Hamlet-Máquina RJ

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“Eu era Hamlet. Estava a beira-mar e falava com a rebentação BLÁBLÁ, às costas as ruínas da Europa.” Heiner Müller


realização

apoio institucional

Hamlet-mÁquina Uma adaptação da montagem do Deutsches Theater, Berlim, 2007 direção: Dimiter Gotscheff elenco: Dimiter Gotscheff, Gero Camilo, Paula Cohen e Samuel Finzi

Dias 8 e 9 de setembro de 2009 - terça e quarta, às 21h. Espaço SESC

produção



Meus amigos não me descreveriam como um expert - “um homem das artes”.   E eles estariam certos. Sou, e apenas, esta é a minha pretensão, um homem que reconhece um expert e o poder catalisador da arte.   Heiner Müller é um mestre em seu ofício e um catalisador na sua arte.   Ele foi mais do que um dos maiores dramaturgos da Alemanha.   Müller dispensa o conforto das verdades absolutas; muitas vezes, da sua própria verdade ideológica. Ele questiona, instiga, faz pensar.   O texto de sua peça “Hamlet-Máquina” traz dor e esperança.   A dor chega pelas impossibilidades que nós, os humanos, criamos e alimentamos com perseverança em nosso cotidiano.   A esperança aparece, quando percebemos que por momentos, em um dia e em algum lugar, aconteceu um ensaio para um mundo melhor.   Na linguagem própria de um homem comum, vivemos uma eterna alternância de erro e tentativa.   Por vezes, inspiração; por vezes, transpiração.   Um dia, certamente, os dois se encontrarão.

João Rosas Diretor Regional do Sesc Rio



Hamlet-Máquina   Como homem engajado politicamente, Heiner Müller foi um privilegiado. Ele viveu o suficiente para ver sua ideologia passar ao plano da ação e teve espaço, por certo tempo, para trabalhar em favor do sonho compartilhado de justiça e igualdade. Porém, também testemunhou esse ideal corromper-se nas mãos dos homens e virar pó diante de seus olhos.   O dramaturgo alemão, que completaria 80 anos em 2009, teve a sua obra e existência diretamente ligadas à República Democrática Alemã. Sua figura representava ao mesmo tempo um símbolo dessa utopia e um observador crítico de uma realidade que preferia distanciar-se do resto do mundo. Um perturbador em ambos os lados do muro.   Seus textos, de caráter político, captam a essência das relações sociais humanas e convocam cada espectador a um questionamento pessoal. Defensor de um teatro formalista, que refutava qualquer muleta cênica, Müller pressupõe seu público como co-construtor de cada obra: ela só se constitui de fato no relacionamento pessoal com a estrutura de discurso que propõe.   Como homenagem ao dramaturgo, o Goethe-Institut São Paulo realiza em parceria com o SESC Rio a peça “Hamlet-Máquina” em uma encenação de Dimiter Gotscheff do Deutsches Theater, Berlim.   Concebido em 1977, “Hamlet-Máquina” é um dos mais consagrados trabalhos da linha desenvolvida pelo dramaturgo que dialoga com textos fundamentais da história da cultura ocidental. Criando pontos de conexão com “Hamlet”, de Shakespeare, a peça convida a uma jornada crítica sobre a trajetória de nossa civilização. Nela, conflitos já evidenciados na grande obra do mestre inglês aparecem revistos pelo olhar contemporâneo – prova irrefutável de que a essência dos dilemas humanos não se perde com mudanças conjunturais. Entre eles, podemos destacar o questionamento sobre como se posicionar, enquanto ser pensante, frente à desintegração social e moral.   A obra, criada em tempos de arrefecimento político na Alemanha Oriental, mostra-se igualmente pertinente e ácida para o público hoje. Wolfgang Bader Diretor do Goethe-Institut São Paulo e Diretor Regional para América do Sul


