Primeira Impressão 47

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pi primeira impressĂŁo

ENCARE A ROTINA DO OUTRO


JESUÍTAS BRASIL


Editorial

O desafio de observar e viver

C

oragem. Talvez essa seja a palavra que melhor defina o conteúdo da edição 47 da revista Primeira Impressão que você acaba de abrir. Em época de pressa, no qual jornalistas não têm tempo de sair das redações (ou não querem…), e de redes sociais pautando a própria vida, nosso grupo de 26 estudantes decidiu parar, experimentar e ser, de fato, repórter. A escolha, feita em março deste ano, desafiava o grupo a viver a rotina de um personagem ou observá-la durante pelo menos um dia. A tarefa exigia tempo, dedicação e um trabalho minucioso de repórter. Viver uma pauta de perto é uma

das melhores ações de um jornalista. Por isso, vamos encontrar nas próximas páginas histórias que mostram a vida sob diferentes aspectos. Sentado numa cadeira de rodas, Joaquim Oresko jogou basquete sem mexer pés e pernas. Aniele Cerutti e a fotógrafa Ellen Renner embarcaram em uma ambulância e saíram pelas ruas para acompanhar socorristas de plantão. Com deficiência visual, Anderson Dilkin desafiou-se a ouvir diferentes sons de instrumentos musicais e sentir pela primeira vez a força da Orquestra Unisinos Anchieta. Sobrou sangue frio para Aline dos Santos, que ficou ao lado de um cadáver para ver como era feita a limpeza do corpo antes do enterro. Sobraram perguntas

curiosas para Jéssica Zang, que passou um dia ao lado de uma prostituta, e para Victória Freire, que descobriu segredos por trás das portas de um motel. Nesse mosaico de histórias, até mesmo eu assumi uma rotina diferente. Depois de pelo menos 20 anos editando e cuidando com carinho da revista Primeira Impressão, a professora Thaís Furtado deixou a publicação. Pela primeira vez assumo todas as tarefas. Só que, ao contrário dos nossos repórteres, pretendo ficar mais bons semestres encarando essa rotina! Anelise Zanoni Professora editora de texto Flávio Dutra Professor editor de fotografia

LUCAS AMERICO

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Eu observei a rotina de... 14 Cadeirante

42 Artista de rua

62 Uma casa de produção cultural

26 Maratonista

46 Músico de uma orquestra

66 Gaúcho na lida do campo

30 Escola de samba

58 Personal shopper

70 Domador de cavalos

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GABRIELA WENZEL

ÍNDICE Eu experimentei a vida de... 6

Paratleta

10 Jogador de vôlei 18 Voluntário do CVV 22 Deficiente visual 34 Mochileiro 38 Palhaço 50 Ator de teatro 54 Drag queen 90 Socorristas da Samu 98 Passageiros de uma

perigosa linha de ônibus

74 Quilombo urbano

86 Praticantes do Vaishnavismo

78 Assentamento Sem Terra

94 Tanatopraxista

82 Pequeno agricultor

102 Prostituta

106 Camareiras de motel

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Uma aula de basquete Praticante do esporte, nosso repรณrter treinou pela primeira vez com uma equipe paraDESPORTIVA Por Joaquim Oresko fotos de Michelle Oliveira

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eus pulsos ardiam como se pegassem fog o. As palmas de minhas mãos, brancas, estavam pretas de sujeira. As bolhas que se formaram no dedo indicador, abaixo do polegar e na palma da mão direita, já estavam estouradas. Era recém metade do jogo. Pausa para tomar água. Meus braços davam sinais de que não responderiam mais. A cada arremesso, os pulsos se enrijeciam e a pontaria se perdia. Do alto dos meus 1,93 m, praticante do basquete, essa foi a primeira vez que o fiz sentado. Por cerca de duas horas, treinei junto da equipe de basquete em cadeira de rodas do RS Paradesporto, no Ginásio Municipal Tesourinha, em Porto Alegre. Para jogar, precisei me adaptar à cadeira. Oferecidas pelo clube, elas ficam guardadas debaixo de uma das arquibancadas do local, numa sala trancada. Todos passam por lá para pegá-las antes do treino. Enquanto converso com o pessoal da equipe, em um dos cantos da quadra, Luiz Claudio Portinho, presidente da entidade e atleta da modalidade, chega com uma cadeira específica para minha estatura. Sento nela e me sinto como uma criança aprendendo a usar um brinquedo. Rindo, viro de um lado para o outro durante a orientação. Cada pessoa utiliza um modelo específico, conforme deficiência e altura. A cadeira tem uma barbatana, espécie de para-choque frontal, que protege contra tromP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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badas. As rodas dos lados Equipe de física comprovada. são inclinadas, evitando basquete treina Após as orientações, que a vire em mudanças no Ginásio sigo para o alongamento bruscas de direção. Atrás, Municipal com a equipe. Na sequêntambém há uma ou duas Tesourinha, cia, partindo da metade da rodinhas para impedir em Porto quadra, vamos em direção visando tombos. Alguns atletas Alegre, à cesta, recebendo a bola campeonatos utilizam faixas para se de um colega posicioprender ao encosto, imnado ao lado do garrapossibilitando a queda para frente fão e arremessando. Tocam-me a em batidas com adversários. bola e não consigo pegar. Tento As regras são praticamente as juntá-la do chão e sofro. Preciso mesmas do basquete andante, com usar as duas mãos. Atrapalhandoas adaptações. O principal é que o -me, descubro que posso usar a jogador só pode dar dois impul- rotação da roda para apoiar a bola sos na cadeira ao conduzir a bola com uma das mãos e segurá-la. sem quicá-la. O mais complexo é “Conseguir controlar a cadeira e a formatação da equipe. Segundo a fazer as ações é o mais complicaConfederação Brasileira de Basque- do”, explica Marco Antonio Sertebol em Cadeira de Rodas (CBBC), queira, atleta do basquete e direos atletas recebem uma numeração tor esportivo da instituição. de um a quatro e meio conforme o O treino segue e as equipes comprometimento físico-motor. O são divididas por Portinho e Martime em quadra não pode ter pontu- co, que também assume papel ação maior que 14. Ademais, altura de juiz e treinador. Aponta erros das cestas, tempo de jogo e outros dos companheiros e desenha as detalhes não mudam. Para praticar, jogadas. “Joaquim, te posiciona basta ter alguma impossibilidade ali, no fundo. Não deixa ele pasP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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sar. Toca pra quem tá mais perto da cesta”, orienta-me. A velocidade é outro problema. Dudu, caçula do grupo, 19 anos, passa por mim como um raio, jogando os braços para trás e botando a língua de fora. A força nos braços contrasta com o tamanho franzino. Com a pele morena e o cabelo raspado, vestindo uma camiseta regata de uma equipe da NBA, dá risada ao me ver ficar distante. A prática do basquete torna minha adaptação menos complicada. Dou a sorte de acertar alguns arremessos. Apanho com os choques entre as cadeiras. Em um deles, contra Arthur, pivô da equipe adversária, quase caio. Posicionar-se com as barreiras impostas por ele é difícil. Portinho reclama com o rapaz: “Pô, te movimenta”. Eu o defendo rindo: “O cara não me deixa jogar”. Brigas por lances duvidosos são comuns. “A bola não saiu, por que parou?”, pergunta Marco após confusão, já explicando a regra. Portinho sentencia: “Segue o jogo”.


Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, elaborada pelo IBGE, 1,3% da população brasileira tem algum tipo de deficiência física. Especialista em psicologia esportiva do Grêmio Náutico União, Paula Pereira enxerga um cuidado excessivo por parte das famílias com os deficientes físicos, desencadeando uma tendência de fragilização no emocional dos indivíduos. “Com o esporte tu tiras isso, porque daí tem que superar desafios não só na vida. O esporte facilita o desenvolvimento emocional, a autonomia e a segurança”, explica, enfatizando que essas atividades os fazem romperem barreiras físicas e do cotidiano.

HISTÓRIAS SIMILARES

Antes do treino, que iniciaria às 20h30, conversei com Marco e Portinho. Sentado em frente a uma mesa no bar da entrada do ginásio, aguardava o Marco, que logo chegou. Apesar de ter se mudado na infância para o Sul, o sotaque carioca é forte. Pronto para o jogo, com regata branca, calça de abrigo e tênis esportivo, o atleta conta sua história. Fitando seus olhos azuis, escuto atentamente. Os braços largos evidenciam o longo tempo como cadeirante. Com 51 anos, ficou paraplégico aos 30, após acidente de trânsito que lhe tirou a sensibilidade abaixo da cintura. O basquete surgiu antes, aos 12. Passou a arbitrar com 19. À época da fatalidade, apitava para a Confederação Brasileira de Basketball (CBB). Formado em Medicina Veterinária, não pôde se abalar. “Um mês depois de sofrer o acidente, eu já tinha que começar o mestrado”, explica Marco. Com o apoio familiar, seguiu em frente. Membro da Secretaria Estadual da Agricultura, ele também é mesário em jogos da Liga Nacional de Basquete no Estado. A função lhe rendeu a oportunidade de trabalhar na Olímpiada e Paralímpiada de 2016, no Rio de Janeiro: “É uma experiência única que não tem preço”. Assim como Marco, Portinho também ficou paraplégico em acidente de trânsito. A barba e o cabelo grisalho escondem o tom de voz amigável. Vestindo uma camiseta preta com o logo do RS Paradesporto e com uma mochila com as bolas para o treino às costas e outra no colo, ele se junta ao bate-papo. Aos 43 anos, Portinho joga basquete desde os cinco, quando ainda caminhava e

fazia parte da escolinha do Grêmio Náutico União. Aos oito, perdeu o pai e dois irmãos no acidente que lhe tirou o movimento das pernas. A mãe passou a ser a maior incentivadora após o trauma. Aos 12, o pioneiro do esporte paralímpico gaúcho Aldo Potrich o apresentou ao basquete em cadeira de rodas. Como não existiam categorias de base, Portinho praticava com os adultos. “Tinha uma coisa legal que meus colegas de colégio iam muito comigo nos treinos. A gente fazia um bate-bola da piazadinha. Meus amigos pegavam as cadeiras e sentavam junto”, relembra ele, que imaginava voltar a caminhar: “Quando eu era piá, ficava olhando meus colegas ali no pátio, na minha cabeça eu já estaria ali de novo”. O esporte paralímpico ajudou-o a aceitar a cadeira de rodas em sua vida.

Luiz Claudio Portinho, presidente do RS Paradesporto e atleta da equipe de basquete, mostra a barbatana, espécie de parachoque da cadeira de rodas

entre os melhores do país

Procurador Federal, Portinho é presidente-fundador do RS Paradesporto. O clube surgiu em abril de 2005. Entretanto, sua origem é antiga. Em 1968 foi criada a Associação Riograndense de Paralíticos e Amputados (ARPA), entidade que abraçava diferentes modalidades paradesportivas. Com sua extinção, em meados de 2000, houve a divisão dos esportes, reagrupados no RS Paradesporto. Com apoio financeiro da Unesco desde 2009, a entidade oferece a prática esportiva para crianças e adolescentes no Centro Esportivo do Estado do RS (CETE), em Porto Alegre. Assim como o Tesourinha, o local é utilizado via Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, buscado no Ministério Público, obrigando Município e Estado a cederem os espaços em horários e dias específicos. No caso do basquete, o grupo treina visando campeonatos. No entanto, Marco e Portinho são uníssonos quanto aos problemas na CBBC – organizadora das competições. Eles reclamam de pouco profissionalismo dos gestores, adiamento de campeonatos em cima da hora e escolhas que impactam na renovação da modalidade no Brasil. Porém, mesmo diante das dificuldades, o RS Paradesporto está ranqueado entre os 30 melhores do país, graças ao empenho de dirigentes e jogadores.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Proposto o tema desta edição da revista, fui à procura de um assunto que aliasse esporte e acessibilidade. A paixão pelo basquete me norteou e descobri o RS Paradesporto. Não foi difícil contatá-los. Com uma ligação para a diretora da instituição, Cintia Moura, combinamos minha participação em um dos treinos. A receptividade me espantou positivamente, fazendo-me questionar sobre o pouco espaço dado na mídia tradicional a este tipo de iniciativa. Muito além do jogo em si, prazeroso como qualquer prática esportiva, pude tirar algumas lições sobre como encarar a vida, tanto pelas pessoas que tocam a agremiação, quanto por meio dos atletas que buscam a competição e encontram a afirmação. Aconselho a todos que procurem projetos como este e vivam momentos como o que eu vivi. Para a sua surpresa, você encontrará esperança em pessoas de bom coração, como eu encontrei em Portinho, Marco, Dudu, Cintia e tantos outros que lá estão. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Projeto em Canoas mantém a tradição gaúcha na Superliga de Vôlei Por KHAEL SANTOS fotos de MILENE MAGNUS

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dia começa cedo para os jogadores do Lebes/Gedore Canoas, um dos representantes gaúchos na Superliga de Vôlei. O treino está marcado para às 9h. Chego ao ginásio uns 10 minutos antes. Sozinho, no fundo da quadra, está Marcelo Fronckowiak, treinador da equipe e com um currículo que impõe respeito. Atravesso a quadra com as arquibancadas vazias e me apresento àquele que já foi campeão da Superliga Masculina como atleta e como técnico. Poucos são os que conseguem isso. Brinco que sou um jogador frustrado por nunca ter conseguido de fato me tornar um atleta profissional. “Bom, agora pela manhã eu vou passar um treino de saque e defesa. Tu vais poder acompanhar um treino bastante técnico”, explica Marcelo. Os jogadores chegam aos poucos. Confesso que, no alto dos meus 1m87cm, me sinto um anão perto de verdadeiros gigantes que chegam a 2m05cm. Como em qualquer exercício, tudo começa com alongamento. Depois vem o aquecimento. É hora de formar duplas. Um de frente pro outro a uns sete metros de distância. É o primeiro contato com a bola. Ela vai via-

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Terra de


gigantes

jando de um lado para o outro. O barulho das batidas se mistura com o atrito dos tênis no piso de borracha, formando uma melodia descompassada, mas que juntas soam como música clássica aos ouvidos de quem reconhece. Marcelo, por enquanto, é um mero observador do lado de fora. Parte da brincadeira começa. Chiquita, o auxiliar técnico, divide o grupo em dois times. Saca daqui, defende dali. Ninguém alivia. Não é pra menos: o treino antecede o jogo contra o Sada Cruzeiro, tricampeão mundial, tricampeão sul-americano, tetracampeão da Superliga e bicampeão da Copa do Brasil. Resumindo: o adversário dos gaúchos é um dos principais times do mundo. Não seria exagero algum compará-los ao Barcelona. Por isso, o foco e a concentração precisam estar no nível máximo. Os incentivos entre os jogadores são comuns: “boa, Alisson! Bom Saque”. Marcelo cobra bastante de seus atletas. “Errou, não tem repetição!”, “tá com medo de levar bolada?”, provoca o treinador. Instruções e mais instruções são passadas. Os atletas observam atentamente cada pedido do treinador. Enquanto isso, do lado de fora, faço algumas anotações e escuto o estouro característico do barulho de um ataque. Levanto a cabeça o mais rápido possível para evitar uma provável e dolorosa bolada. Agora é minha vez. Recebo o ok da comissão técnica para entrar em quadra. Corro para o vestiário, afinal, calça jeans não é a roupa mais adequada para prática esportiva. Por alguns instantes realizo meu sonho de ser um atleta profissional. Sou um deles. Me aproximo da rede e estico o braço esquerdo conferindo a altura. Consigo encostar a ponta do dedo na fita. Ela está com 2m45cm, exatos dois centímetros a mais que a medida oficial. Milene, a fotógrafa que me P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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acompanha, diz que nem “sou tão baixo assim”. O comentário fez bem ao ego. Começo me arriscando no saque. Não passa. Tento mais um. Pra fora. Quando finalmente acerto, ele passa sem muita potência. Passo pro ataque. O primeiro é um verdadeiro desastre. Quase levo a rede pra casa. O segundo também não é lá dos melhores. No terceiro, o levantador tenta fazer um “mea culpa”. “Preciso acelerar mais a bola pra ti.” Eu tento me explicar. “Eu tô pegando a bola na descendente. Preciso pegar ela mais no alto.”

A influência do fator psicológico

À beira da quadra, converso com Chiquita. Ele destaca a evolução da equipe ao longo da temporada. “A questão mais complexa de tática a gente está conseguindo reunir agora. Eles (os jogadores) estão no ápice do torneio”, explica. Mas nem apenas de parte tática, física e técnica vive um time profissional. Para o auxiliar técnico, a parte emocional dos atletas é fundamental. “O principal é o fator psicológico. Essa preparação tem que ser muito forte. Fisicamente eles estão aptos para jogar os cinco setes, tecnicamente eles estão preparados para executar os fundamentos. Os confrontos individuais e pessoais ao longo do jogo tem uma carga psicológica muito grande para o jogador”, finaliza. Para a psicóloga Laura Salgado, esse tipo de preparação deveria fazer parte do treinamento esportivo, em função dos muitos fatores e estímulos intrínsecos e extrínsecos que podem influenciar o desempenho do jogador. “Não basta ele ter um bom preparo físico, uma rotina de treinos regulares, uma dieta equilibrada, quando não se é capaz de controlar e compreender quais aspectos psicológicos influenciam no seu desempenho”, pontua Laura. De acordo com ela quanto mais elevado o nível competitivo, maiores são as exigências e as P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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cobranças. As situações de ansiedade as quais são submetidos são vivenciadas de forma diferente por cada um, afetando, assim, o desempenho individual e coletivo.

O Dia do Jogo

Chego para acompanhar a preleção. Entro na sala e a TV mostra a partida entre SESI x Minas. Parte da comissão técnica comenta o jogo. Por um instante, penso em dar algum pitaco também, mas hesito e acabo guardando pra mim. Marcelo desliga a TV e inicia a fala, sem antes explicar a presença de um intruso. Diz que não sou nenhum espião do Cruzeiro, mas que também não estaria ali pra dar superpoderes à equipe. Mal sabe ele que, se eu pudesse, reuniria todos pra ajudar na classificação do time. O clima é de descontração. Nem parece que dentro de alguns minutos “a gente” vai encarar o melhor time do mundo. Fronckowiak traz um vídeo em inglês para passar aos atletas. “Bota legenda aí!”, brinca um do jogadores, provocando gargalhadas na sala. Depois de inúmeras tentativas, finalmente o pedido é atendido, porém, sem som. Atenção redobrada. O nome do vídeo: “Três coisas que aprendi enquanto meu avião caía”. Ele traz a história de um dos passageiros do avião que pousou no Rio Hudson em 2009. E qual a ligação de um acidente de avião e uma partida de vôlei? Bom, a chance de sair vivo de um acidente aéreo é pequena, assim como a chance de vencer o atual campeão mundial. E Marcelo bate exatamente nesse tecla. “Tá todo mundo lá fora achando que somos incapazes de jogar contra o Sada. E só depende da gente mostrar o contrário!”. No final da preleção, acabo surpreendido. O grupo se levanta e forma uma roda. Me afasto sabendo que sou um mero estranho no ninho e procuro não atrapalhar o momento de concentração da equipe. Marcelo então espicha o


pescoço, com o olhar me busca do lado de fora do círculo e me pergunta: “Tu reza, cara?”. Confesso que não esperava, mas respondo de bate pronto. “Rezo!”. “Então entra ai se não o pessoal vai achar que tu é ateu!”, brinca o treinador. Depois do “Pai Nosso”, a roda se fecha. Percebo que a próxima ação é o grito de guerra. Dessa vez eu apenas observo do lado de fora. Preleção encerrada. É hora do jogo. Os jogadores começam a tomar o rumo do vestiário. O adversário já faz algumas atividades de aquecimento em quadra. A pequena, mas barulhenta torcida já presente no ginásio levanta e grita o nome de um por um. Eles acenam e buscam retribuir o carinho. Novamente a sensação de fazer parte da equipe toma conta. Me sinto pronto pro jogo. Apesar da preparação, Marcelo não me relaciona para partida. Acredito que por opção técnica. Tudo bem. É hora de voltar pra arquibancada e ser novamente mais um torcedor. Ginásio lotado. Sinto que torcida joga junto com time. Nós, vibrantes. Eles, concentrados. Para cada ponto uma vibração. A cada saque dos mineiros, a vaia ecoa pela quadra. Tudo parece dar certo. Saque entrando. Bloqueio encaixado. O primeiro set é nosso. Ganhamos dos caras que são campeões mundiais. Épico! Por mim, jogo poderia terminar assim. Mas não é possível. É preciso ter, no mínimo, mais três set’s. Nas arquibancadas a intensidade segue a mesma. Mas o adversário é muito experiente. Eles voltam mais atentos pro jogo e não repetem os mesmos erros que cometeram anteriormente. O jogo fica difícil e eles empatam a partida. Ao longo da partida o Cruzeiro vai impondo seu ritmo, dando menos chances ao Canoas e vencem mais um set. É perceptível que torcida sente que a vitória fica distante. Dentro de quadra não tem bola perdida. Dá gosto ver. Apesar de todo o esforço da equipe gaúcha, a vitória fica com o time de Minas Gerais. No final da partida, aplausos. Nada mais justo que o reconhecimento por em momento algum desistir do principal objetivo: a vitória.

Sonho realizado: durante o treinamento, por alguns momentos, repórter se tornou jogador de vôlei profissional

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Desde que me conheço por gente...”. Essa frase, normalmente, antecede a uma fala de algo que sempre nos acompanhou. Acredito ser essa minha relação com o vôlei. Afinal, acompanho o esporte desde a infância. Não digo que acompanhar e participar da preparação de uma equipe profissional por dois dias seja um sonho realizado. Seria um exagero. Mas foi uma oportunidade única . Por alguns momentos realmente me senti um jogador profissional. O projeto do Vôlei Canoas se instalou na cidade em 2014. Desde então, acompanho como torcedor. Essa proximidade com o tema tornou a construção da reportagem algo natural. Em momento algum senti que estava perdido ou com dificuldades. É claro que o mundo profissional fora das salas de aula, por vezes, não nos possibilitará essa facilidade. Mas, se você é um aluno recém chegado na disciplina de Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial, a dica que eu dou é essa: escolha um tema que tenha afinidade. A escrita flui sem maiores transtornos e o repórter se diverte. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Sociedade (pouco) inclusiva Superação de aspectos culturais é necessária para o sucesso de projetos de inclusão de pessoas com deficiência TEXTO E fotos de Arthur Isoppo

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s nuvens carregadas escondem o sol. O som das gotas de chuva no telhado de casa embalam o sono gostoso. O despertador toca, mas João resolve que aproveitará mais cinco ou dez minutinhos da cama quentinha. Dona Rosa bate com força duas vezes na porta do quarto. Antes que a terceira pudesse ser ouvida, João pula da cama. “Já estou quase pronto mãe”, grita o garoto. A cena se repete todas as manhãs. Ele corre de um lado para o outro no quarto à procura do caderno com as lições de casa, com a escova de dentes na boca, ao mesmo tempo em que procura a meia perdida entre as cobertas. Rosa reclama que o café esfria e que João vai perder o ônibus para escola. “Faltam cinco minutos, João. Vai se atrasar para aula mesmo? Vê se não se esquece de pegar o guarda chuva!”, fala Rosa preocupada, enquanto cuida o ônibus e o relógio. Apesar de fictícia, a história é comum e se repete debaixo do teto de muitas casas. Mudam apenas as escovas e as meias perdidas. Para Taís Silva da Silva, 39 anos, as coisas são diferentes. A chuva significa que mais uma vez não poderá trabalhar. Queria ela que fosse apenas ganhar aqueles cinco ou dez minutinhos a mais de sono. A realidade é que as dificuldades provocadas pelo uso de cadeira de rodas lhe impedem. “Se está chovendo muito eu nem vou trabalhar. Até para pegar carona é difícil. Quem for me buscar vai se molhar e me molhar para entrar no carro”, comenta sobre suas dificuldades em se deslocar até o serviço nos dias de chuva. Já a garoa não lhe desencoraja. “Se a chuva for pouca eu pego meu guarda-chuva e vou igual”. Taís demonstra em suas atitudes o valor que dá para sua auto suficiência. Prefere sempre passar cada degrau por conta própria. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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O destino e seus desafios

Um terrível acidente de trânsito, 12 anos atrás, mudou o destino dela. Em uma viagem para São Paulo, o caminhão guiado por seu ex-marido acabou se chocando atrás de outro veículo de transporte de carga. O impacto provocou lesões que lhe deixaram sem os movimentos abaixo do umbigo. Mãe de dois filho, Taís escolheu lutar. Venceu obstáculos e limitações que a nova vida lhe impuseram. Para ela, o mundo já exclui suficientemente as pessoas que têm deficiências. Faz de sua missão não contribuir com essa segregação. Formou-se em Direito, e hoje cursa uma segunda graduação, Licenciatura em Letras. Estuda, trabalha e sustenta a casa. Para Taís cada degrau, buraco ou valinho, que atrapalham o rolar das rodas de sua cadeira, servem como motivação para não desistir dos sonhos. “O deficiente deixa de existir para a sociedade. É automático, pois tu deixa de circular pelas ruas. E a gente precisa lutar contra isso. Se nem mesmo nós cadeirantes estivermos dispostos a buscar algo melhor, quem estará?”, questiona.

projeto de acessibilidade

Município de pouco mais de 40 mil habitantes, no Litoral Norte gaúcho, Osório é considerado exemplo no Estado no que diz respeito à acessibilidade. A partir de 2005, um projeto defendido pelo Ministério Público, estabeleceu acordos e compromissos com o poder executivo e deu início a um processo perm a n e n t e d e e vo l u ç ã o. “O papel do poder municipal com relação às políticas de acessibilidade giram em torno da legislação federal, que disciplina as normas de acessibilidade nos prédios de uso coletivo e de uso comum”, explica a procuradora do município de Osório, Janine Costa dos Santos Zart.

Câmara de Vereadores, sede administrativa da prefeitura, escolas municipais, postos de saúde, biblioteca pública, todos receberam obras de adaptação a fim de proporcionar total direito de ir e vir aos cidadãos osorienses. As mudanças, aos poucos, também se refletem pelas ruas da cidade, praças e locais de circulação. “Vários instrumentos são necessários. As pessoas estão muito acostumadas com a rampa, ou com o banheiro acessível, mas existem outras necessidades que precisam ser atendidas, como déficit de visão e altura, e aos poucos a gente vem alterando esta cultura”, finalizou a procuradora. Apesar de entender que se trata de um processo gradual, Janine demonstra otimismo a partir da mudança cultural que já pode ser percebida. “Quando começamos nesse projeto, víamos muitos laudos técnicos de engenheiros dizendo que era inviável a execução das alterações. Hoje, com a exigência mais rigorosa, as pessoas estão achando alternativas para respeitar as leis de acessibilidade, e isso é uma evolução”, argumentou.

Rua por rua, a única opção de Taís é andar pela beira da estrada, porque a falta de acessibilidade afeta a vida da cadeirante


Osório, em que o poder executivo busca oferecer amparo aos deficientes, as dificuldades ainda são uma realidade. Programas, projetos e leis de acessibilidade fomentam o fim da marginalização das pessoas com deficiência, porém a sociedade ainda precisa incorporar a ideologia inclusiva como parte de sua cultura, para que a legislação se faça mais eficaz. Hoje, a missão será cumprida. Taís irá trabalhar. Em dias de chuva, a história não é a mesma. Eles evidenciam ainda mais as falhas no acolhimento e na inclusão de pessoas com mobilidade reduzida ou deficiência. Os dois quilômetros de seu trajeto, se tornam distantes demais debaixo d’água. Nem mesmo sua incrível força de vontade vence essa batalha. As primeiras leis com a finalidade de promover acessibilidade para pessoas com deficiências foram instituídas no país a partir dos anos 2000. Em 17 anos, já é possível ver mudanças positivas. Porém, as condições ideais ainda estão longe de serem alcançadas. Taís é mais uma entre 45 milhões de brasileiros que têm algum tipo de deficiência e que lutam diariamente para viver suas vidas junto à sociedade. Quando questionada sobre como vê Osório neste processo ela resume: “Nunca será 100%. Isso é fato. Em nenhum lugar você vai achar 100% de acessibilidade”.

Uma vida pelas beiradas

Moradora da Rua Hofman, Taís fica distante dos locais onde as adaptações de acessibilidade já começam a ser vistas com mais frequência. A rua fica no bairro Parque do Sol, que pertence ao município, mas que é dividido pela RS 030, estrada que liga a Região Metropolitana ao Litoral Norte gaúcho. Aproximadamente dois quilômetros dividem sua casa da sede da Prefeitura Mu-

nicipal de Osório, onde realiza estágio não obrigatório. A cadeira motorizada é o único apoio. Ela tenta viver da forma mais independente possível. Valente para lutar em mundo que parece não estar preparado para tanta determinação. Certamente, não seria fácil. Nada é fácil. O transporte público não vai até seu bairro. E mesmo que fosse, a frota de veículos da empresa não é 100% adaptada. “Ele (ônibus) não vai onde eu moro. Então, de qualquer forma, preciso atravessar a estrada para chegar a parada mais próxima. E nem todos os ônibus são adaptados. Tu está lá esperando e quando vê é surpreendida”, explica Taís sobre a desistência de utilizar o transporte público como locomoção. Faz o trajeto sozinha. Rua por rua, sua única opção é andar pela beira de estrada. Seria diferente se as calçadas fossem planas e uniformes, e se houvessem rampas de entrada e saída, sem placas obstruindo, ou meios-fios mal colocados. É possível contar nos dedos as quadras em que pode fazer uso da calçada. Mesmo em cidades como

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Involuntariamente, caminhar pelas ruas de Osório, cidade onde eu vivo há mais de 20 anos, ganhou novas percepções a partir do olhar que a cadeirante Taís me ofereceu. A reportagem da PI foi um aprendizado único. Muitas vezes acabamos vivendo dentro de nossas rotinas e deixando passar despercebidas situações que estão embaixo de nossos olhos. Ruas em que passo distraidamente todos os dias para trabalhar, com a correria da rotina, ocultavam as dificuldades que pessoas portadoras de deficiências físicas ou mobilidade reduzida são submetidas. Quando tomei conhecimento do caso de Taís, o sentimento que transpareceu foi do filho que é repreendido pelo pai, por algo que fez, mas que nem percebeu. Cada calçada desnivelada, rampa ou buraco, que podem significar no máximo um tropeção, para um cadeirante, tem outra dimensão. Nem todos têm a vontade e determinação de Taís, e acabam desistindo de conviver normalmente junto à sociedade. Desistem de estudar ou trabalhar. Desistem de lutar. Taís disse uma frase que marca esse trabalho. “Se me esconder e ficar em casa, quem vai lembrar que existo?”. O questionamento retumbou em minha mente por dias. Assim como Taís em Osório, outras pessoas, em outros lugares, passam por dificuldades parecidas ou até piores. E isso é grave. Como futuro jornalista entendo que faz parte da profissão dar voz para essas pessoas e mostrar problemas que passam despercebidos. Agradeço pelo aprendizado que essa experiência proporcionou. O ensinamento que fica é de ter um olhar mais atento e questionador, e menos ofuscados pelas rotinas da vida. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Ligação que salva vidas Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece apoio emocional gratuito e prevenção do suicídio Por Carolina Schaefer. fotos de Amanda Cunha e Carolina Schaefer

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AMANDA CUNHA

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lvio Philippe era um menino perfeito. Cresceu como aquela criança que cumprimentava diariamente o guarda da escola. Mantinha o quarto arrumado, fazia os deveres e só assistia a programas indicados para sua faixa etária. Responsável, tinha carro desde os 18, além de um cartão de crédito que só utilizava o necessário. A partir de 2010, aos 20 anos, Élvio foi descrito como um cometa “que passou pela terra e agora é uma estrelinha a brilhar no céu”. Os últimos dizeres estão escritos na sua lápide. Os planos dele foram interrompidos em 2 de agosto de 2010, quando o jovem, sem sucesso, tentava retomar um namoro terminado há 15 dias. A discussão via internet com a ex, às 17h15, fez com que Élvio fosse até a mãe, desse um beijo e uma última lambida em seu rosto. Quando voltou para o quarto, o adolescente marcou seu

irrevogável ato de desespero, saltando do 12º andar de onde morava, em Porto Alegre.

