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Isabelle Pires
NEM VESTIDOS, NEM MAQUIAGEM
Eu sou Conradine Aruti e não sei como será o meu futuro. Há muitas restrições agora. O Talibã ordenou que um homem precisa me acompanhar. Quando eu saio, tenho que usar burca - esse traje que me cobre completamente o corpo com uma treliça estreita à altura dos meus olhos. Aqui em Ishkamish, distrito rural na província de Takhar, fronteira nordeste do Afeganistão com o Tajiquistão, os serviços são escassos. Nos primeiros dois dias após a chegada do Talibã a Cabul, as ruas da capital também começaram a dar sinais dessas mudanças restritivas para as mulheres. Se elas não usarem véu, se maquiarem ou usarem vestidos de festa serão arrancadas ou cobertas de tinta. Em Cabul as mulheres sentem medo e falta de esperança. Olhamos para o porvir e enxergamos uma fumaça nebulosa. A cidade é silenciosa depois que o Talibã governa a capital. Nossas casas são o nosso cárcere. Eu tinha muitos planos para o meu futuro, mas agora não posso trabalhar nem ir para a universidade. E quando digo “tinha” é nesse tempo mesmo de dúvida, de incerteza que me coloco, porque não sei como será nosso futuro. Isso me fez perder a esperança. Estou
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procurando uma maneira de sair do Afeganistão porque não há esperança para as mulheres aqui. O quanto teremos que perder para provar que temos direito à vida, à educação, ao conhecimento? Lembro-me da Malala Yousafzai, que aos 14 anos sofreu um atentado por lutar em defesa da educação para nós mulheres e nossas meninas. Ela é a sobrevivente de um atentado talibã no ano de 2014 e se tornou a pessoa mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, apenas com 17 anos! Ela é uma “voz que clama no deserto” porque seu papel na sociedade em defesa da Educação é transformador! Mas Malala teve sorte. Sobreviveu e anda lutando. A Mena Magal não. Ela foi jornalista e tinha 27 quando foi morta a tiros em uma rua de Cabul. Na ocasião, muitos suspeitaram dos talibãs, mas, no Afeganistão, a violência contra as mulheres é endêmica. A polícia priorizou a pista familiar e considera que o ex-marido de Mena teve, provavelmente, um papel neste crime cometido por homens em uma moto. Esse assassinato gerou forte indignação pela situação das mulheres afegãs, com frequência, vítimas de assédio, violência doméstica e sexual, assim como de discriminação. Não é fácil ser mulher afegã. Mangal lutou muito pelo direto de ser e existir. Depois de apresentar uma ação por violência conjugal e
ameaças de morte, conseguiu seu divórcio, o que é uma verdadeira corrida de obstáculos para as mulheres da república islâmica, pois as decisões judiciais tendem a favorecer os homens. Pouco antes de seu assassinato, ela conseguiu publicar uma mensagem nas suas redes sociais, afirmando que havia sido ameaçada de morte, mas não identificou o potencial agressor. Infelizmente, o assassinato de Mena não é o primeiro. Sua voz ainda clama. Cinco anos atrás, em Cabul, o caso de Farkhunda também se tornou símbolo da violência endêmica, à qual as afegãs são submetidas. Ela foi agredida por uma multidão até a morte sob uma falsa acusação de queimar o Alcorão, uma blasfêmia! Seu cadáver foi por fim queimado. Inferno religioso! Outra mulher teve o nariz cortado pelo marido e de uma jovem sequestrada e assassinada. A violência contra as mulheres é comum e vivemos a “cultura da impunidade”! Faltam sanções apropriadas e a corrupção do sistema judiciário deu aos homens esse sentimento de impunidade. O mundo sob a íris da mulher afegã é um caos. Estamos em 2021 e ainda precisamos, a despeito de tantas lutas, prosseguir. Mas estou sem esperanças. Eu estudo Ciência da computação (o que é muito incomum às mulheres daqui) na Universidade de Cabul e fui agredida junto à multidão que tentava pegar um voo para