heiner müller   Nascido em Eppendorf, Saxônia, em 1929, o dramaturgo, poeta e diretor de teatro, embora tenha papel na história do teatro como a continuação da modernidade idealizada por Baudelaire, Kant, Artaud e Brecht, teve sua marca e rebeldia particulares.   Estreou O Achatador de Salários, em Leipzig, em 1957 e trabalhou no Teatro Maxim Gorki em 1958-59. Em 1961, estreou A Repatriada, em Berlim, que foi em seguida proibida e o autor excluído da Associação dos Escritores.   Trabalhou no Berliner Ensemble e, a partir de 1976, no Volksbühne. Em 1990 foi eleito presidente da Academia das Artes em Berlim Oriental e a partir de 1992 assumiu a intendência do Berliner Ensemble. Recebeu o Prêmio Heinrich Mann em 1959 com Inge Müller, prêmio de Dramaturgia de Müllheim em 1979, prêmio Georg Büchner em 1985, Prêmio Nacional da República Democrática Alemã em 1986, Prêmio Kleist em 1990, Prêmio Europa de Dramaturgia em 1991.   Faleceu em 30 de dezembro de 1995.



carta ao diretor da estreia búlgara de Filoctetes no teatro dramático de sofia

Caro Mitko Gotscheff, sua encenação de “Filoctetes” no teatro Sofia me fez rever a peça. Evito dizer que a vi pela primeira vez, porque poderia ser entendido como gentileza pelos críticos, a quem falta a comparação. (...) Helene Weigel considerava “Filoctetes” impossível de ser encenada, tal como “A decisão” de Brecht. Para ela, faltava o acaso, o desnecessário, o “cascalho”. Não via, e talvez como atriz de Brecht não pudesse ver, que em peças desse estilo (condicionado por seu material, humanidade de transição na condenação das épocas) só o ator pode trazer o acaso ao jogo, seu corpo o cascalho em que o texto se inscreve e se perde no mesmo movimento, substituto para outros corpos, submetidos ao massacre das ideias, à palavra efetivamente mortal que Hölderlin escavou da tragédia sofocliana, para que nela pudesse estraçalhar sua testa, porque o presente não mais entendia a palavra como fato, o assassinato por palavras, o terror, que se instala, quando a prática se torna teórica, como a perseguição de Édipo depois da revelação do oráculo. Na linguagem corporal da sua apresentação no teatro Sofia, eu pude assistir à tradução do texto para o teatro, a transformação da fábula de estacionamento das contradições em prova final para os envolvidos, a resistência dos corpos contra a violação pela coerção objetiva das ideias, a PALAVRA QUE VIRA ASSASSINATO. Na prova final absoluta a que a coletividade humana é exposta (se a resistência andar em ponto morto e perder seu lugar entre os polos) no nosso talvez último século, a humanidade


só perdurará enquanto coletivo. O axioma comunista NINGUÉM OU TODOS experimenta seu sentido definitivo no possível suicídio do gênero em segundo plano. Mas o primeiro passo para a anulação do indivíduo nesse coletivo é o seu dilaceramento, morte ou cesariana a alternativa do NOVO HOMEM. O teatro simula o passo, a casa de veraneio e a câmara de horrores da transformação. Nesse sentido, FILOCTETES é, contra a interpretação em moda de desfecho conciso como drama da des-ilusão, o negativo de uma peça comunista. Filoctetes de Georgi Miladinow tem a ignorância orgulhosa (IGNORANTE E ORGULHOSO COMO A ÁGUIA) do herói trágico. Esperto é o uso versátil que faz de seu pé doente: ornamento, peso, despojo. Também identidade: no tempo que pertence à dor, o homem torna-se de rodapé, comentário berrador do membro doente. A ferida pode ser usada como arma porque o pé representa o rombo na rede, a lacuna no sistema, o vão livre entre animal e máquina, sempre ameaçado e que sempre precisa ser reconquistado, em que aparece a utopia de uma comunidade humana. O pássaro manco estranha o vôo. A tragédia acaba vazia. Seu passo rejeita o consolo, que é um adiamento. Ele transporta o nada, o possível começo. Existem raças e povos trágicos. Mathias Langhoff conta de uma festa num vilarejo no Iucatan: uma banda de rock; durante duas horas 2000 índios ouvem com rostos petrificados e sem mover um músculo a música de sirene de seus inimigos. Não precisam se deixar amarrar no mastro (além disso, também não haveria pessoal para prestar esse serviço) como Odisseu, o europeu, que em uma pessoa é o agente e o matador da tragédia. Desde Colombo eles comem a morte. A respeito de sua existência, a questão decisiva é de quem vai fincar os dentes em quem. A nova Roma chama-se EUA, Che Guevara é o cruzeiro do sul. Como Jasão, o primeiro colonizador, que é abatido na soleira do mito da história de sua embarcação, Odisseu é uma figura da transposição de fronteiras. Com ele, a história dos povos se abre para a política dos agentes, o destino perde seu rosto e torna-se a máscara da manipulação. Dante projetou o point of no return na parede incandescente de seu INFERNO, o fracasso de Odisseu na rebentação de Atlântida:


DA NOVA TERRA SOPRARAM VENTOS DE UM TURBILHÃO ... ATÉ QUE O MAR SE FECHOU SOBRE NÓS Com suas caretas, Dimiter Ganew faz um rasgo na figura, que é o estigma do trabalhador fronteiriço e as transporta da plástica para o papel. A fronteira passa o corpo que a atravessa: o rasgo é a passagem. Odisseu como o primeiro ator de seu destino é estrangeiro aqui como lá, seu nome ninguém, seu país o país de ninguém. Dos desertos que seus passos semeiam, erguem-se tempestades de areia contra ele próprio e perfuram o GREGO PLÁSTICO de Hegel. Ele será o primeiro a deixar sua pele e experimentar o choque da alienação. Ele irá apreciá-la. Só de vez em quando, a careta que é seu rosto ainda irá congelar como se quisesse se recolher no espaço fechado da plástica, protegida da imagem e da vista, durante a leitura do texto que brota do abismo atrás da cerca esburacada de seus dentes, desde que Homero destravou-lhe a língua, cego para as consequências. Neoptólemo permanece na plástica. Ele é do mesmo material de que são feitos os monumentos. O capítulo Filoctetes descreve seu primeiro passo na marcha rumo à petrificação, o primeiro movimento do escultor, que na escultura é a história e Odisseu o pragmático é a ferramenta. A lição, que a direção do comando de Lemnos disponibiliza aos seus recrutas: sangue cura feridas. Quando a plástica desanda, as fraturas são untadas com sangue. Sangue será sua segunda pele. Quando secar, o monumento ficará em pé. Ele incorpora, ao contrário do Filoctetes rasgado, a autoconsciência remendada que a experiência da violência transforma em agressão. Apoiado por seu traje, algo entre idade da pedra e final dos tempos, tanque jurássico e roupa de astronauta, seu corpo sacudido por câimbras da puberdade e dores de parto, como se quisesse anunciar o nascimento da morte, que será sua resposta à desordem não dominada da vida, Ivalio Grasow mostra o contorno trêmulo da figura heróica do guerreiro da atuação em HAMLET, que descreve a descida de Neoptólemo


(que se transformou em Pirro) para a fama de primeiro carniceiro antes de Tróia, um concerto a pedido para o intelectual, que não podem ver sangue, mas ainda assim querem embriagar-se dele: O rude Pirro, cuja armadura sombria Naquela noite parecia preta como o seu propósito, Oculto na barriga do seu cavalo grávido de desgraça Seu vulto assustador lambuzado de terríveis brasões: Agora horrível vermelho da cabeça aos pés Com sangue dos pais, mães, filhas, filhos Que seca sobre ele com a rua em brasa Que empresta uma luz tirânica medonha Ao assassinato do seu senhor. Quente da ira e do fogo Assim, vestido de sangue, os olhos Rubis, o infernal Pirro procura O velho Príamo – Encontra-o Lutando contra gregos, fraco: sua velha espada Rebelde deitada em seu braço, de onde cai Recusando o comando. Emparelhado desigualmente Pirro se lança sobre Príamo, arma o golpe. Mas já com o zunido do impulso de sua espada Tomba o ancião impaciente: a morta Ilium Como se sentisse o golpe, agora se dobra em chamas De sua altura até o pé E com um estrondo aterrador agarra A orelha de Pirro. Mas vejam, sua espada Que já baixava sobre a cabeça leitosa De Príamo, parecia parada no ar. Assim, a pintura de um horror, Pirro ali estático E como que imparcial entre a força e o desejo Não fazia nada. Mas, como se vê com frequência, antes da tempestade Um silêncio no céu, as nuvens paradas


