tentativas Ueinzz (...) uma tentativa – não é um projeto, não é uma instituição, não é um programa, não é uma doutrina, não é uma utopia – mas uma tentativa, diz ele, frágil e persistente como um cogumelo no reino vegetal... Uma tentativa esquiva as ideologias, os imperativos morais, as normas. Uma tentativa só sobrevive se não se fixar um objetivo, mesmo quando inevitavelmente é chamada a realizá-lo(...) Fernand Deligny
Sempre em Processo Ueinzz Uma História O projeto teatral Ueinzz nasceu em 1997, no Hospital-Dia “A Casa”, quando os diretores Sérgio Penna e Renato Cohen foram convidados pela instituição para coordenarem uma atividade de teatro para aproximadamente vinte pacientes psiquiátricos, no âmbito das atividades expressivas tradicionalmente realizadas na quarta-feira, sob a coordenação geral de Peter Pál Pelbart, na época terapeuta do Hospital-Dia, e a equipe de coordenadores, Paula Patrícia Francisquetti, Ana Carmen Del Collado, Eduardo Lettiere e Erika Inforsato, entre outros. A idéia inicial proposta por um dos pacientes era fazer teatro “de verdade”, e não teatro “de louco para loucos”. Assim, os diretores empreenderam a montagem de uma peça a ser apresentada fora do Hospital-Dia, e que a partir do universo singular dos atores, fizesse valer cenicamente seu repertório mítico, imaginário, gestual, sonoro, vivencial.
O percurso da companhia, pode ser traçado a partir de relatos provenientes de fontes diversas como: lembranças, fragmentos de textos publicados e não publicados registros vários, roteiros, reflexões, filmes, imagens quaisquer teorizações, Um grupo constituído, em continuo processo de invenção, um coletivo sempre em processo de trabalho e criação.
o nome e sua origem Num dos primeiros ensaios, os diretores propuseram um exercício clássico sobre os diferentes modos de comunicação disponíveis entre seres vivos – alguns se comunicam com gestos, outros com caretas, com sons, os humanos usam a linguagem.. Perguntaram que língua cada um fala, e um paciente que costumava apenas soltar gemidos indistintos respondeu imediatamente e com grande clareza e segurança, de todo incomuns nele - alemão! Surpresa geral, ninguém sabia que ele falava alemão. -E que palavra você sabe em alemão? -Ueinzz.. -E o que significa Ueinzz em alemão? -Ueinzz.. Todos riem...
Eis a língua que significa a si mesma, A língua que se enrola sobre si, língua esotérica, misteriosa, glossolálica.
Passadas algumas semanas, inspirados no material coletado nos laboratórios, os diretores trazem ao grupo sua proposta de roteiro: uma trupe nômade, perdida no Caos do deserto, sai em busca de uma torre luminosa (Babelina), e no caminho cruza obstáculos, entidades, tempestades. Em meio à andança, também se depara com um oráculo, que em sua língua sibilina indica o rumo que convém aos andarilhos. O ator para a personagem do oráculo é prontamente designado: é este que fala alemão. Ao lhe perguntarem onde fica a torre Babelina, ele deve responder: Ueinzz. O paciente entra com rapidez no papel, tudo combina, o cabelo e bigode bem pretos, o corpo maciço e pequeno de um Buda turco, seu jeito esquivo e esquizo, o olhar vago e perscrutador, de quem está em constante conversação com o invisível. É verdade que ele é caprichoso, quando lhe perguntam: Grande oráculo de Delfos, onde fica a torre Babelina?, às vezes ele responde com um silêncio, outras com um grunhido, outras ele diz Alemanha, ou Baurú, até que lhe perguntam mais especificamente, Grande oráculo, qual é a palavra mágica em alemão? e aí vem, infalível, o Ueinzz que todos esperam. De qualquer modo, o mais inaudível dos pacientes, caberá a ele a incumbência crucial de indicar ao povo nômade a saída das Trevas e do Caos. Depois de proferida, sua palavra mágica deve proliferar pelos alto-falantes espalhados pelo teatro, girando em círculos concêntricos e amplificando-se em ecos vertiginosos, Ueinzz, Ueinzz, Ueinzz.
A voz ordinária que no Hospital se desprezava porque sequer era ouvida, encontrava aí, no espaço do teatro, uma reverberação extraordinária, uma eficácia mágico-poética. O primeiro espetáculo chamou-se Ueinzz – (niguém sabia como escrever)
algum tempo depois a trupe foi batizada, e continua até os dias de hoje:
Cia de Teatro
Ueinzz ...
Nessa obra coletiva todo disparate ganhava um lugar, mesmo e sobretudo quando representasse uma ruptura de sentido. Uma singularidade a-significante, tal como Ueinzz, pode tornar-se foco de subjetivação, faísca autopoiética – eis um cristal de singularidade que passa a ser portador de uma produtividade existencial inteiramente imprevista, mas compartilhável.
É uma produção, de obra, de subjetividade, de inconsciente, de rupturas e remanejamentos na trajetória de uma existência, seja ela individual ou coletiva.
