jovens nascidos a partir dos anos 1990, só se via em histórias. No entanto, esse tem sido o cenário cultural da Porto Alegre dos últimos meses. Entrevistar frequentadores e produtores foi importante para dar ainda mais visibilidade a esses projetos. Assim, quem sabe, eles deixem de ser novidade e devolvam os espaços públicos a seus verdadeiros donos – todos nós”
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Vinicius Souza COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs
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REDAÇÃO
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Orientação
Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia Moreno Osório (mosorio@gmail.com) - Editor de Conteúdo Digital
Reportagem
Disciplina de Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Ana Paula Zandoná, Bárbara Bengua, Bárbara Müller, Bruna Schneider, Cintia Richter, Cristiane Abreu, Daniel Rohr, Débora Cademartori, Diogo Rossi, Emilene Lopes, Fabrícia Bogoni, Felipe Gaedke, Filipe Rossau, Francine Malessa, Guilherme Rovadoschi, Gustavo Ev, Henrique Standt, Jacson Dantas, Jéssica Sobreira, Joyce Heurich, Julian Souza, Karine Klein, Karla Oliveira, Luana Chinazzo, Matheus Freitas, Pedro de Brito, Rafaela Kish, Sabrina Stieler e Thaciane de Moura MONITORA: Cristiane Abreu ESTAGIÁRIO DOCENTE: Moreno Osório
Fotografia
Disciplina de Projeto Experimental em Fotografia Amanda Mendonça, Ana Fukui, Anelise Durlo, Arthur Isoppo, Belisa Lazzarotto, Betina Albé Veppo, Carolina Schaefer, Daiane Trein, Fabiano Scheck, Franciélen Severo, Gabriel Reis, Glaucia Damazio, Hercilio Ribeiro, Juliana Franzon, Juliete Souza, Mariana Blauth, Marina Lehmann, Paula Ferreira, Renata Simmi, Roberto Caloni, Rodrigo Freitas, Rudinei Machado, Tainá Hessler, Victoria Silva, Virginia Machado e William Mansque FOTO DE CAPA: Franciélen Severo
ARTE E PUBLICIDADE
Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado
Editoração
ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Thaís Furtado SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Gabriele Menezes e Marcelo Garcia
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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Letícia da Rosa e Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme ATENDIMENTO: Jandaia Zanette REDAÇÃO: Guilherme Stacke DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Gabriel Luís Frantz (página 2) e Caique Agulla (página 43 e contracapa)
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