Os ventos sem fala e a terra embaixo Abafada como a morte até o violento trovão Rasgar o ar. Assim, depois da calmaria A vingança de Pirro retoma o trabalho; E nunca os martelos dos ciclopes acertaram A armadura de Marte, forjada para a eternidade, Com maior insensibilidade que a espada sangrenta de Pirro que agora cai sobre Príamo. Vergonha sobre ti, puta, Fortuna! Vós, todos os deuses Em grande conselho, expulsai-a do poder Arrebetai todos os raios e aros de sua roda Fazei com que despenque céu abaixo Até o inferno. Mas quem, oh dor Viu a rainha mumificada – Vagando aos prantos descalça Ameaçando as chamas, na cabeça, onde Estava o diadema, um pano de chão e como manto Ao redor de suas magras juntas, exausta da dor, Um lençol, apanhado no alarme do medo: Quem visse teria gritado traição Mergulhado a língua no veneno, contra Fortuna. Mas se os próprios deuses tivessem visto Quando ela viu Pirro praticando seu jogo Retalhando o corpo de seu marido com a espada: A primeira explosão de seu grito teria (se o mortal não a tivesse deixado totalmente imóvel) Feito os olhos ardentes do céu chorarem E os deuses sentirem compaixão. Não antes da última batalha os monumentos sangrarão. Em nenhuma outra encenação que conheci o problema da estrutura do texto havia sido solucionado: a virada da tragédia para a farsa ou sátira


trágica, como Schiller a chamou, remete ao pensamento de Odisseu, o da insubstituibilidade de Filoctetes vivo para a utilização dele morto, fazendo com que uma nova espécie suba ao palco, o animal político. Se Odisseu, depois do funeral nacional improvisado para a super-arma, uma bomba não deflagrada que tinha de ser desarmada, busca sua caixa de truques dos bastidores e tira dela o duplo, a boneca desmontável, que irá substituir o herói (não desmontável), ele revela o futuro que viabiliza tecnicamente a descartabilidade do singular. A questão, se a caixa de truques tira do “acontecimento” a aparência de eleição,de que a política tanto necessita assim como o disfarce do acaso é obrigatório para o destino antigo, é a questão do lugar do teatro no espaço de tempo entre material (Stoff) e representação (Darstellung). A encenação o defende contra o canibalismo da intuição, contra o terror do conceito, a morte da experiência. O projeto cênico de Svetlana Zwetkowa bane o público para o palco, o lugar do exílio, entre a rebentação da plateia vazia e a maquinaria do teatro, elevadores, pontes, disco giratório, de uso reservado aos atores, não representa mais nenhum papel, destroços do naufrágio da própria história, que o texto arranca do mar congelado de sua memória. Com o niilismo como ponto de fuga da política capitalista cristã, é a hora do ator. A advertência para o outro lado faz do real o motivo, do mundo o pretexto. O teatro só poderá reencontrar sua memória do real se esquecer de seu público. A contribuição do ator para a emancipação do público é emancipar-se do público. A consequência dramatúrgica da solução cênica é o deslocamento do prólogo para o centro da peça, o espaço livre do espectador, livre para pensar em outra evolução pelo olhar do antagonista para o acaso de sua rivalidade, contra o hábito da personalização do dilema, que repousa no equívoco do individualismo. O prólogo questiona o circo: o espírito da comédia denuncia a astúcia da razão como disparate. O centro da peça é o olho silencioso do furacão, cuja dilatação e velocidade são marcadas pelas duas voltas do disco giratório. O disco gira lentamente para o delírio do jovem Fã em seu laudatório cego ao suicídio de Ajax, cego para a queda do herói do equilíbrio de sua ilusão heróica sobre o empreendimento HELENA. (A loucura do grego ofendido, que ataca o gado, com cuja carne os inimigos multiplicam sua força de luta,