Ueinzz,
A primeira peça:
viagem a Babel O primeiro processo, detalhes e resultado No primeiro ensaio, os diretores de teatro se apresentam. Renato Cohen se põe no centro, e mostra como se pode, com pouquíssimos elementos, criar uma personagem. Traz na mão um enorme chapéu preto de borracha, longuíssimo, achatado, modelado pelos cubofuturistas russos, e o põe na cabeça. Subitamente seu corpo se avoluma e se adensa, e ele ganha uma aura incomum, como se fora um mago ou um gigante. Pega um bastão de madeira e cruza o ar chispando, em seguida traça com um giz um círculo no chão. Convida alguém para uma luta e anuncia que aquele espaço do círculo é imantado, quem estiver dentro estará protegido, quem ficar de fora perderá força. Com esse pequeno gesto se inaugura para todos o espaço sagrado do teatro, onde cada um pode virar ator, onde cada gesto, som ou postura ganham densidade e leveza, a fragilidade é esplendor, mesmo a brutalidade adquire graça e ritmo. Um dos “pacientes” se dispõe a vestir o chapéu do mago e começa a recitar um texto meio profético ou religioso, com o bastão em mãos, que agora já virou um cajado, e em poucos segundos assistimos à sua transfiguração incorporal: seu corpo meio largado ganha a desenvoltura do profeta andarilho, sua voz discursiva sustenta o anúncio dos tempos vindouros, sua recitação político-sociológica e místico-delirante ganha aí uma função ritual, uma legitimidade cênica, um compartilhamento ritual. O delírio deserta o campo psiquiátrico para reencontrar sua função mais ancestral, divina ou divinatória. Eis nesse primeiro encontro o embrião do Profeta Zanguezzi, “o homem que atravessa os tempos”, e que na peça conduzirá a trupe pelo deserto.
Ueinzz , Viagem a Babel Viagem a Babel Cena Y
Profeta Zanguezzi (Condução da Trupe pelo deserto, um texto de Khlébnikov)
-“Para aqueles que estão vivos... e ainda não morreram Acordem para a contemplação... A contemplação irá levá-los A contemplação é um forte guia.”
No segundo encontro resolvemos ensaiar numa outra casa recém alugada pelo Hospital-Dia, e fazemos o trajeto de duas quadras com os apetrechos trazidos pelos diretores, o chapéu cubofuturista, o cajado e uma lamparina antiga, com uma vela no meio. Sugere-se ir com a vela acesa, atravessar a rua como se atravessa um rio perigoso; o cajado terá o poder de cortar a água do rio, e cada um salta à sua maneira o tal do rio invisível. Em poucos minutos está configurada uma trupe de andarilhos numa travessia imemorial de um deserto ou de um Mar Vermelho – ou será uma procissão medieval guiada por uma luz de vela? –, em pleno bairro da Aclimação e à luz do dia, para assombro da vizinhança. E este que conduz na rua a lamparina com um prazer indisfarçável é já o Homem da Luz, que com seu manto amarelo iluminará na peça o caminho do Profeta Zanguezzi, abrindo uma passagem de luz para ele e a trupe em meio às trevas. É claro que o Homem da Luz e o Profeta nunca se entenderam perfeitamente sobre qual deles conduz de fato a trupe, um acha que são suas palavras que guiam, o outro que é sua lamparina que abre passagem. Bem ou mal, é com ambos que saímos do primevo Caos do Universo.
Ueinzz , Viagem a Babel Abertura Cena 1
Narradora 1 (texto de Paulo Leminski) “Caos massa rude e indigesta apenas peso inerte desconjuntada semente da discórdia das coisas terra, mar e ar ciciam confundidos”.
Narrador 2 (voz inspirada, texto de Hesíodo) _“Sim primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros o mais belo entre deuses e mortais... Nove noites e dias uma bigorna de bronze cai do céu e só no décimo atinge a terra e, caindo da terra o Tártaro nevoento. E nove noites e dias uma bigorna de bronze cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro.” (na palavra Tártaro, o narrador deve ser enfático)
Com sua voz já normalmente trêmula e grave, a boca desdentada, e é preciso imaginar como ressoa para ele o tártaro dos dentes e o Tártaro de Hesíodo, a odontologia e a ontologia, o Caos da boca e o Caos do mundo, neste paciente que a cada manhã chega dizendo que está morto e para quem cada dia é uma longa travessia, uma saída do Tártaro e do Caos rumo a uma Torre luminosa, antes que a noite volte a derramar sobre o mundo seu manto de horror e escuridão. Num dos exercícios mais divertidos propostos pelos diretores, cada um deve encher o pulmão e atravessar a sala correndo, de braços abertos e com a respiração presa, para no final soltar o ar dizendo uma palavra de sua escolha. Um faz isso meio saltitante, o outro encurvado, o terceiro flutuando, este vem como uma besta fera, aquele no seu passo de gigante à beira do colapso e com uma voz cavernosa e radiofônica que parece sair de um alto falante embutido a três metros de distância do corpo, e todos no final se largam nos braços de um dos diretores que os espera na ponta da sala.. E esse gigante, uma vez chegado a seu destino, tendo feito estremecer as paredes da casa e quase ter aplastado o diretor todo baixinho, fica ali a seu lado, incentivando os que vêm, gritando “Solta o fôlego!” Quando a trupe saída do Caos está toda caída no deserto, depois de uma tempestade de areia fulminante, caberá a ele vir, com seu andar desconjuntado, como um treinador de heróis, gritando em meio aos corpos deitados para ressuscitálos: “Eu sou Gul, o grande treinador de heróis. Para quem quiser entrar no meu campo de batalha, precisa gritar. Solte o folêgo e grite uma palavra qualquer!”
