Primeira Impressão 58

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imeira impressão

LAÇOS PARA A VIDA

pi pr | 58 | Dezembro de 2022 |

O CULTIVO DAS RELAÇÕES

“N

enhum tema é alheio à boa reportagem. Toda a vida humana está aqui”, resumiu Jon E. Lewis na apresenta ção de uma antologia de alguns dos melhores textos jornalísticos de todos os tempos. De repórteres iniciantes a renomados escritores, foram muitos os nomes que já se ocuparam do gênero mais nobre do jornalismo para contar histórias reais. Trata-se de uma narrativa mais extensa, de estrutura elaborada, com linguagem rica e envolvente, que é convocada (por quem escreve e por quem lê) justamente quando a notícia parece não dar conta dos fatos. Temas complexos, portanto, sempre pedem uma reportagem, mas ela também cabe nos temas mais prosaicos, nos assuntos cotidianos que podem estar em qualquer lugar, acontecer a qualquer pessoa. É nesses casos que o jornalismo nos permite ver como, observada de perto, a vida é sempre instigante.

Nesta edição 58 da Primeira Impressão , como já é tradição da revista, nossos jornalistas em formação definiram sua pauta a partir de um tema central, discutido e escolhido por eles: relações. Uma proposta ampla, que contemplou não somente as conexões entre pessoas, mas tam bém destas com animais de estimação, esportes, cultura, saúde. São relações que caracterizam e transbordam esses seres que, narrativizadas pela reportagem, não são apenas fontes de informação, mas protagonistas de histórias que emocionam, ensinam, importam. Histórias, enfim, humanas.

É significativo que a turma de Jornalismo Literário tenha desejado falar de relações em um tempo como o que vivemos. Famílias, cidades, nações são construídas a partir da forma como as pessoas se relacionam entre si e com o lugar em que habitam. Construir um mundo melhor, que também é missão do jornalismo, passa por cultivar esses laços, sobretudo nos momentos mais difíceis da vida, com humanismo e res ponsabilidade. Esperamos que as histórias das próximas páginas inspirem as melhores reflexões.

Boa leitura!

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SAÚDE

Uma família se une em torno da mãe para encarar uma jornada difícil

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ATIVIDADE

A rotina nada tediosa de Djuli, atleta, bancária e cantora

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EDITORIAL
ÍNDICE

ANIMAIS

Da rua para a casa de alguém, rede de resgate e proteção ampara cães e gatos

MEMÓRIA

Cada visita é uma tentativa de reencontrar Lori e suas lembranças

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MÚSICA

A batalha diária de um DJ começa cedo e termina tarde

FUTEBOL Jornalistas esportivos falam de uma paixão: a Seleção Brasileira

FAMÍLIA Conquistada por Alisson, Stefanie viu o filho ganhar um pai de verdade

AUTISMO Um amor incondicional move Vivian pela inclusão do filho Josué

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AMANDA BIER

n Felipe trata a mãe com muito carinho e atenção. Os problemas de saúde de Ivoni serviram para aproximar ainda mais os dois

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ESPERANÇA O GENE DA

Uma pequena cidade no interior do Rio Gran de do Sul, a 78 quilômetros da capital. Ao longo da BR-116, vemos os plátanos e lírios que rodeiam o município. Com apenas seis mil habitantes, a maioria de ascen dência alemã, Picada Café guarda histórias emocionantes, dentre elas a da família Bündchen.

Ivoni Bündchen, 60 anos, é a mais jovem dos qua tro irmãos. Frequentou a escola até os 14 anos, quando parou os estudos para trabalhar de doméstica na casa de um empresário. Depois, foi merendeira em uma escola. Por fim, passou a fazer doces para um café colonial. É casada há 36 anos com Marino, com quem formou uma bela família com dois filhos, Aline e Felipe Rafael.

Em julho de 2019, Ivoni seguia preparando as sobre mesas na Tenda do Umbu. O trajeto de casa até o serviço era curto, em torno de 25 minutos. Todos os dias, ela se deslocava a pé até o local, mas chegava sempre cansada, sempre ofegante. Poucos minutos na cozinha e ela já es tava bocejando. Uma colega questionava: “Não dormiu à noite?”. Ivoni acreditava que as extensas horas de trabalho e as jornadas de afazeres domésticos do final de semana eram a causa do seu cansaço. No final do dia, retornava para casa com o esposo Marino e o filho Felipe, também empregados do restaurante. Mas ficava para trás. Quando os dois já estavam em casa, ela mal estava na metade do caminho. Precisava parar e respirar, sentava-se e se apoiava em um tronco de árvore. Estava exausta.

Além do cansaço excessivo, alguns nódulos apa receram em seu braço. Ivoni decidiu então que pre cisava descobrir o que estava acontecendo. Em uma consulta médica, o doutor disse para ela que era apenas uma tendinite, advinda dos movimentos repetitivos. Prescreveu um anti-inflamatório e disse que não era nada grave. Mas o problema não foi resolvido.

Já havia algum tempo que o plano de saúde fazia parte das contas fixas da família Bündchen. Fizeram um assim que o vizinho caiu do telhado e ficou em estado vegetativo. Marino se deu conta de que nin guém está livre de se machucar. “Pensa se para nós acontece algo assim?”. Como as dores e o cansaço de Ivoni persistiam, resolveram marcar uma consulta com o cardiologista da família, Luiz Fernando Beni ni, no Hospital Regina, em Novo Hamburgo.

Tempos depois, quando Ivoni voltava da clínica onde ela fora fazer os exames solicitados pelo médico, recebeu uma ligação do laboratório. Precisavam rea lizar a coleta novamente. Algo estava errado. Quando retornou para fazer o segundo exame, as enfermeiras a questionaram se ela tinha realmente subido todos

EM UM DOS MOMENTOS MAIS DIFÍCEIS, A MÃE ENCONTROU NA FAMÍLIA A FORÇA E A UNIÃO QUE PRECISAVA

aqueles lances de escada da clíni ca, e duvidaram da resposta.

No dia seguinte, Ivoni já conse guiu uma consulta com o hematolo gista Cláudio Cruz Baungarten. Desta vez, particular, porque a família tinha pressa em saber do que se tratava. “Eu estava bem confiante que ia ser só um problema de sangue”, Felipe comenta quando relembra a primeira consulta da mãe. Infelizmente, a doença era mais grave do que o esperado. O dia 3 de julho de 2019 ficará para sem pre na memória dos Bündchen. Foi quando receberam a notícia de que Ivoni estava com câncer. “O médico sentou no sofá ali no quarto, conver sou, explicou para nós”, Ivoni relata, com lágrimas nos olhos. Foi do he matologista que ela ouviu: estava com leucemia mieloide aguda.

Dias longos e difíceis

Houve momentos de choro, e a sensação de estar sem chão tomou conta da família reunida em tor no de Ivoni naquela pequena sala. No mesmo dia ela já teve que in ternar. O marido voltou para casa, pegou algumas roupas, e o filho Fe lipe ficou com a mãe. Foi quando todo o processo começou.

O doutor João Peron Moreira dis ponibilizou o contato particular para qualquer dúvida que aparecesse du rante o tratamento. Enquanto o dou tor Cláudio tratava de questões mais técnicas, João ficava mais acessível. Felipe estava sempre em contato com o médico. “Ele nos avisava se tinha alguma coisa fora dos trilhos.”

O tratamento foi dividido em cinco etapas. Cada fase era a exe cução de uma quimioterapia, que exigia que Ivoni ficasse internada em torno de 30 dias no hospital. Era um processo doloroso, mas ela sempre teve o amparo da família e dos amigos. Quando eles iam em

bora, sentia falta de casa, queria poder voltar ao lar também.

Ivoni passou maus bocados dentro do hospital ao longo desses meses. São muitas histórias para contar. Por conta das medicações, ela tinha muitos acessos, em torno de 12 cateteres. “Uma vez, tinha uns três ou quatro carrinhos de soro”, conta Felipe. Numa noite uma en fermeira fez algum procedimento errado, deixou um tempo sem passar nada por um cateter, e quando isso acontece, tranca e, na maioria dos casos, precisa ser trocado. “Aí nós já começamos a tremer.” O filho contou que na primeira vez em que a mãe co locou esse acesso, voltou do procedi mento cheia de sangue. “Eu tava todo branco, as enfermeiras só falaram que não era para eu dar ainda mais serviço para elas.” Agora a família relembra os fatos de forma leve, mas foram momentos dolorosos.

Ivoni mantinha um caderno, uma espécie de diário onde anotava as medicações, os dias de internação e até o que o médico dizia para ela. Ano tava principalmente os dias em que poderia ir embora. “Quando o médico vinha e falava que amanhã eu podia ir, ficava feliz”, recorda Ivoni, que desanimava no dia seguinte: ao fazer os exames de sangue, descobria que precisava permanecer mais alguns dias. Foram dias longos e difíceis den tro de um quarto de hospital.

Quando Ivoni finalizou as cinco etapas, o médico analisou o caso. Ainda era tempo de más notícias: a doença voltara. Seria necessário fazer mais uma quimioterapia. Mais 30 dias de internação. “Eu falei que não queria mais internar, eu chorei de lá até em casa”, lembra. Teve momen tos em que ela pensou em desistir. Passava noites em claro pensando se conseguiria superar essa fase da sua vida. Com o apoio de psicólogos e psiquiatras, a situação era minimi

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n Os longos dias no hospital foram suportados por Ivoni com muita leitura. Casada com Marino há 36 anos, os momentos complicados sempre foram superados juntos

zada. Precisou de medicação para conseguir dormir, pois muitos pen samentos lhe tiravam o sono.

Lembrou que tempos antes havia sugerido cancelar o plano de saúde. Dizia não valer a pena gastar todo aquele dinheiro e não usar, mas o marido não aceitou. “Graças a Deus eu estava pagando o meu plano, senão eu não sei onde estaria hoje.”

As sessões de quimioterapia eram fortes e fizeram com que Ivo ni perdesse o cabelo, mexendo com seu emocional. Os tufos começaram a cair, o cabelo ficava espalhado pelo chão, no travesseiro e na es cova. A saída era raspar a cabeça. “Coloquei uma cadeira no banheiro, peguei uma toalha e a enfermeira

veio, mas eu não olhei no espelho.” Ivoni passou por isso três vezes. Na primeira, quando os fios voltaram a crescer, saíram bem cacheados, só depois ficaram lisos.

A rotina dentro do hospital era sempre a mesma: almoçar, descansar um pouco, fisiote rapia, tomar café e depois hora do banho. Esta era a pior parte para ela. Sentia muito frio por conta da doença. O corpo todo doía. Marino ligava todos os dias para a esposa para saber como passara a noi te, se estava se ali mentando, se estava tudo em ordem. Um dia, durante o telefonema, ele sentiu a fala da mulher mais arrasta da, lenta. Ficou preocupado e já en trou em contato com o médico. Logo

em seguida levaram Ivoni para tomografia. “Eu pensei: pronto, agora esse negócio foi para a cabeça.” Foi um susto, mas era só o efeito colateral de uma medicação.

Só restava uma solução

Ivoni estava confinada a um quarto de hospital, mas lá fora as pessoas estavam confinadas em suas casas. A pandemia da Covid-19 chegava no seu momento mais crítico, e a situação dela também não era nada fácil. A sexta etapa de quimioterapia tinha sido finalizada, mas os exames mostraram que a leucemia havia voltado. A única opção era o transplante. Felipe lembrou da primeira consulta, quando perguntara se a quimioterapia resolveria o problema e o médico lhes respondera que eles deve riam ter calma. “Naquela vez eu já sabia que ia ser só por um tempo, que ela ia ter que fazer transplante.”

Agora precisavam de um doador. Em um primeiro momento pensaram na filha Aline, mas o médico nem cogitou a ideia, em função de seu físico frágil. As irmãs de Ivoni também não poderiam, porque já haviam tido filhos e a medula não estava mais 100%. Pensaram então no irmão de Ivoni. Ele chegou a ir até a casa da família para entender todo o processo, mas o médico, depois que soube a idade dele, também não autorizou. Foi quan do o doutor sugeriu que Felipe fosse o doador.

Foram necessários exames para ver como estavam os níveis de sangue de Felipe e a compatibilidade. O médico ainda brincou com ele: dessa forma descobririam se ele era realmente filho de Ivoni. Os dados do exame con firmaram a compatibilidade e apontaram que a chance de a medula pegar era de 50%, o que era algo positivo. Quando Felipe soube que poderia doar a medula para Ivoni, chorou de felicidade. “Eu nunca imaginei uma coisa dessas, eu poder salvar a mãe. Ela me deu a vida, e eu podia salvar a dela.” A caminhada ainda era longa, mas neste momento Felipe sentiu algo muito especial.

Como estava tudo em ordem, ele foi encami nhado para realizar o transplante. Além do medo de a “medula não pegar” (expressão que se usa quando passa o período de aceitação do organismo em rela ção à medula), a família ainda estava apavorada com os casos de coronavírus que lotavam o hospital.