A perda de tudo

Marina Elizabete Araújo, mãe do rapaz, tinha vontade de adotar uma criança. Decidiu, em 2000, pegar a guarda de um sobrinho. Durante os trâmites legais para criar o menino, com quatro anos na época, ela descobriu o nome da criança e ficou surpresa com a coincidência: Élvio Felipe, o Alemão, tinha o nome em homenagem à Élvio Philipe, seu filho, com 10 anos na época. Em agosto de 2010, Felipe tinha 14 anos e foi responsável por avisar praticamente todos os amigos do irmão sobre sua morte. “Eu não lembro de muita coisa, mas sei que eu estava com o pé descalço lá embaixo, onde Felipe me alcançou um chinelo, na calçada. A polícia já tinha cercado a área e eu não conseguia chegar perto do meu “Pretinho”, lembra a mãe. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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A busca por entendimento

Após o acontecimento, Marina começou a estudar a doutrina espírita para entender o motivo de o filho ter escolhido o suicídio como única e última solução. Quase sete anos depois do ocorrido, falar sobre o filho ainda a deixa sem ar. Com o choro engasgado dentro de si, ela se esforça para dizer que sua antiga versão, que existia até o dia dois de agosto, era o reflexo de uma mulher sobrevivente. A Marina de hoje, é uma que está aprendendo a sobreviver. “Eu tenho um plano de escrever sobre o que passei, mas preciso de tempo para poder tratar isso sem ser uma coisa tão emocional. Que ajude. Sem o Élvio foi a perda de tudo: do rumo e

até do sentido do que é vida. A primeira coisa quando tu acorda, abre o olho e vai lembrar é que teu filho não está”, comenta. Marina já ouviu falar sobre o CVV e já foi convidada para ser voluntária. Hoje, tenta buscar equilíbrio para depois pensar na possibilidade de atender outras pessoas.

Quebrando o estigma social

Julia Schäfer é psicóloga formada pela Unisinos e mestre em Psicologia com ênfase em Cognição Humana pela PUCRS. Ela comenta que ao longo da vida, desenvolvemos uma série de estratégias de enfrentamentos e habilidades em soluções de problemas. Isso elabora um repertório de ferramentas para utilizar nas mais variadas situações. “Para algumas pessoas, esse repertório é mais limitado, pois se tem alguns déficits no enfrentamento de situações, o que desperta um sofrimento emocional tão grande, tornando-se difícil compreender as próprias emoções. O suicídio surge como uma alternativa, pois não foi pensado em outras saídas, ou seja, construindo outras maneiras de enfrentamento”, explica. Segundo Julia, o próprio estigma social associado ao suicídio é o que impede muitas pessoas de buscarem ajuda. Falar sobre o tema é uma das maneiras de quebrar o estigma que não envolve só o ato, mas os transtornos mentais no geral. “A gente quer saber quais são os riscos, como identificar sinais em pessoas pró-

Fique atento aos sinais A psicóloga Julia Schäfer elaborou alguns sinais de comportamentos que podem levar ao suicídio. Nem todos estarão presentes em uma única pessoa. Confira abaixo: Isolamento social e retraimento social: quando a pessoa se isola bruscamente. Privação do sono ou insônia: geralmente quem dorme menos fica mais cansado e vulnerável às emoções. Mudanças drásticas de humor: é possível que quem esteja ao redor perceba facilmente esse sinal. Mudanças de rotina: parar de frequentar lugares que gosta. Desistir de tarefas, aulas e lazer. Perda de interesse: por atividades, pessoas, coisas que antes eram extremamente interessantes. Verbalizações: “estou cansado, não aguento mais, queria dormir e não acordar mais, queria desaparecer” - sugere que algo está acontecendo. Despedidas: resolver pontas soltas, ajustes financeiros, doar objetos pessoais, além de falar em tom que sugere despedida. Pessoas deprimidas: mudança repentina em pessoas que já estão deprimidas. “Está tudo ótimo, minha vida está perfeita” pode sugerir a conformidade com o suicídio. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Carolina Schaefer

Hoje, Marina entende que não existem crianças perfeitas. “Depois do que aconteceu, eu e minha psicóloga conversamos muito. Ela me explicou que pessoas com o QI muito acentuado têm dificuldades de lidar com o emocional. Talvez ele precisasse ter um lado emocional mais estimulado. Talvez ele fosse imaturo emocionalmente”, comenta. Infelizmente essa é apenas mais uma história no país que registra morte de pessoas por suicídio a cada 45 minutos. Élvio, porém, não é apenas uma estatística: continua sendo um filho amado de uma mãe que ainda não se desfez de seus pertences. Talvez, se ele conhecesse o Centro de Valorização da Vida, o destino dele e de Marina fosse diferente.

ximas, como ficar atento, a forma de prevenção e lugares para se buscar ajuda. Informações sobre isso são estratégias que auxiliam na prevenção”, ressalta. As pessoas que apresentam sinais suicidas, não necessariamente continuarão com eles. Porém, a cada tentativa de suicídio, as chances tentar de novo e conseguir, aumentam. “No momento que os comportamentos estão no meu repertório, é uma tendência eu recorrer a eles sempre que houver sofrimento. Mas muitas vezes os problemas são associados a situações específicas, como a perda de um emprego, quando eu resolvo isso, o comportamento cessa”.

CVV, bom dia

Faltando dois dias para o outono, chuviscava no 18 de março, um sábado. Levantei cedo da cama com uma certa dificuldade e parti para Novo Hamburgo, onde começaria a imersão mais profunda da minha vida: o curso para ser voluntária do CVV. Fantasiava com o final do sábado, onde ganharia o certificado por ter completado o programa. Meu primeiro erro. A minha vivência para a revista foi transformada em 12 encontros, durante três meses. Carregava em mim a responsabilidade de crescer dentro do Programa

A Seleção de Voluntários em Novo Hamburgo é realizada uma vez por semestre e para participar é preciso ter disponibilidade de horário e ser maior de 18 anos


AMANDA CUNHA

Élvio Philippe tinha sede de cultura: era formado em Produção Audiovisual e, quando faleceu, cursava Publicidade e Propaganda e estava terminando uma pós na área cinematográfica

de Seleção de Voluntários (PSV) para cumprir meu objetivo de realizar apoio emocional e prevenção do suicídio de forma sigilosa e gratuita por telefone. Para me adaptar ao mundo do CVV, precisei me organizar e disponibilizar 24 horas do meu dia às atividades da semana anterior. É desafiante pensar que pequenas ações podem mudar tanta coisa na forma como tu começa a enxergar o mundo: cheio de esperança em pessoas que tu nunca vai ver fisicamente. Mais da metade do curso é focado em simulações de atendimentos via telefone. O objetivo é preparar o futuro voluntário para qualquer adversidade ou assunto que surgir no atendimento. Quando meu trabalho definitivamente começar, precisarei disponibilizar quatro horas semanais para plantão. Você aprende que não deve dar conselhos, em hipótese alguma, num atendimento. E leva isso para a faculdade, para o convívio entre amigos e família. Você observa sinais em conhecidos. E se dispõe a ajudar. Durante o curso, chamei pessoas do meu convívio em redes sociais, apenas para reforçar que eu estava ali, caso precisasse. Desenvolve-se uma rede de empatia que ultrapassa os suportes do programa.

188: A linha da vida

Em setembro de 2015 foi disponibilizado em fase de teste e com a intenção de ampliar para todo território nacional, o atendimento pelo telefone 188. O número funciona só no Rio Grande do Sul, sem cobrar o custo da ligação. O investimento reflete-se ao fato de o Estado ser líder em estatísticas de suicídio no Brasil. Julia Schäfer comenta sobre a importância da instituição, que existe há 55 anos no país. “Saber que existe um serviço que 24 horas por dia disponível para as pessoas em um momento de desespero, é bastante confortador. Também pela seriedade do serviço. Os voluntários são instruídos, informados e instrumentalizados do que fazer”, reitera. A psicóloga comenta que utiliza o CVV na prática clínica, passando o contato do atendimento para alguns pacientes. “Sempre há um plano para pacientes que apresentam risco. Afinal, nem sempre nós terapeutas estamos disponíveis”, explica. Por ano, a organização atende mais de 1 milhão de ligações em todo Brasil. Os números bateram recordes diários com a distribuição da série produzida pela Netflix, 13 Reasons Why, que fala sobre suicídio. Os atendimentos via telefone subiram em mais de 100% desde 31 de março de 2017, sendo nos e-mails o aumento de 455%.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A imersão no mundo do voluntariado não era novidade para mim. Por isso, fui cheia de “certezas” para o primeiro encontro do CVV. E foi muito mais do que eu esperava. Foi entusiasmante, extremamente triste e mais longo do que esperava (até a publicação da revista, faltavam dois encontros para minha formatura). Era um misto de emoções que me amedrontavam, por ser completamente centrada em mim e no meu equilíbrio (que não existia mais). Enquanto todos aprendiam, com dificuldade, a ouvir sensivelmente, eu aprendia, com extrema complexidade, a falar. Me vi perdendo o controle e recuperando a partir do momento em que percebi da necessidade de expor o que me incomodava. É gratificante pensar que ajudarei tantas pessoas que precisam ser ouvidas e que não enxergam uma saída. É angustiante pensar que não falamos sobre o suicídio como prevenção e caso de saúde pública. Nessa parte, me lembro de Marina, que gentilmente me atendeu e que presenteou a mim e a minha mãe com livros tão cheios de carinho e significado. Espero ter ajudado contando um pouquinho de sua história.A oportunidade que a revista PI me proporcionou não se limita nestas páginas. Continuo me aventurando, com responsabilidade, no mundo do voluntariado. Tentando ser melhor e querendo o próximo melhor. Sem julgamentos. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Vivendo às cegas REPÓRTER EXPERIMENTA TRABALHAR SEM ENXERGAR PARA VIVER UM MOMENTO DA VIDA DE UM DEFICIENTE VISUAL Por Paula Câmara Ferreira. fotos de AMANDA OLIVEIRA

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corde de manhã, mas mantenha os olhos fechados. Levante da cama. Escolha uma roupa no guarda roupa apenas usando o seu tato. Mantenha os olhos fechados. Vá ao banheiro, faça a higiene matinal, penteie os cabelos e não veja seu reflexo no espelho. Siga para cozinha, tome café e vá trabalhar. Você toparia o desafio? Eu topei e gostaria de convidar você a descobrir o que aconteceu.

Como seria não enxergar?

Era uma terça-feira tão normal como qualquer outra. A não ser pelo fato que estava me preparando para ficar sem enxergar. Por sorte, não estava sozinha. Neste curto trajeto de abrir mão do sentido da visão para entender mais sobre a deP RI M E IRA I M P R E S S Ã O 2 2 J U L H O / 2 0 1 7

ficiência visual, tive um simpático guia: Flávio da Costa, 54 anos, aposentado e vice-presidente voluntariado da Associação Dos Deficientes Visuais De Novo Hamburgo (Adevis-NH). Bondoso e paciente, contou detalhes da sua história de vida e fez graça ao mostrar suas habilidades no notebook e no celular. Flávio convive com problemas na visão desde o nascimento. Durante a infância e até o início da vida adulta, passou por diversas cirurgias para tentar reverter o quadro de glaucoma, porém, não obteve sucesso e perdeu totalmente a visão aos 27 anos de

idade. “Depois de perder a visão fiquei um bom tempo recluso. Na época, não admitia, mas seria uma depressão. Mas ao decorrer dos anos percebi que faltava alguma coisa pra mim”, confidencia o vice-presidente. Ele também conta que foi nos anos 2000 que resolveu mudar o rumo de vida. Em 2005, ele se tornou usuário da Adevis, onde frequentou o grupo de convivência, fez orientação e mobilidade e estudou braile e informática. O vice-presidente conta que além do que aprendeu na instituição, utiliza muito da sua intuição para se locomover. “Eu não sei se é


Flávio da Costa, 54 anos, vice-presidente da Adevis -NH, convive com a deficiência visual desde o nascimento P RI M E IRA I M P R E S S Ã O 2 3 J U L H O / 2 0 1 7

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um sentido, mas utilizo muito a intuição. Tanto que se estou caminhando no meio fio e tem um carro estacionado, eu percebo o carro lá na minha frente, e desvio. Quem me vê de longe acha que eu enxergo”, explica. Ele acrescenta que o olfato, o tato e a audição aumentam muito e servem de referencia para que ele possa realizar as tarefas do dia-a-dia, como sair de Estância Velha e ir a Novo Hamburgo, todos os dias para trabalhar.

O desafio

Feitas as apresentações, partimos para a prática da pauta. A ideia inicial era passar o dia sem o sentido da visão, mas por questões de segurança apontadas pelo meu instrutor, diminuímos para realizar a tarefa de trabalhar no computador. Logo pensei, vai ser fácil. O que mais amo na vida é escrever. Comecei com a máquina de escrever (ainda na infância e hoje o objeto que mais uso é o computador). Adoro digitar nele, é uma sensação prazerosa ouvir o som das teclas ao serem tocadas pelos meus dedos. Mas, adianto para vocês, que eu estava enganada em relação à facilidade de cumprir o desafio. Flávio executa muitas tarefas no computador utilizando o programa de computador Dosvox, um sistema operacional que se comunica com o portador de deficiência, lendo a tela de uma forma simples. Isto quer dizer, o programa foi criado especificamente para este público, até a utilização de voz humana gravada para deixar agradável a experiência. O usuário do programa pode realizar qualquer coisa no computador, mas a minha tarefa era escrever um texto e depois imprimi-lo em Braile, utilizando as mesmas ferramentas que ele. De pé na sala principal da Adevis, tirei meus óculos de grau, fechei meus olhos e caminhei devagar, tateando o ar, até encontrar a cadeira do computador. Sentei lentamente e saí empurrando aos pulinhos a cadeira para chegar bem perto da mesa. Flávio ajudou a posicionar minhas mãos no teclado e eu devia digitar meu nome, para começar. Com o coração na boca, eu travei, não conseguia me localizar. Onde as letras estavam? P RI M E IRA I M P R E S S Ã O 2 4 J U L H O / 2 0 1 7

Suspirei. Meu guia, pacientemente me mostrou que as teclas F e J, possuem uma marcação, que fica em alto relevo, eu deveria me guiar por elas. Se isso me facilitou? Não mesmo. Eu precisava de mais ajuda para iniciar, a fotógrafa Amanda, começou a me orientar: “a letra que você quer esta na esquerda do dedo do meio, sabe?! O dedo feio...”. Rimos, eu parecia uma criança sendo alfabetizada. Enquanto eu ia vagarosamente digitando, ouvindo computador soletrar as letras, o meu orientador me contou que para dominar o uso do computador, primeiro, decorou a posição das letras no teclado. “Ao todo, levou um ano de curso para aprender a mexer no computador”, completa. Aos poucos, lentamente, as palavras foram surgindo, logo não precisei de tanta ajuda. Durante o processo, esqueci-me de colocar letras maiúsculas, fui repreendida e tive que arrumar. Eu sabia que o Caps Look tinha um formato diferente e o Back Space também, dei um jeito de localiza-las passando os dedos nas extremidades das teclas. A partir disso, eu sabia onde estava à letra “A”. Além disso, toda a tecla que eu pressionava o computador falava comigo, letra minúsculas voz feminina e letras maiúsculas voz masculina. Com os dedos posicionados na letra “F” e “J”, descobri que às vezes você quer apertar a letra “I”, mas faz pressão demais no dedo e diversas vezes digitei “J” querendo outra letra. Riamos sempre que eu fazia isso. E Flávio contou que acontecesse isso com ele também. Quando eu abri mão do sentido da visão, eu passei a “ver” como minha vida estava no automático. Agimos sem pensar o tempo todo. Estamos tão consumidos por nós mesmos que ligamos o piloto automático e seguimos em um ritmo frenético e descontrolado. Principalmente nas tarefas, consideradas simples, nosso corpo simplesmente faz e a gente se deixa levar. Eu senti na pele, na ponta dos dedos e com os olhos fechados, que minha mente não registrou muitas das atividades que eu deveria fazer muito bem, como digitar em um computador.

Texto do desafio: Paula Câmara Ferreira e Amanda de Oliveira estão visitando a Adevis-NH no dia 4 de abril de 2017. Elas são alunas do curso de Jornalismo da Unisinos. Paula está aqui na Adevis-NH para buscar subsídios para a publicação da Revista Primeira Impressão. Amanda está fazendo a cobertura fotográfica da matéria. Uma experiência incrível! Flávio da Costa, vice-presidente da instituição, está dando assessoria para elas.


A cegueira no Brasil

Ao fechar meus olhos, para não enxergar por curto período de tempo, pude sentir como é difícil para quem convive com a deficiência visual todos os dias. No Brasil, segundo o Censo de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e seis milhões com baixa visão. O número é alarmante, só não é mais assustador do que a falta de acessibilidade das cidades para com os deficientes visuais. Uma simples pesquisa no Google revela inúmeras denúncias e notícias sobre o problema de acessibilidade para esta classe. Odilon Fernandes de Souza, 74 anos, presidente voluntariado da Associação de Cegos Louis Braille (Acelb), compara que viver sem acessibilidade é como tirar os Whatsapp dos jovens. De acordo com o presidente da Acelb, muito já foi feito para melhorar a qualidade de vida dos deficientes visuais, mas ainda há muito para ser feito, para alcançar o ideal de acessibilidade para todos os tipos de deficiência. “Só sente a dor do calo, quem os tem”, completa.

Odilon acrescenta que lutou muito pelos deficientes. “O que me toca muito, é que eu sendo uma pessoa com deficiência, eu tenho uma trajetória que serve como exemplo para muita gente”, conta emocionado. Ele contribuiu para a criação do Conselho Estadual de Direito da Pessoa com Deficiência, onde foi vice-presidente, presidente e conselheiro. Depois ajudou na concepção do projeto Casa Lar do Idoso, um lugar onde pudesse acolher idosos portadores de deficiência. Participou também da implementação do passe livre intermunicipal gratuito para a pessoa com deficiência. “Olhar para trás e dizer: eu deixei um legado. Um legado que vai ajudar muitas outras pessoas”, acrescenta. De acordo com Eva Arrieche, 68 anos, 1º secretária voluntariada da Acelb, portadora de deficiência múltipla (causada por artrite reumatóide na infância) e baixa visão, a acessibilidade permite que a pessoa se sinta livre. Ela acrescenta que é muito importante que as pessoas compartilhem suas historias para incentivar as outras. “Quando a gente fala não é que a gente queira se mostrar, mas queremos estimular as pessoas”, conclui.

Flávio ensina a repórter a utilizar o programa Dosvox

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Eu fechei meus olhos numa brincadeira inocente de imitar uma realidade tão séria. A proposta da pauta era “Um dia Como”, eu escolhi vivenciar alguns momentos como deficiente visual. Para realizar o combinado, eu acompanhei a rotina de duas instituições de apoio aos portadores desta deficiência. É muito importante ressaltar que essas instituições sobrevivem de ajuda, seja governamental ou de doações da sociedade. O trabalho desenvolvido por eles é muito sério e foi gratificante poder descobrir um pouco mais sobre a ação que eles desenvolvem a favor das pessoas com deficiência visual. Fui muito bem recebida e acolhida durante o desenvolvimento da reportagem, além que, posso salientar que os poucos momentos que vivi me mostraram que um repórter tem uma responsabilidade muito grande, quando uma pessoa aceita compartilhar a historia dela com você, há um vinculo de confiança sendo gerado. E ao escrever a matéria é preciso honrar este vinculo. Espero ter cumprido meu papel. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O 2 5 J U L H O / 2 0 1 7


O esforรงo diรกrio do maratonista

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Adão Camões, que hoje tem 66 anos, venceu a primeira maratona Internacional de Porto Alegre, em 1983 Por Rafael Erthal. fotos de Amanda Oliveira

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dão Camões esbanja saúde e autoestima. Formado em Educação Física pela Feevale, hoje, aos 66 anos, o atleta e professor de atletismo ainda se mantém em bom nível físico. Geralmente realiza o treino pessoal diariamente. O ponto de largada do percurso é a própria casa, no bairro Rio Branco, em São Leopoldo. A linha de chegada é o Complexo Esportivo da Unisinos. É lá onde ele ministra as aulas de atletismo, nas terças e quintas-feira à tarde. A Unisinos é o cenário principal dessa história. É lá onde ele passa a maior parte do tempo se dedicando ao esporte. Os treinos pessoais variam durante as semanas. O atleta participa de eventuais provas, geralmente aos domingos, e isso implica na mudança dos dias de descanso e treino. “Às vezes eu tenho prova aos sábados e até mesmo fora do Estado. A partir de cada prova tenho que me adaptar com a minha rotina semanal e diária”, complementa Adão Camões. Essas provas não são de âmbito profissional, e são realizadas esporadicamente ao longo do ano. Nessa rotina, algumas pessoas são marcantes na vida de Adão. Marlon Camões, seu filho de 29 anos, também têm trajetória no esporte. Iniciou no futsal com apenas 10 anos, pelo Sesi. Conforme foi ficando adulto, começou a acompanhar o pai nos treinos de atletismo e acabou entrando aos poucos nesse meio. Hoje em dia, ele é um dos atletas que treina semanalmente com Adão, na Unisinos. Outras duas pessoas que o acompanham diariamente e são muito importantes para ele: Washington de Leon, 54, amigo de longa data. Nascido no Uruguai, ele chegou em São Leopoldo em 1986 e reside atualmente em Novo Hamburgo. “Eu já conhecia a história de Adão, e queria entrar para o esporte. Conheci ele pessoalmente em 2007, e desde lá, treino junto com esse cara que é uma inspiração para mim, e tenho certeza que para as pessoas ao seu redor também” ressalta Washington. A terceira figura é Richard Pacheco. Aos 31 anos, e em ótima forma física, iniciou no atletismo muito jovem, com 17 anos, em Esteio. Adão entra nessa história em 2009, quando foi fazer um treinamento para crianças carentes na cidade Richard. Foi lá que ele descobriu esse talento. Desde então, ele se tornou P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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mais um membro dos treinamentos que Adão realiza na Unisinos.

Dificuldades no atletismo

A decepção no semblante demonstra a frustração do atleta. No quesito alimentação, não hesita em afirmar que a situação da maioria dos maratonistas brasileiros é precária. Segundo ele, os atletas não têm o devido apoio, e nem ao menos patrocinadores. Com isso, dificulta uma tentativa de eles se elevarem a um nível profissional. Por conta própria, é difícil para um maratonista realizar um planejamento a longo prazo, que às vezes chega até um ano de preparação constante e requer cuidado médico, físico e nutricional. Para ele, é assim no Rio Grande do Sul, não só para o maratonista, mas para o esportistas em geral. A situação delicada quanto a apoios financeiros assombraram-o ao longo de toda carreira. O atleta nunca teve um patrocínio, embora tenha uma longa vivência no esporte. Recebeu contribuições de terceiros, que não colaboram geralmente com recursos financeiros, e sim com recursos próprios, como equipamentos. “Às vezes eu treinava de dois a seis meses. Quando chegava na hora de receber o apoio, eu ficava na mão e acabava tirando dinheiro do próprio bolso para conseguir todos os recursos necessários”, ressalta Adão. Hoje em dia, os apoiadores ajudam na área da saúde e com alimentação.

Sem ajuda: mesmo com a dedicação de Adão, ele nunca recebeu um patrocínio

A academia Kátia Paul Koche, por exemplo, é o principal. Eles colaboram com os eventuais reforços musculares, quando necessário. Faça chuva, faça sol, o atleta passa a maior parte do tempo envolvido com atividade física e isso leva-o a um elevado desgaste muscular. Adão não frequenta nutricionista. A ajuda fica por conta da Loja Divina Terra, que oferece descontos em seus produtos naturais. A lancheria Podium, localizada no complexo da Unisinos, também colabora com alguns lanches para ele e seus alunos. O auxílio que ele recebe é importantes porém é menos do que realmente necessita. Há toda uma preparação por trás de cada história, que está carente de atenção.

Histórias do passado

Em meio à conversa, o atleta é muito cumprimentado pelas pessoas que frequentam o Complexo Esportivo da Unisinos. Realmente, uma figura marcante e muito conhecida. Ele considera que a universidade possibilitou aos atletas de São Leopoldo e região a aumentarem seu nível de competição. Principalmente no atletismo. “A estrutura é muito boa. A pista, além de ter um ótimo material, é bem completa. Para eu que ministro aulas, não tem como analisar a desenvoltura de meus alunos, e minha própria, nas ruas, com toda a irregularidade do terreno”, afirma Adão. Ao passar pelo Quartel, 16° GAC AP, de São Leopoldo, na Avenida


Unisinos, o maratonista revela a história por trás da conquista da primeira maratona de Porto Alegre. Ele não estava com preparo para realizar a prova. Jamais imaginaria ser convidado. “O professor Élio Carravetta, que era o preparador físico do Internacional na época, me convidou de última hora. Eu não havia nem tomado meu café da manhã, e recém estava chegando de uma festa que tinha ido na Sogipa. Nem uniforme eu tinha. Com todas as dificuldades, uniforme emprestado, eu consegui chegar em primeiro lugar, uma coisa que nunca passou pela minha cabeça”, conta Adão. Naquela época, era tudo diferente. Segundo ele, alimentação dos atletas era muito desregradas e não havia muita informação. Nos dias de hoje, há diversos tipos de dieta, alimentação balanceada, roupas mais sofisticadas, sapatilhas propriamente feitas para a maratona. “Quando eu fui disputar a prova, eu nem sabia que era uma maratona. Simplesmente disseram pra chegar em primeiro que eu vencia”, afirma o maratonista. Essa foi a única prova que ele venceu na carreira. Porém, não a única em que subiu no pódio. Logo no ano seguinte, em 84, ficou em segundo colocado na maratona realizada em Curitiba. Além dessa, foi vice em mais duas competições realizadas no Rio de Janeiro. Seus tios sempre foram atletas. Não profissionalmente, mas sempre apreciaram o futebol e praticavam. Adão cresceu nesse meio, e sempre se identificou com a palavra “esporte”. Mas, foi somente quando ingressou no Exército Brasileiro que teve a oportunidade de se tornar um maratonista. Seu início no atletismo foi a partir de uma vaia do público. Participando de um revezamento 4x100, ele estava prestes a vencer a prova. Seu companheiro lhe passou o bastão com uma vantagem de aproximadamente 50 metros. Nessa situação, aconteceu o improvável. Ele estava prestes a ganhar a prova, e quando recebeu o bastão, caiu no chão, e esfolou as pernas e o braço. Quase todos competidores passaram por dele, e mesmo assim levantou e acabou a prova em segundo colocado.Foi nesse contexto que Adão tomou gosto pelo atletismo. O maratonista tem algumas inspirações no esporte, apesar de serem mais novas que ele. Pessoas das quais ele considera que tenham um grande potencial e muito a contribuir com o esporte. É o caso do maratonista Marilson dos Santos, vencedor de três São Silvestres e duas maratonas de Nova York. Seu segundo ídolo é o ex maratonista Vanderlei cordeiro de Lima, bicampeão dos Jogos Pan Americanos, e medalha de bronze nos jogos de Atenas, em 2004.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER O atleta Adão Camões é uma figura que contagia desde o primeiro momento em que conversamos. Posso garantir que esse quesito facilitou meu trabalho. Antes mesmo de fazer a primeira pergunta, já havia coletado diversas informações importantes, somente deixando-o falar abertamente. Esporte é algo que sempre me chama atenção. Eu me senti muito à vontade para falar sobre o assunto com ele, e foram surgindo muitas dúvidas e questões ao decorrer da entrevista. Confesso que ao ser escolhido o tema geral da revista, entre todos alunos e professores, eu demorei para encontrar minha pauta. Porém, foi uma boa escolha e um sentimento de dever cumprido para com os leitores da Primeira Impressão. O cenário de nossa entrevista era a própria Unisinos. Durante o período da manhã, a paisagem é muito mais favorecida pela luz do dia, do que a noite, que é o turno em que eu mais frequento o campus. Eu estava “em casa”, tal como ele. Minha sensação é de que não poderia ter sido melhor. Tudo ocorreu nos conformes, sem adversidades.