porque os confunde com seus patrícios, como o verdadeiro gado de corte, é o que mostra até mesmo o tosco esboço de uma visão muito mais tardia, previsão cega para o olhar sombrio de Eurípedes nas garagens profundas da história, aberto por sua tragicomédia da egípcia Helena: após a destruição de Tróia, a navio de Menelau recém-zarpado, a reconquistada Helena se dissolve em ar fogoso. Na parada no Egito a verdadeira Helena sai viva de um templo em que passou o período da guerra troiana e depara-se com os vencedores desnorteados. O motivo da guerra foi um fantasma, uma piada devassa dos deuses maldosos.) O noviço encarnou no herói, o modelo, e dança com o morto, uma figura erótica da iniciação. Os mortos se reproduzem segundo modelos, a energia púbere banqueteia a máquina de guerra, o jovem marcha grávido para a batalha, a morte como embrião debaixo do coração. Recordo-me de um retalho lírico de um autor que não vale ser lembrado, que coloca o procedimento num denominador fascista: QUANDO O HERÓI SE LEVANTA/ NA ALMA DO RAPAZ/ DE OLHOS ARREGALADOS E MUDO/ ASSEGURA A ETERNA TRANSMISSÃO... A eternidade da transmissão entende-se como sonho imperialista da continuidade do genocídio. A imagem que fica da ocupação do sujeito como pressuposto de colonização é fornecida pela versão de Goethe: VOCÊ GENTIL MENINO QUER VIR COMIGO... A segunda (rápida) volta do disco giratório é reservada ao paroxismo da vingança. Filoctetes banido, reduzido à sua existência animal por sua decisão política, ensaia seu retorno ao seio da humanidade, ao fazer o funcionário do seu exílio ficar de quatro. Neoptólemo, que tira de circulação quem não mais se integra à forma de intercurso vigente, vai ao ponto da questão e para o disco, sendo seu raio de ação o mais amplo, porque seu horizonte é estreito. A afirmação da realidade do teatro no contato com os requisitos faz parte do realismo da apresentação. Outra realidade, como por exemplo, a do público ou da história, não é simulada. A vitrine de vidro para o arco corresponde à caixa para o duplo. Empregado uma só vez como arma para matar Filoctetes e, para estender a imagem da guerra até o presente da peça, como paródia ao automático. A exposição do arco como peça de museu ou relíquia anuncia a assustadora visão de Odisseu, de que o valor de uso do funcionário morto não fica atrás do vivo, possivelmente o ultrapassa,


enquanto o exército for propriedade e função do comandante. A primeira escavação: nascimento do pensamento arqueológico. (A consequência da arqueologia e o produto final provisório do humanismo como a emancipação do homem do contexto natural é a bomba de nêutrons). A posse estatal do morto mostra a medida romana de Sófocles que trabalha com a visão da guerra troiana como desvio sangrento da história para a fundação de Roma, que a Era da Grécia quer encerrar. Os paralelos modernos: o ataque de Hitler à União Soviética e seu resultado oposto, a abertura do mundo capitalista ao terceiro mundo enfraquecido pela onda de pressão EM NOME DA ACRÓPOLE, desencadeada pela revolução de outubro. A continuação da política colonialista em forma de apoio ao desenvolvimento reúne o potencial para a queda do sistema. A espiral da história arruína os centros ao triturar suas periferias. Nesse compasso que se subtrai da visão de uma geração que dita o sentido, repousa a dúvida a respeito do progresso. É existencial enquanto a humanidade não desenvolver uma nova consciência de espécie, que é o pressuposto da possibilidade de uma história universal. Sua perda foi o preço a ser pago para sair do mundo animal. O caminho de volta ao romantismo dos índios, a tentativa moderna de desviar o curso da espiral numa órbita, aponta para a destruição do planeta. Enquanto escrevo esta carta, olho um quadro renascentista: dois cavalos encilhados, sozinhos num amplo espaço emoldurado por arquitetura romana. Batem com os cascos no piso de pedra, que não devolve nada além de poeira invisível aos olhos humanos, roçam seus pescoços um no outro e esperam por seus cavaleiros, que talvez estejam sendo assassinados ou talvez um esteja matando o outro nos pátios internos. Quando acabarem as discotecas e as academias ficarem desertas, o silêncio do teatro, a razão de sua fala, será ouvido novamente. Heiner Müller Tradução: Christine Röhrig


Primeiro o corpo, depois a palavra o trabalho do viajante de mundos Dimiter Gotscheff