No dia da coleta, uma sexta-feira, todos estavam muito apreensivos. Principalmente o filho. “Eu pedi um remédio, porque fiquei muito ansioso.” A retirada do líquido da medula é algo simples: o médico extraiu em torno de 1,4 litro de Felipe, e afirmou que foi melhor que o esperado. Na coleta, havia muitas célu las boas, que aumentam as chances de pegar. No sábado pela manhã, Ivoni recebeu a medula do filho, como se fosse uma bolsa de sangue, um ato que para ela era a esperan ça de cura. “Ele me salvou, não tem explicação.”

Após o transplante, Felipe permaneceu no hospital, cuidando da mãe. Queria evitar um giro muito grande de pessoas, por conta da pandemia. O pós-transplante teve momentos delicados. “A gente sempre com medo da rejeição”, lembra. Os primeiros 100 dias exigiram muitos

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Eu nunca imaginei uma coisa dessas, eu poder salvar a mãe. Ela me deu a vida, e eu podia salvar a dela”

cuidados com alimentação e higie ne. Ivoni não podia ter contato com qualquer impureza e não podia ser contaminada pela Covid-19.

A queda de cabelo e as dores estiveram entre os momentos mais difíceis, mas Ivoni conta que nada se compara às feridas que apareciam na boca e iam até o estômago. Esse foi um dos motivos por que ela não conseguia se alimentar. “Se comia, era com sofrimento.” No final de tudo, emagreceu 20 kg. Como a falta de apetite também dificultava a ali mentação, os médicos optaram por colocar a sonda nasogástrica, para que ela não ficasse tão debilitada. Ficou assim em torno de oito dias, até que uma noite a sonda acabou saindo. A recolocação seria dolorosa, e Ivoni se preocupava em ter que passar por aquilo de novo. “O médico disse que ela não precisava mais colocar, que ela começaria a comer, que o pior já havia passado”, recorda Felipe.

Eram raros os momentos em que Ivoni sentia disposição para se alimentar. Um dia ela disse que esta va com vontade de comer melancia. Questionaram o médico e ele auto rizou. Começou então a busca pela melancia. Marino estava em Picada Café. Foi difícil encontrar, porque não estava na época da fruta, mas

ele achou em uma fruteira da cidade: era uma melancia de 18 kg. “Eu quase não conseguia carregar”, relata.

A fruta só deveria ser cortada na hora que Ivoni fosse comê-la. Quando Marino chegou ao hospital já era noite. Estava todo suado pelo esforço. Depois de passar por um processo de esterilização, cortou a melancia e levou-a para o quarto. Mas Ivoni só conseguiu comer dois pedaços pequenos. “Não tinha gosto nenhum”, diz ela. “Fizeram a festa no hospital”, acrescenta Felipe, contando que quilos de melancia ficaram para a equipe de saúde.

Restava saber se o organismo aceitaria a medula, o que se espera que aconteça até o 21º dia após o trans plante. No caso de Ivoni, já se passavam 26, 27 dias... Mas finalmente chegou o “Dia do Pega”, como dizem no hospital. O organismo de Ivoni aceitara a o transplante. Felipe questionou sobre a demora, mas o doutor João afirmou que era normal. Era uma medula mais “pre guiçosa”. Foi uma festa só. Todos os profissionais que acompanharam a trajetória de Ivoni vieram comemorar com ela. Teve até bolo, fornecido pelo hospital.

Viver com esperança

Ivoni passou quase três anos entre o quarto de hospital e sua casa, onde não permanecia mais do que 10 dias. Ela contava os minutos para poder sair e viver sua vida nova mente. Logo após o transplante, tomava 17 medicações. Hoje, usa apenas um remédio, para a ferritina, uma proteína produzida pelo fígado, que estava alta por conta das trans fusões de sangue que recebera ao longo da doença.

Ivoni ainda lembra das horas em que pensou em desis tir. “Às vezes eu achava que não ia dar mais.” Mas sempre que pensava nisso, as pessoas que estavam ao seu lado, a família e os amigos, davam o impulso que precisava para

seguir em frente, continuar lutando. Enquanto esteve internada, buscava nos livros um incentivo a mais. Viva com Esperança foi uma das leituras que a acompanharam nessa trajetória. O livro foi escrito por Mark Finley e Peter Landless, em parceria com outros médicos. Trata sobre saúde, alimentação, bem-estar, estilo de vida e hábitos saudáveis. Os temas centrais são doenças como diabetes, problemas do coração, obesidade e câncer. “Ao percorrer as páginas deste livro, você certamente será desafiado a fazer ajus tes no rumo de sua vida”, diz um trecho da apresentação. Ivoni absorveu orien tações sobre boa alimentação e cui dados com o físico e a mente.

O último exame de Ivoni mostrou que a única medula que ela tem dentro de si agora é a do filho Felipe. Todas as células ruins saíram do seu organismo. Tudo deve permanecer assim por um prazo de três anos para ela se conside rar curada. A última internação foi no dia de seu aniversário, 9 de junho de 2022, por conta de uma febre que apa recia de noite. Ivoni realizou uma bate ria de exames, mas nada foi detectado, e ela pôde voltar para casa.

Mesmo no hospital, Ivoni sempre se sentiu acolhida. Os amigos e cole gas de trabalho mandavam cartazes com palavras de força e carinho. Ela passava horas admirando. Em nenhum momento fi cou sozinha.

n Foi uma festa com direito a bolo e tudo. No dia em que o organismo aceitou a medula, Ivoni recebeu a visita de médicos, enfermeiras e também contou com a companhia do filho

“Pensando no que passei, a gente come ça a valorizar tudo.” Também ficou mais sen sível e emotiva. Quando fala sobre o tempo que passou internada e as dores que carregou ao longo desses três anos, seus olhos se enchem de lágrimas. As batalhas que ficaram no passado jamais serão esquecidas. “Tem que ter fé e esperança.”

Ivoni ainda precisa manter o acompanhamento médico, mas está bem. Quer voltar a trabalhar, recupe rar o tempo em que passou no hospital.

O doutor Cláudio disse que ela pode começar a pensar nisso no próximo ano. Ivoni tem esperança. Por enquan to, fica em casa, cuidando dos afazeres domésticos e das ovelhas que a família Bündchen cria – e pensando no dia em que, sem falta de ar nem cansaço, poderá acompanhar novamente o marido e o filho até o serviço. n

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ARQUIVO PESSOAL / FELIPE RAFAEL BÜNDCHEN

NA MÚSICA, NO ESPORTE E NO TRABALHO, DJULI PRECISA SE DIVIDIR EM VÁRIAS PARA DAR CONTA DE TANTAS ATIVIDADES EM SUA ROTINA

Manhã gelada, com direito a cerração que cobre quase toda a região, o que é comum em Parobé. A cidade de pouco mais de 60 mil habitantes, situada no pé da serra, possui uma mata nativa ainda preservada e um povo que adora festa, mas que, agora, ainda dorme. Logo cedo, pouco a pouco as pessoas começam a “desa ninhar”. Por vezes, o desânimo e cansaço estão estam pados nas faces daqueles que seguem para as primeiras atividades diárias. Entretanto, há aqueles que mesmo antes das 6h quebram esse padrão e logo que acordam já estão com a energia nas alturas. O relógio marca um pouco depois das 5h e, se não fosse a primavera, a penumbra sobre a cidade ainda estaria reinando.

Ao se aproximar o raiar do dia, os pássaros estão todos afoitos e, como se fosse um despertador sem botão para desligar, eles cantam sinfonicamente uma bela canção, que só aparecerá de novo ao anoitecer, quando novamente, pouco a pouco, as pessoas voltarão para se empoleirar em seus ninhos arquitetonicamente mais planejados e deveras mais caros do que dos sim ples pássaros, ou dos pássaros mais simples.

Djuli está a todo vapor. Antes de iniciar as ati vidades laborais, é preciso correr a outro lugar. Um centro de treinamento, ou box, como é conhecido pelos atletas, com um pássaro – uma águia real – es tampado no logo da porta, sobre o nome “Mowius”, será a próxima parada. E é assim há quase três anos. Com um pé no freio para os treinos nos momentos mais incertos atravessados durante a pandemia, mas acelerando no objetivo de mudar sua qualidade de vida. Afinal, o que seria da vida se a limitasse a apenas ver o dia passar e esperar a morte aparecer?

A decisão de fazer algo a mais por si rompeu o pen samento e tornou-se ação permanente desde novembro de 2019. O crossfit trouxe inúmeras possibilidades para a jovem de 27 anos alcançar as superações almejadas desde a sua tenra idade. Foram inúmeras e mirabolantes tentativas para melhorar o condicionamento físico, per der não, deixar para trás propositalmente peso extra, e estar com a saúde em dia. Todas, até então, sem sucesso. Era uma montanha-russa. Efeito sanfona presente e a desmotivação que teimava em bater à porta.

ALTA FREQUÊNCIA

O crossfit, modalidade esportiva que tem como objetivo promover a melhora da capacidade cardior respiratória, condicionamento físico e resistência mus cular, propiciou um novo horizonte à moça. A sabatina diária no box de treinamento de atletas de alta per formance é prioritariamente seguida todas as manhãs. Inclusive, é de Djuli o prêmio de assiduidade Mowius.

n As provas do Bah Challenge POA-2022 exigiam força, concentração e agilidade dos atletas

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FREQUÊNCIA

O relógio mal passou das seis e o som já está no talo para pilhar a galera e colocar a energia lá em cima! A música que está em alta da banda Maneskin, “Begging”, marca o começo do primeiro treino do dia. Assim são todos os dias! Feriados e finais de semana raramente ganham folga na agitada rotina da nova atleta.

A pimentinha que Djuli leva sempre no pescoço, um pingente vermelho, é ela. A escolha do ruivo para o cabe lo chama a atenção de quem passa. Ser intensa, picante, ardente, trazer um diferencial, assim como a iguaria, a pimenta, faz parte de sua personalidade. Ela é assim pra tudo! “O pingente de pimenta que uso, considero ao mesmo tempo delicado, mas vibrante, forte! Além disso, tem a questão da superstição, proteção que eu acredito! E é aquilo: nem todo mundo gosta de pimenta, mas quem gosta, gosta bastante! E essa sou eu!”

Djuli está em busca de mais um objetivo. Tanto foco tem um motivo. Os dias estão se comprimindo, e a sensação que o grande dia está perto chega a sufocar com tamanha ansiedade. Um novo dia de treino se inicia. “Pressão! Pressão!”

n Sustentar, erguer o corpo e fazer abdominais sem tocar os pés no chão fazem parte dos treinos para criar resistência

É a palavra proferida pelo coach que está ecoando no ambiente!

Organizadamente, cada inte grante da equipe do treino matinal pega os objetos e vai cada um para as suas posições. “Boooora galera!”

Um grito e um apito que fazem os ouvidos zunirem dão o sinal para começar os exer cícios, que devem ser realizados intercalados e ter duração de seis minutos em cada modalidade.

Djuli está a cada dia um pouco mais nervosa. O motivo de tanta agitação e frio na barriga é sua con firmada, e primeira, participação em uma competição com o nível mais profissional. Além de exigir mais, a competição é acirrada, com atletas de ponta. Atletas que são referência em nível estadual e nacional.

Todavia, mal sabia ela que aquela quinta-feira seria atípica. Ela não imaginava o que estava por vir.

O treino já havia encerrado naquele dia e ela voltou, sozinha, para treinar só mais um pouco e obter mais con fiança do que seria exigido no dia da competição.

O que ela não contava é que a essa altura o corpo já estava esfriando, os músculos já não estavam com a força necessária para executar todos os movimentos.

Salto, adrenalina, atenção, queda e muita, muita dor.

Os colegas correram ao seu encontro porque vi ram, de relance, o que havia ocorrido. Estupefatos, tentaram ajudá-la no que foi possível. Chamamos uma ambulância? Quebrou? Entortou? Qual o ní vel da dor? Uma mistura de ansiedade, nervosismo, confiança e a dúvida de estar fazendo certo ou não cada movimento custou a ela um tornozelo.

Djuli havia pisado de mau jeito na hora de descer da caixa, a última sequência que iria fazer, para depois ir embora, tomar um banho e descansar. Os amigos de treino que estavam olhando e os que ouviram os gritos agonizantes de dor intensa que ela liberou garanti ram que a lesão era séria e que talvez para o próximo campeonato seria impossível sua participação.

“E agora? Como fica a competição? Só fal tam alguns dias. Já está tudo pago, tudo arruma do, e agora isso?”, eram os questionamentos que permeavam os pensamentos da moça.

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FOTOS: GUILHERME LAUXEN E LUCAS PINHEIRO

Com treinos semanais frenéticos e uma rotina alucinante para fazer caber tantos afazeres, Djuli Zanetti sentiu. Não apenas pela dor física que gritava no corpo horas depois dos treinos. Não pelo grito, estrondo e queda que fizeram vários colegas correrem ao seu encontro. Me re firo à dor que vem junto quando, em milésimos de segundos, a única coisa que vem à mente é se tudo vivenciado durante anos, meses, semanas intensas de treino, através de um deslize, foi jogado fora.