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O samba que contagia uma comunidade Com grande auxílio local, a escola Império do Sol mantém viva a cultura carnavalesca Por Tiago Assis. fotos de Eric Machado


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oucos sabem o quão trabalhoso é manter viva a ideologia de uma escola de samba. Ao acompanhar um ensaio da Império do Sol, podemos perceber a forte ligação dela com a comunidade. “Quando o Império do Sol clareia, a avenida toda incendeia, se desafiar, pode apostar, entrei no jogo pra ganhar.” O samba enredo não mente, a Império do Sol já mostrou, ao longo de seus 29 anos, que brigar por títulos é mais do que uma coincidência, é um hábito. Mas tal costume não é fácil de ser mantido. Em 2016, após corte de gastos feito pela prefeitura leopoldense, criou-se mais um empecilho para o setor carnavalesco, que já ultrapassa inúmeras dificuldades anualmente. Fato é que uma escola de samba não funciona apenas no dia do desfile. Seja qual for a avenida, uma agremiação desse gênero necessita de planejamento que beira a margem dos 365 dias do ano. Isso, claro, considerando toda esperança que é depositada pela comunidade no evento. No caso da Império, para o tão aguardado desfile no Porto Seco, em Porto Alegre, foram investidos três meses de planejamento geral e dois ensaios por mês até setembro do último ano, quando começou o período de um ensaio semanal até o desfile. Alzemir Jacinto da Silva, 61 anos, presidente e cofundador da agremiação, conta que existe um trabalho de pesquisa muito sério a cada ano, com a finalidade de encontrar o tema certo para ser trabalhado. “A gente move o mundo pra colocar a escola na avenida, buscamos trabalhar temas culturais e nosso carnaval é feito 100% pelos membros da escola e da comunidade”, explica. Mesmo que chegando um pouco atrasado ao evento, segundo ele por conta da “correria pré-desfile”, seu olhar não deixa enganar: a paixão pela escola é gigante. Olhava atentamente ao que ali acontecia, via toda felicidade da comunidade com um sorriso estampado no rosto. Ele aproveita para contar que a história da Império teve início em uma noite de carnaval na Sociedade Rio Branco, quando um grupo de amigos decidiu criá-la. Os mais de 900 integrantes da escola e membros da comunidade local auxiliam a Império do Sol desde sua fundação, em 1988, mas em 2016 e 2017 foram acionados com mais frequência por conta do corte da prefeitura. O “auge” da escola, segundos seus compo-

nentes, foi em 2003, ano do título do grupo Intermediário-A em Porto Alegre, quando a Império era composta por cerca de 2,5mil pessoas.

O PASSO A PASSO DOS ensaioS

Poucos realmente sabem como o ensaio de uma escola de samba funciona. Mas, apesar disso, pode-se imaginar que a pressão é grande. Imagine então como é conduzido o último ensaio do ano antes do tão aguardado desfile de Porto Alegre? São inúmeros passos, a começar pelo enredo, passando pela música, canto, dança, figurino, encenação, alegorias e por fim a percussão. Pessoas chegam. Carros em frente ao local onde o último ensaio antes do tão aguardado desfile seria feito. O comércio de salgados e doces para angariar fundos para a escola é aberto. Sinal de que algo grande estava por vir. Comunidade reunida, bateria ao centro do pavilhão, foliões colocam suas vestes para o desfile. É hora do ensaio! A bateria da escola inicia ostrabalhos. Pode-se perceber que os espectadores acompanham respeitosamente e com muita animação o início do evento. E é nesse ritmo que, após dezenas de minutos de aquecimento da banda, Joel Alves, 58 anos, intérprete da agremiação há 22 anos, puxa o canto “Eu sou Império!”. Ele, inclusive, abre um sorriso toda vez que o perguntam sobre a escola. “É a mesma paixão desde que entrei aqui até hoje”, explica com muito orgulho. Mas não é nada fácil portar tamanha responsabilidade. Segundo ele, o foco é total no trabalho na escola durante todo o ano. “Sem-

pre caio de cabeça nessa função durante o ano, são 24 horas por dia em cima da Império”, comenta o servidor público aposentado. Ao longo do canto, que não só aquece a voz do intérprete, mas também anima o público, percebe-se que a união da comunidade é grande e que todos os presentes compareceram ao ensaio não somente por apoio, mas sim por realmente se sentirem em casa. Mestre-sala, porta-bandeira, passista e, é claro, a chefe das baianas pedem passagem. Todos colocam-se ao centro do pavilhão, ordenadamente e com grande senso de espaço, não há embate físico, mas a junção de todos estes que fazem parte de um projeto que representa a comunidade consegue fazer com que toda a atenção da plateia formada por foliões seja concentrada unicamente naquele momento e local.

Peças que formam A Império do Sol

A organização é um pré-requisito essencial para a formação de qualquer escola de samba. A divisão de funções é algo respeitado pelos membros e, caso funcionem em harmonia, podem auxiliar o encaminhamento de qualquer agremiação ao sucesso. Durante o ensaio, os postos mais aclamados são mestre-sala e porta-bandeira. Eles representam a escola, justamente por injetarem ânimo na grande festa e por portarem a sagrada bandeira, símbolo maior da agremiação. Jéssica Silveira, 30 anos, com incríveis 29 anos de Império tenta descrever, mesmo que com muita emoção, a função de porta-bandeira


Com grande apoio local, Império do Sol ajuda a preservar cultura carnavalesca em São Leopoldo

da escola. “Eu porto a representação maior da escola, o objeto que representa todo o pavilhão, é uma responsabilidade muito grande”, explica. Ela, pronta para começar a sambar naquela noite e que já desfilou na comissão de frente, no carro alegórico e na corte mirim da escola em outros anos, conta que o nervosismo nunca passa. “Sempre dá um frio na barriga antes de qualquer desfile, é muita adrenalina”, comenta. Outra função muito importante é a de chefe das baianas. No caso da Império do Sol, quem toma conta dessa posição é Antonia Batista, a Tune, 66 anos, que tem mais de 15 anos de escola, todos nesse setor. “Sou baiana legítima, nasci em Irara, no interior da Bahia, fui para o Rio de Janeiro com 14 anos, quando já era carnavalesca e morei 20 anos por lá. Tenho mais de 39 anos de Rio Grande do Sul”, conta Tune, que admite que a paixão é quem a move e que todos se ajudam dentro da escola. A professora de dança de salão, Isabel Milano, 36 anos, com mais de 13 anos de Império, também desempenha importante função dentro da escola. Há três anos desfilando como passista, destaque de um dos carros alegóricos da Império, ela reforça a ideia de que a concentração na escola dura o ano todo. “Estudo dança e carnaval o in-

teiro, tenho paixão por isso e grande respeito pela Império e principalmente por sua bandeira”, explica, antes de se arrumar para de fato iniciar sua parte no ensaio. Para ser uma boa passista, segundo Isabel, há uma regra crucial a se seguir. “Precisa de muita disciplina, o ano inteiro fico nessa função, outro ponto importante é entender o que se está dançando e não somente dançar”, comenta. No meio da multidão, outra pessoa muito conhecida pelos moradores locais e que sempre está presente em tudo que envolve a Império do Sol aparece. É Ramão Carvalho, 40 anos, vice-presidente da escola. Formado em História pela Unisinos, ele conta que até mesmo seu trabalho de conclusão teve relação com o carnaval. O tema, mais precisamente, foi a História do Carnaval de São Leopoldo através da imagem. De olho na bateria que embala a noite de samba, que só viria a ter fim na madrugada de segunda-feira, ele pergunta: Incrível, não? Seguido por um sorriso de quem sabe que sua missão está sendo cumprida com sucesso. Carvalho já foi jurado do carnaval de Porto Alegre e também fez parte da Imperadores do Samba, onde desenvolveu seis enredos para a escola. Hoje, além da Império do Sol, o experiente folião faz parte da Bambas da Orgia. “É meio que o grenal do samba de Porto Alegre”, descreve a situação seguida por risos. Dentro da Império, o vice-presidente têm 24 anos de estrada, sendo que em 20 deles dançou pela agremiação. Apesar de todo esforço durante final 2016 e início de 2017, não só a Império, mas também todas as escolas pertencentes à divisão de acesso do carnaval de Porto Alegre não puderam colocar seus foliões para desfilar no Porto Seco. Uma interdição feita pelos bombeiros no dia do evento, onde foram constatadas divergências entre os documentos do local e a real estrutura do sambódromo.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Ao escolher o cenário carnavalesco como tema de minha reportagem, já tinha noção do quão trabalhoso é manter uma escola de samba em funcionamento durante todo ano. Entretanto, algo que eu nunca tinha parado para analisar era o quão envolvida uma comunidade deve ser para que a escola, no caso a Império do Sol, possa sobreviver.É claro que a escola de samba depende financeiramente dos moradores locais, ainda mais com o corte de recursos da prefeitura de São Leopoldo com o setor do carnaval da cidade este ano. Mas, por outro lado, o fator anímico também é totalmente favorecido pelo comparecimento dessas pessoas nos ensaios.Vale lembrar que este evento ocorreu em um domingo, no período da noite e se alastrou pela madrugada. Considerando que muitos teriam que trabalhar no dia seguinte, uma quadra lotada foi a descrição perfeita de união, alegria, orgulho e paixão que a comunidade local sente pela Império do Sol, algo que pude apreciar e que foi, de fato, marcante. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Munida de espírito aventureiro, dupla de repórteres pega a estrada para viver a experiência de uma viagem de carona Por Alessandro Garcia fotos de Manoela Petry

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ra a noite anterior ao dia derradeiro. Sono curto, tomado de ansiedade. A tentativa era antecipar mentalmente a jornada que ocorreria no amanhã desconhecido. A noite mal dormida, regada a sonhos com a estrada, ilustra bem a expectativa que me preenchia. Por volta das 7h30 como combinado, encontro-me com quem viria a ser minha fiel escudeira nessa aventura, a Manoela, que já vestida de fotojornalista empunhava, além da câmera, um case repleto de lentes. Nosso ponto de partida foi o km 16 da RS 239, ainda em Novo Hamburgo. A manhã parecia perfeita para uma caminhada. Posicionados no acostamento pavimentado e seguro o suficiente, arriscamos os primeiros passos dos muitos que nos separavam do destino: o Templo Budista Chagdud Gonpa Khadro Ling, em Três Coroas.

Pé na estrada:

De Novo Hamburgo a Taquara

Prestes a romper a barreira dos primeiros 50 minutos de viagem a pé, ainda no território de Novo Hamburgo, a folha rabiscada com nosso destino dançava ao vento dos carros que passavam. Eis que após diversas tentativas falhas surge a primeira alma bondosa. Nos surpreendemos quando já cogitávamos percorrer os 60 quilômetros da nossa viagem a pé. Foi nossa primeira carona. “Pode empurrar a chuteira para baixo do banco”, disse o motorista do Fiat Uno branco. O homem apresentava semblante tranquilo, aparentando costume com a prática de dar carona. Em deslocamento, Paulo Cidade, um senhor carismático que trabalha como representante comercial, nos contava sobre seu habitual futebol entre amigos aos sábados, evento para o qual se dirigia. “Posso levá-los até Taquara”. Paulo é morador de Novo Hamburgo, de onde partira rumo a seu compromisso. Ao longo da nossa convivência, cerca de 40 quilômetros, nosso agora amigo nos contou que uma das características de seu trabalho é estar quase sempre em viagem e que em virtude disso tem por costume dar carona. Ele observa que, apesar de em geral os motoristas terem medo de parar, acha

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viajando de carona

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Repórteres Alessandro (centro) e Manoela (D) fizeram amigos durante o trajeto até o templo budista

difícil que alguém pedindo carona numa autoestrada esteja imbuído de algum intuito maligno: assaltar ou matar, por exemplo. Paulo nos deixou em Taquara, no inicio da RS115. A carona adiantou mais da metade da nossa viagem. Agradecidos, seguimos.

De Taquara a Três Coroas

A qualidade da primeira carona do dia nos levou ao êxtase. Manoela e eu fomos tomados por um sentimento de comodidade, no qual tudo parecia fluir. Nos sentíamos abraçados pela estrada. Admito aqui, menos desafiados. A sensação durou pouco, mais precisamente até descobrimos que 5 quilômetros de caminhada podem durar até uma hora. Além de custar muita saliva - conversar ajuda a passar o tempo. Lá estávamos nós, de braços já cansados de tanto sinalizar e levantando nossa placa de destino, quando à nossa frente, parou um Santana azul, guiado por Jonas Lopes, 32 anos - nossa segunda carona do dia. Ele representa uma marca de artigos automotivos, o que o leva a percorrer todo o Rio Grande do Sul e, eventualmente, Santa Catarina. Inicialmente o homem pareceu desconfortável, sobretudo enquanto vasculhei minha mochila buscando P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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o bloco de anotações. Mas essa situação foi pouco duradoura. Dentre histórias inusitadas na estrada, ele nos contou sobre certa vez em que perto do entardecer voltava para casa após um longo dia de viagem. Em um determinado trecho da estrada avistou um carro parado no acostamento. Alerta ligado, capô içado, triângulo sinalizando uma ocorrência, Jonas optou por parar e ajudar, a quem mais tarde constataria ser um casal de viajantes. A ocasião, ele afirmou relutância, pois o ambiente era deserto e a situação poderia ser uma tentativa de assalto disfarçada. Mesmo assim, impulsionado em mente pelas diversas vezes em que foi ajudado na estrada, ele parou. O caso era de bateria arriada do carro do casal, a qual Jonas prontamente conectou a bateria do seu veículo, gerando carga suficiente para que o casal pudesse seguir viagem. Nosso prestativo Jonas nos largou na entrada de Três Coroas, nos presenteando com uma carona de 17 quilômetros.

A subida até o Templo

A exatos 5 quilômetros de nosso destino, um novo desafio estava à frente. Subida íngreme, desafiadora, a estrada que levaria ao destino tem

um pequeno trecho de asfalto, talvez mais um quilômetro de paralelepípedo, e o restante, estrada de chão. O que esses trechos têm em comum é o estreitamento da sinuosa pista, onde mal passam dois carros. A subida do morro logo nos convenceu do tamanho do desafio. Em comum acordo optamos pela estratégia de nos seguirmos pelos pontos de sombra da estrada sem acostamento. Perto do meio dia, o sol mostrava a que veio, exigindo hidratação constante. Algo que remete à nossa inexperiência é o fato de nenhum de nós dois ter lembrado do filtro solar. Devidamente estabelecidos, com alguns tantos minutos de espera, providencialmente se apresenta Mirian Ribeiro, uma gentil senhora que muitas coisas vivera na vida, como nos contaria viagem morro acima. “Vocês reparam que eu falo demais”, brinca Dona Mirian. Ela diz também que mora há mais de 23 anos na comunidade budista, localizada um pouco adiante da entrada do templo. Sozinha desde o falecimento do marido, fala sobre a sua “casa no mato” e sobre as maravilhosas experiências que a vida retirada dos grandes centros urbanos lhe proporciona. A anfitriã em seu Fusca verde


lembrou de quando em sua juventude conheceu a Europa sozinha, e como à época vivia por experiências dessa natureza. Mirian é uma senhora de 72 anos, formada em Jornalismo, com especialização em Publicidade e Propaganda, cuja a paixão é atuar, sendo também formada em artes dramáticas. A conversa foi muito generosa e divertida, o barulho alto dentro do fusca, causado pela irregularidade do terreno não atrapalhou. Aproximadamente 15 minutos depois, nos despedíamos dela já na bifurcação da estrada que levava a nosso destino.

Sorte de principiante?

Destino alcançado, só boas vibrações emanam deste lugar - digno de uma reportagem. O Templo Budista Chagdud Gonpa Khadro Ling era o cenário em que a foto-repórter Manoela Petry e eu nos encontrávamos. Logo nos primeiros metros em direção à cancela que dava acesso ao pátio, a sensação de dever cumprido tomava conta da nossa mente, ao mesmo tempo em que o “porém”

da volta nos assombrava. Assim, após desfrutarmos brevemente da paisagem, começamos a confeccionar o cartaz de volta (não havíamos levado um). Isso feito, descemos o morro, quando a coisa mais inacreditável aconteceu. As irmãs Tatiana e Daiana Flores de Andrade recém finalizavam a visita ao Templo, rumando sentido a Novo Hamburgo. No carro havia dois lugares vagos. Obra do destino ou não, nossa história se cruza. Dividimos na viagem de volta um papo enredado em intersecções da vida (gostos, conhecimentos e conhecidos em comum). Nossa história teve direito até a uma pausa para o almoço, no qual partilhamos a experiência de uma iniciação na culinária tibetana - cujo custo-benefício não nos foi muito atrativo. Sobre a prática de dar carona, elas afirmaram ter receio, mas ao observarem nossa postura e após terem nos avistado dentro do templo, sentiram-se confiantes em nos ajudar. Uma hora e meia depois, chagávamos a Novo Hamburgo, encerrando assim o ciclo de nossa viagem.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Não lembro exatamente quando. Também não lembro o nome do indivíduo, um sujeito magro de pele bem vermelha, castigada pelo sol. Mas lembro de encontrá-lo à beira da estrada, num posto de combustíveis, sinalizando com o polegar, o tradicional gesto de pedirdo de carona. Parei o carro e ele entrou, visivelmente aliviado pela carona conquistada. Levei-o até o limite que nosso trajeto se cruzava, por uma extensão de cerca de 30 quilômetros. Durante esse percurso, nosso papo foi variado, regado a questões existenciais. Uma conversa regida por uma honestidade incomum, característica de dois desconhecidos, que provavelmente nunca mais se encontrariam. Semanas depois do acontecido, na hora de decidir a pauta da reportagem, lembrei deste episódio como decisivo para a escolha do tema viajando de carona.Após concluída, sob o mote de viver a experiência, observo que nossa aventura foi marcada por pessoas dispostas a dividir tempo e espaço com dois andarilhos completamente estranhos a elas. Alguém há de dizer que foi sorte, ou uma combinação improvável de situações favoráveis. Ou ainda que não é a realidade de quem viaja de carona. Pode até ser, mas o fato é que pessoas maravilhosas compartilharam momentos de suas vidas conosco, e é sobre esse desprendimento que por fim tratou a reportagem: a estrada unindo as pessoas. Na estrada, sob a condição de um viajante, você está sendo constantemente desafiado. É obrigado a se colocarem como alguém que não é autossuficiente, alguém que precisa do outro. Quando você recebe um carona, aprende também sobre a generosidade. Um somatório de sensações que indicam que uma das possíveis soluções para o mundo é a empatia. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Um dia para

Ser palhaço atrai todos os holofotes para si mesmo, para o seu verdadeiro humor Por Cassiano Cardoso. fotos de Laíse Feijó

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ser notado

Os palhaรงos, da esquerda para direita: Gerivalda, Cacรก (o repรณrter), Julieto, Cachocha e Dolores

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outono estava recém iniciando em Porto Alegre, com o frio característico das manhãs e o calor que começava a aparecer mais próximo ao meio-dia. Na Usina do Gasômetro, 4º andar, a TrupeZona de Teatro ensaiava seus espetáculos de palhaçaria, que já percorreram boa parte do Rio Grande do Sul. Afinal, ser palhaço não é fácil. Não é como um show de stand-up, com um texto a ser decorado. Envolve performance e uma série de improvisos. Para aquecer-se para a saída, ficamos pouco mais de uma hora numa espécie de preparação. Participariam da atividade Fábio Castilhos, Giovana Zotti, Luzia Ainhoren e Alessandra Matzenauer, todos com experiência em espetáculos de palhaçaria. Estavam ali para ajudar a me soltar antes da saída e a conseguir trazer o que chamam de “estado de palhaço”, que é quando se transparece o arquétipo do clown de dentro de si.

A preparação

Após um breve aquecimento para esquentar naquele ar gelado que havia pela manhã, começaram o que Castilhos descreve como “jogos de palhaço”. São atividades para despertar o clown. E também foi ali onde, além de empatia, criei uma química e proximidade dos outros colegas que participariam da saída. Em especial Alessandra. A primeira na qual tive algum contato na ação. Com os pés descalços sobre um longo chão de madeira, começamos a andar em círculos, alternando o trajeto e fazendo caretas uns para os outros. Sempre com uma música de fundo. Após, outras atividades foram se desenvolvendo. Entre elas, uma que desperta um pouco mais do ridículo que há dentro de nós. Neste momento, os integrantes se dividiram em duplas. Elas tinham de contar de um a cinco, cada um na sua vez. Porém, aos poucos, os números foram trocados por ações, para forçar ao erro. E, a cada erro, saíam risadas e a leveza começava a emergir de dentro de si. Em outra atividade, quando comecei finalmente a me sentir mais à vontade para a saída, trocávamos algumas palavras e nos P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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abraçávamos. Foi quando tive o primeiro contato com Alessandra, que possuía um sorriso acolhedor e me dava mais confiança para a saída que faríamos depois.

portal do nariz vermelho

Segundo Castilhos, que estava comandando a preparação e a saída, “o nariz do palhaço é a menor máscara do mundo”, pois da mesma forma que esconde pouco, ela acaba buscando um pouco do teu próprio interior. Após os jogos de preparação, tive que finalmente me apresentar na frente dos outros integrantes. Sinceramente, eu não sabia exatamente o que fazer. Me escondi atrás das cortinas que tinham ao fundo da sala, vesti o nariz, respirei fundo e saí. Ao ultrapassar as cortinas, fui recebido por aplausos por eles. Minha voz, ligeiramente mais rápida, parecia diferente. Eu tinha vontade de fazer algo diferente e conseguia fazê-lo sem nem que eu me esforçasse para isso. Era como se minha vergonha ainda estivesse ali, mas não me impedia de agir. De fazer algo. Aliás, foi ali que surgiu o nome do meu próprio clown: Cacá, ou Cacá Silva. Como preferir. Ali também descobri, através deles, que era bailarino e estava realmente confiando e acreditando nisso. Na verdade, acreditava que poderia ser qualquer

coisa naquele momento, menos o que eu realmente deveria estar fazendo ali: sendo repórter.

A experiência

Nos vestimos. Eu com uma roupa um tanto diferente da qual estava habituado. Com tecidos leves que pareciam papel crepom, mas com a elasticidade de um tecido normal. Algo meio old school (à moda antiga), com tons em vermelho claro e bege. Na cabeça, uma boina bordô. E finalmente nos reunimos para sair. Faríamos um jogo de pular corda entre três em frente à Casa de Cultura Mário Quintana, próxima ao Gasômetro. A partir daí, as coisas mudaram um pouco. Até aquele ar gelado do outono já estava dando espaço ao sol que seria escaldante na tarde daquela quinta-feira. O relógio batia 11h e já estávamos prontos para a saída. Vestidos e acertados do que faríamos. Castilhos me indicou que não falasse muito se não quisesse e orientou aos demais para me cuidarem durante a atividade. Ao sair, parecia ser outra pessoa. Não era eu. Era um personagem. Sentia que poderia fazer tudo o que eu quisesse, literalmente. Interagir com as pessoas, conversar, brincar… tudo. A partir dali, Fábio era Julieto Justo, Giovanna era Dolores, Luzia era Cachocha. Alessandra era Gerivalda e, claro, Cassiano era Cacá. No caminho, encontramos um senhor com cabelos longos grisalhos e barba por fazer, que inventou de arriscar conversar conosco. “De onde vocês são?”, e Julieto prontamente respondeu “Planeta Terra”, deixando-o sem jeito e sem palavras para tudo o que estava acontecendo. “Sempre esqueço que não dá para conversar com palhaços”, completou. Depois, seguimos o caminho, sempre interagindo com uma ou outra pessoa. Era um exercício em que tu te sentias visto pelas pessoas. Principalmente em meio ao Centro de Porto Alegre, onde as pessoas estão sempre correndo, sérias e sem olhar nos olhos umas das outras. Ali, com um simples nariz vermelho de borracha, uma performance e com uma roupa diferente do padrão


já mudou muita coisa na forma como as pessoas me viam. Para atravessar a rua, criamos um ritual. Todos deveriam segurar a corda para fazer a travessia. Como uma espécie de segurança da trupe. Entretanto, na área militar próxima à Casa de Cultura foi onde o rumo da nossa saída mudou totalmente. Dali, não haveria mais pular corda em nossas mentes. Apenas a vontade de se divertir. Passando em frente ao Museu do Comando Militar do Sul, demos uma espiadela para o lado dentro e um dos milicos só fez o gesto e cochichou: “Entrem”. Dali em diante, a saída jamais foi a mesma. Havia uma turma de alunos do Ensino Fundamental de uma escola de Cachoeirinha fazendo saída de campo naquele local. Foi a felicidade da criançada. Entre selfies e palhaçadas, entramos nos tanques de guerra, todos juntos. Sem nenhuma menção da administração do local nos retirar de lá. Era uma muvuca de crianças e a trupe sempre interagindo e nunca deixando de conversar com elas. Na saída do tanque, Cachocha e Julieto saíram escalando pelo chão na corda que levamos. O que foi um número e tanto para os presentes. Foram cerca de 30 minutos que pareciam eternos. De lá, próximo ao meio-dia, voltamos pelo outro lado da rua. Ainda rodeados de crianças. Nos acompanharam até em frente a Igreja das Dores. Ali seguimos nosso caminho de retorno. Havíamos até esquecido totalmente da atividade que faríamos na Casa de Cultura.

Na volta, passamos por algumas residências onde pessoas estavam saindo para trabalhar ou algo do gênero. Encontramos um americano que estava visitando Porto Alegre. Mais selfies. As pessoas sempre com sorriso no rosto, querendo participar e nos conhecer. Era como se estar “ridículo” fosse algo extremamente bom e que revigorasse a nossa autoestima. Inclusive, às vésperas da Páscoa, ganhamos pães de mel de um entregador da confeitaria. Quando vimos, já estávamos novamente na Casa de Cultura e toda aquela imersão e adrenalina foi se esvaindo. Até que sentamos para conversar sobre tudo o que havia acontecido.

O arquétipo

O palhaço surgiu ainda na Idade Média na figura do bobo da corte. O único que desafia o rei, que ri do rei, mas ao mesmo tempo sabe que pode perder a cabeça por isso. Especialista na área dos arquétipos do ser humano, a psicóloga Cybele Ramalho desenvolveu um artigo falando justamente do clown adormecido no ser humano. “Ele exterioriza algo íntimo e primitivo que existe em todos nós. O ridículo e transgressor da ordem vigente”, explicou. Para ela, a visão do clown vem de seu autoconhecimento. “Tem a sinceridade de assumir-se como ser limitado. Ele assume e ri da própria dor. Não é o que ele fala que é engraçado. É ele mesmo. A própria tragédia de si é a graça”, apontou a psicóloga. No entanto, essa visão pode desencadear algo positivo e negativo

ao seu redor. “Da mesma que ele traz do inconsciente o que há em todos. O palhaço vem para brincar com a norma e o padrão. Ele representa o infantil num corpo adulto. É ambíguo. Meio animal e meio humano”, resumiu. Cybele também afirma que ele realça o aspecto criativo, um lado espontâneo criador. Aflorando exatamente essa vibração de humor que reage perante à estrutura conservadora do mundo. Como uma desconstrução do certo ou errado para a sociedade. Eu jamais havia sido notado da forma como fui. Foram os 40 minutos mais intensos de interatividade em muito tempo. Até os cães paravam para interagir conosco. Os sorrisos das pessoas eram a porta de entrada para que conversássemos e brincássemos de alguma forma. Foi tudo muito rápido e completamente estranho, à primeira vista. Mas, na medida em que as atividades foram se desenvolvendo, o palhaço que havia dentro de mim se transpareceu através do portal do nariz e acabou sendo a experiência em público mais intensa que tive em todos os meus 22 anos de vida.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sempre achei que escrever numa revista seria uma experiência difícil e maçante. Entretanto, bastaram algumas horas de bate-papo com os palhaços que me guiariam na pauta e já notei as 1.001 possibilidades do que poderia sair dali. Na hora, foi tudo tão intenso e diferente que cada minuto parecia uma hora. Para escrever, precisei de repetição de algumas horas para conseguir jogar em alguns mil caracteres tudo o que havia acontecido. Todas as angústias. Todas as experiências. Todos os sentimentos. E o medo havia se esvaído. As entrevistas foram tranquilas. Mas o conhecimento de mim mesmo pelo palhaço e do próprio texto talvez tenham sido muito maiores e mais importantes que qualquer outra reportagem que já escrevi. Pois o clown se parece muito mais um estado de espírito que uma arte cênica ou um personagem construído. É algo que vem do teu próprio interior. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Praça da Alfândega acolhe artistas de rua de todos os estilos e práticas, como Charles Busker

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O som da rua ARTISTA VIAJA DE UMA CIDADE PARA A OUTRA A FIM DE SE APRESENTAR EM PRAÇAS DA CAPITAL Por Artur Colombo. fotos de Paola Sartori

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eil Young, lenda do rock amer i c a n o, é conhecido por músicas como Old Man, Hey Hey, My My e Harvest Moon. Elas falam sobre um estilo de vida, a busca de um sonho e o objetivo de nunca deixar o rock ‘n roll morrer. Ao falar sobre a relação que tinha com a bebida, Young disse em autobiografia que “a vida é um grande teste”. Quando conheci Charles Busker e descobri que ele realizava a viagem de Alvorada, onde mora, até Porto Alegre toda semana para tocar violão pelas ruas, percebi que a sentença de Young fazia sentido. Sempre que vai até a capital, Busker deixa a esposa e uma filha de dois

anos para fazer aquilo que, hoje, é um trabalho. Algo que constantemente se mostra um teste, assim como a vida se mostra para Young. Na quinta-feira, dia 16 de março, quando finalmente consegui acompanhá-lo em uma de suas performances na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, o céu não estava colaborando. As nuvens escuras diziam que poderia chover a qualquer momento. Para minha sorte, apesar de viajar até a capital sem ter a certeza se as nuvens colaborariam, Busker não desistiu. Em frente ao Clube do Comércio, ponto comum entre artistas de rua que utilizam a praça como palco, escuto um homem que se apresentava tocando clássicos como Neil Young, Beatles, Bob Dylan, Pink Floyd, entre outros. Lá estava ele, Charles Busker. Na minha cabeça, a melhor forma de realizar esse acompanhamento seria vê-lo tocar todo o reportório de clássicos e só depois disso começar a entrevista. Mas ele sugeriu que a conversa fosse mais informal. Charles tocava uma ou duas músicas, parava pra tomar um café, conversava comigo e voltava a tocar mais uma ou duas músicas. Era esse sentimento de informalidade que eu procurava ao entrevistar um artista. Aceitei a proposta e entre uma

música e outra, fui conhecendo melhor a vida deste músico. Ao se mudar de Canguçu para Alvorada, Charles não tinha muitos recursos. “Desci na rodoviária de Porto Alegre com uma bolsinha embaixo do braço, cheguei na avenida Borges de Medeiros e vi aqueles prédios gigantes, achei apavorante”, afirma. Mas uma coisa o acompanhou nessa viagem de 274 quilômetros. Antes de se mudar ele havia acabado de ganhar um violão do irmão e de aprender alguns acordes. Quando cheguei na Alfândega para acompanhá-lo, me deparei com um vilão, um microfone e um amplificador. Não parecia muita coisa, mas ao ver que a paixão dele pela música começou por causa deste instrumento e do ócio da cidade grande, ficou fácil enxergar o quão importante as pequenas coiP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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sas são para artistas de rua. Com isso, olhei em volta, procurando outros artistas que compartilhavam dessa simplicidade. Vi pessoas tocando ao longo de toda a praça. Algumas tocavam samba, outras, reggae. Algumas tinham instrumentos comuns, outras, objetos que eu nunca havia visto na vida. Mas era evidente a sutileza naquilo que todos faziam. Assim como Charles, não importa o quanto eles tinham a oferecer, eles simplesmente ofereciam aquilo que tinham e, em troca, esperavam a boa vontade e a colaboração das pessoas que pela Alfândega transitava. Observando esse mundo que se abria diante dos meus olhos, ele começou a tocar. Sem cerimônia, sem anúncios, apenas ele e o violão. Não demorou muito para um grupo de pessoas se aglomerar em volta dele. Nem todas ficavam até o final de uma música, nem todas ajudavam com alguns trocados, mas sempre havia pessoas escutando o que ele tinha para ofereP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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cer. Para incentivar a colaboração, era comum ele colocar uma nota de dois reais, em cima da capa do violão, ao lado dos CDs que ele gravou ao longo de uma carreira como músico. O incentivo funcionava e, aos poucos, mesmo não sendo uma máxima entre todos que passavam pelo local, a nota ia ganhando companhia. Em um dado momento, algumas pessoas vieram até Charles perguntar sobre os CDs que ele vendia. Foi nessa hora que ele me falou por que fazia aquilo. Charles acredita no espaço de troca que a rua oferece. Ele dá às pessoas algo que elas, vivendo suas rotinas, talvez não percebam que precisam, mas ao passarem por ele, lembram-se de alguma música que gostam, ou algo nostálgico, que as fazem sorrir e desopilar da vida que levam. Ao mesmo tempo, essas mesmas pessoas contribuem com ele, dando incentivo para que continue fazendo aquilo que gosta. Durante as apresentações per-

cebi que ele era constantemente ovacionado por pessoas que pareciam já conhecê-lo. Uma delas era Danilo Castro Fonseca, um senhor de idade que interrompeu minha conversa com Charles para oferecer um café. Aposentado desde 2012 como porteiro, há 27 anos trabalha na rua vendendo lanches, café e suco. O senhor se apresentou como uma figura constante para os artistas da Praça da Alfândega. Ao longo de toda a tarde que passei observando esse mundo percebi o quão comum era este comércio colaborativo entre os artistas que se apresentavam e, em sua maioria, senhores vendendo lanches e principalmente café. Cada vez mais a rua se colocava como um local, não só de troca, entre quem faz a arte e quem aprecia, mas também de colaboração. Onde todos ali tentam ganhar espaço dentro da sociedade. Seja no comércio, ou na arte, eles se ajudam e, dessa forma, todos cheguem onde precisam chegar.

