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b) Escritores moderados
recordação o assalta: “Do meio das ondas surge Górgona (Urgo) entre a costa de Piza e Cirnos (Córsega). Afasto os olhos desse rochedo que me desperta triste recordação bem recente. Lá, um dos nossos concidadãos se perdeu e se sepultou vivo. Era um de meus amigos, jovem, de nobre família; sua fortuna e seu matrimônio correspondiam à sua origem. Impulsionado pela ira, abandonou os deuses e os homens, e a superstição o fez amar o exílio de vergonhosa solidão. Infeliz! Imagina que os suplícios do corpo agradam os céus; submete-se a torturas que nem sequer os deuses ofendidos lhe infligem. Pergunto agora: esta seita não é mais funesta que os piores venenos de Circe?70 Os de Circe agiam só sobre o corpo, mas estes transformam a alma”.71
Note-se o alcance desses impropérios: por trás da crítica aos monges, Rutílio visa o cristianismo, enquanto o monaquismo lhe parece produto natural da seita “que embrutece as almas”.
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b) Escritores moderados
Rutílio é o único escritor da época que se manifesta diretamente contra o cristianismo. Como ele, tantos outros alimentavam ódio contra a nova religião, porém o temor das leis não lhes permitia manifestar seus sentimentos. Nas pala-
70 Circe, segundo a mitologia grega, é filha do Sol e da Oceânida Perse, do Dia e da Noite, ou do Sol e da Lua, segundo diferentes versões. Casou-se com o rei dos Sármatas, povo nômade e belicoso habitante do norte do Cáucaso. Dotada de poderes extraordinários, preparava filtros e venenos capazes de transformar os homens em animais. Cf. Grimal, Pierre. Dictionnaire de la mythologie greque et romaine . Paris: Presses Universitaires de France, 1982. 71 Rutílio. Op. cit. I, 515-526.
vras calculadas e cheias de reticências, sente-se o clamor surdo da cólera que não eram capazes de conter. Entre esses inimigos secretos do cristianismo, encontra-se Macróbio. Também ele exerce importantes funções administrativas em Roma no início do século V. Era, acima de tudo, um literato, um erudito e é bem provável que deveu sua carreira política à grande reputação literária.
Legou-nos dois trabalhos literários, diferentes quanto à forma, mas semelhantes às de Rutílio quanto ao objetivo. As obras dos dois autores estão animadas do mesmo espírito. As de Macróbio revelam um aspecto próprio da oposição discreta e dissimulada ao cristianismo; por isso merecem estudo particular.
O comentário de Macróbio sobre O Sonho de Cipião inspira-se nas doutrinas da escola neoplatônica, a qual, apesar de seu caráter eminentemente grego, contava com muitos seguidores em Roma. Plotino viveu nesta cidade os anos mais fecundos de sua vida, onde ensinou durante vinte anos. Teve como discípulos homens do mais alto coturno, mulheres famosas, senadores como Rogaciano que se tornou voluntariamente pobre para melhor praticar seus preceitos. Gozava de grande reputação junto ao imperador Galieno que, segundo se conta, teria tido a idéia de fundar, sob sua direção, uma cidade platônica onde habitariam somente sábios, e que serviria de modelo a todas as outras cidades do Império.
Não é sem razão que Macróbio escolheu O Sonho de Cipião para comentar. Trata-se de um dos relatos mais belos, religiosos e mais admiráveis que a antiguidade nos legou e do qual Cícero fez o epílogo em sua República. Resume nessa obra os mais elevados ensinamentos da filosofia de seu tempo sobre o mundo e Deus. Apresenta, sobretudo, ensinamentos precisos e firmes sobre a vida futura que não eram, de praxe,
apresentados nas escolas. Expõe sentimentos quase cristãos. O que impede de sê-los é que as recompensas da outra vida não se destinam a todos mas somente aos que “socorreram, salvaram e engrandeceram sua pátria”,72 restringindo-se a meras satisfações da inteligência. Os bem-aventurados contemplarão os astros, compreenderão as leis eternas do mundo, e a natureza não terá mais segredos para eles. “As almas daqueles que serviram condignamente à comunidade retornam do corpo para o céu e lá desfrutam da eterna bemaventurança”. Todavia, esse céu é um paraíso para sábios e políticos a que os pobres e humildes não têm acesso, destinado, portanto, só para aqueles a quem escrevia. Para seus interlocutores, o cristianismo se afigurava como sendo uma religião incompatível com os pressupostos naturais de toda uma cultura. Os grandes platônicos de sua época, Plotino e Porfírio, eram capazes de lhes oferecer uma visão profundamente religiosa do mundo, que brotava naturalmente de uma tradição imemorial.