Os pensamentos eram cruéis. No consultório, a constatação.

Milagrosamente, não havia quebrado, mas era uma luxação daquelas! Uma entorse no torno zelo que exigiria dela um cuidado extra. Foi aconselhada a dar uns dias de folga para o pé. E assim o fez. Por três ou quatro.

Depois, lá estava, ainda man cando, com uma dor já controlada e não tão intensa, pois segundo ela estava dopada de tantos remédios receitados, um torniquete coloca do por seu quiropraxista, sentin do-se “novinha em folha”.

Uma nova semana se iniciou. Segunda-feira, 6h da manhã, mais uma vez, de maneira orga nizada os integrantes da equipe do matinal pegam os objetos e vão para as suas posições.

Após o treino, colegas se apro ximam. Como está o tornozelo, está melhor? Enfática, Djuli admite: “Ain da não, ainda dói bastante. Quem sabe nesses dias que me restam eu consiga me recuperar”.

A semana avança. Hoje o trei no terá um cross mais curto, po rém intenso! Serão 20 minutos de pegada, sem pausa para água ou uma respirada mais profunda. São quatro minutos em cada moda lidade. É focar e executar!

O coach mostra na práti ca como cada movimento deve ser feito corretamente.

Alguém precisa de anilhas? E presilhas? Hora de puxar peso! O que antes parecia um sacrifício inviável, aos poucos vai ficando, mentalmen te, mais leve para suportar.

Djuli está concentrada. Mais uma queda, deslize, seria o xeque -mate para a competição! A tempe ratura começa a subir nos corpos e as roupas começam a ficar ensopadas de suor. O corpo quente e suado não impede os atletas de saírem na rua gélida, com temperaturas bem

abaixo do esperado para a época do ano. Está bem frio, frio o suficiente para estar de casaco, calçado fecha do, calças e quem sabe um cachecol. Mas isso é para quem está para do, sentado, só observando.

Para aqueles que estão se aque cendo e alongando a musculatura, o organismo já está acelerando, e roupas flexíveis e mais curtas são uma ótima pedida para dar conta do suor escorrendo pelo corpo. Em uma relação de pegada, um atleta motiva o outro. Todos em clima de amizade e coleguismo para alcançar o mesmo objetivo. A turma costuma ser divi dida em grupos de três a quatro pes soas quando há um quórum maior. Se não, a proposta é individual e todos realizam ao mesmo tempo o que é proposto pelo coach.

Em poucos minutos o suor já começa a escorrer e as caras de exaustos com os exercícios começam a aparecer. Hoje, último dia da se mana pré-competição, Djuli chegou uns minutos atrasada com o esposo, mas já no pique! Torniquete no pé direito, mas as mancadas já diminuí ram significativamente. Para pisar ainda dói um pouquinho, mas está bem melhor. Diz estar com medo dos saltos que estão por vir. “Treino insano! Valeu, gale ra!” O professor cumprimenta a todos de maneira descontraída. “Máfia das seis”, como eles se de nominam, está a todo vapor! “Um coffee antes, please”, para manter o corpo quente e ativo. Pós-trei

no, vídeo “bumerangue” para registrar no Insta gram. São 7h10 e a maioria já se foi. Djuli não. Ela segue firme na barra fazendo abdomi nais com o corpo suspenso. Seus pés ficam sem tocar o chão por vários minutos. “Faz parte! É as sim que consigo criar resistência. Um dia de cada vez! Um leão por dia!”, ela garante.

Concentrada, Djuli já tem pensamentos pós-trei no. “Casa, banho, trocar de roupas, fazer um whey protein com morangos picados, para ter pique e aguentar o dia que só começou, e bora trabalhar. A agência bancária do centro precisa de mim!”

São 7h20 e uma roda se forma. O assunto é tratar dos detalhes de quais serão os critérios da competição que se aproxima. O próximo sábado requer muito foco, confiança, perseverança!

Mas ela ainda tem outros sonhos. Não apenas aqueles que parecem utópicos, platônicos. Me refiro aos que estão ao alcance. A música sempre esteve muito pre sente na vida de Djuli. As novas frequências, melodias, trilhas, repertórios têm trazido a ela muitas surpresas, convites, momentos memoráveis para acrescentar à sua história e playlist de vida. As aulas de canto e de instrumentos fizeram um antigo desejo, de uma gaveta empoeirada da mente, se concretizar. “Djuli e banda”, foi o termo utilizado por uma equipe de reportagem que entrevistou o grupo um dia desses. A banda, ainda sem nome definido, curtiu e aderiu ao nome.

“Eu sempre tive vontade de cantar e me apresentar em público. Mas junto vinha a vergonha. Tive que vencer isso. Três, quatro anos pra cá, tem sido essa a minha mais nova experiência de vida.” Vencer a vergonha em cima dos palcos, em apresentações em público, vencer etapas, vencer competições. O pontapé, a motivação, o empe nho, a dedicação, podem fazer toda a diferença.

n O box, como é conhecido, é um centro de treinamento para atletas de alta performance

O dia de competição ama nhece. É hora de encontrar a ga lera e pôr o pé na estrada!

Os quase 70km rodados são repletos de conversas mais

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descontraídas, uma playlist su per eclética, como a dona do veí culo. Vai de Whitney Houston ao batidão da Anitta. Quer funk, pagode, sertanejo, músicas que beiram a música clássica, MPB, pop, rock? Vem que tem!

O dia está lindo! Ensolara do, com uma brisa suave e um clima agradabilíssimo.

O calor maçante estava con centrado dentro do box da com petição. Logo na entrada, para onde os olhos podiam correr, havia bar racas montadas.

A grande maioria dos gazebos toma vam conta das cal çadas e parte das ruas. “Uma grande concentração, um grande acampa mento está invadindo as ruas da capital gaúcha hoje”. “Há crianças, bebês, idosos e ‘filhos de quatro pa tas’”. Todos vieram prestigiar algum dos atletas. “Excelente programação para a família toda”, diziam as pes soas que por ali passavam.

Um homem chamou a aten ção da multidão. Ele foi destaque

pessoas já deixavam em sacos, para que não fosse misturado com ali mentos ou outro tipo de lixo.

Se os treinos parecem insanos, imagine o que é ter centenas de atle tas e seus acompanhantes em um só lugar! O som do microfone e da caixa estavam deixando a desejar.

Era preciso estar atento à contagem regressiva. Três, dois, um... E a cor neta quase deixava todos surdos! Não demorou muito para o ambiente estar superaquecido. A temperatura de todos os corpos bem próximos es tava fazendo até quem estava parado suar e a pressão cair lá no pé.

As modalidades que Djuli par ticipou foram em trio e individual. As atletas fizeram as provas em excelente tempo. Mesmo assim, a competição, por ser acirrada, seguiu com atletas que fizeram em tempo ainda mais curto, com pouquíssima diferença. Foi uma baita experiên cia para Djuli. Sentimento de ter valido a pena. Para os próximos anos, o pódio que a aguarde!

n Djuli e banda, acompanhados do influenciador digital Dianho (camiseta azul e boné), participaram da inauguração do novo espaço Gold Center Fit, em Taquara

por um punhado de tempo. Um homem alto, com aparência de uns trinta e poucos anos, negro, diminuiu a passada ao se deparar com o evento diante de seus olhos. Maltrapilho, estava encantado e tentando compreender algo que para ele era desconhecido. En quanto isso, olhares questionavam sua presença ali. Fui até ele e, com um olhar doce e voz paciente, me respondeu que estava bem e que não precisava de nada, pois já tinha o suficiente.

Ficou ali. Minutos a fio parado, estaticamente, no meio da multidão.

E subitamente, ele se foi. Sumiu.

Perguntei aos que estavam na volta, mas ninguém soube me informar sobre o seu pa radeiro e para qual direção os seus pés o levaram. Parecia que ele havia passado no meio de todos como se fosse um fantas ma e ninguém sequer se deu por conta. Mesmo diante da invisibilidade social, o homem parecia exalar uma paz de espírito e felicidade que são para poucos! Chimarrão, tônica, energético, café, água, frutas, barra de cereal, amendoim, bolacha de cacau, balas de cafeína, taurina, entre outros, iam saindo das mo chilas, coolers, garrafas. As lixeiras no final do dia, para a alegria dos catadores que por ali passavam, estavam abarrotadas de latas e itens recicláveis. As

Essa energia toda, essa vida em festa, com energia lá em cima. Não é só dessa parobeense. Dos conterrâneos que a acompanham também. São poucas as pessoas que podem contar com amigos leais. Djuli é uma dessas. Amigos que adquiriu durante os treinos, estabeleceram um relacionamento para a vida. Eles assumiram o com promisso de estar juntos em todos os momentos. Momentos em que é preciso ter apoio e incentivo, como nas competições. Eles investiram tempo, dinheiro, gasolina, energia só para acompanhar, torcer, vibrar, gritar por ela na competição em Por to Alegre. E costumam fazer isso em outros lugares também.

Todo dia é dia de celebrar. É típico de quem mora na cidade. Mal saiu de uma competição e já tem outras à vista. Os próximos com promissos sociais e profissionais? Será um show com sua banda, em uma inauguração de um novo espaço de treinos na cidade vizinha.

Lá vão ela e sua trupe. Com uma presença ilustre, o influenciador digital Dianho, muito conhecido no estado, não é que estava lá tam bém? Foi prestigiar a inauguração e curtir o show da jovem menina que, além de bancária no horário co mercial, atleta em boa parte do dia, é cantora nas horas vagas, finais de semana e feriados. Haja energia para conseguir acompanhá-la! n

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Ser cantora era o meu sonho desde criança. Hoje é realidade”
LUZA PRODUÇÕES

n Mesmo castrada, vacinada e dócil, Tigradinha está há quatro anos no abrigo sem interessados em adotá-la

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TEXTO
FOTOS
AMANDA BIER
ME LEVA PRA CASA? PROJETO DE SÃO LEOPOLDO RESGATA, CUIDA E ENCAMINHA PARA A ADOÇÃO ANIMAIS EM SITUAÇÃO DE RUA E MAUS-TRATOS
E
DE

fazia dois dias que Carmen Martinelli havia avistado, em seu caminho para o trabalho, uma cachorrinha com as tetinhas inchadas circulando próximo a um lixão. No terceiro dia, suspeitando de que haveria uma ninhada nas proximidades, decidiu parar no meio do trajeto e segui-la. Sua intuição estava certa. Contudo, o que ela não esperava é que seis filhotes estariam dentro de um buraco de mais de um metro de profundidade. Não bastasse essa situação crítica, era ainda um dia de chuva, o que aumentava o risco de desmoronamento de terra. Tudo era muito difícil, porém, deixá-los ali não era uma opção, então ligou pedindo ajuda.

Quem veio foi Queli Souza, junto com o marido, a irmã e a sobrinha Gabriela, que tinha 11 anos e, por ser pequena, conseguiria passar pela estreita abertu ra. Juntos, eles elaboraram um trabalho em equipe: a mais nova entrou com o corpo inteiro e os demais seguraram suas pernas para puxá-la de volta. Deu certo. Assim, um a um dos filhotes foi sendo retirado e colocado de maneira improvisada em uma caixa de papelão. Diante do que aconteceu, o macho e as cinco fêmeas foram batizados com os nomes Rio, Berlim, Moscou, Denver, Nairóbi e Tóquio, todos personagens da série “La Casa de Papel”, ou melhor, “La Caixa de Papel”, como decidiram chamar.

Esse resgate aconteceu no dia 6 de junho de 2018, na cidade de São Leopoldo. Na época, a mãe canina ficou sob os cuidados de Carmen e os filho tes foram para a casa de Queli. Todos receberam comida, água, medicamentos, proteção e muito cari nho. Conforme o tempo foi passando, alguns foram sendo adotados e, assim, a turminha ia diminuindo aos poucos, dando adeus ao lar temporário.

Quando chegou a vez de Berlim, ela ainda era filho te. Tudo parecia estar bem encaminhado, até que, dois meses depois, o tutor – termo correto a ser utilizado, pois “dono” se refere a posse – decidiu devolvê-la. No dia da castração, ele alegou não ter condições de arcar com as despesas da medicação que, na época, custava em torno de R$ 40. Além disso, pelo estado de magreza que se encontrava, a cachorrinha não estava sendo bem tratada. Queli a pegou de volta e, desde então, não conseguiu encontrar mais um adotante para ela. Hoje, quatro anos depois, é a única dos irmãos que ficou. Mesmo castrada, vacinada e com uma persona lidade dócil, segue no aguardo de um lar para chamar de seu. Na tentativa de mudar a energia e as vibra ções, até já recebeu um novo nome: Tigradinha.