Na primeira apresentação pública, Gul, antes desta cena, por acaso sobrou no alto de uma escadaria, longe do palco. Para chegar até a trupe teve que descer a escada, com seu passo trêmulo e extrema dificuldade de locomoção, ao que se acrescem os óculos muito espessos, no meio da escuridão e da música tensa. Ninguém podia garantir que não se esborracharia no caminho, ou que simplesmente suspendesse bruscamente sua cena, ou gritasse pedindo ajuda. “O espectador nunca tem certeza que um gesto ou uma fala terão um desfecho, se serão ou não interrompidos por alguma contingência qualquer, e cada minuto acaba sendo vivido como um milagre. É por um triz que tudo acontece, mas esse por um triz não é ocultado – ele subjaz a cada gesto e o faz vibrar. Não é só que a segurança do mundo se vê abalada, mas esse abalo introduz no mundo (ou apenas lhe desvela) seu coeficiente de indeterminação, de jogo e de acaso.” depoimento de um espectador
Um misto de precariedade e milagre, de desfalecimento e fulgor, que outra coisa busca o teatro, afinal? Aquela moça que recebeu o papel de Serafina que era fina fina fina e que morreu de amores por Serafim, ela passa a peça no alto, em meio ao público, num quarto todo cheio de rendas brancas, e quando chega sua vez desce devagarzinho a escadaria e parece feita de pluma, o passo hesitante, e seu corpo diz o inefável, essa fronteira entre a vida e a morte, e ninguém entende por que todos choram tanto nessa cena, já que nada ali aconteceu, a não ser a presença delicadíssima feita de um fiapo de vida. Um dos atores mais politizados, contestador, provocativo, que sempre coloca em xeque as decisões alheias, que o tempo todo tenta dar ordens e com freqüência encarna um vereador, ou um general autoritário, ou um guerrilheiro revolucionário, ou mesmo um pensador, e nessa peça o papel de um Imperador anarquista, inspirado em Heliogábalo, de Artaud.
Ueinzz , Viagem a Babel Cena X Narrador ( entrada do Imperador anarquista) - “Um estranho ritmo manifesta-se na crueldade do anarquista coroado, este iniciado, faz tudo com capricho e em duplicata. Nos dois planos quero dizer. Cada gesto seu tem dois gumes. Ordem, desordem anarquia/poesia, dissonân cia/ritmo, discordância/generosidade, crueldade”. Imperador ( entrando) - “Eu sou o Imperador anarquista, fruto da psicanálise e amaldiçoado pela psiquiatria, vocês são meus brinquedos...” Atenção: O Imperador reescreveu seu texto original inúmeras vezes (é um ator-autor), mudando-o a cada ensaio. Povo (Peter Pál Pelbart) ( gritando ) - “Corrupto”, “Canalha”, “Energúmeno”, O Imperador manda prendê-lo, e seguem-se suas queixas de ser sem-terra, sem-teto e sem-teta, até que o Imperador lhe entrega um saquinho de terra, uma telha de verdade e um rádio para ouvir a voz do presidente. Em seguida o Imperador arremessa um frango de plástico sobre a platéia, e dentaduras “feitas no Congresso”, em irônica homenagem ao Plano Real. Após a performance, alguns espectadores comentavam na saída que aquele paciente barbudo (Peter Pál Pelbart) que gritava energúmeno até que era um ator razoável, mas o Terapeuta Imperador foi a estrela da noite
Considerações Esta primeira apresentação, feita no Tucarena se deu na confluência de dois grandes vetores que atravessam nossa cultura. O primeiro é o do teatro, com seu cortejo de magia e assombro, esse espaço ritual e sagrado, campo privilegiado de experimentação estética. O segundo vetor é o da vida quando ela experimenta seus limites, quando ela tangencia estados alterados, quando é sacudida por tremores fortes demais, por rupturas devastadoras, intensidades que transbordam toda forma ou representação, acontecimentos que extrapolam as palavras e os códigos disponíveis, ou o repertório gestual comum, mobilizando linguagens que põem em xeque a língua hegemônica, que reinventam uma vidência e uma audição. É a vida quando ela está às voltas com o irrepresentável, ou com o inominável, ou com o indizível, ou com o invisível, ou com o inaudível, ou com o impalpável – com o invivível. Há nisso que chamam de loucura uma carga de sofrimento e dor, sem dúvida, mas também um embate vital e visceral, em que entram em jogo as questões mais primevas da vida e da morte, da razão e da desrazão, do corpo e das paixões, da identidade e da diferença, da voz e do silêncio, do poder e da existência. Ora, a arte sempre veio beber nessa fonte desarrazoada, desde os gregos, e sobretudo a arte contemporânea, que está às voltas com o desafio de representar o irrepresentável, de fazer ouvir o inaudível, de dar a ver o invisível, de dizer o indizível e o invivível, de enfrentar-se ao intolerável, de dar expressão ao informe ou ao caótico.