fugir do país no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, na capital. A multidão se empurrava junto com a polícia, crianças e mulheres que estavam no chão foram machucadas e eu sofri lesões nas mãos, pés e joelhos. Tentei embarcar, mas não consegui e fiz um apelo nas redes sociais para que algum país me conceda asilo. Quero poder terminar meus estudos e acho que não será um caminho fácil. Sinto como se estivesse em um túnel. Não consigo ver nenhuma luz brilhante e não sei qual é o comprimento do túnel. Antes disso tudo, antes do Talibã, nem o mundo nem nossa própria república via realmente a força da mulher afegã. Nunca foi fácil por aqui. Muitas mulheres já foram ameaçadas, assediadas, sequestradas e finalmente assassinadas, mas não houve um mecanismo para investigar o crime e levar seus autores à Justiça. Se nós, mulheres do Afeganistão, ativistas ou não, pudéssemos sentar-nos à mesa e conversar com os militantes, eles poderiam ser inteligentes e se conscientizar sobre os recursos que têm com as mulheres do Afeganistão. É incrível como existem pessoas que ainda não acreditam no que estamos vivendo. Àqueles que estão dizendo que o Talibã não incomoda ninguém em Cabul e que será por pouco tempo, como vejo anunciar na TV, mando um recado: - nenhuma mulher foi espancada ou incomodada porque
ninguém ousa sair, como estavam acostumados! Estamos em cárcere privado! Nossa casa é nossa gaiola. Estou vendo pelas lentes do passado. Regresso vinte anos e enxergo numa tela sem cores, o que minhas companheiras sofreram quando os extremistas islamistas estavam no poder por aqui. Eles proibiam as mulheres de terem acesso à educação, confinavam-nas em casa e as obrigavam a usar burcas em público. Parece que hoje não está diferente não é mesmo? Quero trazer outra informação a vocês que lerão esse texto. Nem saúde e nem educação. Não à dignidade feminina! Vocês sabiam que as mulheres só poderiam sair ou viajar com a presença de um homem da família e até mesmo o acesso à saúde era limitado, pois proibiram que fossem atendidas por médicos e enfermeiros do sexo masculino. Sabiam também que o marido, os irmãos e a sogra têm permissão para bater na mulher casada, ação amparada pela religião? Sabiam que muitos assassinatos são cometidos pela própria família da mulher, com a participação de pai e irmãos, a maioria por motivos absurdos, como a recusa em se casar com um homem escolhido pela família? Que o mundo nos veja! O Afeganistão é também aí onde você está. Se você é mulher, você sente minha dor. A mulher sempre é o alvo desses fundamentalistas religiosos e, apesar de extremo o que estamos passando
atualmente não é um “ponto fora da curva”. O Afeganistão ontem e hoje não é novidade. Não sei como será o meu futuro. O Talibã deu todas as indicações de que irá reimpor seu regime repressivo. Em julho, a ONU relatou que o número de mulheres e meninas mortas e feridas por aqui nos primeiros seis meses de 2021 quase dobrou em comparação com o mesmo período do ano anterior. Isso te diz algo? Aqui, nas áreas novamente sob controle do Talibã desde o começo do ano, as meninas foram proibidas de ir à escola e sua liberdade de movimentos foi restringida. Eu escutei relatos de casamentos forçados. Estamos colocando as burcas novamente e vejo a destruição das evidências de nossa educação e vida fora de casa para se proteger do Talibã. Viajamos de volta para 20 anos atrás. Algumas mulheres são incapazes de deixar suas casas, porque elas não podem pagar uma burca ou já não têm qualquer parente do sexo masculino. Imaginam isso?
Estamos caçando burcas e escondendo nossa identidade! Nem vestidos, nem maquiagem! Não estamos pintando nossos rostos, mas janelas para que ninguém possa nos ver de dentro para fora. Eu imploro, ouçam as vozes das meninas afegãs! não desviem o olhar! Eu escrevo agora esta “carta aberta ao mundo” porque não quero me calar. Não sei se meu saldo será
como o da Sushmita Banerjee, escritora ativista indiana, expatriada no Afeganistão, que não se encobriu e sua voz teve o preço da morte. Suas linhas foram escritas com sangue e seu eco foi silenciado na província de Paktika por militantes, supostamente por desafiar os ditames do Talibã. Eu não sei o acontecerá comigo. Mas não posso emudecer. Eu sou Conradine Aruti e não sei como será o meu futuro.