Charles Busker toca diariamente na Praça da Alfândega e, aos domingos, no Brique da Redenção


Muito mais que só uma palavra

Busker explicou como a vida mudou quando começou a tocar na rua. “Outro ciclo começou. Foram sete anos descobrindo o que exatamente eu queria fazer, daí quando eu descobri, era viver tocando ou morrer tentando. Foi aí que comecei a tocar na Praça da Alfândega, Redenção, Rua da Praia, Voluntários, qualquer canto eu estava tocando, só eu e meu violãozinho”. Naquele momento, percebi a relação que ele tinha com a rua. Resolvi embarcar nessa visão e tentar entender qual o significado dessa palavra para ele. “Normalmente o cara fica naquela de que alguém vai descobrir. Vou tocar nos bares e alguém vai me descobrir, mas para isso tem que dar a cara a tapa, não tem espaço, tem que abrir o teu espaço. Se o cara fica nessas de que o cara do bar vai chamar, tu até pode conseguir, mas enquanto não vem, tu tem que abrir o teu espaço, a rua é um deles”. A atuação de artistas como Charles, que praticam o movimento de levar a arte para a rua, é importante para a promoção artística e cultural do país. No entanto, é evidente que a todo o momento eles procuram demonstrar seu valor como trabalhadores, já que eles ainda são vistos por uma parcela

da população como pedintes. Luis Flavio Vitola, mais conhecido como Trampo, um dos nomes do grafite em Porto Alegre, diz que atuar na rua é uma inquietação natural do ser humano e que nunca vai parar, “a rua é explorada de várias formas, principalmente pela publicidade. Eles pagam para prefeitura e espalham placas pela cidade inteira, tu é obrigado a ver aquilo. A inquietação de quem faz arte e de quem produz alguma coisa e leva pra rua é bem nessa intenção de, de repente, desviar, através da arte, o olhar da poluição visual que a publicidade sugere”. Com o fim do dia chegando e meu acompanhamento acabando, Charles começou a recolher o violão, mas deixou a caixa de som para que, dessa forma, outro artista que ali se colocava, utilizasse enquanto ele terminava a fala comigo. Foi então, depois de passar uma tarde com ele, que percebi que, aquilo que chamam de rua, para Charles, Trampo e para muitos outros homens e mulheres na mesma situação, é muito mais que só uma palavra. Caracteriza um espaço de fala, de colaboração, de troca, onde inúmeros artistas realizam vários tipos de arte, se colocam e enxergam a possibilidade de fazer destas ações algo vivo, que toca as pessoas e muda o ambiente que elas circulam diariamente.

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER Mãos suadas e a sensação de que tudo poderia ir literalmente por água a baixo. Isso foi o que eu estava sentindo quando pegava o trem para Porto Alegre, indo encontrar Charles. Sempre gostei muito de arte de rua, música, grafite, teatro, etc. De jeito nenhum gostaria que algo como a chuva me impedisse de acompanhar o que poderia ser uma experiência fantástica na minha vida. E foi. No final, tudo deu certo e, hoje, meu sentimento é de alívio e gratificação. Eu já conhecia a arte de rua com os olhos de um expectador, mas com essa reportagem tive a oportunidade de ver esse movimento através dos olhos de quem faz tudo aquilo acontecer. Observar esse mundo, dessa forma, foi muito importante para expandir minha forma de lidar com o jornalismo que faço. Estamos todos conectados às nossas bolhas. Vivenciar e acompanhar novas experiências é a melhor forma de sairmos da nossa zona de conforto e perceber que o mundo é muito maior do que imaginamos. Espero que cada vez mais as pessoas façam isso, seja dentro do jornalismo ou dentro das próprias vidas. Desde que façam e percebam o quanto o mundo é rico de histórias esperando para serem acompanhadas de perto.


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A arte de viver com música Músicos da Orquestra Unisinos Anchieta preparam seleções especiais de canções em eventos Por Anderson Dilkin. fotos de Lucas Americo

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úsica, o que essa palavra significa em nossas vidas? Pa r a a l gumas pessoas ela serve para animar o ambiente, para outras, é uma forma de reflexão. E tem aquelas que gostam de voltar ao passado ouvindo uma trilha que marcou algum fato impor tante na história. É muito difícil alguma pessoa não gostar de ouvir música. Talvez ela não goste de sertanejo ou de gauchesco, por exemplo, mas sempre terá um estilo musical que goste. Quando ouvimos música temos que pensar que por trás

daquele som que chega aos nossos ouvidos tem um trabalho imenso dos artistas, de quem dirige o grupo ou a banda. Enfim, são pessoas que fazem música porque são apaixonadas por ela. Isso pude constatar acompanhando um dia de trabalho da Orquestra Unisinos Anchieta. Fundada em 1996, o grupo se apresenta em diversos lugares tocando diferentes estilos. Atualmente, é dirigida por Evandro Matté e composta por cerca de 20 músicos que ensaiam pelo menos três vezes por semana no antigo prédio da Universidade, em São Leopoldo. Naquele fim de tarde de quarta-feira de temperatura agradável, acompanhei o ensaio do dedicado grupo. Às 18h, os músicos começaram a discutir notas, acordes entre outras coisas - tudo isso desprovidos do seu dirigente, que havia passado mal naquela tarde. Ouvindo os instrumentos (viola, violino, violoncelo, contrabaixo, piano, entre outros), percebi o quanto é importante o trabalho destas pessoas, e também o quanto é pouco valorizado pela população. Dificilmente ouve-se comentar no dia-a-dia

sobre o trabalho deles. É raro ouvir alguém dizer: “à noite vou no concerto de uma orquestra” diferentemente de quando há jogo de futebol, alguma festa entre outros eventos populares. Não pude ver o semblante dos músicos (sou deficiente visual), se estavam com o rosto triste ou sorridente. Mas a partir do que conversei com eles e do que ouvi do bate-papo pude perceber como eles esperam chegar aquele horário do dia para se reunirem e ensaiarem as diversas canções que compõe a seleção da orquestra. Aqueles homens e mulheres, rapazes e moças são felizes tocando os instrumentos. Geraldo Mori , spalla, (chefe de naipi) está no elenco desde sua fundação, e diz que a orquestra foi P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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evoluindo conforme o tempo. “Crescemos junto com o ambiente musical no Rio Grande do Sul. A orquestra sempre esteve associada a um projeto de educação da universidade antes conhecido como Sinos da corda e hoje nomeada como vida com arte”, diz. Quando comecei a minha entrevista com Mori tive várias perguntas em mente, não apenas para fazer a reportagem, mas porque acompanhando o ensaio tive diversas dúvidas e curiosidades sobre esse trabalho fantástico. Depois de ter conversado com ele por cerca de 20 minutos achei ainda mais interessante a orquestra Unisinos, porque além daquele ensaio que acompanhei ouvindo as músicas e da conversa, Geraldo me explicou um pouco sobre o dia-a-dia do grupo, as apresentações, as participações especiais de músicos de renome e a luta para que a orquestra siga o seu trabalho. O grupo apresenta-se frequentemente em eventos. A maioria deles em Porto Alegre ou no Vale dos Sinos. Porém, já foram convidados para participar de concertos fora do Estado e do país. Alguns deles, segundo Mori, recebem patrocínio. “Depende do concerto, alguns são abertos ao público e gratuitos, outros têm patrocínio como, por exemplo, do grupo Zaffari”, explica. Questionado sobre os tipos de evento que se apresenta a orquestra, Geraldo diz que são vários estilos musicais, e isso pude presenciar no ensaio. “Há uma série mais popular, outra mais erudita, tocando inclusive nas igrejas de São Leopoldo, no santuário Padre Reus, na igreja do relógio entre outras. Mas tocamos também desde Mozart até rock, jazz, trilhas de cinema, opera, músicas de concerto em geral”, pontuou. Na conversa, Mori relatou a participação em um evento em Porto Alegre, por exemplo, no qual a orquestra, junto com músicos convidados, entonou canções populares brasileiras. “Participamos da Virada Sustentável em Porto Alegre, no Parque Farroupilha, e lá tocamos com músicos populares brasileiros como por exemplo Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, entre outros”, explicou ele. No dia que acompanhei o trabalho da orquestra, pude ouvir um belo tango a partir do bandoneón. Foram repassadas também as músicas: Vila Lobos a Bachiana 9 e Mozzart a pequena serenata. As canções foram ensaiadas em grupo. Após o primeiro momento, os músicos foram separados em naipis, no quais cada um ensaiou a sua parte específica da música. Mas quem pensa que tudo são flores está eng anado. A orquestra Unisinos Anchieta ficou desativada por algum tempo, de 2006 a 2009. Os motivos, vários, mas principalmente a falta de recursos financeiros. Jayme Neto, morador de Dois Irmãos e aluno da Unisinos, já assistiu a dois concertos, e diz que aprecia muito o trabalho dos músicos. “Acho espetacular o trabalho deles e os acompanho pelas redes sociais da universidade”, disse. Sobre a pouca valorização desta arte, Jayme concorda, a começar por si próprio. “Deveríamos valorizar mais este tipo de trabalho, falo por mim mesmo. Em vez de ficar assistindo jogo ou ir para uma festa, poderia ir a um concerto. Não é que as pessoas não gostem mais talvez não faça parte da cultura delas”, opinou ele.


Música para curar a vida

A música, além de ser vir como diversão, reflexão, volta ao passado também serve como tratamento, através da musicoterapia. Luciana Steffen é formada pela Faculdade Est e hoje excerce a profissão de musicoterapeuta, ajudando diversas pessoas. Ela explica que a musicoterapia é a utilização de elementos para determinada situação. “A musicoterapia usa música e seus elementos: harmonia, ritmo, melodia e o timbre. A gente não usa só uma música pronta, pode ser só o ritmo ou um canto que podemos compor na hora”, explicou ela. Segundo Luciana, a musicoterapia pode ser aplicada em diversos fins terapêuticos que são divididos em quatro níveis: o primeiro deles é o nível motor, para trabalhar principalmente o equilíbrio, cujo público alvo são pessoas que têm dificuldade de andar, ou crianças que ainda

não caminham, por exemplo. O segundo é o nível social, que tem como público alvo por exemplo crianças autistas, que têm dificuldades de interação com a sociedade. Outro nível é o intelectual, que trabalha a tensão, a concentração e a memória. E, por fim, o nível emocional, onde os pacientes poder se expressar através da música, seja tocando um instrumento, cantando, assim aliviando as tenções, e aumentando também a autoestima. Ainda sobre a terapia pela música, Luciana explica que há três tipos de fundamentos: a capacidade de aumentar a autoestima, a possibilidade de trabalhar a interação social, já que há naquele local pelo menos duas pessoas: o paciente e a musicoterapeuta e o ritmo, que é capaz de dar energia mudando inclusive o estado de humor da pessoa. Algumas pesquisas já comprovam que a musicoterapia ajudou diversas pessoas, curando-as inclusive de doenças graves.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Acompanhar uma orquestra foi uma experiência jamais vivida. Eu sou natural de Santa Maria do Herval, um município do interior de origem alemã, talvez por isso nunca tive nenhuma aproximação com esse tipo de música. Mas confesso que fiquei fascinado com o trabalho desses músicos que doam parte do tempo para treinar e se apresentar. Não tive muito contato com eles, mas conversei bastante com um dos integrantes da orquestra, Geraldo Mori, que me explicou todo o trabalho do grupo. Pela fala dele dava para perceber o quanto a orquestra é importante para ele e para todos os integrantes. As músicas não são as que mais gosto de ouvir, mas respeito demais o gosto deles e o empenho no dia a dia. Também quero ressaltar que fui muito bem recebido por todos. Já nas primeiras conversas com o Evandro, regente da orquestra, que inclusive no dia não esteve presente por questões de saúde, ele foi muito atencioso, passando as datas e horários do ensaio e deixando claro que seria muito bemvindo. Esse tratamento eu recebi por todos os integrantes no antigo prédio da Unisinos, que também tive a oportunidade de conhecer.

Evandro Matté também atua como diretor cultural

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Aventura artística e sensorial A preparação de um ator de teatro do camarim ao palco Por FABIANO SCHECK FERRAZ. fotos de Lucas Americo

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ou testar as luzes e passar o som, pode ficar à vontade”, anunciou Eduardo Kraemer. Tudo apagou. Eu estava sozinho em uma grande sala escura, a não ser por uma luz vermelha que reluzia ao fundo. Silêncio. Eu podia ouvir as batidas aceleradas do meu coração, entusiasmadas pelo que eu havia ouvido antes de chegar naquele momento. De repente, uma música ecoou no ambiente. When you were here before, couldn’t look you in the eyes (Quando você esteve aqui antes, não podia te olhar nos olhos) soou a voz do artista na canção. Luzes coloridas acenderam em minha frente, revelando um cenário teatral. Três pessoas surgiram no ambiente, um homem e duas mulheres. Eles andavam e pulavam pelo cenário. A música progredia em ritmo mais agitado e o homem começou a cantar em tom alto. Logo, estava gritando a letra. Uma das mulheres também já gritava algumas outras coisas, a outra pisava fortemente no chão e ia passando as mãos por todo seu corpo. A atmosfera artística tomava conta do local. Eles estavam se expressando e eu senti uma enorme necessidade de me expressar junto com eles. Queria cantar e correr por aquela sala. Segurei-me. Precisava manter o foco como repórter observador. Suspirei alto. Meu objetivo ali era acompanhar um ator de teatro. Desde a sua preparação até subir ao palco. E é essa a história que vou contar agora.

O artista

Renato Del Campão encontrou-me no Teatro Carlos Carvalho (2º andar da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre) pontualmente às 19h. A peça Cadarço de Sapato ou ninguém está acima da redenção, em que Renato é um dos atores, tinha uma sessão marcada para as 21h. tinha duas horas para eu ver como ele preparava-se para o personagem. No camarim, o ator brincou “agora é o momento em que acontece a desconstrução, fico mais feio ainda”, referindo-se à sua aparência, pois seu personagem exige maquiagens pesadas. “Agora é o momento em que acontece a desconstrução da pessoa para acontecer a construção do personagem”, pensei, pois à medida que ele se borrava com as tintas pelo corpo, seu tom de voz aumentava e suas expressões corporais se intensificavam. “Eu tô animado aqui, mas daqui a pouco eu me transformo, bem louco. É que meu personagem já começa a peça chorando”, conta. Ao lado de outros cinco artistas, Rejane Meneguetti, Jairo Klein, Adriana Lampert, Gustavo Razzera e Aline Szpakowski, Renato encena situações limite com temas relacionados à depressão e ao suicídio. A peça é inspirada nas obras da dramaturga inglesa Sarah Kane, caracterizadas por conter violência, sexo, amor e morte. A direção, trilha sonora, projeção e iluminação ficam a cargo de Eduardo Kraemer. O responsável pela cenografia é Alexandre Navarro. A produção é da Cia Teatrofídico. Esta companhia de teatro foi fundada por Eduardo e Renato em 2003 e já acumula diversos prêmios, além de completar 14 anos de atividades ininterruptas. Ao longo da “transformação”, Renato e eu conversamos sobre diversos assuntos. A arte sempre foi muito natural para ele. “Desde pequeno tinha essa coisa... Quando outras crianças iam me visitar eu criava diálogos para encenarmos juntos, criava cenários com lençóis”, recorda. Apresentações na escola sucederam essas brincadeiras. Após essa fase, participava e formava grupos de teatro, viajava para assistir peças. Enfim, vivenciava e experimentava o teatro. Agora, aos 52 anos, tem 37 anos atuando e já fez P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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variados papéis, desde peças infantis a peças com temas adultos. Nestes anos de carreira, ele passou por diferentes momentos da história do Brasil. Os anos de ditadura e repressão militar foram difíceis para a arte em geral. “É um horror quem, hoje em dia, pede a volta de intervenção militar. Eu vivi isso e sei que foi ruim”, salienta. Para ele, a cena do teatro ainda não é ideal, há falta de investimentos e interesse das pessoas, porém, um período muito pior já ficou para trás. “Mesmo com prêmios e sucesso de crítica, ainda temos dificuldade de atrair público para a peça, é complicado. Pelo menos, temos a liberdade para fazê-la”.

Arte contagiante

Renato interrompeu a conversa dizendo que precisava trocar de roupa. Dei licença e fiquei no corredor entre os camarins. Foi aí que diretor da peça, Eduardo Kraemer, disse para eu ficar à vontade, fazendo sinal para esperar na sala do espetáculo, enquanto ele testaria as luzes e o som. E então, aconteceu aquele momento descrito na abertura

desta reportagem. A partir daquele instante, eu estava completamente tomado pela arte e pronto para me expressar junto deles. Resistia bravamente em minha função de repórter. Sussurrei discretamente a letra da música que ecoava no ambiente, pois a conhecia. Era uma versão cover de Creep, da banda inglesa Radiohead. Renato surgiu completamente pronto no cenário. O elenco todo se reuniu ali para passar algumas partes do texto. Eis que começou a tocar Blue Monday do grupo inglês New Order. O som dos sintetizadores soou estridente e o ritmo contagiou imediatamente os artistas. Todos começaram a dançar. Qualquer coisa que acontecesse ali provocava alguma reação neles. Tudo era motivo para alguma expressão artística. O relógio marcava 21h. Os artistas tomaram suas posições. As portas da sala abriram. O público entrou e ocupou os lugares. O espetáculo começou. A cada instante daqueles 70 minutos da peça, eu me sentia menos como repórter e mais como um ser completa-


brincadeiras. A prática teatral está fundamentada em uma estrutura cênica, ficcional, que permite ao sujeito “brincar de”. “O sujeito que se propõe a interpretar alguém que não é ele, pode brincar de ser outro. Para ser outro, deve deixar de ser ele, ainda que por um instante e ainda que verdadeiramente não deixe de ser. E aí está a condição subjetiva dessa prática, porque fala de um eu que se desloca sem se desintegrar. O teatro é a possibilidade de transcender fronteiras sem precisar vivenciar os efeitos reais daquilo que se está interpretando”. Naquela peça com o Renato, ele experimentava emoções e expressava-se. O que eu senti acompanhando ele também me permitiu experimentar emoções. Isso não quer dizer que você vai sentir a mesma coisa. Cada um terá suas sensações particulares ao ter contato com alguma peça ou qualquer outra manifestação artística. Depende dos seus sofrimentos, depende da sua história. Cada encontro com a arte pode ser uma aventura sensorial. Esta foi a minha.

mente vulnerável à arte. Renato, assim como os outros atores, entregava-se a atuações viscerais. No palco, ele não tinha vergonha. Trocava o figurino diante da plateia, exibia seu corpo. Lembrei-me do momento em que ele pediu para eu sair do camarim para se trocar. No palco, não havia essa preocupação. O artista estava ali. E eu estava diante dele, não mais observando suas emoções, mas sentindo-as junto.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Nesta edição da PI, os repórteres deveriam acompanhar ou vivenciar uma situação. Neste caso específico, tratando-se de uma pauta artística, acompanhar e vivenciar confundem-se. Ao acompanhar Renato também acabei vivenciando algo. Pude sentir um pouco do que o ator sente, sem que eu precisasse atuar. Os momentos que passei naquele teatro foram intensos. Quando comecei a sentir a aura artística no local, minha respiração mudou o ritmo. Durante a peça, sentia-me sufocado. Era difícil respirar com tanta arte no ar. Ao final do espetáculo, respirei livre, mas saí tonto de lá. Sou muito suscetível à arte, principalmente à música, que me causa estas emoções fortes desde criança. O teatro eu ainda não havia experimentado. Com esta reportagem, descobri um amor pelas artes cênicas e me senti até um pouco culpado por ignorar essa arte por tanto tempo. Infelizmente, o público da peça naquela sessão não passava de 30 pessoas. Espero que a cena do teatro melhore e que outras pessoas também despertem interesse por apreciá-la. Passei a pesquisar a agenda de outros espetáculos e a convidar amigos para irem comigo. Sigo refletindo sobre aquelas horas com os artistas. Um pouco antes da peça iniciar eu havia desistido de observar como repórter, pois estava focado em aguentar aquela pressão artística do ambiente sobre mim sem poder me manifestar como eles. Esta minha catarse talvez tenha acontecido porque há um ator adormecido em meu interior. Quem sabe?

Renato Del Campão tem 37 anos de carreira no teatro

Arte e psicanálise

A psicóloga Isadora Machado, mestranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale, trabalha com a linha da psicanálise e acredita que a arte pode ser pensada por esta área. A psicanálise trata da psique humana. É uma investigação do funcionamento da mente humana, principalmente do inconsciente. A psicóloga afirma que há uma relação direta entre arte e a vida mental das pessoas, pois a arte é importante para podermos suportar sofrimentos. “A arte é uma forma de superar conflitos psíquicos, porque permite que o sujeito fale e construa meios de ressignificar os acontecimentos de sua vida. Seja pela música, pela pintura, pela escrita, pelo teatro e etc”, explica. Segundo Isadora, as fontes que fomentam a arte se encontram na infância, mais especificamente nas P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Nas bordas da identidade A performance drag vista por dentro TEXTO E FOTOS de Gabriela WENZEL

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Plínio Silveira, 23, se produz para encarar a drag Ibby Manko

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uando encontrei Plínio naquela terça-feira ainda fazia um sol intenso do meio da tarde. Ele voltava da academia, e depois de um banho estaria pronto para começar a entrevista. Subimos para o sétimo andar do prédio no centro histórico, e lá em cima, um apartamento pequeninho e cheio de vida se abriu. “Aqui é nosso canto, fica à vontade”, avisa, enquanto começa a se preparar. Na parede lilás que predomina no ambiente há alguns quadros com personagens de games antigos, e fotos do casal. Plínio e Claiton estão juntos há cinco anos, e há menos de três moram juntos. O ambiente aconchegante reúne tudo que eles gostam, e a decoração tem um toque pessoal. À altura da janela, uma pequena horta improvisada reúne chás e plantinhas que vingaram. Livros em todos os lugares. E uma baguncinha charmosa. Quando ele sai do banho, Claiton chega. É ele quem vai fazer a produção de hoje. “Isso nunca acontece, normalmente cada um se maquia e a gente se ajuda, mas hoje ele vai fazer a minha”, anuncia Plínio de cara lavada e um short vermelho desbotado. Claiton Borges é, além de namorado, cabeleireiro e maquiador, e foi junto dele que Plínio decidiu brincar de ser drag. Faz dois anos que ele “se monta” como Ibby Manko, uma drag inspirada na literatura fantástica do escritor britânico J. R. R. Tolkien, herança do lado nerd do estudante de Psicologia. A personagem nasceu de uma vontade antiga, por diversão. Influenciado pela série americana RuPaul´s Drag Race, reality show que simula um concurso de beleza entre drags, ele começou a se produzir para festas dessa temática. Aos poucos Ibby acabou se tornando uma outra identidade de Plínio. Por meio dela era possível expressar sua sexualidade de forma artística. Ao menos naquele momento em que ele se transforma, adotando características historicamente associadas ao feminino, ele experimenta se conectar com um gênero mais ligado à sua essência queer, performando e subvertendo a identidade padrão associada ao seu gênero de nascimento, o masculino. “No palco consigo ser apenas a Ibby

dançando, porque o Plínio nunca teria condições ou carga emocional e política para fazer aquilo, não teria a potência que uma drag tem quando ela performa”, pondera o artista enquanto aplica cola na sobrancelha. Depois de grudar todos os fios, começam as muitas camadas de base e pó compacto que ainda estão por vir.

Amor entre drags

Toda drag tem uma mãe, faz parte da concepção dos personagens. “A mãe é alguém que vai ter um olhar crítico, dar palpite”, explica. A “mãe” dele é o Claiton, e viceversa. “Eu e o Claiton começamos a fazer drag juntos no mesmo dia, eu fui a mãe dele e ele foi a minha”, recorda fazendo carão no espelho entre uma e outra pincelada do maquiador. O namorado de 25 anos é responsável pela drag Dora Adora, e leva a sério o envolvimento com a montagem. Uma maquiagem pode levar de três a seis horas, isso sem contar o tempo de concepção das roupas, da apresentação, e tudo isso acontece depois de muito teste. O carinho em cada detalhe exige uma atitude de prevenção: “não saio montada na rua por medo de alguém destruir minha arte”, comenta Claiton enquanto desenha as sombras no rosto de Plínio. Naquele momento, ao som do álbum Joanne, de Lady Gaga, fico pensando que tudo aquilo não se trata só de maquiagem e brilho, é

um ato de existir. Como o mundo lá fora pode não entender esse amor que eu vejo aqui? O ódio que oprime drag queens, homossexuais, LGBTs como um todo, e também as mulheres, não é o mesmo, mas tem origem em um mesmo raciocínio patriarcal e machista que impõem um lugar de submissão ao feminino e de dominação ao masculino (branco, heterossexual). Mulheres, nesta lógica, deveriam estar ligadas a representações do feminino, e os homens, ao masculino. Mas tudo isso é muito castrador, não é mesmo? Que a gente precise sempre desses dualismos para compor nossa identidade. O que a drag nos permite imaginar, mesmo naquela ideia do palco e do show, é que tudo isso que nos veste é uma construção, e que ela deveria depender somente de nós, e não de um modelo hegemônico que extermina tudo aquilo que parece estranho, diverso. Tudo aquilo que seja o outro.

Uma diva para todxs

“Existe uma performatividade do masculino que é agressivo, viril, que acaba sendo tóxica e vai desencadear esses machismos, esses preconceitos”, analisa Christian Gonzatti, mestrando em Comunicação Social pela Unisinos e que estuda cultura pop e questões de gênero. “Por causa da exclusão social e do preconceito, a gente vê um cenário em que essas opressões de gênero acabam gerando um nível de suicídio muito grande

Criação em dueto: Plínio e Claiton, performam juntos há dois anos


entre os jovens LGBTs: 60% dos jovens que se suicidam são LGBTs”, problematiza Christian. Para ele, drag é importante por representar um afronte, um grito de resistência em forma de arte nesse cenário homofóbico e preconceituoso. É como gritar: nós existimos e somos maravilhosas! O ato de performar drag não tem relação direta com a sexualidade ou com a identidade de gênero do indivíduo performista, ainda assim, a drag é uma representação estética e artística reivindicada e apropriada pela cultura LGBT desde os anos 60. Nesse cenário, é importante que as drags habitem os espaços e sejam convidadas da subversão à luz dos holofotes. É nesse sentido que o programa americano RuPaul´s passa a representar toda uma geração de novas drags, que descobrem esta arte tão antiga por meio de uma brincadeira, um programa de TV. “Por mais que toda perfomatividade seja condicionada pela cultura, ele deixa uma brecha pra pensar: se é assim, porque a gente não pode modificar a cultura e criar uma outra performatividade que pare de potencializar o machismo e o preconceito?”, questiona Christian, que também é autor da página no Facebook, Diversidade Nerd. “Todos nós, no final das contas, acabamos fazendo drag”, afirma Christian, pois nos condicionamos a símbolos historicamente ligados ao feminino ou ao masculino. A performatividade de gênero que tanto falamos aqui é um conceito trazido pela filósofa Judith Butler, e serve para explicar como as transsexuais, as travestis, os gays, as lésbicas, as ad infinitum nomeações, são outras formas de ser, outras identidades não normativas, subversivas. A drag, ainda que não seja uma identidade de gênero ou uma forma de sexualidade, permite expor todo o teatro que envolve a construção dos gêneros, e por isso é tão ligado ao movimento artístico da causa LGBT.