Kant distinguiu o belo e o sublime justamente pelo caráter do objeto que nos impressiona, respectivamente finito ou infinito, acabado ou inacabado, mensurável ou incomensurável. Lyotard sugeriu que a arte contemporânea teria tomado essa trilha do sublime kantiano. Por exemplo na pintura contemporânea, que presentifica o excesso do impresentificável utilizando o informe como indício desse mesmo impresentificável. De alguma maneira o desafio que atravessa o projeto estético contemporâneo também revolve o espetáculo Ueinzz, nos diversos signos de inacabamento que nele evocam um impresentificável, seja ele de dor, turbilhão ou colapso, mas também de iminência, suspensão e intensidade. Em contrapartida, é preciso dizer o quão valiosa é a ritualização inclusiva dessas lógicas singulares, dos ritmos emergentes e insurgentes, dos universos insólitos, das rupturas de comunicacão, o quanto a ritualização e coreografização disso tudo pode dar visibilidade ao mais impalpável e legitimidade àquilo que o senso comum social despreza, teme ou abomina, e assim inverte-se o jogo das exclusões sociais e sua crueldade. Se o teatro vem buscar na loucura a força do irrepresentável, é muito grande o que ele pode oferecer em troca, ao dar recursos para que isso que se considera como puro caos ganhe figuração, permitindo que a expressão dessas rupturas de sentido não soçobre no vazio. Nesse teatro acontece de cada um poder reconhecer-se como ator e autor de si mesmo, diferentemente daquilo que o teatro do mundo reserva à loucura, ao enclausurá-la na sua nadificação. Nesse teatro cada subjetividade pode continuar tecendo-se a si mesma, com a matéria prima precária que lhe pertence, e retrabalhá-la. Subjetividades em obra em meio a uma obra coletiva, no teatro concebido como um canteiro de obras a céu aberto. Nessa obra coletiva todo disparate ganha um lugar, mesmo ou sobretudo quando representa uma ruptura de sentido. É o caso da palavra Ueinzz, sentido a ser descoberto, proliferado, multiplicado, segundo as várias apropriações a que se presta, mas que também pode tornar-se um ponto de apoio, um chão, um foco de subjetivação para aquele sujeito que o enuncia ou o coletivo que o acompanha. Nisso há uma estética, há uma clínica e há uma ética que poderia ser resumida em pouquíssimas palavras como sendo a de uma certa relação com a diferença. Não se trata de um respeito sacrossanto pelo exótico, nem de uma idealização estetizante do sofrimento, muito menos de uma mera constatação que isola cada um na sua diferença dada e ali o enclausura, fazendo dela uma identidade excêntrica. Trata-se, ao contrário, de um certo jogo vital com os processos cuja regra básica é que cada cristal de singularidade, por exemplo um Ueinzz, possa ser portador de uma produtividade existencial inteiramente imprevista, mas compartilhável. É que se trata, como diria Artaud, de roubar à idéia de existir o fato de viver, extraindo da mera existência a vida, ali onde ela esmorece enclausurada.
Autoinvenção Um belíssimo estudo de Richard Sennett mostrou a que ponto a moderna sociedade industrial esvaziou a dimensão teatral do espaço público, desqualificando as máscaras produzidas na cena social e remetendo cada qual para sua suposta interioridade original, seu eu. Todo o jogo teatral em larga escala foi substituído pelo predomínio de um espaço interior esvaziado, a tirania da intimidade oca, que já não pode alimentar-se de nada pois é referida a si mesma, no máximo ao seu círculo doméstico ou familiar. Sennett mostra precisamente que o eu de hoje só está assim esvaziado porque o espaço público que o nutria, e o teatro que lhe era coextensivo, foram desqualificados e esvaziados. Ora, essa observação ressoa inteiramente com os textos de Nietzsche, e toda sua valorização da máscara, e da vida como produtora de máscara, e da consciência que tinham disso os gregos. Uma máscara não esconde um rosto original, mas outra máscara, e assim sucessivamente, de modo que o rosto próprio não passa da metamorfose e criação incessante de máscaras. Não se trata de retirar a máscara para encontrar a verdade oculta, ou a identidade velada, mas compreender a que ponto a própria verdade ou mesmo a identidade é uma entre as várias máscaras de que a vida precisa e que ela produz. Se a matriz estética substitui para Nietzsche a matriz científica, é porque se trata de produzir o ainda não nascido, não mais de descobrir o já existente. Questão de autoinvenção, não de autorevelação, de criação de si, não de descoberta de si. É o que se vê na construção das personagens, que se têm ressonância com traços próprios às pessoas que os encarnam (com efeito, cada personagem foi construída a partir dos atores, e com que justeza e cuidado os diretores foram alfaiates da alma, cerzindo personagens sob medida! – a ponto de ser praticamente impossível “passar” o papel de um para um outro, já que os papéis não são universais vazios intercambiáveis), ao mesmo tempo, ao invés de intensificar psicologicamente os traços de cada um, nos seus draminhas íntimos, iluminando a suposta verdade psíquica interior do sujeito, o que rapidamente descambaria para um psicodrama de qualidade duvidosa, ao invés disso o teatro faz esses traços conectarem-se com personagens da história, do mito ou da literatura (o Profeta, o Homem da luz, o Treinador de heróis, a Rainha, mas também a Esfinge, o Imperador anarquista, a Torre Babelina), com elementos cósmicos ou outros (o Caos, a Tempestade, as Trevas, a Luz, a palavra oracular). Nessa conexão tais traços singulares são colocados em evidência mas ao mesmo tempo desterritorializados de seu contexto psiquiátrico, e, arrastados para longe de si mesmos, são prolongados até uma vizinhança que lhes permite uma transmutação amplificada, numa dinâmica que extrapola completamente os dados iniciais e personológicos, fazendo-os reverberarem com a cultura como um todo e experimentarem variações inusitadas. É onde o teatro oferece aos atores um campo de metamorfose e de experimentação de um potencial insuspeitado. Pois os traços que compõem uma personagem (as singularidades que habitam cada um) não são elementos para uma identidade reconhecível, numa mímese referencial; eles não se somam num contorno psicossocial, ainda que isso possa estar presente, mas como máscara: a “rainha”, o “imperador”...