À espera de um lar

O trabalho de quem resgata animais é árduo e contínuo. Queli e Carmen sabem muito bem disso. Ambas atuam no Projeto Amigos dos Animais de Rua (PAAR) de São Leopoldo, junto com Fátima Dorsdt e mais voluntárias. Quem costuma caminhar sába do de manhã e também no início da tarde na Rua Independência, no Centro da cidade, com certeza já se deparou com o espaço de adoção do projeto em frente às escadas do Colégio Visconde. Quando o tempo está bom, é lá que elas marcam presença junto de alguns cães e gatinhos resgatados.

Nesse espaço, não é raro encontrar Tigradinha esperando sentada. Enquanto as pessoas vêm e vão,

às vezes deita e descansa o focinho preto no meio das patas. Com sua pelagem preta e amarela, o único detalhe diferente é a manchinha branca no meio do peito. Quan do alguém se aproxima, mostra todo o seu carisma e meiguice. Os olhos de jabuticaba, brilhantes e carentes, são capazes de amolecer o coração de qualquer um. Porém, mesmo com esse perfil manso e comportado, ainda não conse guiu agradar alguém o suficiente para ser levada para casa.

Depois de um longo período sob os cuidados de Queli, agora faz em torno de um ano que foi enca minhada para um lar pago, com uma senhora que cuida de alguns cães do projeto. “Como eu estava com muitos animais em um espaço pequeno, a melhor opção foi colo cá-la em outro ambiente, para ver se ficaria melhor, e ela está lá até hoje, mas direto buscamos e leva mos ela para a frente do Visconde na esperança de encontrar alguém interessado”, conta Queli.

Com quatro anos, Tigradinha reúne a maioria das características que dificultam as chances de um cão ser adotado. É manchada, adulta e de porte médio. Assim como aconte ce com seres humanos, a busca por adoção de animais tam bém costuma ser cruel. Os cães e os gatos mais velhos normalmente não são escolhidos porque os que têm preferência são aqueles que melhor se

encaixam dentro do perfil que a sociedade procura: filhote e de porte pequeno. No entanto, a maioria dos animais do projeto não é assim. Quase todos são grandes, com as pectos de maus-tratos e marcas de cirurgias. Alguns também são defi cientes e outros apresentam proble mas de comportamento por terem sofrido traumas no passado.

“Eles acabam ficando porque se forem adotados vão precisar passar por uma adaptação, receber um cuidado especial, e a maioria das pessoas não quer dedicar esse tem po. Muitos não entendem que é um animal que foi maltratado, que veio da rua, que não cresceu com a devida atenção e que vai para uma casa nova, precisando recomeçar do zero, então é preciso paciência para ensinar e educar”, diz Queli, que atua há nove anos no projeto.

n Em junho de 2018, seis filhotes foram encontrados dentro de um buraco e colocados em uma caixa de papel

Atualmente com 13 animais em casa, a voluntária e estudante de Medicina Veterinária vê a ONG engessada para atuar devido à difi culdade de conseguir adotantes. Um exemplo foi o resgate de Barnabé, um cão que foi atropelado, fraturou a coluna e teve uma lesão grave na medula, fazendo com que perdesse o movimento das patas traseiras. Após a cirurgia, muitos tratamentos foram feitos para que ele desenvolvesse ao menos um andar cambaleante, mas não tiveram sucesso. Devido à questão física, e por precisar de cadeira de rodas, nunca surgiram

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DIVULGAÇÃO / PAAR

n Vitório passou por cirurgias, não conseguiu adotantes e agora já faz parte da família de Queli

interessados em adotar, mesmo sendo um cão extremamente amoroso, ativo, que não tem dificuldade de locomoção e que interage muito bem com outros cachorros. Depois de cinco anos, Queli já considera Barnabé um membro da família e não cogita mais colocá-lo para adoção, devi do ao vínculo que foi criado.

Outro caso é Vitório, um filhote que também foi vítima de atrope lamento. Para tentar abrandar as lesões, os seus tutores na época ape nas enfaixaram as patas traseiras e não foram atrás de um tratamento

correto. Quando isso chegou ao conhecimento do projeto, ele já estava há uma semana com as fraturas. Devido a tamanha irresponsabilidade, resgataram o canino e o encaminharam para um veterinário. Por estar muito lesionado, foi preciso diversas cirurgias e longos processos de rea bilitação para sua melho ra. Hoje, tem um andar dificultado, mas nada que o impeça de correr por aí, brincar e ter uma vida nor mal como qualquer outro cão. Como não surgiu ne nhum interessado ao longo dos anos, o filhote acabou crescendo no abrigo, sob os cuidados de Queli, e está com ela até hoje. Achar um adotante é algo muito difícil. Às vezes,

quando finalmente encontram e conseguem desafogar as casas de passagem, deparam-se com a ne cessidade de pegar o animal de volta. Já houve situações em que, meses de pois, foram verifi car e o cão estava acorrentado. Ou tro, era questão de dias para morrer de desnutrição, se não fosse resgatado novamente. Quem escolhe a causa ani mal, lamentavelmente, está fadado a ver cenas como essas. Por isso, de uns anos para cá, para tentar diminuir os episódios de maus-tra tos e negligência, o projeto definiu alguns protocolos para uma adoção responsável. Dentre eles, encaixar o perfil da família com o cachorro ou com o gato. Após tantas experiên cias negativas, optaram por fazer esse filtro na hora de selecionar o tutor. Adotar é um ato de amor, mas é importante que seja feito com muita responsabilidade, afinal, é uma vida que está em jogo.

Quem conhece bem essa rea lidade é Tigradinha. Quando pen sou que havia encontrado um lar, dois meses depois foi devolvida e ainda por cima mais magra. Desde então, já faz quatro anos que, em alguns sábados, vai para o espaço de adoção na ten

n Espaço de adoção do Projeto Amigos dos Animais de Rua acontece aos sábados em frente ao Colégio Visconde, no Centro de São Leopoldo

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Adotar é um ato de amor, mas é importante que seja feito com muita responsabilidade”
ARQUIVO PESSOAL / QUELI SOUZA

tativa de conseguir um tutor amoroso e responsável. Ao redor de outros cães, acomoda-se em cima de um degrau da escada e fica observando as pessoas passarem pela calçada. Depois de já ter ido tantas vezes, parece estar familiarizada com o movimento do local. O seu semblante sereno e tranquilo indica isso. Infelizmente, já é algo totalmente comum e rotineiro para ela.

Finais felizes

Mas engana-se quem pensa que só histórias tristes passam pelo projeto. Muito pelo contrário. Há também inúmeros casos de animais que conseguiram encontrar um lar repleto de amor. Um deles aconteceu no início de dezembro de 2018, quando Deise Lunkes, de 32 anos, funcionária de uma metalúrgica, passeava com seu filho Davi, em um sábado de manhã, na Rua Independência. Até então, tudo indicava ser mais um dia normal, como qualquer outro, porém, quando passaram em frente às escadarias do Colégio Visconde, o menino viu e se apai xonou à primeira vista pelos animais da ONG.

Quem estava lá era Nairóbi, irmã da Tigradinha e dos demais filhotes encontrados dentro do buraco. Com seu visual todo manchado de preto e amarelo, tinha aproximadamente sete meses na época e man tinha o nome que marcava a história de seu resgate. Deise não entendeu no primeiro momento o que seria “Nairóbi”, até que Queli explicou a referência de “La Casa de Papel” e disse que, por terem sido colocados dentro de uma caixa de papel, os irmãos também ha viam recebido nomes de personagens da série.

Enquanto Deise conversava, Davi já estava total mente encantado e deslumbrado com a possibilidade de ganhar uma nova amiga de quatro patas. Diante de seu temperamento dócil, e por ver que se dava muito bem com crianças, decidiram adotá-la. “A Queli e a Fátima me ajudaram muito nesse processo, me entregaram ela castrada e levaram até a minha casa, foram super atenciosas”, conta Deise.

sos como esse. “Não tem alegria maior do que dar uma segunda chance a um cão ou gato que foi negligenciado. É muito gratifican te fazer o resgate, tratar, em al gumas situações mostrar que ele pode confiar em um humano de novo, e depois encaminhá-lo para uma boa adoção. Receber fotos e ver que o animal está bem com os novos tutores faz tudo valer a pena”, salienta a voluntária. Tigradinha ainda não teve essa

sorte. Ela segue sob os cuidados do PAAR, dia após dia, sem per der a esperança de encontrar uma família amável, assim como a de Nairóbi. Toda semana é motivo para acreditar. Aos sábados, quando participa do espaço de adoção, a expectativa é grande para que ela conquiste o coração de alguém dis posto a mudar sua vida. Esse final feliz ainda não chegou, mas ainda há de chegar. É o que todo mun do espera. E ela também. n

n A cachorrinha Nairóbi foi adotada e, desde então, trouxe muitas alegrias para Deise e Davi

Quando chegou em seu novo lar, adaptou-se rapidamente, sem cerimônias. Estava tranquila, nem sequer chorou. “Nos primeiros dias, até fui assistir a série pra ver quem era a Nairóbi e acabamos deixando o nome, porque pegou. Desde então, tudo tem sido só alegria. Ela é incrível, bem criançona e muito companheira. A gente sai para passear, vai pra praia, vai pra chácara, e ela vai junto, adora correr e brincar com o Davi. Quando eu chamo pelos dois, ela fica esperando e ele é quem se manda, é mais obediente que meu filho”, comenta Deise, com bom humor.

Com uma vida totalmente nova, já faz três anos que a cachorrinha passa seus dias ao lado de pessoas que a enchem de carinho e amor. Se, por um lado, Deise, agora grávida de 15 semanas, abriu na época as portas de sua casa para ceder um espaço a Nairó bi, por outro, sua família também recebeu muito em troca. Hoje, o menino Davi, com sete anos, aproveita muito a vida ao lado de sua companheira canina e, em breve, seu futuro irmão ou irmã também apro veitará. É uma relação especial, um laço de afeto e de amizade que vai durar por anos e anos.

Segundo Queli, o que a motiva todos os dias a seguir na luta pela causa animal são justamente ca

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ARQUIVO PESSOAL / DEISE LUNKES

DESENCONTROS DA

n Durante as visitas Carlo sempre leva agrados para a mãe, que instantaneamente fica feliz com os presentes

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“T

u viu que o Carlo...”

começou a falar Lori, mas não conseguiu concluir a frase, entretida com uma bergamota na mão. Então sua nora completou: “que o Carlo veio te visitar?”. “Uhum”, respondeu Lori, com o olhar vago e comendo sua fruta favorita, presente trazido pelo filho Carlo, a nora Nara e eu, sua neta Gabrielli. Era uma tarde de quarta-feira, no início da primave ra gaúcha – quando não sabemos se vestimos roupas para o frio ou para o calor, já que a temperatura oscila ao longo do dia. Meu pai, mi nha mãe e eu estávamos visitando minha avó, que está internada em uma clínica geriátrica no bairro Primavera, em Novo Hamburgo. “Tu tá bem, vó?”, perguntou minha mãe usando o apelido que todos da família usam para se referir a Lori. “Não, não tô bem”, res

UMA FAMÍLIA EM BUSCA DO RESGATE AFETIVO

FRENTE À DOENÇA DE ALZHEIMER

MEMÓRIA

pondeu. Nessa visita, Lori esta va visivelmente nervosa, de mau humor. Como neta, posso afirmar que cada ida é uma surpresa para nós, pois nunca sabemos se ela vai estar de bom humor ou não.

Com o olhar sempre para a rua, ela me olhou e ofereceu um gomo da fruta. “Vai dividir comigo, vó?”, per guntei. Novamente só tivemos um resmungo como resposta, “Uhum”, e ela voltou a olhar a rua. Então, quebrando o silêncio, ela disse “Eu gosto muito de bergamota”, e minha mãe tentou continuar a conversa, “É mesmo, vó? É bom, né?”, e mais uma vez ouvimos apenas um resmungo de afirmação. E assim são os dias de Lori e de qualquer pessoa com Al zheimer avançado. Frases que nas cem em sua mente, mas nunca são concluídas pelos seus lábios.

Durante a visita, pudemos ver várias faces de Lori. Ela deu risada, tentou conversar, ficou nervosa e até brigou sozinha com algum pensa mento que passou em sua cabeça. Sabendo que sua mãe sempre gostou de comer, além das bergamotas,

Carlo trouxe um pedaço de bolo de chocolate e alcançou para ela. Também pôs para tocar no celular músicas que Lori sempre colocava na velha vitrola, que ficava na es tante da sala de sua antiga casa –Kenny G e Roberta Miranda eram os principais artistas. Terminando de comer o bolo, ela olhou para as mãos sujas e as limpou na meia de Carlo, que estava sentado ao seu lado. “Ei, qual é a tua? Sujou mi nhas meias de chocolate agora”, ele brincou. Sua mãe só o olhou e balançou os ombros como quem diz: “Não estou nem aí”.