Isso aqui não é bagunça, mulher pode tudo!

Tem muita gente que acha que drag é só quando homem se veste de mulher, mas não é bem assim. “Ter mulheres fazendo drag é demonstrar mais ainda essa artificialidade do gênero, porque elas estarão exacerbando ou ridicularizando aquilo que é imposto pra elas”, pontua Christian. Em São Paulo, o coletivo Riot

Queens, nasceu com o objetivo de defender o espaço para drags mulheres. Formado por seis artistas, mulheres de diferentes sexualidades e corpos, o grupo pauta a importância da representatividade na cena. A arte drag é problematizada por vertentes feministas radicais, que entendem que a performance drag reforça os estereótipos que oprimem as mulheres. Mulher com cabelo cumprido, maquiagem, bunda grande, peito grande, curvas, salto, sexualidade, tudo isso é usado como recurso na hora de fazer a caricatura do feminino. Ainda assim, as Riot Queens se consideram feministas e drags, e entendem que justamente por isso é preciso ter espaço para mulheres na cena, para que possam dar opinião e dizer quando uma performance está sendo opressiva ou não. Mas drag opressiva, isso é possível? “Se a pessoa que faz a drag for elitista, machista e que gosta de conservar estereótipos, moralista, a drag também vai ser”, quem nos responde é Plínio, já montado de Ibby, e defende que nesses embates entre questões de gênero o mais rico é o diálogo e a convivência. “O que a gente vê como ato de liberdade pra gente, acaba sendo um grito de opressão para outra pessoa”, analisa depois de um pequeno desfile pela sala. “Eu sei que soa machista isso mesmo, quando a pessoa fala: ai, vou sair de menininha, então a pessoa vai lá mesmo coloca peruca e se veste de menininha e diz que é uma mulher, mas pro gay isso é poder dizer um grande foda-se se eu sou feminina, eu posso ser mais feminina do que eu sou de boy durante o dia, sabe? Cê não viu nem um pouco de como eu posso ser feminina e de como eu transformo isso em potência na minha vida”, completa ele. Era noite quando a produção de Ibby terminou. Ao longo do dia percebi uma imersão no personagem. Enquanto nasciam cores novas no rosto, Plínio também mudava. Mais expansivo, risonho e animado, se observava no espelho e se reconhecia como Ibby. Achei lindo, libertador. A liberdade de ser diferente, de questionar o que é certo e errado, de destruir o certo e errado, de construir mais pontes entre a imaginação e a vida. A drag desfaz aquilo que acreditamos ser natural, e se recria de diferentes formas, para nos mostrar a potência de construir a diversidade de identidades.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

Tive a oportunidade de me montar como drag no dia da entrevista. Maquiagem pesada, peruca e uma playlist dançante do Spotify, e eu já estava no clima de fazer carão. Foi divertido. Enquanto nos preparávamos para a foto final juntos, entrou um cílio no olho do Plínio e borrou toda a maquiagem. Tudo. Todo o trabalho de quatro horas escorrendo no anto do olho. Eu apavorada, só escuto:“fotografa isso, me filma!”. Era Ibby sem sair do personagem, sem se importar com o imprevisto. Caímos na risada. A experiência foi de sentir uma outra versão de si, e ao mesmo tempo uma caricatura, um personagem. Na volta da entrevista usei o transporte público ainda montada. De todos os lados, olhos grandes queriam me entender, mas de alguma forma também me atacar, julgar. Na rua vislumbrei um tanto daquele ódio que antes o casal de namorados havia me contado. O mundo ainda é muito machista, homofóbico. Sair na rua, pintado que seja de algo que se pareça com feminino, e você é passível de julgamento, agressão, violência. Sendo mulher e meio drag, já que naquele momento estava destituída da peruca e dos carões, entendi porque ainda precisamos transbordar todas as bordas. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Um dia de compras em Paris Conheça a rotina de um personal shopper, profissão em ascensão na capital francesa texto e fotos de Izadora Meyer

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urante um almoço rápido no café Le Bistro 25, na avenida des Champs-Élysée, em Paris, o telefone de Rima não para de tocar. Entre mensagens de textos, conversas e duas ligações importantes – uma em árabe, outra em francês – ela pede a conta, termina um rápido espresso sem açúcar e anda o mais rápido que o zigue-zague entre os turístas lhe permite em direção ao número 42 da avenue Montaigne. Missão da tarde: comprar uma bolsa Chanel 2.55 preta, a mais clássica da marca, que custa em média 5 mil euros, algo em torno de 18 mil reais. Dependendo dos acessórios inclusos na peça e da qualidade do couro com o qual ela é fabricada, o valor pode variar bastante. Essa cena poderia ter saído diretamente de um seriado sobre a elite de alguma grande metrópole, mas Rima Abas-Fidalgo é personal shopper e essa é sua rotina diária. Libanesa, ela encontrou em Paris seu lar há mais de 30 anos e foi uma das responsáveis por iniciar a profissão na capital francesa. Formada em Moda e Estilismo, teve o interesse pelo assunto despertado ainda criança e chegou a lançar uma coleção de roupas no início da carreira. Durante sua estada em Los Angeles, nos Estados Unidos, na década de 1980, conheceu a profissão, reservada aos astros de Hollywood na época e de-

pois de alguns anos trabalhando como responsável e conselheira de vendas em marcas como Prada e Gucci, a estilista de formação resolveu investir na carreira de personal shopper. “Hoje foi tranquilo, os piores dias são sexta-feira e sábado, quando as lojas estão lotadas e às vezes é preciso ficar horas na fila para comprar uma única bolsa”, afirma Rima ao sair da loja com um sorriso no rosto e uma sacola preta com letras brancas formando a palavra Chanel, decorada com a camélia símbolo da marca, que faz par com sacolas das marcas Dior, Kenzo e Hermès, já que o dia foi dedicado aos pedidos de suas clientes que não estão em Paris e contratam o serviço de compras a distância. Apesar de bastante procurada, as compras à distância não são a única facilidade disponibilizada pelos personal shoppers.

Serviço se expande ao chegar na Europa Criada nos Estados Unidos, a profissão, também chamada em francês de styliste personnel, é composta de especialistas em moda, que servem de guia na hora das compras ou de um mudança de estilo. A ideia principal é ensinar aos clientes a melhor forma de adquirir novas peças, comprando de forma consciente, além de compartilharem o caderno de endereços de luxo com visitantes e conterrâneos. De longe a única atração em Paris,

ir às compras, mesmo para quem não precisa se precupar com o preço dos artigos, pode ser um desafio e tanto durante a visita. Isso deve-se ao fato de que grande parte das marcas de luxo mais desejadas do mundo – como Chanel, Hermès, Louis Vuitton e Dior – são francesas, e têm as lojas concentradas na cidade luz. Sendo mais específico, estão divididas entre a avenida Montaigne - há quem diga que é preciso pagar apenas para respirar o ar nessa rua, perpendicular à Champs-Élysée – e a rua du Faubourg-Saint-Honoré, no oitavo distrito do munícipio. É justamente nessa hora de saber onde e o que adquirir que os profissionais do personal shopping entram em cena. Nos últimos anos, o serviço tem se tornado tão popular e procurado em Paris que as chamadas grands magasins – como a Galeries Lafayette e a Printemps, duas rivais que se encontram face-a-face no Boulevard Haussmann – disponilibilizam seus próprios personal shoppers para atender os clientes que chegam ávidos pelos melhores produtos. Entre os itens mais procurados estão bolsas e sapatos, mas joias e artigos de decoração para a casa também fazem sucesso. Entretanto, o trabalho de um personal shopper não consiste em apenas dar a opinião sobre o look que a cliente resolveu comprar, mostrar os endereços mais caros de Paris ou enviar os itens desejados para o outro lado do mundo. Existe todo um trabalho pré

O dia de Rima não acaba após as compras, pois ela precisa preparar e enviar os itens adquiridos para suas clientes no exterior


e pós compra, que, segundo Rima, é a parte mais importante. Ao contratar o serviço, que dura entre quatro e seis horas e custa cerca de 500 euros (R$ 1750), a cliente passa por uma entrevista, para que o profissional entenda suas necessidades, estilo e trace o melhor plano para otimizar o tempo. Após as compras, o trabalho de styling ganha forças, pois com as peças adquiridas é preciso saber montar looks diferentes, combinando-as entre si e também com as roupas já existentes no guarda-roupas da cliente.

Não é só de luxo que vive a profissão

Justamente nessa área que se especializou Caroline Laniel. Parisiense de nascença, adquiriu o gosto pela moda no colo da mãe, com quem lia revistas de tendência e frequentava lojas de tecidos e pequenas boutiques locais. Em 2002, partiu para uma estadia no Japão, que se entendeu para alguns meses na Ucrânia e três anos Itália, onde, atraída pelas diferenças culturais e interessada por produtos locais, começou a ver a profissão de personal shopper como uma opção. “No início eu ajudava minhas amigas a repensarem o guarda-roupas, depois foram as amigas das amigas e assim não parei até hoje, em cada lugar que passei fui criando um conhecimento de estilos e, de forma autoditada fui fazendo desse hobbie minha profissão”, relata. Apesar de ter como foco o que ela chama de “detox de guarda-roupas”, Caroline também realiza passeios em diferentes bairros parisiences, apresentando para os clientes endereços interessantes, que fogem do caminho comum para quem pensa em fazer compras na capital francesa. “Eu sempre dou preferência para estilistas locais, com pequenas boutiques, que vão trazer um produto de boa qualidade, com um preço bem mais justo do que nas marcas de luxo, além de exclusividade para minhas clientes”, explica a profissional. O perfil das clientes pode variar entre alguém que compra um casaco Saint-Laurent por 1200 euros à outra pessoa que disponibiliza o mesmo valor, mas gostaria de fazer o guarda-roupas completo para a estação. Apesar disso, as clientes procurando marcas de luxo continuam sen-

do a maioria a utilizar os serviços de personal shopping e mesmo estando acostumada a ver elas gastarem altas quantias de dinheiro, Rima garente que é possível se surpreender. “Os números mais impressionantes que eu vi foram com uma cliente americana, vinda dos Estados Unidos: ela conseguiu gastar 18 mil euros em apenas três horas!”, conta a personal shopper, entre risos. Sejam lojas de luxo ou pequenos estilistas locais, as dicas na hora de ter um guarda-roupas bem sucessido e funcional são as mesmas. Caroline ressalta que o mais importante é reduzir o número de peças adquiridas e investir em artigos de maior qualidade, principalmente quando se trata de ítens básicos. Evitar comprar acessórios que sejam específicos para um único look e sair com a mente aberta para novas opções também estão entre as recomendações. “Quando vamos fazer compras e nos atemos àquilo que já estamos acostumadas, certamente vamos chegar em casa e nos depararmos com uma roupa idêntica ou muito parecida com a que acabamos de comprar”, explica Caroline. Para quem tem um orçamento generoso e quer investir em peças de luxo, Rima afirma que os itens indispensáveis são uma bolsa Louis Vuitton ou Hermès em tons neutros e um scarpin básico Christian Louboutin. “São peças-chave, coleções se atualizam e novas tendências aparecem, mas eles vão continuar lá, não é a toa que esses são os ítens mais procurados e vendidos no mundo todo”, destaca.

Mesmo nos passeios de lazer durante as folgas, Caroline está sempre em busca de novas butiques exclusivas para as clientes

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Morando em Paris e amante da moda, minha reportagem para a PI não poderia ser sobre outro assunto. Moda e luxo, apesar de estarem relacionadas, não são sinônimos. Mas quando, durante um trabalho freelancer, eu tive contato real pela primeira vez com a profissão de personal shopper, eu percebi que viver a vida de alguém tinha um sentido diferente nessa profissão. Permitir que uma pessoa totalmente estranha entre na sua casa, olhe seu guarda-roupas, faça perguntas que invadem sua privacidade, acompanhe você nas lojas, analise milimetricamente aquilo que você está experimentando e que, inclusive, faça compras no seu lugar é uma relação de confiança muito forte. Afinal, por que incubir a um desconhecido todas essas funções? Como ter certeza que ele tem razão ao afirmar que esse e não aquele vestido é a melhor opção para você. Essa relação me surpreendeu bastante, já que, apesar de conhecer a profissão, eu nunca havia parado para pensar sobre a troca de confiança e confidências entre as partes envolvidas. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Cultura e arte na

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Casa da Praça Local se destaca como ponto de encontro dA expoente produção cultural de Novo Hamburgo Por Lucas Girardi Ott fotos de Maria eduarda de lima

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hão, teto, paredes, portas e janelas. Basicamente são essas estruturas que compõem uma casa. Para o sobrado de tijolos à vista de 519 m² localizado na rua Cacequi, número 19, no bairro Boa Vista, em Novo Hamburgo, não seria diferente se o endereço não fosse um dos principais expoentes da cultura na cidade. Construída em 1984 dentro dos domínios da praça Heitor Villa Lobos, a hoje denominada “Casa da Praça” abrigou em seus primórdios a sede do Instituto dos Meninos Cantores de Novo Hamburgo, também conhecidos como “Os Canarinhos”. O grupo participou de vários festivais de coros nacionais e internacionais, chegando a gravar dois LPs na década de 80 e 2 CDs na década de 90. Porém, passando por dificuldades financeiras, os canarinhos deixaram o prédio pouco tempo depois do auge. En até 2012 o casarão - já em estado de semiabandono - foi utilizado pelos moradores vizinhos para festas particulares. Foi aí que a então diretora do espaço, Ana Link, por meio da Secretaria Municipal da Cultura, convidou um coletivo de artistas para conhecer o espaço e ajudá-la a pensar em alternativas para a casa. Logo foram identificadas várias necessidades estruturais, como acessibilidade, saídas de emergência, restauração P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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do telhado e a mais significativa, arrumar uma ala da casa que vem cedendo ao longo dos anos, e precisa de reforço nas bases do alicerce. Mas a necessidade dos grupos artísticos por espaço para desenvolver trabalhos e o enorme potencial do local fez com que os coletivos passassem a procurar alternativas de resgate de forma simultânea, com as ações artísticas e culturais. Segundo Paulo Stürmer, artista circense. membro do Circo de Bolso e do conselho diretivo da Associação Casa da Praça, atualmente são realizadas atividades pequenas, reunindo um número reduzido de pessoas. Mesmo assim, semanalmente o espaço recebe aulas de capoeira, yoga, terapias expressivas, iniciação musical, bateria, consciência corporal e alongamento. Além destas, quinzenalmente acontece também o clube de jazz com a banda Manouche Manolo. Todos os meses também ocorre o cine debate e a reunião de um grupo de estudos em permacultura. Por se tratar de um espaço público, todas as atividades são realizadas com contribuição espon-

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tânea ou, em um menor número de casos, contribuição sugerida. As práticas realizadas são proposições dos grupos residentes na forma de contrapartida ou propostas de grupos e profissionais parceiros, de forma voluntária, com a intenção de colaborar nos objetivos e na continuidade do projeto. “As contribuições servem para pagar o custo do profissional envolvido e o restante fica disponível para o pagamento de contas mensais e para as ações de reforma”, destaca Paulo. Estima-se que ainda falte R$150 mil para a restauração completa do espaço.

Piquenique Comunitário

É fim de tarde de um sábado de outono. O céu agora é uma mescla de tons laranja e púrpura, contrastando 0as cores às das obras expostas em varais e mesas. A leve brisa que sopra com o cair da noite transporta também o som de gaita e violão, ultrapassando os limites físicos da praça Heitor Villa Lobos. Projetado em uma das paredes externas da Casa está um filme mudo da década de 1920. Alheia ao

movimento de público - na maioria jovens adultos - seis crianças observam vidradas, a performance dos musícos e as imagens em preto e branco. Trata-se do Piquinique na Praça, principal evento do local. De periodicidade bimestral, reúne um público médio de 300 a 400 pessoas. Ele é organizado e realizado por todos os grupos residentes e parceiros da ocupação, como a principal forma de contrapartida e a mais forte ligação com a comunidade do entorno. Para Mariana Amaral, uma das coordenadoras do evento e dos coletivos Il Papiro e Circo de Bolso, a casa é um propulsor para nóse todos os coletivos. “Com certeza se não houvesse a Casa da Praça seria muito difícil manter nossas atividades com uma certa frequência”, revela. Sempre no sábado ou domingo, durante toda a tarde até o início da noite, os grupos revezam-se nas apresentações musicais, teatrais, circenses, além de um grande número de artistas locais que se unem à proposta com mais música, poesia e dança. Cervejarias artesanais parceiras também rendema bebida no

Cia Circo Petit Poa RS é uma das atrações do Piquenique na Praça, principal evento do local


entrou em vigor na cidade em 2017 impede qualquer tipo de repasse financeiro ou apoio de qualquer espécie do poder público municipal para qualquer entidade da sociedade civil. Por conta desse entrave jurídico, a secretaria de Cultura fica impossibilitada de desenvolver qualquer iniciativa mais direta. “O que falta hoje é um regimento para que prefeitura possa ser parceira da Casa da Praça. Realmente é uma questão de tempo e burocracia”, revela. Ralfe reconhece os coletivos culturais como agentes transformadores da situação política cultural local. O secretário relembrou o movimento “Casa Velha”, ocorrido de 1977 a 1979 no bairro Hamburgo Velho. “Este foi talvez o último grande referencial de movimento cultural da cidade”, destaca. Dali saíram artistas como Flavio Scholles - criador do Monumento ao Sapateiro, um dos símbolos de Novo Hamburgo e autor de mais de 8 mil obras entre quadros e esculturas. Reconhecido internacionalmente, foi comparado com ninguém mais ninguém menos do que Pablo Picasso por um jornal europeu - e Marciano Schmitz - pintor, escultor e professor, considerado pela crítica especializam um dos maiores pintores surrealistas do mundo. “É muito provável que os novos Flavio Scholles e Marciano Schmitz surjam de todo esse movimento artístico que está nascendo através da ocupação da Casa da Praça”, aposta o secretário de cultura. Hoje a Ocupação Casa da Praça acolhe nove projetos residentes, além da participação de diversas pessoas que não estão envolvidas em nenhum grupo artístico, mas acreditam e apostam no espaço. Apesar das dificuldades e do longo caminho a ser percorrido, a Associação Cultural Casa da Praça orgulha-se do trabalho que vem sendo desenvolvido. “A ocupação artística fez com que a comunidade visse a oportunidade de resgatar os lindos momentos vividos nos anos áureos dos meninos cantores, com música saindo pelas janelas e tomando as casas, além da volta dos eventos na praça que reuniam toda a comunidade do bairro e muitas famílias da cidade, e isso é extremamente gratificante”. local. Já as refeições são doações feitas pelas famílias do bairro e colaboradores. Toda a arrecadação do piquenique é revertida para o pagamento das contas mensais e para as etapas da reforma da Casa.

Aceitação positiva

Desde o fim dos Canarinhos até antes da chegada dos coletivos culturais, a construção de 16 ambientes e 1 salão, juntamente com a Praça Heitor Villa Lobos, estava em estado de abandono e era frequentada por usuários de drogas. Por conta disso, os moradores das imediações prontamente apoiaram a ideia. “O movimento cultural na cidade sempre existiu, o que estava faltando era um ponto onde os artistas se encontrassem e onde as pessoas conseguissem movimentar a cena artística de uma forma mais organizada”, ressalta Fabiano Mendes, artista visual e

membro do Coletivo Consciência Coletiva - um dos primeiros grupos a organizar eventos independentes de rua em Novo Hamburgo. Em um dos maiores espaços da casa, há forte cheiro de tinta fabricada de forma artesanal pelo próprio coletivo para as oficinas - que se destaca no ambiente repleto de obras em todas as paredes. Fabiano ressalta a importância de se ter um local fixo para o desenvolvimento das atividades. “Com certeza uma das maiores dificuldades dos artistas é ter um espaço físico para a produção dos trabalhos”, revela. A contrapartida oferecida pelo coletivo pela ocupação do local é o grupo de terapias expressivas, que utiliza a arte como terapia. A participação é livre e a contribuição espontânea. Segundo o secretário de Cultura de Novo Hamburgo, Ralfe Cardoso, o marco regulatório que

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Uma andorinha só não faz cultura. Foi muito interessante observar a união e a organização dos coletivos culturais da cidade no intuito de obter espaço fixo onde eles possam desenvolver atividades. Além disso, o compromisso em oferecer uma contrapartida para a comunidade de forma totalmente independente também é motivo de aplauso. Frente á inércia do poder público, em especial em relação à cultura (um dos setores menos valorizados, especialmente em tempos de crise), atitudes como a ocupação cultural da Casa da Praça servem de exemplo e devem ser reconhecidas. Como morador de Novo Hamburgo, percebia que a cidade carecia de iniciativas como essa. +Nos últimos tempos, os eventos de rua vêm ganhando um espaço importante e maior visibilidade, graças á classe artística que se organizou e trouxe opções de lazer e arte além dos pontos tradicionais. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Tradição carregada no lombo Recanto escondido na zona rural de Porto Alegre proporciona contato com o campo e o cavalo Por Mel Quincozes. fotos de Manoela Petry

“Quem sou eu sem meu cavalo O que será dele sem mim Talvez dois seres perdidos A vagar pelo capim Porque quando morre um cavalo Morre um pedaço de mim”

A

(Os Monarcas)

letra acima, inter pretada pelo grupo tradicionalista Os Monarcas, retrata um sentimento entre o gaúcho e o cavalo, fiel companheiro. Inclusive, se fizer uma pesquisa minuciosa nas composições mais (ou menos) famosas desse P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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gênero, dificilmente encontrará alguma que não exalte o pingo, como é chamado por aqui, em pelo menos um dos versos. Se para quem nasceu ou vive no campo a paixão pelos cavalos se justifica pela proximidade, é ao observar os tradicionalistas que vivem na cidade que se percebe que, mesmo sem o contato direto com o campo e os animais, o sentimento de pertença ao que é rural ainda está presente. Seja por meio das canções ou dos “causos” contados em rodas de chimarrão, não se sabe ao certo, a certeza é que o cavalo faz parte do imaginário até mesmo dos gaúchos mais urbanos. É para quem quer manter uma proximidade com as raízes rurais, sem precisar sair do perímetro da

cidade, que Joelson Barbosa, 49 anos, e sua irmã, Maricilda, 51, criaram a Cabanha La Paloma, um paraíso verde na zona sul da Capital. Com mais de 15 hectares de terra, o local tem parceria firmada com a Secretaria Municipal de Turismo, que o incluiu entre os Caminhos Rurais de Porto Alegre, nome que se dá aos destinos de turismo rural e ecoturismo. Lá é possível vivenciar tudo que o campo tem a oferecer, principalmente as lidas campeiras do trato dos cavalos. Para isso, conta com estrutura completa, com profissionais dedicados ao cuidado diário dos 25 equinos que estão com eles atualmente. O dia a dia de Barbosa é dedicado à administração do atendimento aos animais do estabelecimento. A

Dono da Cabanha La Paloma, Joelson cuida dos cavalos com carinho


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maioria, segundo ele, pertence a clientes do serviço de hotelaria. Para estes, Barbosa oferece uma rotina de cuidados, que inclui desde a hospedagem e alimentação até a vacinação e tosa dos “hóspedes”. Além disso, também tem cavalos próprios para atender aos visitantes, ensinando-os a montar, passear e até mesmo a encilhar. Para que isso tudo aconteça, o bem-estar dos animais é colocado sempre em primeiro lugar.

Trato especial Quem vê aqueles animais bem-tratados, com pelagem brilhosa, crinas esvoaçantes e porte imponente, mal imagina a carga de trabalho diária dispensada ao cuidado deles. Na La Paloma, o dia de Barbosa e dos tratadores começa antes das 6h30, quando iniciam o preparo da alimentação dos equinos. E o segredo, segundo ele, é manter sempre os mesmos horários, pois qualquer mudança na rotina deles pode causar problemas de saúde. Sem contar que cada cavalo tem um “manejo”, como ressalta o domador. Um animal de lazer, por exemplo, que é utilizado para passeio, recebe a cada refeição seis quilos de ração, dois quilos de alfafa e grama cortada na hora. São três refeições diárias, servidas religiosamente no mesmo horário. Para aqueles utilizados em provas campeiras (como tiro de laço e rédea), a rotina é completamente diferente, envolvendo suplementação de vitaminas, além Joelson apara as dos cavalos de treinos diários - uma vida dig- crinas com frequência na de atleta de alto rendimento. para manter É pela manhã também que os o visual tratadores limpam as cocheiras. característico Cada cavalo tem sua própria, com da raça uma placa na porta preenchida com informações sobre o hóspede, como nome e dieta. Dentro da baia existem dois cochos de alimentação e um bebedouro de água, que enche sozinho conforme o cavalo vai bebendo. O piso é forrado com serragem, segundo Barbosa, para garantir conforto para o animal deitar e rolar, precisando higienizá-la todos os dias e trocar a cada 15 dias. Após alimentar, ele separa os animais de acordo com as suas características. Os garanhões são afastados dos outros e soltos no campo para pastar. Os que serão encilhados ou tratados, ele amarra no quintal em frente ao galpão, protegidos pelas sombras das figueiras que decoram o ambiente. Engana-se quem pensa que os cavalos não precisam também de cuidados com a beleza. Assim como nós, eles têm os pelos, ou melhor, as crinas aparadas com frequência. Os cuidados variam de acordo com cada espécie. O “cliente” da vez foi Don Candidio, que é da raça crioula (um dos símbolos oficiais do Rio Grande do Sul) e precisa ser tosado a cada dez dias para manter a crina baixa, característica da linhagem. Com cuidado, Barbosa corta os pelos ao longo do pescoço, com ajuda de uma tesoura especial para essa finalidade; depois apara a franja e emparelha a cola (rabo). No mesmo dia, os equinos receberam a visita de um ferreiro, que vai na propriedade a cada 40 dias para realizar o ferrageamento. Barbosa explica que o ferreiro tem que retirar as ferraduras velhas e casquear o cavalo, ou seja, cortar o excesso de casco, que segundo ele, cresce todos os dias e pode atrapalhar o passo do animal. Só então são colocadas ferraduras novas. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Mesmo que seja no asfalto Entre concreto e tijolo Muito longe dos potreiros Qualquer lugar é campeiro Se houver cavalo crioulo (Joca Martins) Frequentemente comparados a centauros em diversas letras musicais, os gaúchos desde cedo demonstram o amor por esses animais. A relação é de tanta cumplicidade que muitas vezes animal e dono parecem um só. É o caso de Camila Rainhere, 23 anos, uma das instrutoras e domadoras da Cabanha La Paloma. Ela conta que monta desde os quatro anos e não sabe viver longe deles. “Cuidar dos cavalos é a minha paixão, é o que eu mais gosto de fazer”, relata sorrindo, enquanto acaricia em seu fiel amigo, o Guri. Mesmo cursando a faculdade de Arquitetura, Camila conta que não pretende seguir carreira. Seu sonho, confidencia, é ser reconhecida mundialmente como adestradora e participar de uma Olimpíada na categoria de Hipismo. A cumplicidade entre Camila e Guri é tanta que ela consegue

até fazê-lo sorrir. O segredo, para ela, é fazer carinho. Quando isso não funciona, é só dar a ele um de seus alimentos favoritos: goiaba. A instrutora usa a sua facilidade com os animais para adestrá-los e corrigir problemas de comportamento, mas não vê problema em ajudar na lida do dia a dia – tudo para que possa ficar perto e aprender mais sobre os cavalos. Na opinião de Lourenço Nunes, 23 anos, diretor da 15ª Região Tradicionalista do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), esses animais têm grande influência sobre a tradição do Estado, econômica e historicamente, sendo importante tanto para quem lida com eles diariamente quanto para os gaúchos que moram nas áreas urbanas. “Hoje, ele é o animal de arreio, considerado por muitos como melhor amigo. É o animal mais precioso que temos”, afirma ele, que assim como Barbosa e Camila, monta desde pequeno. Perguntados sobre o que o cavalo significa para eles e para a cultura como um todo, os três são unânimes: não existe como falar do gaúcho sem falar do pingo.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Criada em uma família tradicionalista, sempre tive contato com a cultura gaúcha (da música, da poesia, do rodeio), mas por viver na cidade, pouco convivi com o legítimo gaúcho do campo, que vive as histórias que conhecemos pelas canções, sempre no lombo do cavalo. Foi daí que surgiu a vontade de acompanhar e retratar a rotina da lida campeira, de quem vive os animais e tira deles o sustento. Conhecer a Cabanha La Paloma foi uma experiência interessante, pois percebi que o campo não está tão longe quanto parece e vi o quanto a cultura se adapta para poder chegar mais longe. Para os gaúchos da cidade, muitas vezes, espaços como esse são a única forma que encontram de se aproximar dos cavalos e se conectar com a identidade cultural, que se mescla a resquícios antigos e aos avanços da modernidade. Visitar esta ou qualquer outra cabanha é uma oportunidade de presenciar – e vivenciar – de perto essa relação inexplicável entre gaúcho e pingo, companheiros ligados pela ancestralidade e mantidos pelo carinho e cumplicidade.

O cavalo Guri sorri aos comandos da instrutora Camila Rainhere

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A interação hom

O método horsemanship É UMA FORMA DE treinaR equinos SEM UTILIZAR VIOLÊNCIA

Por MIRIAN CENTENO. fotos de EDUARDA MORAES

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m lugar tranquilo, com muitas árvores, ar puro e pessoas muito receptivas. Assim é o Centro Hípico Lacan, na Rua do Schneider, Zona Sul de Porto Alegre. Ali eu esperava a “muié dos cavalos”, como é conhecida a médica veterinária Denise Maria Bicca Fernandes, especialista em comunicação equina. O cheiro dos animais que exala por todos os cantos


mem e cavalo do Centro de Hipismo. E o amor pelo equino é algo visível nos olhares e gestos de cada montador.

HISTÓRIA

Denise Bicca, médica veterinária, professora de equitação, domadora, treinadora de cavalos de esportes é proprietária do Centro Equestre Gallop, localizado

na Estrada da Extrema, no Lami, zona rural da Capital. Acompanhada de sua fiel escudeira, a Tinga, uma cadela de porte pequeno de cor marrom, ela fala sobre o amor pelos cavalos sentada ao lado das cocheiras. Naquele horário, cantam

os pássaros, os cavalos relincham e os cachorros de guarda descansam embaixo de uma linda figueira. A veterinária garante que se não fosse pelos equinos não levantava todas as manhãs, porque não sabe fazer nada se não for

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se dedicar a eles. Formada em Medicina Veterinária em 1989, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Denise tem contato com os animais desde 1973, quando entrou numa escola de equitação, aos nove anos, no Cantegril Clube.