Certamente em nenhuma outra biografia teatral se espelha mais nitidamente, a construção e a queda do muro de Berlim e, a divisão da Alemanha, da Europa e do mundo em tempos de guerra-fria, como na vida do diretor Dimiter Gotsheff.   Um viajante entre mundos, entre culturas, entre Oriente e Ocidente. Um teatro onde a impressão de estranheza é onipresente, como as antigas inscrições na pedra.   Foi em Sofia, a capital da Bulgária que cresceu Dimiter Gotscheff, nascido na cidadezinha de Perwomai do sul do país.   No início dos anos 1960, pouco antes da construção do muro, mudou-se para Berlim e ali foi iniciado no teatro pelo suíço Benno Besson, aluno de Brecht. Encontrou mais tarde o diretor e professor Fritz Marquardt, um solitário radical do teatro da RDA: “de alguma maneira, Besson estava sempre pairando, tudo parecia tão fácil – com Marquardt aprendi a conhecer o corpo e o que ele significa para o teatro.”   Por fim, o encontro com o dramaturgo Heiner Müller foi fundamental para o pensamento de Gotscheff e para o seu entendimento de teatro.   Conheceu Müller no início dos anos 1970; “seus textos atingem diretamente as minhas entranhas” e foi em 1983, depois de ter retornado à Bulgária e ter começado a trabalhar como diretor de teatro a sua encenação do texto “Filoctetes” em Sofia, que chamou a atenção de Heiner Müller que lhe enviou uma carta que acabou ficando famosa: “Carta ao diretor da estréia búlgara de “Filoctetes” no Teatro Dramático de Sofia”.   Após este fato onde ele ficou conhecido no mundo teatral, os órgãos públicos búlgaros também começaram a prestar atenção em Gotscheff e ele quase foi proibido de trabalhar. Por isso retornou a Alemanha – dessa vez para a parte ocidental, e ao chegar lá, o muro caiu.   Gotscheff foi convidado e trabalhou em teatros de muitas cidades alemãs


– e em toda parte, seu tom de teatro, seu ruído, seu estilo continuaram e permaneceram sempre estranhos: formal e emocional, duro e ao mesmo tempo excessivo, arcaico e selvagem, dramaticamente sombrio e furioso.   Só na virada do milênio, Dimiter Gotscheff ousou retornar a Berlim, à cidade e aos teatros das primeiras experiências, lá onde Heiner Müller, falecido em 1995, estava presente em forma de espectro. “Cresci no Volksbühne e numa utopia; por isso, Berlim era um lugar sagrado – e ao mesmo tempo, um trauma.”   A reaproximação custou tempo e desvios. Em Berlim, Gotscheff trabalhou paralelamente no Deutsches Theater e no Volksbühne; os dois teatros da sua primeira época com Besson. As imagens de seu teatro são fortes e radicais; imagens que desde o primeiro instante, fazem o espectador perceber, ou intuir que a noite no teatro não será como de costume.   Força? Sim. Método, estilo? Não. “Eu não tenho método e não me orgulho disso... Em mim tudo vem do estômago... Nos ensaios nós gritamos e nos calamos; nos aproximamos dos textos com ruídos – e o encontramos no corpo... primeiro o corpo, depois a palavra. Até hoje, como diretor eu não sei o que fazer com os livros de direção ou com os modelos – para mim o que importa é o processo... é um tipo de preguiça... algo sombriamente balcânico” e portanto, profundamente búlgaro.   “Sua” Bulgária, “sua” Sofia, sua “pátria” já não existe mais. Logo após a queda do muro mais de um milhão de búlgaros fugiram para o Ocidente atrás do dinheiro e de emprego. Hoje porém, a classe média e o turbo capitalismo também lá estão. “Não existem mais valores, e eu também não sei lidar com isso, com toda a gordura que acumulei na Alemanha”.   Porém, enquanto isso, o futuro da civilização está sendo decidido em algum outro lugar: quem sabe nos campos de refugiados africanos ou nas margens e periferias das metrópoles, nas estepes, desertos e sertões – paisagens tão escassas e silenciosas como, às vezes, as encenações do diretor Gotscheff, e talvez por essa razão ele tenha desejado muito trabalhar no Brasil, e com brasileiros. Michael Laages crítico de teatro / Berlim