Entre as passagens mais curiosas desse comentário, é preciso destacar aquela em que o autor mostra a alma descendo do céu, onde reside, para enclausurar-se no corpo que deve animar. É uma viagem pelo espaço, de astro em astro, em que perde constantemente parcelas de sua essência celeste que, por sua vez, é preenchida pelos diversos elementos da nova natureza. Questões idênticas foram propostas por Santo Agostinho quanto à natureza da alma, à visão beatifica, ao que era a alma antes de se unir ao corpo e o que virá a ser quando dele se separar. De ambas as partes, levantavam-se as mesmas questões e apresentava-se a mesma curiosidade pelo
72 Macróbio. Somnium Scipionis, I, 1.
desconhecido para compreender seus mistérios. Na tentativa de desvendá-los, Macróbio recorreu aos princípios da filosofia neoplatônica.
Apesar de sua aparência científica e séria, o comentário é, no fundo, um livro de polêmica, uma obra em que o autor pretende, com o auxílio da nova filosofia, fornecer ao antigo culto aquilo que nunca fora, isto é, uma doutrina e dogmas, e dessa forma, torná-lo capaz de sustentar, de maneira menos desigual, a luta contra o inimigo. Macróbio deve ter imaginado que a bela descrição de Cícero, elucidada e completada por Plotino e seus discípulos, abriria, aos espíritos sedentos de novas idéias, as perspectivas da outra vida de que estavam tão ávidos, e que lhes poderia fornecer a certeza da imortalidade que procuravam no cristianismo.
O Sonho de Cipião, um tratado tão repleto de sábias especulações, era acessível apenas a uma pequena elite de gente instruída e letrada. As Saturnais, por sua vez, destinavam-se a público mais numeroso. Tratava-se de um livro de “Conversas imaginárias” que retratava os grandes conservadores romanos em seu apogeu, por volta de 380. A obra tem, como idéia central, o diálogo entre pessoas instruídas, por ocasião das festas de Saturno em Roma que conservavam ainda grande popularidade e eram celebradas anualmente no mês de dezembro com jogos e todo gênero de divertimentos. Macróbio imagina alguns homens sérios e pacíficos, celebrando-as à sua maneira, ou seja, reunidos durante três dias para comer juntos e discutir em comum questões filosóficas, pois “consagrar as solenidades ao estudo é honrar os deuses”.73 Nessas conversas, entretanto, podemos sentir algo mais do que o deleite
73 Macróbio. Saturnalia, I, 1.
elegante com um passado grandioso: trata-se de uma cultura inteira correndo precipitadamente para ficar imóvel. A antiga tradição, vetustas, deveria ser “sempre adorada”. Esses últimos pagãos ansiavam por enraizar suas crenças num passado dourado e distante, não perturbado pela ascensão do cristianismo.
Os convivas dessas refeições não são personagens imaginários, mas políticos que desempenham funções das mais elevadas. Entre eles estão alguns letrados: o orador Símaco, o retórico Eusébio o mais eloqüente dos gregos, o filósofo Eustático, o gramático Sérvio, um médico célebre, Disário, e Pretextato, o grande especialista em religião. Alguns deles eram os chefes dos pagãos no Senado. Os demais, que a eles estavam intimamente ligados pelo caráter e pelas idéias, professavam evidentemente as mesmas doutrinas. Todos eles são representantes da resistência pagã. Não se fala diretamente do cristianismo nas Saturnais. No entanto, seus personagens estão preocupados com questões religiosas, zelosos pelo culto tradicional, envaidecidos de seu glorioso passado e firmemente apegados aos antigos costumes.