COMPETIÇÕES

A veterinária participava de competições de salto e abriu uma clínica veterinária dentro da Sociedade Hípica Porto Alegrense depois de formada. Ela tratava e realizava cirurgias em cavalos de corridas, diferenciando das demais escolas. Denise Bicca abriu em 1998 a Escola de Equitação Centro Equestre Gallop, com o intuito de ensinar os alunos a aprender, gostar, selar, lavar, escovar cavalos e não só montar de qualquer jeito machucando o animal.. “Treinar o cavalo a partir do comportamento dele, como ele entende e sente é algo encantador”, explica. A profissional teve uma grande oportunidade quando, em 2002, surgiu um convite do Batalhão Bento Gonçalves de Polícia Montada para ensinar os militares e, a partir daí, começou a se dedicar bastante. A domadora lembra das dificuldades que os cavalos apresentavam. Eles não entravam em reboques, não obedeciam. AplicanP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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do o método de horsemanship, comunicação com animal, e feitos pela veterinária, ela conseguiu desenvolver um trabalho e instruir sargentos e soldados do Batalhão. Depois atuou ali como consultora.

CAVALOS

Conforme a veterinária, está estatisticamente comprovado que a linguagem é universal dos cavalos. por ser um animal de fuga e rebanho, não pode viver em isolamento, por isso, a técnica do horsemanship funciona. Denise faz algumas demonstrações desse método com seus dois cavalos: Catatau(pônei) e Nego(crioulo). Os animais entendem e realizam tarefas como sentar, se esfregar na palha, sorrir, coçar, caminhar junto com ela, ir para direita ou esquerda, deitar no chão, subir em cima do banco. A cada tarefa realizada os cavalos recebiam uma cenoura como reconhecimento pelo trabalho. São ensinamentos que enchem os olhos de lágrimas devido à capacidade de aprender do cavalo e emocionam pelo simples fato de ser carinhosos o tempo todo. “Simples e fácil de entender, a leitura dos cavalos faz todo sentido porque tem um resultado eficiente, seguro, rápido e se repete”. A domadora recebe os bichos de todos os cantos do Brasil, até do exterior,

pelo simples fato de ler e se comunicar muito bem com eles. Ela cita o primeiro cavalo que trabalho, que foi para fora do Brasil, o Royal Finish, um animal “maluco” como ela o chama. Veio da Europa, perdeu muito a funcionalidade, estava louco demais, afirma a veterinária. Ele foi seu grande professor, com o qual aprendeu muitas coisas que utiliza até hoje em suas domas, técnicas e assessorias.

ENSINAMENTOS

Denise trouxe para o Rio Grande do Sul e Mato Grosso, o método horsemanship, hoje bem divulgado no facebook e youtube. Suas principais técnicas são embasadas no comportamento com exercício de solo, controle de garupa, controle das partes do cavalo. Todo o animal que recebe depois de três meses sobre os seus ensinamentos sai um animal dócil e interativo, faz o que tu quer. A professora de equitação apresenta a sua amiga e ajudante Luana e o amigo e doutor Antônio Cardoso. Luana Vasques Silva, 18 anos, é acadêmica de Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). e entrou na educação física para poder trabalhar com os cavalos. A jovem trabalha a parte montada e Denise, a parte baixa. Conheceu


Para cuidar dos animais, o fisiatra Antônio Cardoso recorre aos cuidados da veterinária Denise Bicca

a treinadora Denise Bicca através do seu instrutor, Guimarães. Para Luana, é muito legal entender o comportamento do cavalo e o que ele está pensando. “O modo como a gente pede algo para o animal na maioria das vezes é incorreto, por isso, ele age de outra forma”, diz Luana. A estudante de Educação Física está aprendendo a entender os equinos. Toda envergonhada, embaixo de uma das três figueiras da casa do Dr. Antônio, relata que não sente que está trabalhando, como se estivesse de férias, é prazeroso lidar com os animais. “Eles são generosos, se tu tratares bem, vão te tratar bem, é um modo de recompensa muito bom que recebe, é só entendê-los e fazer tudo certo”, diz, Luana.

REALIZAÇÃO

Prova disso é o médico Antônio Cardoso dos Santos, fisiatra do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, atualmente professor da Faculdade de Medicina da UFRGS. Ele tem uma relação de longos anos com os cavalos, desde que morou em São Paulo. Quando tinha oportunidade, ele montava. Natural de Portugal, ele mora em Porto Alegre desde 1980, onde teve a oportunidade de conhecer algumas pessoas vinculadas

ao hipismo, e teve a oportunidade colocada à sua frente. Doutor Cardoso pratica equitação desde 1982, sempre gostou de saltos, por isso competiu bastante e conseguiu alguns títulos como campeão brasileiro de máster em 2000 e tetra campeão de gaúcho máster. Devido a paixão pelo cavalo, comprou uma área na zona sul de Porto Alegre, na rua do Schneider onde mora atualmente. Ele fala com carinho da amiga e domadora de sua égua Denise Bicca. O médico lembra da época em que a conheceu, na Sociedade Hípica, onde ela frequentava, era veterinária e desde aqueles tempos tornaram-se grandes amigos. Sempre que tem algum problema com os cavalos, ele recorre à doutora Denise. “O nível de competência dela lidar com os animais dentro do conceito horsemanship é espetacular, confio muito nela, é competente demais de muito conhecimento”, afirma Cardoso. Atualmente Denise está atendendo uma égua de cinco anos de 1,70cm, filha da sua égua campeã. Nesses 15 dias em que está cuidando da égua, que apresentava alguns comportamentos como morder em alguns momentos, dar coices para tirar as moscas, já está havendo um resultado em pouco tempo. Dr. Cardoso fala sobre a propriedade

que adquiriu num lugar lindo, arborizado na zona sul de Porto Alegre, com várias figueiras centenárias. Eram baias de cavalo que ele próprio adaptou para sua moradia, tamanha paixão pelos animais. Nesse encanto de lugar no coração da zona rural de Porto Alegre, o médico fisiatra ratifica “é o meu lazer, o meu esporte onde me desestresso, gasto um pouco de dinheiro com isso, mas não gasto com psiquiatra”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Eu amei muito a pauta que eu escolhi, a sensação de poder sentir o cheiro dos cavalos, o ar puro e alegria no olhar das pessoas por estar fazendo o que gostam. É algo encantador! O cavalo transmite a liberdade que eu e todos que estavam no centro de hipismo buscamos. Denise é uma profissional acessível, aberta ao diálogo, além de ter uma ótima conversa, é boa de papo. Passamos a tarde do dia 10 de março rindo do seu jeito espontâneo de ser. Com olhar emocionado e a voz embargada, a “muié dos cavalos” fala da sua profissão e o amor pelo que faz. É impressionante como os animais entendem e realizam as tarefas corretamente. O momento que eu me emocionei foi quando a veterinária virou o rosto para o Catatau(pônei) dar um beijo. Foi sensacional! Muito lindo! Fiquei de boca aberta. Não tem explicação ou palavras que transmitam o sentimento e o prazer que senti em realizar essa reportagem. Foi algo deslumbrante! P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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O quilombo das mulheres No final de Gravataí, o Quilombo Manoel Barbosa é cheio de personagens femininos fortes Por Vitória Padilha fotos de EDERSON SILVA E ERIC MACHADO

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Quilombo Manoel Barbosa, lar de cerca de 37 famílias, é um lugar simples e bonito. A área rural lembra muitas outras, de distintas regiões. Casas singelas. Campos cortados por cercas de arame. Gado aqui e acolá, brisa suave, passarinhos cantando e outras características que só a natureza pouco alterada pode proporcionar. Localizado “nos fundos” de Gravataí, tem uma história inteiramente ligada à cidade. O lugar tem como missão provar que nem tudo é como parece. Quilombos não são como os retratados em Escrava Isaura e afins. A história contada em livros nem sempre é a verdadeira. Quem me recebe no quilombo é dona Vera Lúcia dos Santos que, com 65 anos, tem ar de avó fraternal que cuida e mima os netos. Conversar é com ela mesma. Conta com prazer tudo o que sabe sobre o quilombo, as dificuldades e prazeres de ter morado lá desde que nasceu. Essa, aliás, é uma característica bastante comum entre os moradores. Nascem, crescem e continuam no local, formando suas próprias famílias. Fala com orgulho de quando foi presidente do Clube de Mães do local. Sorri, mostra fotos e certificados.

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Prova que o afeto encontrado em seu olhar é verdadeiro. Conta das seis filhas mulheres, dos netos, dos bisnetos. Lembra que antigamente as coisas eram mais difíceis. Fala isso, porém, com nostalgia. Relembra as casas antigas, de barro, telhado de palha e fogão à lenha. Contando que se criou ali, aponta para o outro lado da pequena estrada de terra e diz que nasceu lá. “Eu nasci do outro lado da rua, do outro lado tem uma figueira, era a chácara da minha vó, mãe da minha mãe”. Ao falar da história do local, diz que nada é o que parece. Às vezes, as pessoas chegam lá querendo saber onde ficavam os escravos, a senzala. Ela garante que, apesar de ser quilombo e do histórico da escravidão no país, no lugar nunca houve nada disso. “Ainda existe esse negócio de racismo, mas aqui nunca teve ninguém acorrentado, nunca teve essas coisas que comentam”. Preparando um chá e servindo a mesa, dona Vera Lúcia conta que todos do quilombo são parentes de alguma forma. Ri afirmando que “aqui parente casa com parente”. Sobre a história oficial do quilombo, deixa para a filha a missão de contá-la melhor. Dona Vera Lúcia serve como guia para a reportagem dentro do quilombo. Com prazer, nos leva até a casa do cunhado, a quem ela chama de tio Fran.


Eric Machado

Vera Lúcia é moradora do quilombo desde que nasceu

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Eric Machado

A pasta de Vera Lúcia guarda memórias sobre a família e o Clube de Mães

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Quase cem anos de memória

“Nasci aqui. Me criei aqui.”, diz Antônio Francisco Barbosa, o morador mais velho do quilombo. Ele representa um retrato do lugar, pela sua história, postura e trejeitos. Com 97 anos, é um dos netos de Manoel Barbosa – quem dá nome ao quilombo. Conta com felicidade que “daqui três anos, faço 100”. Sentado na varanda da casa azul rodeada de árvores, sorri quando perguntado sobre as histórias do lugar. Com a fala mansa de avô que conta história para os netos, diz que há tempos tudo era diferente. “Naquela época não existia lei”, diz, falando que aquelas terras todas eram “de gente preta”. Segundo ele, outras famílias foram chegando, se adonando do espaço e até matando quem morou ali pra conseguir um pedaço de chão. E Francisco garante: “naquele tempo ninguém falava em quilombo”. Conta que os moradores só tomaram consciência de que eram integrantes de um quilombo quando foram atrás de sua história. Ele e Vera Lúcia se perdem em conversas sobre o tempo. Relembram com carinho das atividades e das pessoas. Com jeito de pessoas 76

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criadas no interior, lembram do nome e parentesco de todos. É um tal de “fulano, primo de ciclano” pra lá, “beltrano, genro de fulano” pra cá. “Antigamente tudo era diferente”, diz, se referindo à vida mansa de interior. Nessa hora, o olhar está longe e a saudade fica aparente. Por longos minutos, Francisco fala do passado. Conta que trabalhou a vida inteira como vigilante. Há dois anos, teve a perna esquerda amputada por complicações de um problema que começou no pé. Duvida do veredito dos médicos, se considera saudável. “Não tenho nada. Nem na cabeça, nem sangue, nem pulmão, nem nada”.

Afinal, qual a história?

A trajetória do quilombo é nublada. O que se acha são várias versões que convergem, difícil saber qual a mais correta. A versão encontrada na internet, no blog Quilombolas Manoel Barbosa, da antiga associação dos remanescentes do lugar, conta que parte das terras foi comprada por Manoel de um antigo senhor chamado José Joaquim Barbosa. A filha de Vera Lúcia, Carmen Lúcia, conta sua versão. Parecida com a

mãe fisicamente e no jeito de falar, diz que quer fazer faculdade de História. Ela desmente tudo o que se encontra na web e apresenta a verdadeira protagonista da história: Maria Luiza Paim de Andrade, mulher de Manoel. Carmen conta que pouco se sabe sobre a história de Manoel. Provavelmente, nem escravo foi. Dele, só se sabe o nome e que morreu com aproximadamente 52 anos, mordido por uma cobra. Quanto a Maria Luíza, ela apresenta uma biografia completa. Maria, sim, foi escrava. Criada em uma fazenda, foi escolhida para ser dama de companhia ainda criança, quando foi vista no quintal pela sinhazinha, chamada Isaura. A menina, aniversariante, podia escolher qualquer coisa como presente. Escolheu Maria Luíza. A escrava acabou virando uma espécie de afilhada da mulher. Com a morte da sinhá, decorrente de uma tuberculose, Maria ganhou as terras. Por machismo da época, os bens de uma mulher ficavam no nome do marido, e assim foi. A história do quilombo é passada pra frente de forma verbal. Registros e documentos oficiais da época são difíceis de achar. No museu da cidade, Agostinho Martha, o que se


Carmen Lúcia estuda a história do quilombo e diz sonhar ser historiadora

EDERSON SILVA

EDERSON SILVA

encontra é a explicação da relação entre negros e brancos na época. Os primeiros escravos chegaram junto com os primeiros sesmeiros, portugueses responsáveis por dividir as terras brasileiras, no século XVIII. Na virada do século, já havia na cidade dois negros para cada branco. Organizações da comunidade negra foram importantes na história do município: havia a Irmandade do Rosário, que liderava as procissões das festas das igrejas. As famílias Barbosa e Paim, inclusive, faziam parte da irmandade. No dia 7 de setembro de 1884 todos os escravizados da Aldeia foram libertados pelo coronel Antônio Rodrigues da Fonseca, quatro anos antes da Lei Áurea assinada pelo Império. Carmem Lúcia fala também de outros quilombos que visitou, afim de conhecer a realidade de quem vive de jeito semelhante. Ela conta, inclusive, que Manoel Barbosa tem uma versão urbana, em Canoas. Descendentes, nascidos nesse pedacinho de Gravataí, foram se mudando e se encontrando em outra cidade. Aí a história deste quilombo se entrelaça com a Chácara das Rosas, quilombo fundado por Rosa Barbosa de Jesus, uma das filhas de Manoel e Maria Luíza. Chácara

das Rosas foi, inclusive, o primeiro quilombo urbano do país. Carmen Lúcia cita os quilombos Botinhas, Silva, dos Alpes, das Almas, do Macaco Branco, dos Porongos, Pinheiro Machado, Real da Baronesa, entre outros. Conta que os conheceu em visitas e convenções. Muitos também criados por ex-escravos. Vários quilombos do Sul foram iniciados pelos escravos alforriados por participarem da Guerra do Paraguai que decidiram ficar por aqui. A maioria, hoje, vive de agricultura familiar. Atualmente existem 95 quilombos registrados ou em processo para serem reconhecidos no Rio Grande do Sul. Há 2605 famílias, contabilizando somente as que têm esse dado apresentado pela ONG Comissão Pró-Índio/SP. O Incra, responsável pelo registro de tais terras na esfera federal, contabiliza mais de três mil comunidades no país. O instituto também publica anualmente guias que contam a história e falam da cultura de quilombos. Ao fim do dia, a visão acerca do quilombo é outra. Ele foge de qualquer estereótipo que possa surgir na imaginação de quem espera que o lugar realmente tenha senzalas usadas

na época da escravidão. Mas isso não deixa sua história menos interessante. A reviravolta de haver uma mulher como verdadeira dona das terras e origem do lugar é surpreendente e pode levar a debates bastante atuais. Apesar do nome masculino, a primeira impressão é a de um lugar marcado por mulheres. Mulheres fortes. Desde seu início. O Quilombo Manoel Barbosa é um quilombo de mulheres.

Francisco é o morador mais velho do quilombo, neto dos fundadores

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Para alguém que sempre se interessou por história, é interessante se envolver nessa pauta. Ouvir dos moradores a origem do quilombo foi encantador e instrutivo ao mesmo tempo. Passei um dia inteiro com eles e ter tempo para observar seus jeitos foi ótimo. O ponto principal da reportagem, a meu ver, foi descobrir que as coisas não são do jeito que a gente espera. Quando se pensa em quilombo, vem um clichê à cabeça, que não se confirma quando se conhece o lugar. Aprendi muito fazendo essa reportagem. Tanto no sentido jornalístico quanto na vida. As pessoas que conheci são sábias de diversas maneiras e sinto que absorvi tudo o que pude. Houve também o desafio de produzir uma grande reportagem, que exigiu dedicação e, principalmente, observação, coisas que às vezes passam batidas na correria do dia a dia. Sou grata pelo trabalho desenvolvido e espero que os personagens desse texto tenham tocado alguém do jeito que me tocaram. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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a ROTINA DE UM ASSENTADO DO MST VAI MUITO ALÉM DE UM PEDAÇO DE TERRA PARA PLANTAR Por Dijair Brilhantes fotos de Daniela Tremarin

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uito longe do tão sonhado mundo socialista idealizado por grande parte dos agricultores que habitam os movimentos de trabalhadores rurais no país, mas um exemplo de produção coletiva bem-sucedida. Assim resume-se a história dos assentados do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Assentamento Capela em Nova Santa Rita, onde as pessoas que buscaram através da luta social, na reforma agrária a realização do sonho de ter onde plantar, criar e cultivar. Percorremos pouco mais de 30 quilômetros, a


A luta diária de um sem terra

distância que separa Canoas do Assentamento Capela, após uma noite de chuva forte. Amanhecia nublado, nada que impedisse a rotina de trabalho dos cerca de 120 trabalhadores da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita Ltda. (Coopan), criada pelos assentados em 1994. Quando chegamos ao Capela, fomos apresentados a uma senhora de nome Alvanir Antônia Balbinote. A Baixinha, como

é carinhosamente chamada pelos moradores do local, é uma das responsáveis por preparar o almoço dos trabalhadores da Cooperativa. Enquanto prepara os pratos que serão servidos a poucas horas e saboreia algumas cuias de chimarrão servidos com a água aquecida no fogão à lenha, Alvanir lembra das dificuldades que foi chegar até Santa Rita, no ano da ocupação. Natural de Ronda Alta, norte do Estado, Alvanir está há 29 anos

militando no Movimento dos Sem Terra. “Eu e meu esposo éramos de uma família de pequenos agricultores, produzíamos em uma terra arrendada, mas não estávamos mais conseguindo nos sustentar com aquilo, daí resolvemos nos juntar ao pessoal do movimento”, lembra Alvanir. O casal juntou-se aos demais agricultores em busca de terra no município de Palmeiras das Missões e a primeira ocupação ocorreu em Cruz Alta. Lá o casal Balbinote coP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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meçou a sentir os primeiros desafios e dificuldades na luta da reforma agrária. Alvanir lembra que nessa ocupação ela e os companheiros foram detidos pela polícia. Depois de muito medo e negociação, o grupo foi liberado. O sonho permanecia, o destino então, foi outra fazenda improdutiva, desta vez na região de Bagé, onde viveu um triste momento de sua história “Ficamos um ano acampados em Bagé, lá perdemos um companheiro morto por um ‘capanga’ de fazendeiro, e como não havia espaço para todos lá e não queríamos nos separar de um grupo que havíamos formado. Resolvemos vir caminhando de Bagé até a capital, e viemos parar aqui em Nova Santa Rita”. A cozinheira do assentamento Capela relembra de cada detalhe, o brilho no olhar e a mansidão na fala, expressam o orgulho e a certeza que escolheu o caminho certo, o caminho do trabalho e da luta. “Tudo foi conquistado à base de muita luta, olhar para o assentamento e ver esse progresso todo nos mostra que estamos no caminho certo, mas a P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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luta não termina aqui, pois não é só pela terra, é por melhorias, na saúde, na educação, na busca de um país mais igual para todos”, complementa Alvanir. O pensamento coletivo é algo corriqueiro na vida das pessoas que vivem no movimento sem terra. O Assentamento Capela foi criado em fevereiro de 1994, em maio do mesmo ano foi criada a Coopan. Atualmente abriga 100 famílias, a maioria oriunda da região norte do Estado. Deste total, 29 famílias e 70 sócios estão envolvidos nas atividades de produção, industrialização e comercialização de arroz orgânico, leite e carne suína. Segundo Alvanir, a construção da cooperativa só foi possível devido ao trabalho de base, onde os assentados costumam discutir e decidir os rumos a serem seguidos.

conhecimento técnico

Indiane Rubenich ficou encarregada de nos mostrar o assentamento. Aos 23 anos, ela conta com orgulho que nasceu dentro do movimento que luta por terras. Ela

conhece cada detalhe do local e seu funcionamento. Nem parece que ficou ausente durante muito tempo nos últimos cinco anos, quando morou na pequena cidade de Laranjeiras, no Paraná, onde formou-se em ciências econômicas pela Universidade Federal da Fronteira Sul. “Eu nasci dentro de um assentamento, vivi minha vida dentro do movimento, fui para Laranjeiras estudar, e me formei agora no inicio do ano, nada mais justo que voltar pra cá e retribuir tudo que o movimento fez por mim”, explica Indiane. A vida no assentamento, as discussões do MST e os trabalhos de base fizeram a jovem aprender a viver de forma coletiva. “O que a gente construiu até hoje aqui no assentamento é graças ao coletivo, a cooperativa faz com que todos nós tenhamos emprego, porque existem diversas áreas aqui que acabam acolhendo a mão de obra tanto operacional quanto técnica”, explica. Hoje diversos assentados têm formação acadêmica. É possível encontrar técnicos agrônomos e em gestão de cooperativas, veterinários, economista, engenheiro de alimentos e futuramente uma psicóloga que ainda que está em formação. Cada família assentada tem seu espaço de terra para produzir, cabe a cada uma decidir se quer produzir de forma individual ou coletiva. A maioria opta pelo coletivo. A única proibição é comercializar o terreno. “O processo de transformação social é muito maior que a venda de terras, são pessoas que não tinham onde plantar, que passaram fome, e hoje tem e tiram seu sustento dali”, ressalta Indiane. Após caminhar alguns metros, a jovem nos leva até o local onde o veterinário Juliano Zanette está tratando


alguns dos 2,7 mil porcos que são criados para o abate. O alto grunhido dos porcos dificulta nosso diálogo, mas o veterinário explica que diariamente cerca de 100 deles passam pelo matadouro. Zanette formou-se na Universidade Central “Marta Abreu” de Las Villas, em Cuba. Por seis anos, o médico veterinário viveu no único país do continente americano que possui o regime socialista, algo semelhante ao que é praticado no Assentamento Capela. “A cultura de lá é muito diferente da do Brasil, obtive muitas experiências em Cuba, existem muitas cooperativas lá e a gente tenta compartilhar as experiências de lá”, conta Zanette. Ao passarmos nas proximidades da plantação de arroz, Indiane nos apresenta Flávio Seller, vestido como um legítimo personagem do campo, camisa listrada e chapéu de palha, que em poucos minutos é capaz de dar uma verdadeira aula sobre plantação de arroz orgânico. “Não existe mistério, é preciso apenas seguir as regras que requer a produção, e saber os tempos certos da colheita”, re-

sume Seller, sobre a produção de arroz orgânico nos pouco mais de 500 hectares de plantação. Após a colheita, o cereal passa por todo um processo de secagem, separação até serem ensacados e ficarem prontos para a comercialização. O trabalho duro na cooperativa não distingue homens e mulheres, em todas as áreas ambos os sexos realizam as atividades, pois há um consenso que se houvesse machismo faltaria gente para trabalhar, seja nas cooperativas ou nos assentamentos. Segundo portal oficial do MST, existem cerca de 350 mil famílias assentadas em todo o Brasil, o Assentamento Capela é reconhecido como modelo de produção coletiva no Estado. Ao deixarmos o Capela, para retornarmos para casa, ficamos com a certeza de que o planejamento, a contabilidade e a tecnologia ajudaram muito no crescimento do assentamento e da cooperativa, mas a luta social organizada tornou aqueles sem terra vencedores e ainda mostrou que é possível viver em um lugar em condições de mais igualdade entre as pessoas.

Militante do MST há 29 anos, Alvanir (à esquerda) demonstra orgulho ao falar do movimento. Formado em medicina veterinária em Cuba, Zanette traz as experiências vividas no país com regime socialista

IMPRESSÕES DE REPÓRTER O assentamento Capela era o destino. Sou morador de Canoas, cidade vizinha a Nova Santa Rita, onde se localiza o assentamento. Um lugar tão próximo, são apenas 30 quilômetros de distância entre a minha casa e o assentamento, mas tão distante do caos urbano. A fotógrafa Daniela Tremarin e eu chegamos por volta das 7h. Amanheceu frio, os termômetros marcavam 12 graus, segundo uma rádio da Capital. Somos recebidos por Alvanir Balbinote, uma das assentadas que trabalha na cozinha da Cooperativa. O fogão à lenha funcionava a todo vapor, o chimarrão já acompanhava as cozinheiras do local. Entre uma cuia e outra, Alvanir ia nos contatando histórias, de forma simultânea preparou a mesa, nos serviu um café passado há poucos minutos. O pão caseiro estava fatiado, diversas geleias com sabores diferentes estavam ali, difícil saber qual delas era a campeã no sabor. A recepção nos dava mostras de como seríamos recebidos em cada “canto” do assentamento que iríamos visitar naquele dia. Todos os trabalhadores do local dispuseram alguns minutos da manhã para nos contar um pouco de suas histórias no assentamento, das atividades exercidas. Antes de ir embora, ainda fomos convidados a almoçar. A comida servida no refeitório para os trabalhadores, alimentam também os filhos de alguns assentados. O cheiro é atrativo, o gosto melhor ainda. Terminamos a entrevista, voltamos para o carro com a certeza que tínhamos uma boa história para contar. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Toda quarta-feira Carmen e Norberto vão de Montenegro a Porto Alegre para vender produtos

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É dia de feira! CASAL DE Produtores construIU vida em torno da produção orgânica Por Denis Machado. fotos de nathalia amaral

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ncontramos Norberto Jorge Haas, 43 anos – o Nor, para os mais chegados – nos fundos de casa, lavando as morangas que logo estarão a caminho da Feira Agroecológica, em Porto Alegre. Estamos na cidade de Montenegro e essas morangas, junto de umas caixas de milho, abóbora e limão, chegaram ali na noite anterior, vindas do distrito de Vapor Velho, no interior do município, onde ele mantém sua plantação. Logo aparece a esposa, Carmen Regina da Silva, 36 anos, terminando às pressas a função da lavagem das roupas da família para acompanhar o marido na rotina do dia. Como ocorre em toda manhã de quarta-feira, o caminhãozinho da família é carregado com produtos e eles seguem (às vezes só Nor e algum ajudante) para a Associação Companheiros da Natureza, da qual fazem parte. Apertados na cabine única do caminhão pela presença dos dois visitantes da Revista PI, o casal nos conta um pouco sobre a Associação para onde estamos indo. A Companheiros da Natureza

é uma associação de dez famílias que soma por volta de 40 pessoas - voltada ao cultivo e o comércio de alimentos orgânicos. A sede fica no município de Pareci Novo e foi construída com uso de fundos do Ministério da Agricultura. Nor me explica o que motiva o produtor orgânico a procurar esse tipo de associação: “Com elas tu tens mais facilidade para conseguir benefício do governo e até pela certificação do orgânico, que é muito cara [...] sozinho é bem mais difícil”, conta. De fato, conseguir uma certificação como produtor orgânico tem bastante burocracia. A lei 10.831, conhecida como a lei dos orgânicos, junto dos regulamentos adicionais, estabelece técnicas e procedimentos específicos na produção para que se ganhe o certificado e, para isso, o investimento é considerável. É obrigatório também que o produtor assegure a rastreabilidade do produto e o livre acesso aos locais de produção, inclusive para o consumidor comum. Na sede da Companheiros da Natureza tudo é pesado e anotado para o controle financeiro. Lá chegam todos os associados com sua produção para o carregamento P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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dos caminhões da associação que atende, em Porto Alegre, feiras nos bairros Tristeza, Bom Fim, Três Figueiras, Auxiliadora e Menino Deus - cada uma com o seu dia próprio. Como estamos num período de baixa safra do citrus, – o “forte” da produção na região somente os produtos de Nor e de mais outro associado serão comercializados. Feito todo o processo, vamos - agora no caminhão da Associação - para a Feira Agroecológica do Bairro Menino Deus. São 64 quilômetros de viagem e eu aproveito esse período para conhecer melhor a história do casal. Nor me conta que se criou em Vapor Velho e sempre trabalhou como agricultor com o pai. “Quando começou essa de colocar o agrotóxico, todo mundo colocava, mas daí eu comecei a ver que aquilo não fazia bem. Tive conhecidos que passaram mal de lidar com aquilo, daí

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eu pensei: eu não quero uma coisa dessas pra mim. Tem que ter um jeito de fazer diferente”. Da conversa com conhecidos, surgiu a oportunidade da participação em um curso sobre a produção orgânica em Antônio Prado, no qual se aprendia muito sobre os agrotóxicos e os seus efeitos. “Tu chegava em casa apavorado”, revela ele. Isso foi em 1998 e coincidiu com o ano em que ele e Carmen começaram a namorar. Logo eles foram morar juntos nas terras que Nor adquiriu, próximo da família. “Quando eu me mudei lá pra fora, eu tinha amigas que até riam, mas eu sempre gostei do interior e de trabalhar com o alimento”, conta Carmen, orgulhosa de sua trajetória. Hoje, com dois filhos, o casal se viu obrigado a morar na cidade pelas oportunidades na educação das crianças e a facilidade na rotina. Eles mantêm, em Montenegro,

um pequeno armazém orgânico e fornecem frutas e verduras para as escolas do município. É visível, no entanto, o carinho deles com o tempo vivendo na área rural. “Olha lá o nosso avião”. Nossa conversa é interrompida por Nor, apontando um avião da Gol chegando no aeroporto Salgado Filho. Estamos passando na ponte da Arena do Grêmio e eu percebo que a chegada do casal de agricultores e do avião na capital gaúcha é sincronizada toda quarta-feira. Logo estamos no Menino Deus.

só de orgÂNICOS

Somos os primeiros a chegar no pátio da Secretaria da Agricultura, onde a feira ocorre, e o caminhão é rapidamente descarregado. Com duas caixas cheias de limões nos braços, Carmen brinca: “Quem faz feira, não precisa de academia”. Enquanto improvisamos nosso almoço


antes da feira iniciar, Norberto me mostra seu caderno de controle da produção. Um grande livro preto, todo escrito à mão, onde ele controla, por lotes da sua terra, tudo o que foi colhido e tudo o que foi plantado. “Assim tu enxerga o que tá dando lucro, o que tá dando despesa e o que tu tem que mudar”, me explica ele. Esse controle deve estar sempre em mãos, junto de toda a documentação da certificação, caso alguma fiscalização aconteça. A montagem da banca é feita rápida, mas cuidadosamente. O casal exibe em destaque – assim como muitos dos outros comerciantes – o seu certificado orgânico. No local, encontramos feirantes de Antônio Prado, Terra de Areia e Torres, dentre outras localidades. Ali, cada um tem registrado o que comercializa como produto principal. Se uma outra banca quiser vender o mesmo produto, deve

fazê-lo em quantidade reduzida. E a variedade é grande. Tínhamos, por exemplo, uma banca vendendo quibes vegetarianos à nossa direita e vendedores de pães assados na hora à esquerda. Todos os participantes são unidos em uma associação própria que cuida dos regramentos e do pagamento das despesas. A feira abre oficialmente às 12h30, mas é 12h14 quando chega a primeira cliente. A partir dali, o movimento não para. Como se tivessem brotado do chão, os visitantes lotam a feira de uma hora para outra e o casal se desdobra nos atendimentos. E assim a tarde segue, movimentada e com um público variado. Pelas marcas de carros que estacionam ao redor, é perceptível que grande parte dos clientes tenha um razoável poder aquisitivo, visto que o orgânico é, de fato, mais caro. Mesmo com o custo maior, no

entanto, a procura pelo produto tem aumentado. Dados do Instituto Organics Brasil indicam que, no ano passado, esse mercado cresceu cerca de 30% no país. Norberto corrobora esse índice: “Hoje, se tu produzir, tu vai vender. Tá bem melhor que antigamente”. Ele estima que, mesmo nessa época de baixa safra, a banca arrecade R$ 1.500 em um dia de feira - o que representa um bom lucro - e encerra nossa conversa com um desabafo: “Uma época tu tinha vergonha de dizer que era agricultor, tu só via o pessoal ‘se mandando’ lá de fora e querendo outras coisas, mas agora tem estudo, tem desenvolvimento”. Num mercado em ascensão, viver dos orgânicos se mostrou um empreendimento de sucesso para o casal que investiu na prática quando ainda pouco se falava no assunto e que tem claramente estampado no rosto o orgulho pelo que faz.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Acompanhar um dia da rotina de Norberto e Carmen foi uma ótima experiência. O casal esbanja simpatia e em nenhum momento deixou de nos dar atenção. Ficamos juntos das 7h30 até por volta das 16h e pude acompanhar de perto boa parte da preparação e do processo dos produtos do casal até chegar na feira em Porto Alegre. Infelizmente, não participamos da colheita, que já havia ocorrido no dia anterior, mas acho que pudemos ter uma boa ideia de como funciona toda essa operação com o alimento. O que mais me chamou atenção, no entanto, foi a dinâmica de cumplicidade desse casal que empreendeu junto e construiu a vida a partir de uma ideal que compartilhavam. Quando eles começaram, os orgânicos não estavam tão em alta como estão hoje. A aposta, que hoje traz bons resultados, foi um risco movido pelo desejo de se desenvolver de uma forma que não atacasse o meio ambiente e que trouxesse algo de bom: uma alimentação saudável. É uma visão que merece destaque e eu fiquei feliz por poder dá-lo.