Não é um ator representando uma personagem, mas tampouco é ele se representando, é o ator produzindo e se produzindo, criando e se criando ao mesmo tempo num jogo lúdico e existencialisante, desdobrando uma potência, ainda que na forma de uma entidade histórica ou cósmica. O que conta, para além da máscara, são os estados intensivos que esses traços expressam ou desencadeiam, as mutações de que esses traços são portadores, as composições de velocidade e lentidão que cada corpo consegue, consigo e com os demais, as passagens fluxionárias, os índices corpóreos, incorpóreos, sonoros, luminosos, o puro movimento molecular, o gesto quântico, o trajeto rizomático. Daí porque o espectador não se pergunta “o que aconteceu?” ou “o que aconteceu com tal personagem?”, mas “o que me aconteceu”?, registrando o sentido eminente do Acontecimento – a afetação.
Estética
contemporânea e loucura
Se a estética contemporânea é fragmentária e fluxionária, rizomática e metaestével, complexa, não-narrativa e não-representacional (e o que é um teatro não-representacional – sendo o teatro tradicionalmente o lugar da representação?), é preciso dizer que em tudo isto ela ressoa estranhamente com o que nos vem do universo da psicose. Daí talvez sua espantosa capacidade em acolhê-lo, e a força desse encontro. Não se trata de expressar um universo interior já existente (uma cena interior, um lugar nesta cena), mas sobretudo de criar um estado, um gesto, um trajeto, um rastro, uma cintilância, uma atmosfera. Toda o desafio consistiu em recusar o dramalhão sentimental ou psicológico em favor do trágico no seu sentido mais rigoroso. Seria necessário, para precisar esse tema, novamente evocar Nietzsche e toda a questão do dionisíaco, da relação dos gregos com a dor e a morte, do plus de vitalidade que segundo o filósofo eles extraíam do lado tenebroso da vida, da alegre afirmação do efêmero e do múltiplo que alguns intérpretes de Nietzsche tão bem souberam pôr em evidência. O encontro entre o teatro e a loucura opera o resgate desse tema nietzschiano, confirmando o quanto o autor de Zaratustra usava o passado mas escrevia para o futuro, das artes e da cultura.
De qualquer modo, no contexto circunscrito que nos ocupa, o teatro ofereceu para as mutações descritas anteriormente, um campo de imantação privilegiado. Ele oferece um plano de composição, um plano de imanência: nele tudo ganha consistência desde que passe por essa laboriosa metamorfose mágico-poética. Através dele, o impalpável ganha volume, o pesado fica leve, o mais discrepante recebe lugar e há espaço para o erro. Não é, pois, mero encaixe inclusivo, mas transmutação processual. A própria peça, pelo menos a primeira, é uma deriva, uma busca, uma deambulação, uma errância, e nem mesmo o encontro final com a torre Babelina, e a rainha negra que sai de dentro dela freiam esse nomadismo, reterritorializam o espírito, interrompem sua vagabundagem incessante. Na primeira apresentação, nos últimos minutos do espetáculo, a trupe girava em círculos em torno da torre Babelina, já que o acesso à saída do anfiteatro estava barrada por excesso de público. Um espectador, paciente de uma outra clínica, resolveu ajudar: colocou-se diante do Homem da Luz e do Profeta e os guiou por um caminho lateral em meio à platéia. Os atores tinham certeza de que ele sabia para onde os levava, para alguma porta secreta que ele conhecia, mas engano - deram de cara com uma parede imensa, e ali os abandonou. Foram dali margeando a parede até encontrar a saída. Se no início o público estava espalhado pelos corredores esperando a trupe entrar ritualmente, dizendo em coro Ueinzz, Ueinzz, na saída final se postaram no hall, como que para uma foto de grupo, assistindo à saída dos espectadores, e eles um pouco confusos, sem saberem se saíam ou aplaudiam ou se ainda ia acontecer alguma coisa... Tudo é passagem, o próprio final ainda é errância.
Estamos curados?
“No fim dessa primeira apresentação os atores chegaram ao camarim eufóricos, felizes, preenchidos, gritando Estamos curados!
Não se trata de acreditar nisso literalmente, mas é provável que o teatro ajude a curá-los, e também aos “terapeutas” que os acompanham de uma série de cacoetes. Por exemplo, do cacoete de reduzi-los à personagem exclusiva chamada doente (ou doente-mental), papel ao qual muitas vezes eles mesmos se aferram monocordicamente, embora quando o jornal “O Estado de São Paulo” no artigo que fez sobre o espetáculo os chamou assim, a indignação tenha sido geral – eles eram atores, não doentes mentais, doente mental é o jornalista! Seria preciso então deixar de representar monotonamente sempre a mesma pecinha hospitalar e edipiana, abrir portas e janelas, mudar de teatro (!), mudar de cena (o que haveria de mais radicalmente analítico do que mergulhar numa outra cena, transformando as coordenadas de enunciação da vida?), mudar o cenário, mudar de roteiro, sobretudo mudar o olhar sobre os atores e sobre a fronteira que nos separa deles, não para tornar tudo indiferente – ah, a ilusão mais perigosa! – mas para deixar emergir outras personagens (e quantas outras experimentam mesmo os “terapeutas” nessa quebra e reconstrução incessante de sua “identidade” profissional), outros estados, outras afetações e outras conexões. O teatro pode ajudar a curar-nos da crença generalizada, partilhada por muitos pacientes e também inúmeros profissionais de saúde mental, sobre sua suposta impotência ou ensimesmamento estéril, incomunicabilidade social, incapacidade criadora. Ou da idéia de que a clínica deve ficar de um lado e a cultura de outro, como se a arte não fosse ela mesma a um só tempo crítica e clínica, como se a arte não fosse já um dispositivo, como se o olhar de um diretor de teatro, a escuta de um músico, não fossem, na sua exterioridade em relação ao campo clínico tradicional, e na possibilidade de assistirem a nascimentos que nosso olhar viciado abortaria, poderosamente clínica, e no mais alto grau.