É evidente que durante reuniões como estas em que se celebrava uma das festas mais antigas e respeitadas, e onde se tocava em tudo quanto era assunto, se falasse também no cristianismo. A essa suposição deve-se acrescentar a atitude do imperador, de proibir os sacrifícios e fechar os templos. Quando Macróbio escreveu as Saturnais, a religião que ele tanto glorifica estava prestes a perecer em virtude do rigor das leis que a proibiam. No entanto, ao longo de toda a exposição, nenhuma palavra revela a triste situação em que o culto se encontrava; nenhuma alusão é feita aos perigos que o paganismo enfrentava e sob os quais iria sucumbir.
O mesmo silêncio é observado por outros escritores pagãos desse tempo, dando a impressão de que todos persistiam em praticar normalmente o antigo culto. Não é certamente mero acaso que todos se omitam quanto ao nome da religião que tanto detestam. É um silêncio intencional, uma atitude proposital, a conspiração do silêncio que qualquer um poderia entender. Esse silêncio, altivo e insolente, foi a última forma de protesto encontrada pelo culto proscrito.
Aliás, esta maneira de proceder não era uma novidade em Roma pois, desde o início, a alta sociedade adotou como tática combater o cristianismo com a arma do desprezo. Quando os judeus da sinagoga de Corinto se insurgiram contra Paulo e o levaram ante o procônsul da Acaia,74 foram pessimamente recebidos. Este limitou-se a dizer-lhes: “Se fosse na realidade uma injustiça ou verdadeiro crime, seria razoável que vos atendesse. Mas se são questões de doutrina, de nomes e da vossa Lei, isso é lá convosco. Não quero ser juiz destas coisas. E mandou-os sair do tribunal”.75
É bem provável que os cristãos permanecessem ignorados por muito tempo se não tivessem sido supliciados por Nero ou perseguidos por outros imperadores. De modo geral, durante muitos anos, só se conhecia seu nome, e poucos se preocupavam com sua doutrina. Tácito, que escreveu meio século depois da perseguição de Nero, limitava-se a invectivar algumas injúrias contra os cristãos. Segundo ele, os cristãos constituem uma “execrável superstição... homens odiosos por seus crimes... culpados e merecedores dos últimos suplícios...”.76
74 O procônsul da Acaia era Galião, irmão de Sêneca. Vide Sêneca. Epistola, 104. 75 Atos dos Apóstolos, 18, 14-16. 76 Tácito. Analium, XV, 44.
Plínio, o jovem, magistrado e procônsul na Bitínia, em vez de condená-los suamriamente, procurou primeiro conhecê-los melhor. De espírito mais imparcial, informou-se antes junto àqueles que haviam aderido e depois abandonado o cristianismo. Pôs o imperador a par da maneira de viver e proceder dos cristãos e assim termina a sua carta: “Não encontrei neles nada de repreensível a não ser a superstição ridícula e exagerada”.77 Todavia, contrário ao que se poderia esperar, conclui que, por causa de sua inflexível obstinação, devem ser punidos.78 Comentando esta passagem, o historiador Boissier chega à conclusão que Plínio deixou-se dominar pelos preconceitos de seu tempo e de sua nação: como homem honesto e sábio, fez a consulta, mas, como romano, condenou-os.
Celso, por sua vez, se expressa de modo bem diverso: “Suponho que não esperais que os Romanos abandonem, para abraçar a vossa fé, as suas tradições religiosas e civis, e invoquem o vosso Deus, o altíssimo ou qualquer outro nome com que o chameis, a fim de que desça do céu e combata por eles, de modo que não tenham necessidade de nenhuma outra ajuda. Porque esse mesmo Deus, segundo dizeis, tinha outrora prometido as mesmas coisas e ainda mais magníficas aos seus fiéis. Ora vedes que serviços prestou aos judeus e a vós mesmos. Aqueles, em vez do império do mundo, nem sequer tem um torrão ou um lar. E, quanto a vós, se há ainda cristãos errantes e escondidos, procuram-nos para lhes aplicar a pena capital”.79
77 Plínio. Epistola, X, 97. 78 Plínio. Espístola, X, 97. 79 Celso. Contra os cristãos, 116.