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Introdução Capítulo 1 – A política religiosa dos primeiros impe-
Introdução
Esta pesquisa tem campo definido e escopo determinado. Trata da polêmica entre cristãos e pagãos na pessoa de seus líderes mais expressivos: Ambrósio e Símaco. Em 382, o imperador ordenara a remoção do altar da Vitória da Cúria Júlia e suspendera as subvenções estatais destinadas para a manutenção do antigo culto. Esta ordem abalou profundamente os adeptos da religião tradicional a ponto de suscitar calorosa controvérsia entre os dois cultos conflitantes.
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Conquanto tenha sempre presente a mentalidade religiosa de uns e de outros, este trabalho prescinde da parte doutrinal propriamente dita, com o intuito de fazer convergir, com mais ênfase, a atenção sobre o aspecto histórico. No entanto, é forçoso levar em conta as implicações sociais, os costumes, a situação política e o espírito do tempo, no final do século IV na parte ocidental do Império.
Para que o leitor possa se situar melhor no contexto histórico da época, foi necessário traçar uma visão geral da linha de conduta dos imperadores “cristãos” desde Constantino até Graciano. Esses soberanos, com raras exceções e de forma atenuada e passageira, procuraram estabelecer um estado de convivência pacífica, de tolerância mútua entre os seguidores dos dois cultos. O cristianismo, ilegal até Constantino, passa a desfrutar, a partir do edito de Milão, dos mesmos direitos do paganismo; o antigo culto, porém, continua sendo, na prática, a religião oficial do Estado e da sociedade. Embora esses imperadores já fossem, pelo menos oficialmente, cristãos, o Estado
era ainda pagão quanto às suas instituições, suas práticas e seus costumes. Por isso, era impossível romper, de um momento para outro, os liames que vinculavam a religião tradicional às instituições oficiais.
A seguir será apresentado um balanço geral da força, como também da debilidade, do paganismo. Aparentemente, este é soberano; domina ainda a vida pública em todos os setores. Mas, de corpo vivo que é, começa a enfraquecer desde o momento em que o Estado lhe retira sua mão protetora. E era difícil aceitar que a tentativa de reanimá-lo, empreendida por Juliano com um misto de ocultismo e vibrante oratória, pudesse ter sucesso duradouro mesmo que este imperador vivesse muito tempo para consolidar seu programa. Segundo a expressão de Paládio, intérprete da última geração dos pagãos cultos, a vitalidade terminara: “Se nós estamos vivos, então a própria vida está morta”.1
Mesmo assim, uma minoria da aristocracia romana se constituiu em defensora das antigas tradições. Um dos motivos do triunfo do cristianismo foi, sem dúvida, a decrepitude e o cansaço de seus opositores: o paganismo havia perdido a fé na sua doutrina e em si mesmo. Procurava defender-se, mas não houve consistência e coesão. Faltaram-lhe perspicácia e capacidade de adaptação aos novos valores que vinham se impondo. A doutrina tradicional dos pagãos não soube apresentar respostas aos novos questionamentos e problemas de ordem religiosa e metafísica que o mundo vinha apresentando. Ao contrário, o cristianismo se revelava capaz de satisfa-
1 Anth. Pal. X, 82. O neoplatonismo continuou a ser ensinado pelos pagãos em Atenas até o fim de 529, porém, quando Sinésio visitou esta cidade, não encontrou aí mais que um resquício da precedente vida intelectual (Sinésio. Epistola, 136).
zer a muitas indagações que a sociedade e as pessoas se colocavam.
O antagonismo entre pagãos e cristãos passou, no decorrer dos tempos, da perseguição direta e da agressão física para o campo da polêmica em nível intelectual, social e político. Gradativamente, a nova religião conquistava para suas fileiras os membros da aristocracia, a quem por tradição cabiam os negócios públicos, a ponto de dividi-la em dois grupos. Aliás, um dos motivos de ressentimento dos pagãos era o efeito que o cristianismo exercia sobre a vida familiar e social. Como toda a fé que exige obediência total do indivíduo, o cristianismo era poderoso fator de divisão. Segundo Eusébio de Cesaréia, “toda cidade e toda casa está dividida entre cristãos e idólatras”.2
Ambrósio, homem de grande ascendência junto aos imperadores de seu tempo, especialmente Graciano e Valentiniano, é o expoente e o porta-voz dos sentimentos e anseios dos cristãos. Um de seus principais esforços e maior conquista foi o de induzir os imperadores a pensar e a agir como cristãos, seja no que diz respeito à religião cristã como também ao paganismo.
A Igreja, por volta do fim do século IV, encontra-se efetivamente, pela primeira vez, diante da autoridade. E na pessoa de Ambrósio, bispo de Milão, ela impõe também, pela primeira vez, de forma clara, decidida e firme, uma conduta cristã. Nos primeiros séculos, a Igreja estivera sob o regime da perseguição, crescendo na ignomínia, na miséria, nos suplícios.3 Quando, finalmente, pôde experimentar a liberdade, sofreu a
2 Eusébio de Cesaréia. Demonstratio evangelica, VIII, 5. 3 Ambrósio. Epistola, XVIII, 11.
ingerência, mais ou menos manifesta, e a imposição, mais ou menos premente, dos imperadores “cristãos”. É na pessoa de Ambrósio que a Igreja se defronta vigorosa com o imperador e estabelece as competências de uma e de outro. Sem a pretensão de transformar-se numa instituição estatal, a Igreja impõe, de fato, ao imperador, e por seu intermédio a todo o Império, o serviço, a colaboração na atividade espiritual, a renúncia oficial ao paganismo e, em conseqüência, sua condenação. O império romano torna-se, assim, não só oficialmente mas também, e de maneira efetiva, cristão, em suas instituições, suas leis e conduta.4
Contra os atos legislativos que haviam reduzido o paganismo a um culto privado, ergue-se o orador Símaco, homem culto e ponderado, ardoroso defensor das antigas tradições e costumes pátrios. Em nome do Senado, toma a defesa da antiga religião. Sua correspondência demonstra com que zelo se dedica à salvação do culto agonizante e a paixão com que defende a mos maiorum.
Na verdade, sob a influência do cristianismo e do que ele conservava de suas origens orientais e populares, o pensamento afastava-se pouco a pouco das formas clássicas e tradicionais. Não se trata, portanto, de polêmica entre monoteísmo e politeísmo; muito menos de debate entre o rigorismo cristão e laxismo pagão. O bispo de Milão intervém não por interesses políticos mas religiosos.5 Ambrósio pleiteia campo aberto onde a religião cristã possa se desenvolver livremente sem os obstáculos do paganismo, nem a ingerência do Estado.
4 Ambrósio. Epistola, XVII, 1. 5 Ambrósio. Epistola, XVII, 13.