Revisitando histórias

Mas nem sempre as coisas eram assim na família. A santa-rosen se de 76 anos é a terceira filha de Arno Oscar Wander e Hilda Ritter Wander. Casou-se em fevereiro de 1973, com meu avô, Orestes Vicente Zanfran. Eles se conheceram em Charqueadas, mais precisamente na Vila Carola. Lori, que havia feito Magistério, foi lecionar na escola

local e acabou conhecendo-o lá. O canelense trabalhava na Compa nhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), na parte de reflorestamen to, e fora enviado para a Vila. Se gundo as histórias que minha avó me contava, ele foi o único homem com quem ela se relacionou.

O casamento gerou frutos. Meu pai nasceu em agosto de 1974 e mi nha tia, Deise, veio ao mundo em novembro de 1979. Como filho mais velho, Carlo diz ter vivido uma época em que Lori ainda estava em uma “boa fase”. Foi após o nascimento da minha tia que as coisas em casa começaram a mudar. Lori ficou mais sensível, as situações a irri tavam mais facilmente e explosões de humor se tornaram frequentes. A família foi acompanhando esse quadro por anos, até que por vol ta de 2000 veio o diagnóstico de depressão, confirmando o que já estava sob desconfiança de todos. Em janeiro daquele ano ocorreu o nascimento de sua primeira neta – Gabrielli. Naquela época o casa mento já não estava indo muito bem e, logo após eu completar um ano, meus avós se divorciaram.

Foi depois da separação que ela decidiu que não moraria com mais ninguém e passou 20 anos sozinha em um casarão em Salto do Jacuí. Durante esse tempo ela teve mais dois netos, filhos de Deise: Rômulo Henrique nasceu em 2004 e Stella Bianca, em 2016. Minha avó sempre gostou muito de receber os dois netos mais velhos em casa, nos dar presentes e nos levar para ir ao mercadinho de seu bairro escolher o que quiséssemos comer e beber. Desde que nasci minha avó tinha diabetes e, mesmo assim, ela escon dia alguns doces no guarda-roupas do quarto para nos dar quando ía mos em sua casa – e, claro, para ela comer alguns de vez em quando. Mas, além das memórias afetivas que tenho dela, também existem as lembranças de momentos ruins. Junto com o histórico de depressão, quando eu era criança ela desenvol veu hipocondria, sempre tomando remédios em exagero e tentando chamar a atenção. Esse foi um dos motivos que dificultaram que meu pai e minha tia compreendessem os primeiros sinais da doença que ela começou a apresentar.

Perder as chaves de casa virou algo constante, assim como criar histórias que não tinham como ser

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n Acima, minha avó, aos 11 anos, em uma foto tirada por sua escola. Logo ao lado, Lori (à esquerda) com os irmãos, em 1957. Na imagem à direita, com 26 anos, um pouco antes de se casar com meu avô, Orestes

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IMAGENS: ARQUIVO PESSOAL

verdade, e o afastamento de todos virou rotina. A casa, que antes estava sempre com as janelas e as portas abertas, ganhou grades e a escuridão. “Como ela morava sozinha, tivemos dificuldade de entender o que estava de fato acontecendo. De início eu achava que estava querendo chamar atenção. Cheguei até a pensar que ela poderia estar com esquizo frenia”, conta Carlo em uma tarde de outubro, sentado na tradicional poltrona azul de seu apartamento em Esteio. Foi então, em 2015, que eles a levaram em uma neurologis ta e o diagnóstico veio: Lori estava com Alzheimer. “Nun ca estamos preparados para isso”, comenta meu pai com o semblante triste. “Minha pri meira reação foi tentar enten der o que era a doença e tentar ver qual a melhor maneira de lidar com aquilo, até que ponto teríamos estrutura para ajudar ela. Comecei a ler mais sobre a doença, a entender o que viria pela frente”, conta Carlo.

Aprender a lidar com um familiar nesta condição foi desafiador para todos da família. Nunca tínhamos visto alguém com a doença. Todos sentimos medo e angústia por não saber se conseguiríamos dar todo suporte para Lori. Com um vento gelado entrando pela janela do apartamento, Carlo continua, comentando o que sente em relação à doença: “A razão não fala pela pessoa, ela não consegue entender as coisas, imagina coisas que não existem. É um sentimento de tristeza e até impotência, porque não tem o que fazer”. Lori sempre foi uma pessoa muito independente. Ela amava viajar e, sempre que podia, pegava o ônibus e ia sozinha. Até para São Paulo ela foi. Ficou morando um tempo lá, com um parente dela, e depois retornou para o Rio Grande do Sul, indo para a Vila Carola. A irmã mais velha morava em Santa Rosa e Lori ia frequentemente até lá passar

umas semanas com Nelsi. Ela era a melhor amiga da minha avó, esta vam sempre conversando. Mesmo com a distância, se faziam presentes na vida uma da outra. Infelizmente Nelsi acabou fale cendo quando eu era adolescente, foi um momento de bastan te sofrimento para minha avó.

Quando ques tionávamos se ela não queria se mu dar para uma casa de repouso, para não viver mais sozinha, Lori nunca queria e deixava claro que nunca iria querer. “Quando eu percebi que ela não re conhecia nem a casa dela mais como sendo dela, percebi que qualquer lugar seria bom. Foi um conforto psicológico meu”, diz Carlo. “Esse foi o momento que decidimos colo car ela na clínica, até porque estava difícil para as cuidadoras dela tam bém, que não tinham experiência com essa doença. A primeira decisão foi até fácil. Eu senti mesmo quan do deixei ela lá, porque me senti impotente. Não sabia como seria a adaptação dela ali”, ele continua, com o olhar baixo. Os dois nem sempre tiveram momentos bons juntos, Carlo sempre teve uma re lação complicada com ela ao longo da vida, mas agora é o único que ela ainda reconhece. “Hoje é uma

relação de cuidado, de retribuição. Por mais que não tenhamos momen tos bons, ela é minha mãe, então preciso cuidar dela. Buscando o me lhor tratamento, a melhor médica, esse tipo de coisa”, diz Carlo.

De volta ao bairro Primavera

“Quantas casas”, comentou Lori, novamente olhando para a rua, como faz todos os dias. “É, né, tem um monte”, respondeu Carlo. “Não tá com sede, mãe?”, perguntou. “Eu quero água, com água, com água e com água”, respondeu minha avó, como se fosse uma criança de cinco anos. “Sinto como se ela tivesse se apagando”, comentou Carlo. Fiquei com os olhos marejados ao ouvir ele dizer isso. E essa foi a frase que não saiu mais da minha cabeça desde o início desta reportagem, minha avó está sumindo. A mulher que antes era independente hoje não consegue caminhar sem auxílio, usa fraldas e não sabe mais tomar banho sozinha. “O vigor físico está se perdendo. Ela só levanta se puxar, senão não consegue”, continuou meu pai. De pois de alguns minutos de silêncio, minha avó apontou para as plantas no jardim da clínica e disse: “Olha ali, as coisas que a gente...” e de re pente parou, ficou com o olhar vago e abaixou a mão. Lá se vai mais uma frase que nunca será concluída, para a qual nós apenas assentimos, ten tando deixá-la confortável. n

n Minha avó sempre que possível esteve presente na minha vida (na foto acima, no meu aniversário), mesmo após eu me mudar para Esteio. Muitas coisas que aprendi foram com ela (ao lado, com os filhos e o ex-marido), que foi e sempre será meu exemplo de força

A primeira decisão foi até fácil. Eu senti mesmo quando deixei ela lá, porque me senti impotente”
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IMAGENS: ARQUIVO PESSOAL

FAMA E ANONIMATO

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ANONIMATO

DE MANHÃ CEDO ATÉ A MADRUGADA, CASSINHO BATALHA ATRÁS DE SEU

Dinheiro, fama, flashes, atenção de homens e mulheres, bebidas alcoólicas, holofotes, entre outros elemen tos compõem a vida de artistas que vivem de músicas e batidas eletrônicas. Trabalhar nas madrugadas de sexta a do mingo e poder viver os dias úteis como se fossem finais de semana, livres de horários e cobranças de chefias. Parece a vida dos sonhos para muitas pessoas. É o desejo de muitos artistas que estão inician do sua carreira através de músi cas eletrônicas. Porém, na prática, poucos estão dispostos a pagar o preço e ter a disposição que exige chegar à vida de celebridade. Quarta-feira, 5 de outubro de 2022. Passa da meia-noite e os re lógios e celulares marcam que já é quinta. Trabalhadores em todo o Brasil estão dormindo e em pou cas horas vão acordar com o som insuportável do despertador. Não importa qual seja a música ou o to que, quando ouvimos o mesmo som todo dia em um momento difícil, tipo acordar antes das sete horas da manhã, esse barulho se torna in suportável. Por outro lado, diversos jovens esquentam uma casa de festa no centro de São Leopoldo, cidade da região metropolitana de Porto Alegre. O nome do lugar é Monaco Hookah, um ambiente quente, em baçado pela fumaça, escuro, mas ilu minado com luzes coloridas de festa. Lá são disponibilizados sofás para socialização entre amigos, bebidas e narguilés (uma espécie de cachimbo de água de origem oriental, utilizado para fumar tabaco flavorizado com diversos sabores). Há também área com pista de dança e, ao fundo, um pequeno palco, mais alto que o nível do chão, mas menor que o padrão de qualquer degrau de uma escada, e espaço para insta lar equipamentos de som.

Em um sofá de canto, cinza, com espaço para acomodar cinco pessoas, encontra-se o DJ Cassinho, vestido com a roupa que escolheu enquanto terminava de assistir ao jogo do Internacional: uma rega ta de basquete azul e amarela do time de basquete Golden State War riors, sobre uma camiseta branca que aparecia apenas nas mangas e gola, calça preta e um tênis branco. Sentado, não aparentava ter 1,86m. Pele parda de uma família negra

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SONHO: SER UM DJ RECONHECIDO TEXTO E FOTOS DE GABRIEL MUNIZ

por parte de pai e branca por parte da mãe. Ele espera uma banda de pagode com cinco integrantes terminar o show para chegar o seu momento de subir ao palco.

Já é mais de 1h da madrugada, e o semblante do DJ é fechado, mesmo com os agrados que o dono da festa colocou em uma mesa quadrada, bem baixa e pequena em frente ao sofá. O narguilé não interessa, já que ele não fuma. O balde prata com gelo, uma garrafa de vodka e outra de energético também não o atraem muito. O DJ apenas molha a boca com alguns goles curtos. Já a sua equipe aproveita a gratuidade, bebe e faz fumaça enquanto aguarda a hora de instalar os equipamentos para o show. Não parece que o DJ vai fazer mais de 50 pessoas pularem e dançarem em poucos minutos. O descontentamento dele é evidente. Pode ser que seja a mudança repentina do horário do show, que o contratante avisou em cima da hora. Talvez seja ape nas o cansaço de um dia que iniciou às 7h da manhã, ainda faltava fazer um show com duração de uma hora e meia e depois teria de acordar às 8h para levar a filha na aula de ginástica. Mas a mudança na hora de subir no palco é inacreditável e impressionante.

O 5 de outubro começou às 8h da manhã, na E.M.E.B. Francisco Xavier Kunst, uma escola com 17 anos de história, na cor salmão, com vasos de flores no pátio, grama bem cortada e quadros nas paredes com páginas de jornais estam pando conquistas dos alunos no esporte. Fica no loteamento Morada dos Eucaliptos, entre a cidade de Novo Hamburgo e Campo Bom. Embora seja uma escola nova e bem estru turada, do portão para fora a história muda de figura. “Essa comunidade briga direto com tráfico de drogas, é um desafio”, afirma a diretora Cláudia Romero, de 49 anos.

É nesse bairro carente que Cassius Valdez Trein da Silva, de 26 anos, iniciou seu dia. Em um colégio que serve como uma válvula de escape para as crianças. Uma dessas válvulas de escape é a cultura, a música eletrônica que Cassinho estava levando com seu carro para dentro da escola pela primeira vez como professor de música. “Eu estou nervoso, ansioso e feliz. Será que vai ter bastante criança? Será que elas vão gostar? Eu trouxe meu notebook, nem sei pra quê.” Esses eram os questionamentos que se passavam na cabeça dele. Como forma de passar o tempo e avisar os mais de 14 mil se guidores no seu Instagram, ele pegou o celular do painel do carro e gravou stories falando da primeira aula e de seu nervosismo. Os 30 segundos de vídeo parecem tê-lo acalmado, já não reclama mais das sinaleiras demora das e com muitos carros devido ao horário de pico em Novo Hamburgo, onde nasceu e mora até hoje.

Enquanto cantava uma música, mesmo com o som do carro desligado, ele lembrava do projeto social que já faz na Escola de Samba Cruzeiro do Sul e a sua experiência há anos com crianças carentes. “É dife rente do projeto social, eu preciso prender a atenção deles, tenho que fazer gostarem de mim e do que eu tô falando”, preocupava-se. “Vou perguntar se eles gostam de funk, aí ganho eles logo no início.”