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Malini e Raghunandan se reúnem com outros praticantes aos domingos para cantar os mantras no Parque da Redenção P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Seguindo os passos de Krishna Acompanhamos a vida de quem segue a prática espiritual do Vaishnavismo no ocidente, entre mantras e mestres espirituais Por Elisa Ponciano. fotos de Ellen Renner

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aribol!”. É a saudação que dá as boas-vindas pelo interfone. O prédio verde da Rua Vicente da Fontoura, zona sul de Porto Alegre, não dá sinal de que em seu interior abriga um templo. Um lance de escada depois, um corredor sombreado logo projeta uma porta entreaberta. O local, como todo templo, é sagrado. Entra-se descalço. No chão, almofadas coloridas para recepcionar os visitantes. Por toda a sala há quadros, artefatos coloridos e imagens de divindades e dos mestres espirituais enfeitam as paredes. Em um canto próximo à janela está disposta uma estante, que é o altar. O templo, além de um local para realização das práticas espirituais, é o lar do casal Marcela Barbosa de Souza, 35 anos, e Rafael de Mello Rodriguez, 38 anos, praticantes do Vaishnavismo. Mas não espere que eles atendam se você chamá-los por esses nomes. Desde a iniciação na prática ela é Malini Devi Dasi e ele, Raghunandan Das. O nome, idade e profissão são secundários para quem convive em meio a tantos fatores transcendentais, que não podem ser traduzidos integralmente em nosso mundo material. Durante a visita tudo é permeado por gestos com a intenção de servir. Os alimentos, antes de serem consumidos, são consagrados no altar. Em meio à rotina, o casal conta com naturalidade os aspectos que envolvem a prática espiritual. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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A BUSCA POR RESPOSTAS

Nos vedas (abaixo) estão contidos os mantras entoados pelos praticantes. À direita, imagens das divindades e mestres espirituais decoram o templo

Formada em Direito, Malini sempre teve mais perguntas do que respostas. Vinda de uma família com mãe católica e pai ateu comunista, ela seguiu por um bom tempo os passos do pai. A morte dele foi um momento marcante. “Quando eu olhei para o corpo dele cheguei à conclusão óbvia de que aquilo não era meu pai.” Foi nesse momento que ela iniciou a busca pelas respostas que ansiava obter. No ano de 2010 ela conheceu o Vaishnavismo. Um dos primeiros contatos com a prática espiritual foi nas aulas que acompanhava, sobre o assunto quando ainda morava no Rio de Janeiro. Mesmo estudando as escrituras, ela continuava tendo muitos questionamentos. Umas das coisas que ela não entendia, por exemplo, era o conceito de mestre espiritual. Uma devota, que frequentava o mesmo espaço, explicou à Malini que para entender a relação com o mestre espiritual era preciso sentir. Era como se apaixonar: um pouco inexplicável explicar se nunca passou pela experiência. Malini entendeu o que a moça queria dizer ao conhecer seu atual mestre espiritual. De nome complicado para nós, o simpático Śrīla Gurudev fez com

que ela quisesse viver de fato o que aprendia. Quando pesquisou pelo nome do guru e viu a foto dele no Google, ela se encantou. Malini lembra que quando o viu, com um largo sorriso no rosto, pensou: “Eu não conheço Deus, eu não conheço nada, mas eu acho que se uma pessoa tem um relacionamento com Deus ela tem esse rosto”. Ela não queria uma vida como advogada e nas horas vagas praticar o Vaishnavismo, mas sim viver em totalidade a prática. Foi aí que cada vez mais buscou uma vida unificada. Algum tempo depois, ela conheceu Śrīla Gurudev pessoalmente, em uma das visitas do mestre espiritual pelo Brasil. Ao conversar com ele Malini, que já tinha um mestre espiritual, acabou num impulso pedindo para que Gurundev se tornasse seu novo guru. A partir dali iniciou uma jornada de aprendizado e devoção. Ela acompanhou os passos do novo guru durante uma de suas peregrinações em Vrindava, na Índia. Durante esse período, percebeu o quão elevado o mestre espiritual era, sempre absorto em servir e ajudar as pessoas. Ela também queria ajudar. Quando questionou ao guru como poderia servir ele lhe delegou a tarefa de cuidar dos “novos livros”, que

é o espaço na internet. Desde então, hoje com a ajuda de outros seguidores ela cuida do sitejaygurudevbr. org e das redes sociais dedicadas ao guru e à prática espiritual. Nesse meio tempo, conheceu o marido, Raghunandan, que era de São Paulo. Junto os dois foram orientados por Gurundev para abrirem o atual tempo em Porto Alegre.

CONHECENDO A PRÁTICA

Os mantras entoados, semelhantes a orações cantadas, são características da prática milenar. Talvez não soe familiar o nome Vaishnavismo, pois popularmente ele é conhecido por movimento Hare Krishna. Apesar das diversas personificações de Deus, o Vaishnavismo não é considerado uma religião, mas uma prática espiritual monoteísta baseada nas culturas Védica e Hindu. A prática acredita no conceito de reencarnação e baseia sua doutrina nos Vedas, escrituras sagradas originalmente escritas no idioma sânscrito. Nelas estão disponíveis os ensinamentos e mantras. Os seguidores são devotos de Radha Krishna (Krishna seria Deus e sua potência, Rhada, a versão feminina dele). O conceito desse ser é simples para eles, seria como um relacionamento. Alguns enxergam


a divindade como amigo, outros como pai ou como senhor. Na prática ele se revela para cada pessoa de maneira personificada, mas mantendo-se sempre o mesmo ser. Assim como somos indivíduos diferentes, Deus também se mostraria da melhor forma para cada um, tornando o relacionamento com seus seguidores simples e próximo.

VIDA SIMPLES, PENSAMENTO ELEVADO

A prática requer dedicação. A rotina inicia cedo, antes do nascer do sol, por volta das 5h30. Os seguidores acreditam que tudo o que é feito nesse período é multiplicado por quatro. O Maha Mantra, o mais completo dos mantras, é entoado em vários momentos ao longo do dia. Para isso é utilizado o diapamala, uma espécie de terço, que possui 108 contas. O Maha Mantra é repetido em cada conta do diapamala, no mínimo, 16 voltas. No templo também são realizadas cerimônias auspiciosas e sempre que alguém visita o espaço, leva consigo algum alimento consagrado. Durante as cerimônias, além dos mantras, são ofertados incenso, fogo e outras oferendas às divindades. Uma das práticas mais impor-

tantes para eles é cantar os mantras para outras pessoas, atividade que ocorre quase todos os domingos. O casal e outros seguidores se reúnem e seguem rumo à Redenção. Munidos com caixas de som, instrumentos e microfones, percorrem o local cantando. Segundo eles é benéfico para as demais pessoas ouvirem, mesmo que não entendam ou conheçam. Entre os seguidores está Carla Paiva, 44 anos. Antes de conhecer o Vaishnavismo ela estudou e frequentou diversos segmentos religiosos. Atualmente está encantada com os estudos das escrituras védicas e quer seguir aprendendo. Ela recebeu sua primeira, das três iniciações, sem perceber. Durante o contato que teve com Gurundev ela ganhou dele uma espécie de colar. No primeiro momento achou que fosse um simples presente, mal sabia ela que era sua iniciação. Para os seguidores, a medida que conhecem e convivem com a prática as coisas vão acontecendo naturalmente. Malini dá aulas da Yoga pela internet e Raghunandan, formado em Psicologia, trabalha em uma instituição social. Apesar de terem certa renda, eles vivem principalmente de doações e acreditam que nada é por acaso.

Quando precisam de algo sabem que basta entoar com convicção o Maha Mantra e conversar com Gurundev que tudo se ajeita. Malini, Raghunandan e Carla, assim como os demais praticantes, fazem mais do que seguir uma crença espiritual, eles a vivem plenamente. Mais do que uma prática, seguem um conhecimento vivo.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Tudo o que envolve religião ou práticas espirituais é muito complexo para mim. Minha família sempre foi, em sua maioria, evangélica ou cristã. Por muito tempo convivi nesse meio. Depois que comecei a ter mais controle sobre minha vida. Deixei um pouco de lado tudo o que até então, por influência da família, eu acreditava. Ter a possibilidade de conhecer uma prática tão rica, com um estilo tão acolhedor foi uma experiência incrível. Poder acompanhar um pouco da rotina da Malini e do Raghunandan, a forma simples como encaram a vida, me fez refletir sobre muitos aspectos de minha própria realidade. Acredito que, ao fazer a reportagem, pude sair da zona de conforto e conhecer outros meios, bem diferentes dos que estou acostumada. Agradeço muito por conseguir vivenciar um pouco da prática do Vaishnavismo e da cultura védica, e por conhecer pessoas tão especiais. Espero ter traduzido bem o que aprendi, já que é um desafio tratar materialmente assuntos transcendentais.


Tudo para sal

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var uma vida Pronto-atendimento, acolhimento, rapidez e segurança são as características dos profissionais do Samu/NH

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Por Aniele Cerutti. fotos de Ellen Renner

s sirenes disparam, a ambulância corta as ruas de Novo Hamburgo. O barulho é estridente e alto, mas necessário. Quantos segundos tem um minuto? Quantos segundos valem uma vida? A ambulância de Suporte Básico, carinhosamente chamada de SB, chega ao destino. O condutor e o técnico em enfermagem descem do veículo calmamente, porém, rápido e com extrema precisão. Sandro Azevedo de Quadros, o condutor, terá de reposicionar a ambulância para que fique mais fácil transportar o paciente. Raul Fürh, técnico em enfermagem, presta os primeiros socorros ao indivíduo caído no chão por causa do impacto da batida entre a motocicleta e o carro. Em questão de segundos, estamos na ambulância levando o paciente ao Hospital Geral de Novo Hamburgo. Técnico em enfermagem há dois anos no Samu, Fürh pergunta como o paciente está se sentido. O motociclista reclama de um pouco de dor no braço e na perna, onde tem alguns arranhões e luxações, aparentemente nada grave, apesar da motocicleta destruída. Fürh optou por aliviar a dor dos outros com sua vocação. Quadros, com 10 anos de experiência no serviço do Samu, escolheu a profissão por gostar do pronto-atendimento e age com exatidão nos movimentos da ambulância para que o paciente seja atendido o mais rápido possível e não sinta o impacto dos quebra-molas e contornos de ruas até chegar ao destino.

Dentro de poucos minutos chegamos ao hospital e deixamos o rapaz na sala vermelha, local onde os pacientes recebem atendimento e ficam em um período de observação até serem levados aos quartos. Voltamos à base do Samu, além da SB que resgatamos o indivíduo, a unidade possui mais uma SB e uma ambulância de suporte avançado, SA. As SBs dispõem de um condutor e um técnico em enfermagem. A SA, um médico, uma enfermeira e um condutor. E, por falar em enfermeira, a carismática Mari Jane Tieze é parte dessa equipe. “Em um atendimento nunca se sabe o que vai encontrar, pode ser pior ou melhor do que relatado pelo Central”, afirma ela. Adrenalina motiva Mari no plantão de 12 horas. Um dos casos mais complicados dela foi um acidente com duas vítimas embriagadas, pois eles ficaram muito agitados e não passaram informações coerentes para que pudesse medicá-las. A comunicação entre as unidades do Samu e a central é realizada principalmente através de um aplicativo de smartphone, o SAPH móvel, no qual é indicado o horário de saída para prestar atendimento e quando retornam do mesmo. Sandro Cassiano Nunes, oito anos no Samu, é condutor e socorrista. Chegar rápido e com segurança é o seu lema em cada saída e retorno à base. O ex-empresário, que abriu mão de uma profissão estável para salvar-vidas, afirma que ser útil ao próximo é muito mais importante do que ter alguma coisa. A unidade de Novo Hamburgo atende também as cidades de Ivoti, Estância Velha, Dois Irmãos e P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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O Samu tem base em 160 municípios gaúchos, mas o atendimento alcança 268 cidades

Campo Bom. Para Selmo Norberto Pereira de Souza Júnior, técnico em enfermagem, é bom quando não tem nada para contar depois do plantão. Aprender um jeito melhor de atender o paciente e de acompanha-lo seguindo o protocolo de atendimento é uma das suas motivações na unidade.

ESCOLHA DA PROFISSÃO

Hora do almoço. Amizade, livre de tensões e preocupações aparentes a não ser pelo churrasco que Souza deveria estar cuidado, mas estava escutando e contando histórias, para duas estudantes de Jornalismo. Rodrigo Machado sentiu o chamado para a profissão quando escolheu ser técnico de enfermagem e trabalhar como condutor no Samu. Um caso marcante e emocionante para ele foi o atendimento a uma parada cardiorrespiratória, no qual o paciente estava praticamente morto, mas conseguiram reverter o quadro. Já Renan Gobbi decidiu ser P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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técnico em enfermagem motivado pelo seu vizinho sargento do corpo de bombeiro que levava ele junto e acabou pegando o gosto por ajudar pessoas e salvar vidas. Cleomar Bittencourt sempre gostou e desde pequeno quis trabalhar em ambulância, por isso escolheu ser técnico em enfermagem. Os dois são novatos na equipe. A ligação para o número 192, a chamada é atendida por uma Central de Regulação de Emergências Médicas que conta com profissionais de saúde e médicos treinados para dar orientações de primeiros socorros por telefone através de tele medicina. São estes profissionais que definem o tipo de atendimento, ambulância e equipe adequados a cada caso.

TEMPO A FAVOR

Acidente na BR-116, três caminhões. O caminhão do meio está prensado com o motorista preso nas ferragens. Era por volta do meio-dia, em pleno do verão, e o médico da equipe, Antônio

Ricardo Dias Fagan, não conseguia entrar para prestar o primeiro atendimento. Foi então que Moisés Fernando Soares Carvalho, condutor da SA, entrou na cabine e conseguiu ajudar o motorista até que o mesmo pudesse ser retirado do local. “Depois que comecei a trabalhar em ambulâncias nunca quis outra coisa, senão ajudar o próximo”, afirma Carvalho, com oitos anos na área. Antônio Fagan não é só médico da equipe do Samu, mas também secretário da Saúde e vice-prefeito de Novo Hamburgo. Ele equilibra as três funções nos sete dias da semana. O Samu, segundo ele, é a base, o que levou a concorrer como vice-prefeito para melhorar a gestão pública em saúde. “A rotina é cansativa fisicamente, mas gratificante”, completa. Fürh, também tem o dia-a-dia agitado entre família, Samu, outro emprego e a faculdade de Enfermagem. Outros da unidade também possuem, pois desempenham além da jornada no Samu, outra função e às


vezes trabalhos voluntários. Atualmente, 160 municípios gaúchos têm base do Samu. Estas bases atendem um total de 268 cidades, que, com seus 10,08 milhões de habitantes, representam 89,96% da população do Estado. Ao todo, 40 ambulâncias de Suporte Avançado e 186 de Suporte Básico estão em funcionamento, além de dez motolâncias e dez veículos de intervenção rápida.

HORA CERTA

Menino de sete anos atropelado por um caminhão. Fratura no quadril. Levado para o hospital de Novo Hamburgo e depois para Porto Alegre. Mobilização de todas as áreas para salvar a vida de uma criança. Casos com crianças comovem. A equipe ao falar desse tema muda o tom de voz e a expressão no rosto. “Estes indivíduos pequeninos, não geram a ação, mas a sofrem”, declara Fagan. Para Nunes, quando não dá para salvar uma, a sensação de impotência

O acolhimento, as brincadeiras, o respeito e admiração estão presentes na equipe do Samu/NH

é muito pior, porque em todos os casos é possível prevenir para que elas estejam seguras. Histórias trágicas, cômicas, comoventes fazem parte da rotina dos profissionais da Samu. Como o caso em que o namorado esfaqueou a namorada, e ela andou por toda a casa procurando o celular para ligar para o Samu. Os vizinhos acionaram a Brigada Militar. Ao chegar ao local, Fagan encontra a brigadiana que desmaia por causa do sangue espalhando pela casa. No final, além de prestar atendimento à moça esfaqueada, prestaram atendimento à policial. Chegou a hora de nos despedimos da equipe e o que fica dessas histórias de vida é o espírito familiar que a equipe do Samu/NH possui: o acolhimento, as brincadeiras, o respeito e admiração. Não é fácil o trabalho, mas a alegria deles, a amizade é contagiante e inspiradora. A vida é agora, e ver o que eles vêm, viver o que eles vivem, faz valorizarmos cada segundo.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Quando escolhermos a pauta era sentir adrenalina. Conseguimos! Não sabíamos para o que viria pela frente, mas queríamos um dia agitado. Entramos no prédio errado, ficamos uns 20 minutos perdidas até descobrimos que a entrada era na rua lateral. Nos apresentamos com um pouco de receio, apressadas para dizer o que iríamos fazer lá fomos recebidas com um enorme abraço da enfermeira Mari Jane. As histórias e vivências da equipe realmente nos encantaram. Talvez, não tenhamos acompanhado tantos atendimentos quanto gostaríamos, mas pudemos ver o lado profissional de cada um dos nossos entrevistados e mais que isso, o lado humano. Pessoas que escolheram salvar vidas e lutar por elas através das técnicas necessárias. Escolhemos a reportagem um tanto comum como muitos diriam, mas que teve uma significação imensa para nós, porque não vimos uma equipe de trabalho desanimada por estar de plantão no domingo, mas uma família alegre, solidária e que nos recebeu como parte da equipe. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Dia a dia com a morte Profissional conhecido por poucos, o tanatopraxista é o responsável pela preparação dos corpos para o funeral Por Aline Santos. fotos de Aline Santos e Andressa Michels


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az 17 graus na sala de azulejos brancos. Quem ingressa ali só entra de touca, máscara descartável e luvas de látex. Ao canto, um vasto rolo de algodão e máquinas enfileiradas. As lâmpadas fluorescentes de alta potência proporcionam uma revisão minuciosa de qualquer imperfeição que tenha escapado ao olhar. As pias funcionam com sensor e há um chuveiro que permite um rápido enxágue em caso de acidentes. São 15h30, os equipamentos estão organizados para mais um procedimento. Na mesa de inox, o cadáver pálido de uma idosa, falecida de causas naturais, aguarda intervenção. No lado direito do pescoço, é feita uma incisão com bisturi, e a artéria carótida é puxada para fora. Nela é inserida a mangueira da bomba injetora que transfere para o corpo os líquidos conservantes. À medida que os líquidos penetram na cavidade, o sangue verte para fora. Curiosamente as cores retornam, sinal de que o procedimento foi bem sucedido. Neste momento, o corpo precisa ser movimentado. Braços e pernas são exercitados pois os conservantes acentuam o processo de rigidez cadavérica. Uma nova incisão é realizada no P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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tórax, e é inserido o bastão de uma máquina aspiradora, também chamada de ordenhadeira, que retira restos de fluídos orgânicos e o líquido cavitário, que permanece no cadáver por 20 minutos. Após o processo, os orifícios dos cortes são costurados com linha especial. O corpo é banhado com esponja e sabonete líquido, poderia receber maquiagem, mas não era desejo da família. As cavidades nasal e bucal são aspiradas. Inicia então o tamponamento. Tufos de algodão são colocados na boca até a traqueia e no nariz, até obstruir a cavidade cerebral. A intervenção evita possíveis vazamentos de fluídos durante o velório. O cadáver é vestido, os cabelos são penteados e vai para o caixão. Ali suas mãos são cruzadas, a boca recebe uma costura interna e os olhos são colados com cola específica. O caixão é ornamentado com flores e, na hora estipulada, os familiares recebem a falecida para o último adeus. O que para muitos pode parecer mórbido, para o tanatopraxista Marcus Magnus Perez, 32 anos, é apenas rotina. Funcionário da Funerária Pio XII, em Porto Alegre, e no ramo há nove anos, Perez explica que a tanatopraxia é o procedimento de inserção de líquidos conservantes em um

cadáver, a fim de evitar o processo de decomposição durante o velório. A fórmula injetada é composta pelos líquidos arterial e cavitário que, ao penetrarem no corpo, trazem de volta o tom natural da pele. “Na preparação dos corpos é importante injetar estes líquidos porque a decomposição inicia depois de 6 horas, a partir da hora da morte. O procedimento da tanatopraxia leva de 1h30 a 4h e esses líquidos eliminam o processo de putrefação, evitam o odor na capela e, passado o velório, também ajudam na decomposição. Tentamos tornar mais digno o último momento da família com o ente querido”, relata. Enquanto explicava as atividades da profissão, Perez aguardava a chegada de um cadáver cuja morte teve grande repercussão na imprensa gaúcha. “Tá demorando pra chegar, tem que sair do IML mas como os jornais estão em cima, eles custam a liberar o corpo”, explicou. O instante de expectativa foi preenchido com um novo relato sobre o trabalho. Nele, o tanatopraxista esclarece a técnica de reconstrução facial, muito utilizada em corpos de acidentados. “Nestes casos pedimos uma foto para a família e tentamos reconstruir a face danificada, com cera. A proposta é chegar o mais próximo da fisionomia que a pessoa tinha”, diz.

Marcus organiza o equipamento para realizar o trabalho, que deve estar em perfeita ordem


ALINE SANTOS

A rotina do profissional envolve limpeza e organização do laboratório, preenchimento de documentos e demais atividades do setor enquanto aguarda a chegada de um novo corpo, que pode acontecer a qualquer momento. “O atendimento intensifica no final de semana, já chegamos a receber mais de 10 corpos neste período”, relembra. Quando questionado a respeito de atendimentos difíceis, Perez demonstra tensão no semblante. Apesar de encarar a morte com naturalidade, revela que atender crianças o deixa desconfortável. Segundo ele, muitos profissionais que atuam em funerárias ficam sensíveis quando recebem casos em que a vida é interrompida precocemente.

Herança fúnebre

Com vasta bagagem de conhecimento, Perez conta que o interesse pelo trabalho surgiu dentro da própria família. Seu pai havia aberto uma funerária em 1974 e desde então os parentes se envolviam com os serviços. Atualmente, um dos irmãos abriu uma funerária em Viamão e o outro atua juntamente com Perez na Pio XII. “Eu tenho contato com a morte há muito tempo, cresci dentro da funerária, comecei como office-boy com o meu pai, depois passei a agente funerário, vendedor e também espiava os guris preparando os corpos, achava aquilo interessante”, comenta. Com a chegada da maioridade, o profissional fez o curso técnico de tanatopraxia (uma formação de 15 dias concedida pela Protanato, órgão que ministra cursos no segmento em SP e PR), iniciando em seguida no trabalho.

Situações marcantes

Uma circunstância diferenciada que Marcus precisou encarar dentro da profissão foi preparar o corpo do sogro para o funeral. “Foi um momento em que procurei manter a calma e realizar meu trabalho, pois foi um pedido da minha esposa, porém chorei bastante no velório”, revela. Outro caso envolveu uma reparação facial realizada em 2008 em uma menina de 13 anos que havia sofrido um acidente de carro. “A menina estava com um lado do rosto deformado, então propus à família o serviço de reparação facial, senão seria caixão fechado. Preparei o rosto com cera, fiquei cerca de 3 horas na reconstituição, coloquei maquiagem em cima e levei para a capela. A mãe da garota me abraçou, disse que o rosto tinha ficado lindo. Um mês depois, chegou uma carta pra mim na funerária, era dessa mãe, dentro do envelope estava um pingente com o nome da menina e eu guardo até hoje esse presente”, conta. Perez ressalta que quem quiser estar na profissão, tem que amar o que faz. Ao ser questionado sobre como percebe a morte, ele encerra: “A morte deixa uma dor que ninguém pode curar, o amor deixa uma memória que ninguém pode apagar”.

A morte segundo a psicologia

De acordo com o psicólogo Fernando Cooper, a morte é muito singular e cada pessoa lida com ela de uma forma diferente. “As famílias costumam passar por sofrimento, pois a morte é um grande tabu na sociedade, tanto que quando ocorre um suicídio, os jornais não noticiam abertamente o assunto”, explica. Conforme o psicólogo, as pessoas vivem segundo uma “lógica do êxito” em que ninguém aceita abertamente a perda, a velhice e diferentes situações que explicitem um vazio. Cooper também relata que as sociedades orientais encaram a perda de uma pessoa com mais aceitação que os ocidentais e enfatiza que o processo de perda é um fenômeno com o qual o ser humano aprende a lidar por toda a sua trajetória.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER No ano de 2016 a morte visitou minha família e tirou minha mãe de mim. Lembro de ter negado, fingido que nada havia acontecido, foi quando tive a noção de que não sabia lidar com aquela perda. Percebi a possibilidade de encarar o tema ao entrevistar um tanatopraxista, o profissional que prepara os corpos para o funeral, na tentativa de entender e aceitar que nossa passagem pela Terra um dia chega ao fim. O Marcus me convidou para assistir a todo o processo de preparação de um cadáver, desde a inserção dos conservantes até a colocação de flores no caixão, me mostrando o quanto o momento da partida é inevitável, porém natural. Aquele processo foi simbólico para mim, é como se eu precisasse ser “preparada”, enxergar a morte para poder seguir com a vida, valorizando cada instante como se fosse o último. Sinto que uma lacuna foi parcialmente preenchida dentro do meu coração. No entanto, sempre haverá um espaço vazio porque a saudade nunca morre.