A cena que o teatro propõe (mas isto não é de hoje, nem novo, talvez seja até o mais antigo do teatro – e o mais antigo, já é sabido, tem sua dimensão inesgotável de porvir) também pode ajudar a curar-nos da tentação de substancializar as personagens cotidianas e seus impasses. Pois ali cada personagem emerge com a força secreta da ficção, isto é, contingente e necessária, precária e eterna, volátil e imemorial, tudo isso ao mesmo tempo. E cada personagem faz fremir, por trás de seu contorno fugidio e do “por um triz” em que se sustenta, singularidades impalpáveis. Em todo caso, a primeira apresentação de Ueinzz – uma viagem a Babel, no Tucarena, deu-se para um público de mais de 350 espectadores. E o que no início parecia uma experiência bem sucedida logo tornou-se o embrião de uma companhia teatral. Os atores não só se entregaram de corpo e alma à proposta, beneficiando-se amplamente com o resultado, como também demonstraram o mais vivo desejo de continuarem se apresentando, ensaiando, montando outras peças. Várias apresentações, ainda no primeiro ano, confirmaram que ali estava em gestação uma trupe com grande capital expressivo e múltiplas possibilidades de experimentação, e até de profissionalização.
D
A segunda peça:
Dédalus É o que o segundo ano de atividades veio confirmar e fortalecer, com a montagem de uma segunda peça, intitulada Dédalus, apresentada em várias temporadas, no TUSP, no Centro Cultural São Paulo, no Teatro Oficina, em viagens a Campinas e Brasília, etc.
Mais sofisticada em termos de narrativa (mitologia grega, ficção científica, alusões a Dante), de individualização de personagens, de complexidade cênica, de variação de tom e de gênero (entre o trágico e o cômico), essa peça fez confluir a dança, o canto, a poesia, a improvisação, o repertório individual e mítico, pessoal e universal. Os atores ganharam em presença, em densidade, em desenvoltura, em mobilidade cênica, em sintonia coletiva, em coordenação grupal. A entrada de um patrocinador permitiu desde o início deste ano um trabalho mais cuidado com o cenário, com o figurino, com a projeção de imagens em telão, com a produção geral, dando ao grupo a infraestrutura necessária, garantindo o contorno profissional da trupe, e permitindo remunerar toda a equipe de apoio, técnica, artística e terapêutica, que num primeiro momento prestou apoio na base exclusiva do voluntarismo. Totalizamos, neste ano, 16 apresentações, várias delas em dias seguidos, comprovando não só a consistência do grupo, mas também, dado o público que compareceu, a divulgação na imprensa, o interesse despertado entre os multiplicadores de opinião, que o espectro de interessados aumentava num crescendo. Com essa peça fomos ao Festival Internacional de Curitiba, onde ocorre o seguinte episódio, que ilustra as várias dimensões envolvidas nessa experimentação, conforme o relato do coordenador: “Faltam poucos minutos para a trupe entrar em cena. O público se apinha nas arquibancadas laterais do teatro, um assombroso galpão envolto em brumas e mergulhado na atmosfera da música estrepitosa. Cada ator se prepara para proferir em grego o embate agonístico que dá início a esse espetáculo “sem pé nem cabeça”, conforme o comentário elogioso de um crítico da imprensa.