“2:15 Cassinho, já tá tudo montado lá, assim que

eles terminarem tu sobe no palco”, avisa Pepi, o produtor. Cassinho estava no mesmo sofá, acompa nhado do amigo e de duas mulhe res. Aquele nervosismo da manhã não aparecia nem um pouco. “Não fico nervoso, estou acostuma do com isso, vou subir ali e dar o meu melhor como sempre.”

Quando chegou na escola, aguardou 5 minutos na secretaria para que fosse atendido. Então, chegou Cláudia, a diretora, com um casaco esportivo. Uma mulher negra, de cabelo grisalho e preso com rabicó, deixando os seus ca chos curtos formarem o penteado rabo de cavalo. Cassinho se apre sentou como professor do proje to Ubuntu, filosofia africana que significa “Eu sou porque nós so mos”. O projeto é promovido pelo IFSul, o Instituto Federal de Edu cação, Ciência e Tecnologia Sul -rio-grandense. A diretora parecia não estar esperando a visita: “Fiquei esperando tu en trar em contato para confirmar a aula”, disse Cláudia.

”Eu enviei mensagem pelo WhatsApp na segunda-feira”, respondeu Cassinho, já muito tranquilo, como seguiria nos de mais momentos do dia.

A diretora informou que os alunos da aula de música iriam vir no contraturno, mas não foi refor çado o aviso, e por isso não haviam comparecido. Cláudia o levou até a sala em que ele fará suas aulas, mas ao que tudo indica, não será no 5 de outubro. Subiram dois lances de escada, cada lance com oito degraus que continham alguma conta da ta buada pintada. A sala ficava no final do corredor, com a porta de frente para quem vinha. Entrando nela, há um espelho grande na parede, como os que são usados em aula de balé, e uma televisão enorme touchscreen, ou “de mexer na tela”. Em algumas classes, havia peças de xadrez gigantes, com mais de 50 centímetros. Enquanto a diretora mostrava toda a escola, sala de aula e como a TV funcionava, o assunto fluiu. Falaram sobre o projeto, que tinha aulas de dança, música, grafite, poesia e até barbearia. Falaram tam bém sobre as escolas de samba das quais os dois participavam, bairros de Novo Hamburgo em que cresce ram e até de uma amiga em comum, a Grazi. Cassinho relembrou que

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Não fico nervoso, estou acostumado, vou subir ali e dar o meu melhor”
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ia para os projetos sociais na in fância porque ganhava Toddynho, comparando com a importância do alimento na escola: “Muitas crianças não fazem nem as três refeições do dia, a comida é uma forma de trazer elas pra dentro da escola e afastar da maldade das ruas”.

n Cassius Valdez

Trein da Silva, 26 anos, é estagiário da prefeitura durante o dia. À noite, entra em ação como DJ Cassinho

Cassinho ainda viu a sala de instrumentos do colégio: uma sala pequena, com tambores em pratelei ras suspensas, uma guitarra presa na pare de. Para onde olhasse havia instrumentos, mas de forma or ganizada. O tratamento foi bom, a conversa rendeu, a escola tem espaço e estrutura, mas o semblan te ao sair do local representava a frase: “Ela esqueceu, mano, ela es queceu de avisar os alunos”.

“Ela desce devagarinho, ela sobe devagarinho, rebola devagarinho, pro DJ Cassinho.” A música eletrô nica já está ecoando pela Monaco Hookah. Cassinho está ao lado do palco, pronto para subir, e o de sânimo parece nunca ter passado por ali. Pelo contrário: sorriso es tampado, o corpo balançando para um lado e para o outro no ritmo da música. “Boa noite! Boa noite, São Leopoldo!” O DJ sobe no palco ilu minado por alguns flashes, a música eletrônica alta no ritmo do funk e as atenções voltadas para si.

A música em ritmo de funk faz eu lembrar da explicação do DJ Cassinho sobre sua relação com a música eletrônica. DJ pode tocar o quê? Música eletrônica são aquelas de festas rave? Mui tas pessoas ficam presas nessas perguntas, mas ele diz que toda música é eletrônica. “A gente faz o som no instrumento e capta ele, então levamos para o com putador e usamos na produção e composição das músicas. Isso é música eletrônica”, explicou, sustentando que a música ele trônica não é apenas um gêne ro musical, mas sim uma forma de fazer música. A dele é o funk. O funk que naquele momento faz cerca de 10 mulheres dançarem na frente do palco é o mesmo funk que tira milhares de crianças e jovens do caminho das drogas, tráfico e criminalidade, gerando empregos

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para artistas e trabalhadores da área, que conseguem levar sus tento para as suas famílias.

Essa mesma música eletrô nica no ritmo do funk é o amor e a maior fonte de renda do DJ há alguns anos, mas não a única. Cassinho estuda Publicidade na UniCesumar, o que lhe possibilita realizar um estágio de seis horas por dia. Além de fazer shows, ser produtor musical e vice-presiden te da escola de samba Cruzeiro do Sul, ainda trabalha na prefeitura de São Leopoldo. Embora seu ho rário seja das 9h às 15h, no 5 de outubro ele pedira para chegar às 11h da manhã, por conta da aula que terminou sendo esquecida pela diretora. No estágio as coisas também pareciam não funcionar. No sétimo andar do prédio da prefeitura, há um corredor com as paredes brancas e no final uma porta bonita, de madeira marrom clara, com uma pequena placa de vidro com letras pretas: “Supe rintendência de Comunicação”. Lá, Cassius passa 30h semanais. Depois de fazer um card para as redes sociais anunciando 500 mil doses aplicadas da vacina contra o Covid-19 e outro card do pro grama “São Leo Ensine”, Cassinho teve que refazer um trabalho pu blicitário que já estava tentando há alguns dias, pois não tinha sido aprovado pela chefia.

“Hoje está sendo um dia es tressante, muito corrido e menos engraçado. Tem dia que é corrido, mas é mais engraçado.” Quando disse isso, o DJ estava voltando da casa dos integrantes da escola de samba Império do Sol, Tânia e Miro, que é presidente da agre miação. Uma casa de material, simples, mas aconchegante e confortável. Cassinho também é mestre de bateria da Império do Sol, situada no bairro São Mi guel, em São Leopoldo. Ele estava fazendo uma série de processos burocráticos, que exigiam paciên cia, concentração, assinaturas, entre outros detalhes, tudo para conseguir um auxílio para o pro jeto social da escola de samba. Miro sentou-se na mesa de seis lugares, suja com vestígios do café da tarde que recém havia tomado com a esposa Tânia. Cascas de banana, farelos de pão e xícaras com resto de café preto foram

retirados após o dono da casa fazer uma rápida limpeza na mesa. Então Cassinho e Miro começaram a ler, escrever, assinar, fotografar papéis etc.

Dona Tânia estava no sofá que ficava ao lado da mesa, com a perna imobilizada, já que havia quebra do a rótula do joelho em um acidente doméstico. Por causa disso, estava há dias sem sair de casa e, conse quentemente, não tinha muito com quem conversar. Aproveitou a presença do DJ para falar e conversar tudo o que podia. Cassinho dividiu a sua atenção entre os papéis e a conversa com Tânia, como uma forma de não ser antipático. Ela ajudou na papelada com seu amplo conhecimento sobre a escola de samba. Tânia sabia todas os sambas-enredo, ano, nome e tema que a Império do Sol havia utilizado nos últimos anos. Quando eles conseguiram terminar tudo, já passava das 7h da noite do dia 5 de outubro.

Sete horas depois, DJ Cassinho está em cima do palco, e as 10 mulheres que estavam na frente já eram incontáveis pessoas, homens e mulheres, dançando, bebendo e se divertindo, enquan to ele interage no microfone e dança as coreografias, música após música. “Baile especialmen te pra quem já sofreu de amor”, o DJ introduz, e coloca a próxima música. O público grita e canta o trecho da canção sertaneja, do estilo chamado carinhosamente de “sofrência”: “Eu implorei pra voltar...” Aí o DJ interrompe a música e começa o funk: “Quer embora, pode ir embora, porta aberta à vontade, só não vale ligar dizendo que tá com saudade”. A virada da música contagia ainda mais o público, que canta alto e dança no ritmo do funk.

Desde a infância ele sempre inclinou em direção à música. É o orgulho da família”

Cassinho conta que tem um ritual antes dos seus bailes. “Eu tenho que ir em casa, tomar banho, dormir um pouco, comer e sair”. Nesse dia longo e estressante para o artista, ele não conseguiu cumprir seu ritual, de vido a todas as pendências e atrasos que aconteceram. Ele chegou em casa por volta das 9h da noite. Sua filha Lavinia, de oito anos, já dormia no sofá, que parecia muito confortável com cobertas e travesseiros. Deu um beijo nela, ligou o jogo do Inter no computador do quarto e foi tomar banho. Quando voltou para o quarto a equipe já estava lá, pronta para sair. Cassinho mora com a mãe, Rosane Beatriz. “Desde a infância ele sempre inclinou em direção à música. É o orgulho da família”, diz ela.

Pepi sobe no palco e começa a tirar os cabos dos equi pamentos de som do DJ rapidamente. Guarda tudo em uma maleta prateada, grande e pesada. O show do DJ acabou. Ele está feliz, sorridente e animado. “Parece que arrancou todos os meus problemas, mano”, resume Cassinho. Ele diz que sonha em um dia ser um artista reconhecido em todo o Brasil, mas a caminhada é longa, nada fácil, e recita a música do rapper Emicida que ouvi ra no carro mais cedo: “Lotei casas do Sul ao Norte, mas esvaziei a minha”. DJ Cassinho já pensou em desistir vá rias vezes, mas tem fé que o seu futuro guarda algo gran dioso. “O sonho é grande e mesmo que pareça distante, a fé e a determinação são meu combustível.” n

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n Em sentido horário: José Alberto Andrade com o ônibus da Seleção, na Rússia; trabalhando na Arena Kazan, em 2018; com os colegas da RBS; em frente à torcida, nas ruas de Kazan

ENTRE LINHAS

CANETAS

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TEXTO DE ARTHUR RECKZIEGEL
E
AS HISTÓRIAS DE QUEM CONTA A HISTÓRIA DA SELEÇÃO BRASILEIRA

n Leonardo Baran na mesa de uma coletiva da CBF (E), com o técnico Tite (D, acima) e com o atacante Neymar (D, abaixo)

Cinco Copas do Mundo. Quatro Copas das Confederações. Nove Copas América. Duas medalhas de ouro em Olimpíadas. Estas são as principais conquistas da Seleção Brasileira de futebol. Dentro do campo, imbatível, espetacular, revolucio nária. Dribles, tabelas e golaços marcaram a história desta nação que não à toa é conhecida como o “País do Futebol”. Porém, é fora das quatro linhas que talvez se encontre a parte mais bonita do espetáculo: a torcida. Apaixonada, vibrante, surreal. Pintavam as ruas com suas camisetas verde e amarelo e comandavam as mais lindas festas que nunca tinham hora para acabar.

Dentro do estádio, vendo pela TV ou até mesmo com aquele ra dinho de pilha a emoção é inenar rável. A hora em que o grito de gol preso na garganta se solta pelos ares ecoando aos quatro cantos é in descritível. A sensação de compar tilhar um momento que nunca se repetirá e abraçar um estranho na arquibancada é libertadora. Independentemente da forma pela qual você acompanha a parti da, em todas encontrará algo em

comum. Ou melhor, alguém. Não no singular. No plural. Porque é mais de um alguém. São vários. Pessoas que muito provavelmente foram tocadas de alguma forma pela paixão brasileira e que hoje são intermediários entre torcida e Seleção. Na hora de gritar gol, de comentar uma jogada, de pas sar uma informação, eles serão os primeiros a fazê-los. A essa altura do campeonato você já deve ter entendido de quem estou falando.

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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Isso mesmo, dos jornalistas.

Segundo o Google, jornalista é aquele responsável pela apuração, investigação e apresentação de no tícias, reportagens, entrevistas ou distribuição de notícias ou outra informação de interesse coletivo. De um modo geral, essa definição está correta. Porém, muito super ficial. Jornalismo não é só isso, também é conexão, é paixão no ato de contar histórias e aproximar pessoas através delas. Muito da relação torcida e Seleção Brasi leira se deve ao excelente trabalho jornalístico realizado pelos profis sionais que a acompanham.

De pai para filho

O futebol é uma grande ferra menta para construção de relações e muito presente talvez na que seja a mais importante de todas: a re lação entre pai e filho. A primeira conversa. O primeiro chute na bola. A primeira comemoração. Tudo isso fica marcado na história. Amor que é passado de geração em geração. A figura paterna é exem plo. É espelho. Quanto aos clubes, pode-se haver divergências, mas a Seleção é unanimidade. Quando se veste a amarelinha pela primei ra vez tudo muda. Tudo fica mais colorido, mais alegre. Pai e filho vestindo a camisa 10 que um dia foi de Pelé, Ronaldinho ou Rivaldo. Ou então a 9, de Ronaldo, Tostão ou até mesmo de Careca.