Na rotina de trabalho, o tanatopraxista realiza a preparação dos corpos para o funeral inserindo líquidos conservantes. Outra função solicitada é a necromaquiagem, para suavizar possíveis machucados e dar ao falecido uma aparência melhor durante o velório. O preparo completo é feito em mesas de inox

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Uma rotina de medo P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Passageiros, cobradores e motoristas da linha 376-Herdeiros, uma das mais perigosas da capital, convivem com a insegurança por terem no itinerário locais dominados pelo tráfico de drogas Por Anderson guerreiro fotos de cassiano cardoso

uatro pessoas aguardavam um ônibus às 15h58 no dia 10 de abril no terminal da linha 376-Herdeiros/Esmeralda, em Porto Alegre. Cheguei no mesmo ponto, na Travessa Cassiano do Nascimento, no Centro, e estava como passageiro. Meu propósito era acompanhar a rotina do final da tarde daquela que pode ser considerada atualmente a linha de ônibus mais perigosa da Capital porque tem em seu itinerário uma região com forte presença do tráfico de drogas. Doze dias antes, em 29 de março, o terceiro veículo da linha 376 havia sido incendiado na vila Herdeiros, na Zona Leste. Os outros casos foram em abril de 2015 e junho de 2016. Trata-se de ações comandadas por facções criminosas, segundo a própria Brigada Militar. Após 20 minutos, às 16h18, um ônibus da linha TR31-Troncal Antônio de Carvalho para no ponto. Por um canto da porta, pergunto ao motorista se aquele era o ônibus que iria para o Herdeiros, Vila Esmeralda e Beco do Cafunchos, afinal, a identificação era diferente. Ele gesticula que sim ao mesmo tempo em que Rosângela, moradora da região, me diz: “sim, pode subir. Agora tem que trocar lá na Antônio de Carvalho. Não tem mais direto”. Percebo, então, que foi colocado em prática um plano alternativo, confirmado depois pelo Consórcio Mais, que opera a linha, e pela EPTC: uma linha alimentadora entraria na vila Herdeiros, a 376.2, e os passageiros teriam que fazer uma baldeação no Terminal Antônio de Carvalho, na Avenida Bento Gonçalves. Foram 27 minutos de viagem na linha TR31. O ônibus era da frota nova, comprada após a licitação de 2014. Tinha ar condicionado e só lotou quando se aproximava do Terminal Antônio de Carvalho. Lá, 14 minutos de espera até a saída do ônibus de prefixo 3055. Este, por fim, entraria no Herdeiros. O coletivo foi fabricado em 2008. A colocação de ônibus mais velhos nesta segunda parte do trajeto é proposital, segundo Rodrigo Fonseca, 35 anos, gerente da empresa Sudeste, que junto à empresa Gazômetro compõe o Consór-

cio Mais: “exatamente pelo risco iminente da perda”, explica. Às 17h01 o ônibus saiu do Terminal Antônio de Carvalho e oito minutos depois, deixando a Avenida Bento Gonçalves, entrou na rua João Antônio Lopes, já quase na divisa com Viamão. Estava lotado, mas sem ninguém em pé. Estávamos, efetivamente, no Beco dos Cafunchos. Em uma das primeiras paradas, desceu Luis, 12 anos. Durante os quase 50 minutos em que nos vimos nos dois coletivos e na espera, ele me fez questionamentos sobre o que eu estava fazendo no ônibus, se tinha parentes no Herdeiros, onde eu morava. Também falou dos seus cavalos, dos banhos que toma na “barragem” (a Represa Lomba do Sabão, pertencente a Viamão, mas vizinha ao Herdeiros), das ruas esburacadas do bairro. Quando pedimos para fazer uma foto, com autorização de sua mãe, a Rosângela, ele refutou: “não gosto de foto nem em aniversário”. A pureza de Luis foi a mesma que notei no olhar de várias crianças que vi brincando no Herdeiros e, mais especificamente, na região do Beco dos Cafunchos. O trajeto por dentro da vila, como chamam os moradores, durou 13 minutos. Às 17h22 já estávamos na Estrada João de Oliveira Remião, próximos ao local do incêndio do último ônibus. No coletivo, passageiros concentrados em celulares e alguns olhares desconfiados dirigidos a nós, até pela câmera e o bloco de anotações na mão. O cobrador, neste dia, era João Amaral Meie, 43 anos. Ele está há nove meses na empresa Sudeste e, no dia, há duas semanas na linha 376.2. “Até agora, não passei por nada de estranho”, comenta. Da janela do ônibus, vimos um bairro pobre, mas vivo. Adultos e crianças nas ruas. Um senhor com farto bigode sentado em uma cadeira de praia em frente à Escola Professor Sylvio Torres, fumando um palheiro. Pequenos mercadinhos movimentando a economia local. Ruas, em sua maioria, asfaltadas e casas de alvenaria. Bastante lixo jogado nas calçadas. Ruas estreitas.

Solução reprovada pela comunidade

Há pelo menos seis atores envolvidos no imbróglio da linha 376: rodoviários (a maioria dos cobraP RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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dores e motoristas não quer mais trabalhar no trajeto, principalmente à noite), empresas de ônibus do consórcio Mais (precisam prestar o serviço, mas, ao mesmo tempo, temem por novos incêndios a coletivos), EPTC, Brigada Militar, facções criminosas e passageiros. Nesta equação de difícil dissolução, um jogo de interesses é posto à mesa. “Os cobradores e motoristas estão com medo de operar na linha do Herdeiros”, afirma o presidente do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre, Adair da Silva. Isso ocorre mesmo que nos três casos de incêndio de ônibus na região os criminosos tenham mandado que todos descessem do coletivo antes de atearem fogo, inclusive motorista e cobrador. “Nós temos que ver uma fórmula que seja menos perigosa porque tá perigoso em todo lugar”, diz Adair, que representa cerca de 7,4 mil motoristas e cobradores de Porto Alegre. A empresa Sudeste afirma que há atendimentos psicológicos frequentes às tripulações e que o cobrador e o motorista que presenciaram o último incêndio receberam férias. A alternativa que envolve tomar um ônibus no Centro, desembarcar na Antônio de Carvalho e pegar

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outro até o Herdeiros foi alvo de reclamação de todos os passageiros com quem conversei. “É o que se quer estabelecer, de funcionamento definitivo da linha neste formato”, afirma Fonseca, um dos gerentes da Sudeste. Por duas vezes estive com ele em sua sala, na sede da empresa onde trabalha há 17 anos. Começou como cobrador em março de 2000. Passou por outros setores internos, como o de sinistros, e chegou à gerência. Após cerca de três semanas, no final de abril, o consórcio Mais voltou a colocar alguns poucos horários que vão do Centro até o Herdeiros, no início da manhã e no final da tarde. Na primeira tarde como passageiro, sentei atrás da Letícia, 35 anos. Ela havia ido fazer compras no Centro e passear com o filho, que ocupava um banco ao seu lado na primeira parte do trajeto. “Eu só viajo de vez em quando e já acho ruim isso de trocar de ônibus. Imagina quem pega todos os dias”, diz enquanto comia pipoca doce, daqueles sacos rosas, me remetendo à infância. O professor e produtor cultural Isnar Borges tem 49 anos e é responsável pela área social da Associação dos Moradores do

Loteamento Santa Paula, uma das ramificações do Herdeiros. Completamente contrário ao sistema de baldeação implementado pelas empresas de ônibus e pela prefeitura, ele diz que há “muito tempo perdido (na espera no Terminal Antônio de Caravalho), o terminal completamente sem condições, nem banheiros tem, e ônibus ruins”. Segundo Borges, a prefeitura tem planos de implementar esse modelo, da linha alimentadora, em outros bairros da cidade, mas diz que “não dá pra pegar uma comunidade pobre e embutir esse projeto sem a cidade estar preparada”. A EPTC confirma que avalia a implantação do modelo de alimentadora nas linhas Jardim Bento Gonçalves, Ipê 1 e Ipê 2 e São Caetano, todas vilas pobres da Zona Leste.

A linha à noite

No segundo dia, fui à tardinha para o Terminal Antônio de Carvalho a fim de acompanhar a linha no momento mais perigoso: à noite. A rotina noturna é mais complicada. Além da diminuição considerável do número de passageiros, é o período mais propenso aos ataques dos traficantes. Quando cheguei, pouco depois das 18h, já estava escuro e havia oito pessoas aguardando a segunda parte da viagem de volta para casa, entre eles Douglas e Marlon. Assim como todos os demais passageiros e moradores da região do Herdeiros, eles pediram para não serem identificados. Douglas tem 22 anos, trabalha no Centro e usa ônibus todos os dias. Diz que a nova modalidade, da linha alimentadora, faz com que ele acorde mais cedo e chegue mais tarde em casa: “Demora mais, sim, às vezes quase uma hora a mais”. Marlon tem a mesma queixa e fala da espera pelo segundo ônibus. Pela tabela disponibilizada no site da EPTC, o intervalo


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médio da linha 376.2 – a segunda parte do trajeto para quem vai do Centro ao bairro – é de 21 minutos e circula das 5h15 à meia-noite nos dias úteis. Neste dia, conversei longamente com o cobrador Sandro Goulart. Aos 40 anos, trabalha na Sudeste desde 2009. Nos dois primeiros anos, trabalhou exatamente na linha Herdeiros, o que confirma a lógica de que cobradores iniciantes ficam com as linhas que ninguém quer atender. Ele encara a questão do tráfico na região com naturalidade: “Queimar ônibus é só mais um item da insegurança”, diz. O tenente coronel Marcelo Tadeu Pitta Domingues, comandante do 19º Batalhão da Polícia Militar há dois meses, me recebeu na tarde do dia 26 de abril na sede do batalhão que tem em sua área de atuação a região da vila Herdeiros e do Beco dos Cafunchos. Com naturalidade, Pitta confirma que se trata de um local com forte atuação do tráfico de drogas, em especial dos Bala na Cara, facção criminosa que nasceu e se estabeleceu na Zona Leste. “Tem tráfico ali, nós sabemos e combatemos”. Para o coronel, a ação sobre os coletivos ocorre sempre que a facção que domina o tráfico na região se sente ameaçada por outras facções que querem dominar o tráfico ali. “Quando eles veem que a biqueira (a boca) deles tá ameaçada por outra facção, eles vão lá e tocam o horror”, afirma. Com isso, a Brigada Militar se dirige em maior peso para a região para resguardar a segurança da população e, assim, as facções rivais recuam. No último incêndio, a suspeita é que a autoria seja dos Antibala, facção rival à que atual no Herdeiros, num fato atípico, segundo o Coronel Pitta. Sem ser reconhecida como bairro pela prefeitura – oficialmente pertence ao Agronomia -, a região da vila Herdeiros e o Beco dos Cafunchos não são, certamente, o único ponto conflituoso de Porto Alegre e onde o transporte público precisa

circular. Em maio, dois coletivos foram incendiados na Zona Sul da Capital e outro no Centro. Nos últimos três anos é, no entanto, um local onde os coletivos passaram a ser alvos de ataques mais cotidianamente. Passageiros, empresários do setor e rodoviários temem novos episódios. Principalmente à noite, quando um ônibus sai da Avenida Bento Gonçalves e entra na João Antônio Lopes, ninguém sabe se de lá sairá.

Quando escolhi ir atrás desta pauta corria o início de abril e três novos incêndios de ônibus, um no Centro e dois na Zona Sul de Porto Alegre, ainda não haviam ocorrido. Até então, a região do Beco dos Cafunchos, Herdeiros e Vila Esmeralda concentrava o maior número de ataques a coletivos em ações do crime organizado. A prática, infelizmente, tem se disseminado e as ações articuladas pelas empresas de ônibus, com apoio da EPTC, geralmente vão na linha de reduzir a circulação de coletivos. Entendo, obviamente, a posição dos empresários, afinal, ninguém quer ver seu patrimônio destruído. Mas hoje, com a baldeação implementada no Terminal Antônio de Carvalho, o problema acaba por atingir, mais uma vez, quem está na ponta: os moradores/passageiros. Conversei com vários. Ouvi relatos uníssonos que desaprovavam a mudança. Esperei junto com eles, no frio do Terminal Antônio de Carvalho, e tento aqui, minimamente, dar voz a quem pouco tem. Vi pessoas trabalhadoras que só querem sair e chegar em casa mais rapidamente, como ocorre com quem mora no Bom Fim, no Moinhos de Vento ou no Petrópolis. Muitos só veem a luz do sol fora de casa: saem na madrugada, retornam à noite. A razão de existir do transporte público é o passageiro. E as suas demandas precisam ter peso igual às demais nesta discussão.

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Satisfação com prazo de validade Luana pereira conquistou sucesso na profissão considerada a mais antiga do mundo com muita independência Por JÉSSICA ZANG. fotos de Carolina Zeni

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la aguardava a entrevista tomando sol da manhã na varanda de casa, usando um vestido cinza de veludo até a metade da coxa. Nos pés, calçava sandálias vermelhas de salto alto. O cabelo brilhoso e castanho escuro, comprido até a cintura, estava solto. Quando chegamos, nos acomodamos no sofá de uma das salas da casa. “Não reparem a bagunça, está uma correria. Preciso ir atrás de muita coisa e ainda tenho os clientes para atender”, disse. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Luana Pereira, ou Lua Pereira, tem 27 anos, mora e trabalha em São Leopoldo. Sua rotina começa cedo, às 5h30, quando acorda. Após o café da manhã, vai à academia fazer musculação. As mensalidades já são pagas para o ano todo. Assim, ela evita esquecê-las. A rotina de atendimento aos clientes começa por volta das 8h, após fazer uma refeição pós-treino e tomar banho.

Em dias de movimento, ela chega a atender nove pessoas. “Não estendo muito o meu horário de trabalho. O último atendimento ocorre às 19h. Depois vou para casa descansar”, diz Luana. O celular toca com frequência, tanto que ela possui mais de um aparelho. Assim consegue separar a vida profissional da pessoal, ainda que a última não seja prioridade no


momento. “Eu priorizo os meus clientes. Se eles querem que eu atenda mais cedo, deixo de ir para a academia neste dia, por exemplo”. Questiono sobre como escolhe as roupas que irá usar nos atendimentos. “Ah, depende do que me pedem. Alguns pedem fantasia, outros lingerie. Um até já me pediu para usar bota”, conta Luana. E assim se costura a rotina da ga-

rota de programa de luxo. Percebe-se a organização de Luana não apenas pela forma como criou a dinâmica de sua rotina. É perceptível também observando seu armário. Os vestidos e saias são pendurados em cabides. As calcinhas e sutiãs - presentes em quantidade e variedade - são dobrados em prateleiras e organizados em fileiras. Cremes hidratantes, perfu-

mes, desodorante outros produtos de beleza, todos em abundância, repousam sobre a penteadeira.

Folha de revista inspiradora

Impossível não questionar os motivos que levaram Luana a escolher, há quatro anos, a prostituição como profissão. Criada no pequeno município de São José do Caí, no Vale do Caí, mudou-se para São Leopoldo a fim de trabalhar em uma empresa de telemarketing. Lá chegou a ser chefe de setor e dava treinamentos. Apesar disso, ganhava cerca de R$ 1,5 mil por mês. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Por levar a saúde a sério, exercícios e boa alimentação fazem parte da rotina de Luana

Para complementar a renda, passou a trabalhar em uma boate durante a noite. “Fiz isso por três meses. Até que os clientes da boate começaram a me ligar e eu não podia atender porque estava trabalhando na empresa. Deixava de ganhar dinheiro por isso”, explica Luana. Para ela a prostituição é uma forma mais rápida de obter lucro, apesar de não ser fácil. “Não tiro férias. Não me dou ao luxo de passar uma tarde sem fazer nada. Quero trabalhar bastante para depois aproveitar a vida”, responde. O ímpeto de seguir os rumos da prostituição surgiu na adolescência. Aos 13 anos Luana viu em uma revista uma reportagem sobre a vida de garotas de programa de luxo. “Eu rasguei aquela página e a carregava na mochila. Era um segredo que me inspirava”, revelou, com um sorriso nostálgico.

Para sair da rotina

Os clientes de Luana a procuram por fatores diferentes. Seja para sair da rotina do casamento, para experimentar algo novo ou até mesmo para consumir drogas – Luana afirma que não as consome. Não há um padrão entre os homens que procuram a garota P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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de programa. São médicos, caminhoneiros, estudantes, empresários, variando de 20 a 50 anos de idade. “Eles me encontram através de sites. Também acontece de um me indicar para o outro. Assim, eles entram em contato comigo direto no celular”, explica Luana. Os valores dos programas variam de 300 a 500 reais, dependendo do tempo que o cliente desejar. Pergunto como os clientes a tratam. “É uma relação respeitosa. Até acho que ás vezes sou melhor tratada do que muita mulher casada”, conta, aos risos. Para garantir sua segurança, já que atua de forma autônoma, ela diz que precisa tomar alguns cuidados. “Nunca frequento a residência deles. Não tenho alguém que olhe por mim caso algo dê errado”. Outro aspecto muito levado em conta é a proteção. A garota não faz programas sem camisinha e vai ao ginecologista uma vez ao ano. “Faço todos os exames para garantir que estou bem. Nunca faço programa sem camisinha. Carrego preservativos na bolsa, no carro e tenho vários em casa. Também uso o DIU e anticoncepcional para garantir minha proteção”, explica.

Apesar de se considerar realizada na profissão que escolheu, a garota de programa afirma que não pode deixar de se cuidar, mesmo nunca tendo sofrido qualquer tipo de violência durante o trabalho. “Sei que a minha realidade não ilustra o todo. Existem meninas que apanham sim. Por isso prefiro não depender dos meus clientes. Vou e volto dos programas com meu carro”, explica Luana.

Profissão regularizada

É difícil encontrar materiais na internet que contenham dados a respeito da prostituição e que deem voz às profissionais do sexo. Muito provavelmente pelo fato de que a profissão ainda não é regularizada. No entanto, existe o projeto de lei 4.211/2012 - Lei Gabriela Leite, de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL/ RJ), buscando a regularização. O projeto está aguardando Constituição de Comissão Temporária para prosseguir com votação na Câmara dos Deputados. O meio acadêmico ainda é um dos que mais oferecem informações sobre o assunto. A jornalista e doutora em comunicação pela


Unisinos Natália Ledur Alles realizou a pesquisa de sua tese sobre prostituição, analisando o que estava em circulação na sociedade brasileira sobre o assunto e quem eram as pessoas consideradas aptas a falar sobre o tema. “É interessante perceber que, dentre os 65 textos analisados que abordam a regulamentação da prostituição enquanto profissão, somente em 18 deles, menos de 30%, há trabalhadoras do sexo utilizadas como fontes”, explica Natália. A jornalista entrevistou oito mulheres que trabalham como garotas de programa para a tese. De acordo com Natália, o trabalho sexual trouxe para elas uma autonomia financeira que não encontraram em outras atividades. “Dentre as dificuldades, se destaca o incômodo por, muitas vezes, não poder revelar a seus familiares ou amigos qual sua profissão por medo da discriminação”, afirma. Além disso, a jornalista conta que, nas publicações, existem estereótipos que são constantemente reforçados. “Eles situam as mulheres prostitutas entre polos de criminalização/culpabilização e de vitimização, e desconsideram a agência dessas pessoas e o con-

trole que elas possuem sobre suas próprias vidas”, conclui.

Movida pela vontade de crescer

Questiono Luana sobre como as pessoas lhe encaram na rua. “Olha, eu costumo me vestir de forma bem simples - calça jeans, blusa e sapatilha - quando não estou trabalhando. E também acredito que as pessoas não têm muito o que falar pois eu ganho o meu dinheiro de forma honesta. Trabalho para isso”, diz a garota de programa. Ela afirma que é preciso saber não ligar para comentários alheios e ser discreta. “Por isso, não é profissão que qualquer pessoa conseguiria seguir. Saber separar o trabalho da vida pessoal é muito importante”, ressalva Luana. Quanto ao futuro, a garota de programa é ambiciosa. “Ainda pretendo seguir na profissão por mais alguns anos. Sei que dentro de algum tempo meu corpo não vai aguentar a vida que levo hoje. Pretendo terminar de construir minha casa e construir a casa para minha mãe e meu irmão. Também penso em ser empreendedora”, diz, com um sorriso que reflete realização.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Conhecer Luana foi sair da minha zona de conforto e me desarmar de conceitos e preconceitos. Foi uma entrevista em que tive que pensar bem em quais perguntas fazer, como fazer e em qual momento da entrevista, com medo de que eu falasse algo que soasse mal. Porém, tive sorte em encontrar uma entrevistada receptiva às minhas perguntas e que permitiu que eu entrasse em sua rotina de forma natural. Tão natural que conheci diversos aposentos de sua casa, até o mais íntimos de todos: o quarto. E o armário (o de uma garota de programa é sempre peculiar). Luana é uma mulher que sabe de seus limites, encontrou um modo de viver que a faz feliz e não se incomoda com pensamentos alheios relacionados à sua profissão. A oportunidade de fazer a reportagem me fez pensar de forma mais aberta nas diversas formas de encontrar alegria na profissão que escolhemos, além de refletir sobre as escolhas que envolvem o nosso corpo. Ao final da entrevista, tive a certeza de algo em mim havia sido modificado, e então, percebi que o propósito da matéria já havia se concretizado. P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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Entre as paredes do motel Atrás das portas JÁ FORAM REGISTRADOS traições, USO DE ALIMENTOS COMO OBJETOS e atividades paranormais Por Victória Freire. fotos de Eduarda Moraes

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a garagem, o casal espera para entrar. Com o quarto limpo, é hora da conferência. Energético, destilados, espumante e chocolate abastecem o frigobar. Toalhas e roupões embalados sobre a pia. A televisão exibe uma performance oral. Rangem os trilhos da cortina sendo fechada. Ar condicionado em 25 graus. Iluminação reduzida à penumbra. Três jatos de aromatizante. “Tá liberado”, avisa o funcionário - do topo da escadaria. Eles agradecem em uníssono e ouvimos a aproximação dos passos, pouco antes de sair pela porta de serviço. Estamos no corredor retangular que oferece acesso às 38 suítes do motel. Lá fora é frio, mas as paredes de pedra conservam o calor da tarde. Silêncio, pede a placa. Aqui, só os clientes podem fazer barulho. E como fazem. Do rádio ligado, tocando sertanejo no volume máximo, aos urros de prazer. Tapas no 401. Respiração acelerada de quem está quase. “No início tu fica meio piradão, quer escutar tudo”, descreve Diogo, que tra-

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balha há 13 anos como supervisor do local. Depois de uma quinzena, a curiosidade passa. A intimidade alheia vira rotina. Perdem-se preconceitos e pudores.

O público e seus segredos

De domingo a domingo, intercalando turnos, Diogo vê muito. Esbarra em conhecidos junto de desconhecidos, figuras políticas, celebridades. “Eu diria que 80% do movimento de um motel vem da traição”. Conta de um grande empresário da cidade vizinha, na faixa dos 40 anos, pai de família. No auge, frequentava o motel dois dias por semana, sempre acompanhado por uma nova garota de programa. Contabilizando a hora da profissional mais o preço da estadia, gastava, por mês, cerca de R$ 3 mil em sexo. Durante a manhã, também é comum ver carros de empresas no estabelecimento. Colegas de trabalho. Chefe e funcionária. Ocasionalmente, a infidelidade é descoberta. Gente que arromba a porta do apartamento, destrói o carro do parceiro. Feito em março, quando a cônjuge flagrou o marido enroscado com


a professora da filha. Alguém precisa apartar as brigas. “Tem que ter jogo de cintura dentro de um motel”, afirma a camareira Elisa. Logo que começou, foi chamada para consertar a sauna do maior aposento. O grupo de sete pessoas festejava e não se constrangeu com sua presença, sequer vestiu as roupas ou parou o que estava fazendo. A nudez é habitual. Chegar pelado no carro. Transar com a janela aberta. Elisa lembra do hóspede que vai ao local assistir ao jogo do Inter e recebe as cervejas com a camiseta do time. Nada mais. Além da sacanagem, as dependências do motel escondem outros tipos de segredos. A mãe que aparecia com a criança a fim de mostrá-la ao verdadeiro pai. O impotente que passava o pernoite conversando com as moças. O viciado que se hospedava no intuito de consumir cocaína. Sete anos atrás, uma overdose provocou morte e o espaço precisou ser fechado para perícia. Este acontecimento alimenta boatos acerca de assombrações. Qualquer funcionário é categórico ao afirmar que a paragem, à beira da estrada, é permeada por espíritos. Na madrugada, presenciam conversas em dormitórios vazios, vultos nos espelhos, correntes se arrastando. De acordo com fregueses religiosos, a energia pesa no ambiente por onde perpassam tantas histórias.

A temida higiene

Sônia explica como realiza a limpeza das banheiras. Nas manhãs, enche com água quente, deixa o amoníaco agir, bate com a hidromassagem, esfrega, enxágua. Durante a semana, o visitante ganha faxina completa. Em horário de pico, no entanto, as camareiras não garantem p e r f e i ç ã o. Entre a saída de um e check in do próximo, passa-se o pano e, depen-

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dendo da pressa, só esvaziam e secam. “Depois que a gente começa a trabalhar em motel é que se liga nesses cuidados”, relata. Embora a higienização abranja todos os móveis, ela indica que, aos fins de semana, o cliente coloque o lençol por cima do sofá e da cadeira erótica. As peças da rouparia passam por um ciclo criterioso de purificação na lavanderia, não existindo risco de contaminação. Dia dos namorados, o natal dos motéis. Quando só o quarto mais barato chega a rodar 12 vezes. “É um cheirando a porra do outro”, debocha Elisa. Mal desocupam a vaga e o casal seguinte buzina no pátio. Os funcionários viram a noite. Não sobra oportunidade para comer e falta garrafa térmica de café. Em sua jornada mais longa, a camareira afirma ter trabalhado das duas da P RI M E IRA I M P R E S S Ã O

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tarde às três da manhã, sem pausa. Certos indivíduos deixam a suíte como se nem tivessem usado. Basta ajeitar a roupa de cama e repor os estoques. Alguns, porém, dificultam a vida das trabalhadoras. Na tentativa de produzir um clima romântico, acendem-se tantas velas que já colocaram fogo no aposento. Quem apaga o incêndio, com balde na mão, são as camareiras. Fora as marcas nos incontáveis espelhos e eventuais manchas de sangue, as surpresas variam. “Peguei um apartamento que achei que não fosse terminar nunca! Eles usaram morango, daí era sujeira para tudo quanto é lado”, reclama Sônia. Leite condensado, Chantilly, mel, sorvete, Nutella. A ideia de unir duas das maiores paixões do ser humano é uma dor de cabeça para quem limpa depois. Mas esses ainda

são os casos leves. O grupo se depara com urina no estacionamento privativo, vômito na pia, fezes no box. Segue-se uma disputa com o objetivo de decidir quem vai limpar.

Economia no prazer

Com a crise, o telefone da copa raramente toca. Ao invés de adquirir os sextoys oferecidos pelo motel, o pessoal improvisa. Banana, cenoura, pepino. Dada ocasião, acharam duas pernas grossas de linguiça no telhado, envoltas por camisinha. A cozinheira brincou que as aproveitaria para a janta da equipe. Existem os espertos que dão o seu jeito de burlar a revisão dos cômodos para consumir sem pagar. O encarregado Rodrigo entrega vários dos truques. A garrafa de Smirnoff Ice, por exemplo, é preenchida com água da banheira e a diferença fica

Pela passagem central, as camareiras se deslocam de quarto em quarto rumo à rotina diária de limpeza


praticamente imperceptível. Pacotes de Ruffles são abertos na parte inferior, com um buraco pequeno, e estufados com sacolas plásticas.

Da casa

Rodrigo conhece todos os cantos do recinto. Sabe qual é a suíte com a cabeceira vermelha, a da cama redonda e onde ficam as cortinas de veludo. O colaborador de longa data é fascinado pelas acomodações e por aquilo que faz, enxergando a função como uma verdadeira experiência antropológica. Na maior parte do tempo, se diverte. Ao mostrar um leito rústico, estruturado em madeira, recorda da época em que as algemas foram colocadas nas quatro extremidades do móvel. Atenderam ao pedido de socorro de uma esposa, cujo companheiro não conseguia se libertar dos acessórios. “Demos de cara com o homem, de bunda pra cima, com a cabeça tapada em função da vergonha”. Assim como os colegas, recebeu inúmeras propostas indecentes ao

longo dos anos. O sujeito chega com o par bêbado e, não querendo perder a chance de se dar bem, convida um empregado substituí-lo. Aconteceu com a ex-namorada, que se empolgou ao encontrar Rodrigo naquela situação inusitada. A resposta é permanentemente negativa. Inclusive, na hora de passar a noite com os próprios parceiros, eles costumam frequentar diferentes motéis para não misturar as coisas. Fim do expediente. Diogo leva, na cabeça, teorias e paranoias. Elisa prefere não comentar o cotidiano, pois tem quem julgue imoral o seu ofício. Sônia guarda as dicas que troca com as prostitutas. Rodrigo e suas experiências são o centro das atenções no almoço de domingo. Este último aguarda a chegada do inverno, quando o movimento cresce e a imagem do motel, ao cair da serração, encanta até mesmo os olhos mais habituados. (*) Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER Pode parecer bobagem, mas existe algo de teatral na suíte de um motel. Como se os quartos constituíssem diferentes cenários, montados para o ato final da peça. Esse mise en scène inspira os clientes a encarnarem sua versão mais libidinosa. Claro que, para quem vive nas coxias, o épico não passa de feijão com arroz. Os personagens da reportagem cedem entrevista no intervalo dos gemidos. “Coitadinho, tá com dor de dente”, zomba a trabalhadora quando os sons abafam nossa conversa. A turma transformou tarefa de repórter e fotógrafa em entretenimento. Não consegui acreditar na minha sorte, quando procurava fontes e a “tia camareira” de um colega caiu do céu. No fim, toda a equipe entrou na brincadeira, presenteando a PI com os causos aqui registrados. Espero que a leitura do texto seja tão deliciosa quanto o seu processo de criação. Bom espetáculo!


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS Cep: 93022-750. Telefone: (51) 3591.1122 Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba Gerente dos Cursos de Bacharelados e Tecnológicos: Paula Campagnolo COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

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REDAÇÃO

TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: revistaprimeiraimpressao@gmail.com

Orientação

Anelise Zanoni (aneliseza@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

Reportagem

Atividades Acadêmicas: Redação Experimental em Revista / Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Alessandro Garcia, Aline Santos, Anderson Dilkin, Anderson Guerreiro, Aniele Cerutti, Arthur Isoppo, Artur Colombo, Carolina Schaefer, Cassiano Cardoso, Denis Machado, Dijair Brilhantes, Elisa Ponciano, Fabiano Scheck Ferraz, Gabriela Wenzel, Izadora Meyer, Jéssica Zang, Joaquim Oresko, Khael Santos, Lucas Girardi Ott, Mel Quincozes, Mirian Centeno, Paula Câmara Ferreira, Rafael Erthal, Tiago Assis, Victória Freire e Vitória Padilha MonitorA: Mariana Blauth

Fotografia

Atividades Acadêmicas: Projeto Experimental em Fotografia Amanda Cunha, Amanda Oliveira, Andressa Michels, Carolina Zeni, Daniela Tremarin, Ederson Silva, Eduarda Moraes, Ellen Renner, Eric Machado, Laíse Feijó, Lucas Americo, Manoela Petry, Maria Eduarda de Lima, Michelle Oliveira, Milene Magnus, Nathalia Amaral, Paola Oliveira e Paola Sartori Foto de capa: Laíse Feijó

ARTE E PUBLICIDADE

Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Cybeli Moraes

Editoração

SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Mariana Matté e Marcelo Garcia

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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme ATENDIMENTO: Manuela Massochin Arte-finalização: Marco Ambrozini Página 2 (Fé e Alegria) Direção de arte: Jorge Eduardo Tavares Redação: Isadora Salines Página 111 (Agexcom) Direção de arte: Jorge Eduardo Tavares Redação: Ina Pommer contra-capa (Mescla) Direção de arte: Gabriel Marin Redação: Ina Pommer

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