Eu aguardo tenso, repasso na cabeça as palavras que devemos lançar uns contra os outros, em tom intimidatório e desenfreada correria. Passeio os olhos em meio ao público e percebo nosso narrador recuado do microfone alguns metros – ele parece desorientado. Aproximo-me, ele me conta que perdeu seu texto. Enfio a mão no bolso de sua calça, onde encontro o maço de folhas por inteiro. O paciente-ator olha os papéis que estendo à sua frente, parece não reconhecêlos, põe e tira os óculos, e murmura que desta vez não participa da peça – esta é a noite de sua morte. Trocamos algumas palavras e minutos depois, aliviado, vejo-o de volta ao microfone. Mas sua voz, em geral tão trêmula e vibrante, soa agora pastosa e desmanchada, como a dramatizar o texto que reza: “Minha memória anda fraca...” Sinto suas palavras deslizando umas sobre as outras, viscosas, diluindo-se progressivamente, e aquilo que deveria servir de fio narrativo para nossa labiríntica montagem teatral deságua lentamente num pântano escorregadio. Bruscamente o narrador interrompe sua cena, e fazendo uso de suas últimas reservas, dirige-se à saída do teatro, onde o encontro sentado na mais cadavérica imobilidade, balbuciando sua exigência de uma ambulância – chegou a sua hora. Como em Blade Runner o herói sente esgotar-se o seu tempo, me ocorre na hora, mas ao contrário dele, nosso narrador não parece querer prolongar nada, não pede um suplemento de tempo, antes sua abolição final. Ajoelho-me ao seu lado e ofereço minha vizinhança. Ele diz: “Vou para o charco”. Como assim? pergunto eu. “Vou virar sapo”. O príncipe que virou sapo, respondo carinhosamente, pensando em como esta primeira tournée artística de nossa Nau dos Insensatos representa para ele uma espécie de lua de mel. Mas ele me responde, de modo inesperado: “Mensagem para o ACM [iniciais de um famoso político de direita no Brasil]”. Sem titubear digo que “estou fora”, não sou amigo do ACM, melhor mandar o ACM para o charco e ficarmos nós dois do lado de fora. Depois a situação se alivia, ao invés da ambulância ele pede um cheesburger do McDonald´s, conversamos sobre o resultado da loteria em que apostamos juntos e o que faremos com os milhões que nos esperam. Ouço os aplausos finais vindos de dentro, o público começa a retirar-se e passa por nós. O que eles vêem é Hades (meu personagem) com a cabeça encostada no ombro de Caronte, ajoelhado aos seus pés, e recebemos uma reverência respeitosa de cada espectador, para quem essa cena íntima parece fazer parte do espetáculo. Por um triz nosso narrador não se apresentou, por um triz ele sim se apresentou, por um triz ele não morreu, por um triz ele viveu...” Peter Pál Pelbart
goth
A terceira peça:
ham sp -
“Na passagem para o terceiro ano, estávamos já em condições de propor um projeto mais complexo, com a montagem de Gotham-SP, apresentada no KVA e posteriormente numa temporada no Teatro Oficina.“
Desdobrada a partir de um fio narrativo evocado por um dos atores, em torno de Gotham City, entrelaçado ao Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, a peça mistura o universo das histórias em quadrinho, as múltiplas cidades que compõem uma cidade e as inúmeras cidades que habitam cada morador de uma cidade, a vida de cada um dos atores. Com essa peça o grupo realizou uma turnée por várias capitais do País, com apoio da Telemar, entre eles no Teatro do Hipódromo, no Rio de Janeiro, e em Belo Horizonte. Também apresentou-se em Fortaleza, a convite do Simpósio Internacional Nietzsche-Deleuze, ao lado do Dragão do Mar, e no Cariri, a convite do Sesc. As várias viagens deram ao grupo uma maturidade, uma mobilidade, e também uma agilidade artística – em cada lugar convidava-se algum ator, cantor, músico ou personagem da cena local para interagir em cena, o que sempre resultou em surpresas e ganhos.
Roteiro de Gotham SP Toda noite, do alto de sua torre, o prefeito de Gotham esbraveja indistintamente contra magnatas, prostitutas e psiquiatras. Promete mundos e fundos, o controle e a anarquia, o pão e a clonagem. Mas na noite de estréia no KVA, antes de entrar em cena, ele pede um Lexotan. Mal consegue acreditar no que vê: Marta Suplicy vai assistir a peça. O prefeito da cidade imaginária não sabe o que fazer com a prefeita da cidade real: protestar, competir, seduzir, acanhar-se? Gotham-SP tem também um imperador muito velho. Quase cego, quase surdo, quase mudo, como Kublai Khan, ele é o destinatário de vozes perdidas. Em vão: nem o imperador caquético nem o prefeito que vitupera têm qualquer poder sobre o que se passa na cidade, menos ainda sobre o humor dos que nela sussurram. “Aqui faz frio”, repete a moradora em seu cubículo, e conclui: “Se amanhã o hoje será nada, para que tudo?” Um passageiro pede companhia ao taxista, que apenas ecoa suas lembranças e temores. A diva decadente busca a nota musical impossível, Ofélia sai de um tonel de água atrás do amado, os anjos tentam entender onde pousaram, Josué ressuscitado reivindica uma outra ordem no mundo... Falas sem pé nem cabeça, diria um crítico – mas elas se cruzam agonisticamente numa polifonia sonora, visual, cênica, metafísica.. Vozes dissonantes que nenhum imperador ou prefeito consegue ouvir, nem orquestrar, mas tampouco abafar. Cada um dos seres que comparece em cena carrega no corpo frágil seu mundo gélido ou tórrido... Uma coisa é certa: do fundo de seu isolamento pálido, esses seres pedem ou anunciam uma outra comunidade de almas e corpos, um outro jogo entre as vozes – uma comunidade dos que não têm comunidade.