São histórias assim que podem influenciar as crianças a querer participar de uma Copa do Mun do. Talvez não como jogadores. Não dentro das quatro linhas. Ali pertinho. Alguns metros do cam po de jogo. Este é o caso de Silvio Benfica. Jornalista, hoje com 67 anos, começou sua trajetória muito cedo. Com apenas 15, já era ope rador de áudio em rádio. O pai, também jornalista, foi decisivo para a escolha de seu caminho. Afinal, através dele que a paixão pelo Brasil se desenvolveu. Ali já começava o sonho: participar de uma Copa do Mundo.

O sonho veio a se realizar. Mais de 20 anos depois, na Copa de 1994. Aquele menino estava onde sempre se imaginou. Envolvido por aquele espetáculo que ia muito além do gramado. Depois de ficar de fora da Copa de 1990, prometeu que nunca mais perderia tal evento

e que daria tudo de si para fazer a melhor cobertura possível. Sempre buscou o diferente. Destacar-se entre os demais. Talvez por isso seja, segundo ele próprio, o único jornalista que possui uma revista da CBF autografada por todos daquela Seleção. Graças à sua persistência, e à sua boa relação com o jogador gaúcho Branco, que coletou todas as assinaturas. “Fui pedindo a assinatura de todos do elenco, mas alguns se recusaram, entre eles o Romário. Foi aí que encontrei o Branco no elevador e contei-lhe sobre a situação. Ele pegou a revista. No dia seguinte, bateu na porta do meu quarto. Fi camos umas duas horas conversan do e, entre um chimarrão e outro, ele me entregou a revista com pletinha, todos os autógrafos ali, inclusive o do Romário. Detalhe: isso tudo aconteceu menos de 48 horas antes do lateral fazer aquele gol de falta decisivo na classificação contra a Holanda”, conta o jor nalista enquanto mostra o objeto que guarda até hoje, e afirma ser um artigo digno de museu. No mesmo ano fez o impossí vel. Na verdade, o quase impossí vel. Algo para poucos. Conseguiu uma exclusiva com o Rei. Edson Arantes do Nascimento. Pelé estava trabalhando como comentarista naquela Copa. Quando o viu parado ao lado do caminhão de externas, o repórter não pensou duas ve zes. “Conversei com o pessoal da Gaúcha e pedi para que me dei xassem no ar permanentemente, porque iria entrar no programa direto com a entrevista. Era a única chance que eu tinha. Entrevistá-lo ao vivo. Então fui me aproximando e, quando cheguei perto, eu gritei no celular, com a maior potência de voz possível: ‘Estamos ao vivo aqui com Pelé, que está comentando a Copa pela Rede Globo...’. E ele saiu falando. Não dei a chance para que ele pudesse dizer não.”

Após a Copa de 2006, decidiu que não seria mais repórter e que não cobriria mais o maior evento futebolístico do mundo. “Fui um dos poucos a acompanhar dois títulos mundiais de perto. É como se eu tivesse escalado o Everest duas vezes. Não tinha mais nada para acontecer”, finaliza aquele menino que um dia sonhou em cobrir uma Copa do Mundo e conhecer seu maior ídolo.

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n Silvio Benfica em frente à Allianz Arena, na Copa da Alemanha, em 2006 (acima), e entrevistando o lateral Cafu

Muito mais que paixão

Futebol é sinônimo de união. É capaz de promover reencontros. De trazer alegria em tempos sombrios. Pode ser uma válvula de escape. Uma medida de transformação social. Quando falamos de Seleção, podemos multiplicar essa união por dez, afinal, é um país inteiro torcendo pela mesma coisa. Algo impossível na maior parte do tempo. A rivalidade é deixada de lado. Opiniões políticas são escanteadas por um momento. São noventa minutos. Noven ta minutos nos quais todo o resto fica em segun do plano. Os olhares são direcionados apenas para os vinte e dois jogadores dentro do campo.

Como falar de Brasil sem falar de paixão? Como falar de Brasil sem citar o brilho no olhar de cada criança, de cada adulto, de cada família? Família. Isso é o que resume a torcida brasileira. Uma verdadeira família de mais de duzentos milhões de pessoas.

Este era o caso dos familiares do jornalista Leonar do Baran. Ali, nem todos torciam para o mesmo time. Na realidade, nem todos gostavam de futebol. Mas tudo mudava em dia de jogo. Ali, se respirava Seleção Brasileira. Amis toso, Eliminatórias, ou até mesmo o “Mundialito”, não importava, desde que a amarelinha estivesse em cam po. Essa identificação levou Baran a trabalhar com o que ama. Levou-o a conhecer seus ídolos. O maior de les: Roberto Dinamite. Trabalhou junto com o mesmo, e hoje tem o privilégio de chamá-lo de amigo.

Fanático, o jornalista guarda até hoje a credencial que utilizou em sua primeira Copa do Mundo, em 2006. “Tenho uma lembrança muito forte desta Copa. Foi após a derrota do Brasil para França. A empresa contratada pela FIFA para fazer a segurança na zona mista era francesa. Eu estava exatamente ali, junto com outros colegas bra sileiros, quando o jogo acabou. Todos nós cabisbai xos e o restante do pessoal comemorando, exalando alegria. Aquela cena me marcou bastante.”

São as lembranças que o fazem querer mais. Querer estar mais próximo daquilo que o faz feliz. Porque aquilo é muito especial. “A Seleção pra mim é muito mais do que uma paixão, porque eu traba lho diretamente com a Seleção Brasileira. É meu ganha-pão. Uma paixão que virou trabalho”, aponta, sem esconder o sorriso de orelha a orelha.

Amor à primeira vista

Quem aqui acredita em amor à primeira vista? Aquela sensação arrebatadora que aparece do nada e nos muda por inteiro. Aquela mistura de sentimentos que nos faz imaginar que tudo é possível. Que divide a nossa vida entre o antes e o depois. Entre o cinza e o colorido. Foi isso que aconteceu entre José Alberto Andrade e a nossa Seleção, mais precisamente o time de 1970, tricampeão mundial. Pelé, Tostão, Rivelino, Jair zinho e muitos outros craques encantaram o menino de apenas cinco anos, que chegou a passar mal de ansie dade à espera do jogo. Foi amor à primeira vista.

Depois do título, a relação do pequeno Zé com a equipe brasileira só cresceu. Acostumado apenas com vitórias, teve sua primeira decepção com a derrota para a Holanda em 74. “Foi a única vez que chorei por causa de futebol na minha vida inteira”, enfatiza o jornalista. Adorava tudo que era relacionado à Se leção. Colecionou todas as figurinhas das três Copas seguintes e relembra com tristeza a dificuldade para conseguir uma camiseta de jogo naquela época.

Já adulto, ingressou na Rádio Gaúcha traba lhando como produtor de um programa diretamen te ligado à Copa. Porém, só dezesseis anos depois pôde cobrir o evento in loco. O ano era 2002, e o Brasil sagrava-se pentacampeão. Não estava na es cala da final. De última hora conseguiu um ingresso, e acompanhou a partida da arquibancada, vendo de perto seus ídolos conquistarem o mundo.

Quando o jogo acabou, ao invés de se dirigir para a zona mista como o restante dos colegas, decidiu ir direto para o hotel onde a Seleção estava hos pedada, juntamente com André Henning, repórter de outro veículo à época. O que não sabia era que aquele movimento que havia fei to ficaria marcado para sempre. “Após o jogo fomos direto para o hotel, dessa forma não tínhamos a informação de que os jogadores não haviam falado com ninguém na zona mista. Eles saíram direto do vestiário para o hotel. Então, fui o primeiro repórter a conseguir declarações dos jogadores pós-tí tulo, mas não fazia ideia disso. Foi tudo muito rápido, foram apenas pequenas frases ditas por eles, mas que ficariam marcadas pra sempre na minha carreira”, conta Zé Alberto, com uma alegria ímpar no olhar.

Ao passar dos anos foram diversas cober turas. Olimpíadas. Copas do Mundo. Elimina tórias. Copas das Confederações. Muitas risadas. Conversas. Alegrias. Decepções. Mas acima de tudo, isto: vivências. De alguém que um dia fora um simples telespectador e hoje viaja o planeta como protagonista da sua própria história.

Para a eternidade

Nesses mais de cem anos de existência a Seleção ca narinho sofreu diversas mudanças. Muitas pessoas pas saram por lá. Funcionários. Técnicos. Jogadores. Estes marcaram seu nome na história. Grandes campeões, mas que não são eternos. Ninguém é eterno. O que fica são as memórias. A glória. Esta sim é eterna.

O que fica não são as pessoas. São as conquistas. São as histórias. Os momentos vividos. Passados entre as gerações durante este século de história. A paixão. Esta sim transcende a única coisa que o ser humano não pode controlar: o tempo. Os anos passam. O amor não. Os torcedores não são os mes mos, mas o sentimento sim. O coração pulsando pela bandeira azul, verde, amarela e branca também. Seja em 1922 ou 2022, a Seleção Brasileira de futebol segue representando cada um de nós. Dentro e fora de campo. No estádio ou na sala de casa. n

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É como se eu tivesse escalado o Everest duas vezes. Não tinha mais nada para acontecer”
ARQUIVO PESSOAL
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AMOR DE PAI

Oamor é capaz de criar laços mais fortes que os de sangue. Quando um sentimen to assim aflora, a certeza é de que se tem alguém para contar sempre que precisar.

Em 30 de abril de 2017, às 08:55, pe sando 3,450 Kg e medindo 49 centí metros em um parto cesárea de emergência, nasceu Anthony Costa. Ele possui somente o nome da mãe na certidão de nascimento. Não teve pai até perto de completar dois anos de idade. Hoje tem.

Alisson de Melo e Stefanie Costa se conheceram e foram amigos na escola. Durante anos, fizeram parte de um grupo de colegas. Entre o segundo e terceiro ano do ensino médio ela manteve um relaciona mento com o pai biológico de Anthony, que não foi presente e desfez a relação ainda na gravidez.

Stefanie passou muitos momentos de solidão du rante a gestação e o puerpério. Em seu primeiro exame de ultrassom, o pai biológico do bebê compareceu apenas porque foi obrigado pela mãe. Sem certeza de que ele poderia entrar na sala para assistir, Stefanie ficou sozinha, assim como no restante da gravidez e durante quase dois anos de vida de Anthony.

Além da solidão, ela ainda teve o sentimento de medo de que seu filho passasse pelo que ela já havia passado. Uma infância sem pai. Stefanie foi criada pela mãe, Solange Costa, que foi o principal apoio da filha na volta da maternidade. Nos primeiros meses do bebê, a mãe de Stefanie dormiu no mesmo quarto que ela e o recém-nascido. Anthony sentia muita cólica à noite e, devido aos pontos do parto, a jovem mãe deveria repousar e não podia embalar o bebê.

n Alisson, 23, e Anthony, 5, construíram uma relação sólida, baseada em afeto e dedicação

Alisson nutria sentimentos por Stefanie há algum tempo du rante o ensino médio. Por serem amigos, ela acreditava que tudo não passava de brincadeira. Não era. Alisson se declarou, mas por

COM CARINHO E PERSISTÊNCIA, UM CASAL NÃO DEIXA A HISTÓRIA SE REPETIR E PROVA QUE A PATERNIDADE AFETIVA SUPERA O TRAUMA E VALE MAIS DO QUE QUALQUER PAPEL

ter passado por muitas desilusões, Tefinha, como é chamada pelos mais próximos, não conseguiu se abrir para um novo relaciona mento. Em todos os lugares que o grupo de amigos combinava um passeio, Alisson confirmava pre sença apenas se Stefanie confir masse também. Ela decidiu tirar sarro da situação e perguntou: “Tu me ama, né? Todo lugar que eu vou, tu está. Quando vamos sair,

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tu só vai se eu for”. Alisson respondeu prontamente: “Sim, é verdade”. Stefanie riu, com certa descon fiança, e continuou não conseguindo levar a sério. Então Alisson ficou extremamente magoado.

Tempos mais tarde, ela perguntou se o que ele tinha dito era verdade. Alisson confirmou, com al guma esperança, mas novamente os traumas de Stefanie falaram mais alto e ela pediu que os dois continuassem sendo amigos. Depois, eles ficaram praticamente dois anos sem contato. Após o episó dio em que Stefanie não levou Alisson a sério, ele decidiu que se afastar seria a melhor escolha. No entanto, o tempo foi passando e, diferentemente do esperado, o sentimento ainda estava vivo.

O tempo também passou para Stefanie. Em outu bro de 2018 seu filho estava com um ano e sete meses, período em que ela, com uma pequena rede de apoio, criou o bebê praticamente sozinha na casa em que morava com a mãe. Anthony tem asma desde que nasceu, por algumas vezes precisou ser internado e frequentemente tem crises e precisa ser levado ao hos pital para controlar a falta de ar.

Num dia quente e ensolara do, Stefanie desceu do ônibus no centro de Gravataí, próxi mo a uma praça com árvores e playground. Alisson já esta va por lá e a viu de longe, mas precisava ir ao banco. Sentiu o corpo gelar. Quando saiu da agência, não a avistou mais e resolveu seguir andando. Com o pé machucado por uma sapa tilha rosa, Stefanie correu um pouco e gritou: “Alisson?!”. Ele olhou pra trás e espe rou que ela se aproximasse. Era o reencontro.