Gotscheff desencanta a “Hamletmaschine”   A encenação surpreende. O texto mostra-se possível de ser encenado e Heiner Müller deixa de habitar um monumento. O texto “Hamletmaschine” é dividido em cinco blocos. Costuma ser citado como exemplo prático da dramaturgia radical. Nos círculos teatrais, equivale a um oráculo: todos o conhecem, ninguém o entende e todos têm uma opinião formada a respeito dele.   Vindo à tona em 1977, suas poucas páginas tecem uma densa rede de metáforas e citações. Um pequeno trecho de literatura com muito mistério.(...) Müller, o lançador de enigmas em sussurros: muito admirado, bastante interpretado, mas raramente encenado. Solitário nos últimos anos, “Müller” estava sentado no alto do seu pedestal, erigido para ele por ingênuos e incontáveis discípulos.   Há dezessete anos, o próprio Müller montou “Hamletmaschine” – juntamente com “Hamlet” de Shakespeare - numa encenação famosa do Deutsches Theater de Berlim. E sem querer acabou colaborando para a aura de inacessibilidade do seu texto. E agora, nesta encenação, sobre o palco pobre e vazio de Mark Lammert, Dimiter Gotscheff arranca “Hamletmaschine” da insípida admiração (ou desprezo).   (...) Gotscheff respira Müller. É um conhecedor, não um adorador: sua encenação de “Hamletmaschine” é também libertação, pois é o próprio Gotscheff quem está no palco fazendo de sua conexão com Müller o tema.   (...) “Eu era Hamlet”, os cabelos grisalhos esfiapados, o rosto enrugado, os olhos de espanto: o texto está preso a cada filamento do corpo de Gotscheff. Este homem é o que ele representa, portanto não representa, mas se transforma no texto.   (...) Müller desmascarou o registro da velha e sempre renovada injustiça, e a encenação de Gotscheff dá livre vazão à força da ira e da palavra.   O tempo de duração, pesados, cria fissuras no padrão da interpretação, roubando a excessiva clareza da noite. Uma mulher debaixo de um microfone repete, ofegante, induzida e com pressa o texto dos homens. Uma mulher na forca. Uma mulher fugindo dos intérpretes de sua história: as fantasias masculinas de libertação e redenção de um Müller e também de um Gotscheff. O que para os homens é revolução, para ela continua sendo paternalismo. Ao final ela catapulta um grito estridente de dor para o escuro da platéia. Com isso, o ponto final dessa noite é o ponto de interrogação. Excertos da crítica de Dirk Pilz, publicada no jornal Berliner Zeitung por ocasião da estréia no Deutsches Theater em 10 de setembro de 2007.



SESC rio de janeiro presidente do sistema fecomércio orlando diniz diretor regional joão rosas gerente espaço sesc beatriz radunsky

Goethe-institut Rio de janeiro Diretor do Instituto Goethe Rio de Janeiro Alfons Hug Assistente de Programação Cultural Sandra Lyra


Hamlet Máquina de Heiner Müller | Tradução: Christine Röhrig / Marcos Renaux | Direção: Dimiter Gotscheff | Elenco: Dimiter Gotscheff, Paula Cohen e Gero Camilo | Assistente de Direção: Annette Ramershoven | Iluminação: Alessandra Domingues | Som: Felipe Pires Ribeiro | Produção artística: Matthias Pees e Ricardo Muniz Fernandes | Produtora executiva: Jussara Rahal | Direção técnica: Julio Cesarini | Cenotecnico: Wanderley Wagner da Silva | Design Gráfico - Programa: Érico Peretta | fotos: Galeria Experiência | tradução de textos: Christine Röhrig Uma adaptação da montagem do Deutsches Theater, Berlim, 2007 | Cenário e Figurino: Mark Lammert | Música: Bert Wrede | Dramaturgia: Bettina Schültke | Iluminação: Henning Streck


“Abaixo a alegria da submissão. Viva o ódio, o desprezo, a revolta, a morte.” Heiner Müller


Rua Domingos Ferreira, 160 - Copacabana Tel. 2547-0156 www.sescrio.org.br


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