Os dois tinham muito a conversar. Haviam mar cado de ir ao cinema, para assistir Venom. Encontros no cinema geralmente criam um clima romântico e talvez algumas expectativas, mas nesse dia tudo o que aconteceu foi que assistiram ao filme, experimenta ram um salgadinho famoso que tinha o sabor ruim e comeram um Bis black. Mas, a partir desse dia, passaram a se ver com bastante frequência.

Alisson foi convidado a ir até a casa de Stefa nie e, assim como no dia do cinema, não passou de um encontro tímido, um aperto de mãos e ne nhum beijo. Por alguns dias frequentou a casa dela, mas sempre ia embora depois de algum tempo. Até que em mais uma visita que começava com um beijo no rosto e provavelmente não passaria da quilo, Stefanie decidiu mudar o rumo da história. “Eu tive que tomar iniciativa, porque se fosse pelo Alisson, até hoje a gente não teria dado um beijo”, provoca. Desde então, permanecem juntos.

No início, quando estavam há pouco tempo na morando oficialmente, Stefanie observou Alisson e Anthony deitados, brincando juntos, e por um instante sentiu um pouco de ciúmes, talvez uma insegurança, porque daquele momento em diante ela não seria a única a ter a atenção do filho. No

entanto, também ficou feliz, por ver que estavam criando carinho um pelo outro. Um tempo antes, quando Anthony percebeu a pre sença constante de uma nova pes soa na casa, também demonstrara um pouco de ciúmes, mas Alisson conseguiu contornar e, em segui da, conquistar o coração do menino de quase dois anos, que logo se tornaria seu primeiro filho.

n Quatro anos se passaram e hoje Alisson e Anthony conquistaram o que há de mais bonito na relação de pai e filho, a amizade

Na medida em que os meses foram passando e a relação de pai e filho se consolidando, Alisson passou a cumprir todos os papéis que um pai re presenta na vida de uma criança. “Vesti a camisa”, afirma, orgulhoso. Quando perguntei sobre o que ele sentia nessa época, ele logo respondeu: “Cari nho e proteção, vontade de proteger”. Sentimentos endossados por lembranças de quando era criança, porque, assim como Stefanie, Alisson foi criado por uma mãe solo. “Meu pai já não me criou, eu que não vou deixar meu filho sofrendo”, relata.

No primeiro ano de rela cionamento, Antony chamou Alisson de pai por conta pró pria, mas isso ocorreu porque na época a gíria “pai” era muito utilizada, e por ouvi-la muitas vezes, começou a repetir. Pouco depois, Stefanie corrigiu o filho, e ele passou a chamar Alisson pelo nome. Até hoje é assim. Mas quando perguntei a ele “Qual é o nome do teu pai?”, ele prontamente respondeu: “Alisson!”. O pai, chamado pelo nome, não se apega a pequenos detalhes. Para ele, o que importa é o que construiu ao lado da esposa. Uma família.

Stefanie e Alisson, além de serem pais de An thony, são pais de Lívia, de dois anos, e de Ísis, que ainda está na barriga da mãe e, conforme previsão médica, nascerá em fevereiro. Uma exigência de Ste fanie quando começou o namoro foi deixar explícito que o filho era sua prioridade, e Alisson, sabendo de tudo que ela havia passado no antigo relacionamen to, sempre respondia que o menino também era a prioridade dele a partir daquele momento. Quan do eram apenas amigos, sempre aconselhava ela a terminar a relação com o pai biológico de Anthony, porque era com Alisson que Stefanie desabafava – portanto, ele sempre soube que ela passava por situações que nenhuma mulher deveria passar.

Quando Lívia nasceu, Stefanie teve novamente a oportunidade de ver o pai que Alisson se tornou para o seu filho: mesmo depois de ter uma filha biológica e acompanhar a gestação como pai desde o início, continuou se dedicando a Anthony. Quando, à noite, o medo do escuro vem para assustar, é o pai que o acalma. Quando a crise de asma o deixa sem ar, ele tem um pai que o leva para o hospital. Alisson ainda não é pai na certidão, mas um papel é apenas um detalhe. O amor não deixa dúvidas entre pai e filho. n

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O Anthony teve ciúmes do Alisson no início, mas sempre gostou dele”
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AFETO A LINGUAGEM DO

Josué Samuel Heydrich Machado, de 20 anos, é apaixonado pelo canal de notí cias CNN Brasil e o acompanha todos os dias, já que adora os sons de aberturas dos programas, propagandas e as falas dos jornalistas. Enquanto sua mãe, Vi vian Heydrich, me responde algumas perguntas, o menino de 1,75m de altura, de olhos e cabelo cas tanhos, segue vidrado ao noticiário no celular com seu fone de ouvido todo enrolado. Ele sobe e desce as escadas sem parar na extensa casa de dois an dares, que possui redes de proteção no 2º andar, para evitar qualquer possibilidade de quedas.

Dona Vivian conta que a gravidez de Josué foi planejada e de parto cesárea, em que ocorreu tudo normalmente no dia 27 de março de 2002. Ao passar alguns meses, ela não percebeu nenhuma diferença expressiva no filho e acreditava que fosse saudável psi cologicamente. Porém, quando chegou aos dois anos de idade, disse, com convicção, que percebeu alguns traços notáveis de adversidades no desenvolvimento dele. Josué fazia alguns movimentos repetitivos com objetos. Pegou a maçaneta da porta da sala de casa e mexeu com as duas mãos em ambos os lados, o trin co soava um barulho agudo e seu olhar continuava focado para o teto. A mãe gritava “Josué!”, por várias vezes, mas ele não atendia ao ser chamado. Foi aí que ela percebeu que talvez ele fosse diferente.

Ao mesmo tempo em que Vivian nos serviu um pote de sorvete, em mais uma tarde quente de pri mavera, no Centro de Novo Hamburgo, ela revelou que levou o filho ao médico, quando foi diagnosticado com autismo, aos três anos. Naquela época, não se tinha muita noção do transtorno, e as condições de pesquisa eram mais precárias, para entender melhor do que se tratava. Foi um baque inicial, mas ela viu-se na obrigação de ajudar o seu filho e buscou toda a capacitação para vencer os obstácu los. Vivian já era formada em História na Unisinos, porém se aprofundou no tema e fez pós-graduação de Psicopedagogia e Neuropsicopedagogia.

A LUTA DE UMA MÃE PELA INCLUSÃO DO FILHO COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Segundo a mãe, foi a melhor escolha que ela poderia ter feito, para compreender os aspectos do Transtorno do Espectro Autista (TEA). De acordo com a psicopedagoga Fernanda Schmidt, o autismo tem como característica um comportamento atípico, déficits na interação e comunicação, ações estereoti padas e repetitivas, além de interesses em atividades bem limitadas. Inicialmente, o autismo de Josué era considerado leve, em que ele não dependeria de ajuda para tudo nas tarefas do cotidiano. Porém, durante o crescimento, houve uma regressão evidente, que modificou completamente a vida da família.

Abandonar o luto e ir à luta

A frase acima fala por si só, já que Vivian disse ter feito exatamente isso para lidar com a situação. “Não adianta a gente ficar chorando pelos cantos e

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TEXTO E FOTOS DE GABRIEL JAEGER
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não ir atrás de ajuda nestes mo mentos tão difíceis”, desabafou. Para a professora de História, foi mais difícil aceitar a demência da sua mãe, Ivone Schneider, de 85 anos, do que conviver com a reali dade do filho Josué. Ela conta com os olhos marejados de lágrimas que ficou depressiva e que é difícil vê-la assim, sendo que foi uma das pessoas que mais ajudaram, assim como o pai dele, Cléber Machado. Ele conta brevemente como é ser pai de um menino autista: “A gente aprende uma lição com as dificul dades a cada dia. E, durante essa caminhada, eu tento ser o melhor pai para o que ele precisa”.

Também foi difícil conseguir achar escolas que aceitassem e fornecessem condições de estudo para o garoto autista. Muitas dire torias mentiam sobre as vagas para não ter que se envolver. Em Novo Hamburgo, Josué estudou o ensino fundamental na Nilo Peçanha e na Getúlio Vargas. O ensino médio é feito atualmente na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Infelizmente, durante os anos estudados, Josué não con seguia participar da maioria das atividades em sala de aula. Os gri tos dele eram extensos, enquanto batia os braços na classe, e isso o afastava dos colegas na sala de aula, que reagiam com expressões de medo e angústia. Até hoje, ele ainda não aprendeu a ler, apenas sabe sons de algumas sílabas.

Trabalho, orgulho e preconceito

O preconceito com Josué decepcionou bastante a família nesta dura caminhada. Pior que isso, os insultos vieram de pa rentes, principalmente da família paterna dele. Alguns comentários ignorantes, como, por exemplo, “Andou tomando muito remé dio durante a gravidez”, foram reproduzidos. Enquanto Vivian comentava sobre o olhar nega tivo das pessoas para o seu filho no dia a dia das ruas, Josué fazia uns sons repetitivos ao assistir à CNN, principalmente com as vogais A, E e U. Segundo a mãe, essas estereotipias vocais começa ram há três anos, e são mais fre quentes em momentos de tensão. Josué aumentou o volume dessas reproduções, e movimentava os

dedos das mãos e a cabeça para baixo e para cima, além de babar frequentemente. A mãe precisou intervir com delicadeza, com abra ços e carinhos na cabeça.

Vivian ficou tão engajada para buscar o melhor para o seu filho que se tornou presidente em 2021 da Associação dos Pais e Amigos do Autista (AMA) de Novo Ham burgo. Se sente muito orgulhosa de fazer parte disto. Por lá, ela realiza

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Atenção aos traços do transtorno e busca de intervenção precoce. Quanto mais tarde, mais difícil será para melhorar”

diversas atividades que desenvol vem as crianças e adolescentes, além de tirar dúvidas dos pais so bre o assunto. Uma das atividades que ajudam muito os autistas é a do quadro colorido com os dias da semana e com horários. Josué tem um quadro no corredor da casa, entre a sala e o quarto dele. O quadro foi feito de cartolina, com velcro branco para grudar as figuras, e tem diversas cores,

como, por exemplo, marrom, roxo, verde, laranja, vermelho, azul e branco. Ele faz esta tarefa todo dia, de ir retirando as fotos dele conforme o que já foi realizado, como almoçar, escovar os dentes, tomar banho, entre outras ações. Vivian colocou novamente as fotos já retiradas do quadro, e Josué, ao perceber a diferença, começa a franzir as sobrancelhas, com os dentes cerrados, demonstrando indignação, além de repetir sons, na busca de tentar dizer alguma coisa. A mãe relata que ele não pode ver seus obje tos fora do lugar, de como exatamente deixou pela última vez, principalmente o quadro colorido.

Atualmente, o autismo de Josué é considerado severo, no nível 3 do transtorno. As situações mais difíceis são nos momentos de crises, já que ele acaba se alte rando quando discordam dele em eventuais ocasiões. Para amenizar, é preciso contê-lo fisicamente, e buscar evitar xingamentos e gri tos. O trabalho é quase sempre feito por antecipação, para não passar por isso. Ao mesmo tem po em que Vivian me serve um copo d’água, tento conversar com o menino, para saber como ele está, mas não obtenho resposta, apenas algumas sílabas incom preensíveis. E geralmente é assim, ele não consegue aprofundar um diálogo e não entende os contex tos de qualquer assunto.

Vivian revela que gasta bas tante dinheiro para dar uma vida digna ao seu filho, e que pais em uma condição financeira média para baixa teriam enormes difi culdades para ajudar. A semana de Josué é bem movimentada. Nas tardes de segunda a sexta-feira, ele vai para a Apae. Ele também tem atendimento com a psicopedagoga Fernanda Schmidt e com uma psi comotricista e pratica judô.

Quando foi perguntada so bre qual conselho dar para pais que recém descobriram que seu filho é autista, Vivian não hesitou: “Atenção aos traços do transtorno e busca de intervenção precoce. Quanto mais tarde, mais difícil será para melhorar”. Como conhe cedora do assunto, ela comenta que é imprescindível aproveitar os neurônios o mais cedo possível para o desenvolvimento. Com isso, ela diz que dá para levar uma vida tranquila dentro do possível. Po rém, sua maior preocupação é com o futuro dele. “E quando eu e meu marido não estivermos mais aqui? Quem vai cuidar dele?”, expressou. O sonho dela é deixar o Jô, como é carinhosamente chamado, em um lugar que seja bem assistido e cuidado. Onde profissionais capa citados, que tenham conhecimento sobre o Transtorno do Espectro Autista, possam ajudá-lo para que tenha uma vida agradável e prazerosa como deve ser. n

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Intervenção precoce e preocupação no futuro
n O quadro colorido auxilia nas atividades do dia a dia de Josué

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