viver
morrer
A Cia de Teatro Ueinzz talvez seja para eles algo desta ordem. No marasmo de ensaios semanais, às vezes se perguntam se de fato algum dia se apresentaram ou voltarão a cena. Textos são esquecidos, a Cia, ela mesma parece uma virtualidade impalpável. Ao surgir uma data, um teatro disponível, um mecenas ou um patrocinador, ou até vislumbre de uma temporada. tudo renasce: O figurinista recauchuta os figurinos, a 1900 se compromete a doar aos atores a pizza inescapável que precede cada apresentação, o boca a boca constrói uma divulgação mambembe e bastante eficaz. Atores ali, mas quase apagados, reaparecem. Um campo de imantação é reativado, prolifera e faz rizoma. Os solitários vão se enganchando, os dispersos se convocam mutuamente, um coletivo feito de singularidades díspares se põe em marcha, num jogo sutil de distâncias e ressonâncias, de celibatos e contaminações compondo um
“agenciamento coletivo de enunciação”. Guattari
Mas mesmo quando tudo “vinga”, é sempre no limite tênue que separa a construção do desmoronamento. Em algumas reflexões suscitadas pelo trajeto da companhia, falou-se da relação entre “vida precária” e “prática estética” no contexto biopolítico contemporâneo. Se é a subjetividade que ali é posta a trabalhar, o que está em cena é uma maneira de perceber, de sentir, de vestir-se, de mover-se, de falar, de pensar, mas também uma maneira de representar sem representar, de associar dissociando, de viver e de morrer, de estar no palco e sentir-se em casa simultaneamente, nessa presença precária, a um só tempo plúmbea e impalpável, que leva tudo extremamente a sério e ao mesmo tempo “não está nem aí”, como o definiu depois de sua participação musical numa das apresentações o compositor Livio Tragtemberg – ir embora no meio do espetáculo atravessando o palco com a mochila na mão porque sua participação já acabou, ora largando tudo porque chegou a sua hora e vai-se morrer em breve, ora atravessar e interferir em todas as cenas como um líbero de futebol, ora conversar com o seu ‘ponto’ que deveria estar oculto, denunciando sua presença, ora virar sapo... Ou então grunhir, ou coaxar, ou como os nômades de Kafka em A Muralha da China, falar como as gralhas, ou apenas dizer Ueinzz... O cantor que não canta, quase como Josefina, a dançarina que não dança, o ator que não representa, o herói que desfalece, o imperador que não impera, o prefeito que não governa – a comunidade dos que não têm comunidade.
Num contexto marcado pelo controle da vida (biopoder), as modalidades de resistência vital proliferam de maneiras as mais inusitadas. Uma delas consiste em pôr literalmente a vida em cena, não a vida nua e bruta, como diz Agamben, reduzida pelo poder ao estado de sobrevida, mas a vida em estado de variação, modos “menores” de viver que habitam nossos modos maiores e que no palco ganham visibilidade cênica, legitimidade estética e consistência existencial. O teatro pode ser um dispositivo, entre outros, para a reversão do poder sobre a vida em potência da vida. Afinal, na esquizocenia a loucura é capital biopolítico. Mas o alcance dessa afirmação extrapola em muito a loucura ou o teatro, e permitiria pensar a função de dispositivos multifacéticos – ao mesmo tempo políticos, estéticos, clínicos – na reinvenção das coordenadas de enunciação da vida. Nas condições subjetivas e afetivas de hoje, com as novas formas de “ligação” e de “desligamento” que caracterizam a multidão contemporânea, e que se deixam ler na “comunidade dos que não têm comunidade”, um dispositivo “minúsculo” como o que apresentamos ressoa com as urgências maiúsculas do presente.
2004
Em , pouco depois da apresentação do grupo no Porto Alegre em Cena, falecia Renato Cohen, para grande tristeza de toda a companhia. Sua marca no trabalho do grupo ainda se deixa ver em toda parte, e com o tempo foi intensificada.
2005
Em parte do grupo foi convidado para um convívio de uma semana com os atores do Théâtre du Radeau, no espaço La Fonderie, em Le Mans, na França, num projeto de afetação recíproca. O diretor do Radeau, François Tanguy, entrou com a trupe num grau de empatia, corpoa-corpo, comunicação xamânica dificilmente imaginável, apesar da barreira absoluta da língua. Circulando com uma barra de madeira que termina num pente, um objeto que nós usaríamos para coçar nossas costas, mas que lhe foi presenteado por Laymert Garcia dos Santos, que por sua vez o recebeu de algum cacique do Xingú, ele fez longas sessões com os atores. Para os índios, esse instrumento serve para ir escarificando as costas do interlocutor durante uma conversa, e deixar no seu corpo alguma marca do encontro. Tanguy usou esse mesmo princípio com os atores de Ueinzz, nas suas conversas de corpo-a-corpo. Ademais, almoçavam juntos ouvindo-o ler em voz alta O suicidado da sociedade, ao lado de um antropólogo muito velho, amigo pessoal e outrora editor de Artaud. Foi nessa que um dos atores perguntou certa vez a François se a trupe tinha sido convidada porque éramos anjos decaídos. No último dia, antes da apresentação, François lhe respondeu performaticamente: colocou sobre suas costas uma imensa asa feita de pano caída, que o ator carregou durante a peça inteira. Nesse ínterim havia acontecido o mais inusitado. O ator havia proposto a Laurence, uma das atrizes da Cia francesa, um casamento. Ela era bem mais velha, talentosíssima, e quando compreendeu de maneira performática o teor da proposta, acolheu-a imediatamente. Terminada a apresentação da peça, o casamento foi celebrado num clima feérico. Algo do limite entre razão e desrazão, entre teatro e vida foi deslocado, e assumido coletivamente. O noivo foi vestido por François Tanguy com uma suntuosa túnica aveludada, verde escura, à maneira de um príncipe russo, e sobre sua cabeça foi colocada uma enorme cabeça de veado feita de renda branca, transparente. A atriz, por sua vez, foi vestida com um traje de noiva com cauda longa, e todos os “convidados” puseram perucas de todo tipo. No final da cerimônia presidida por Tanguy, com uma ironia divertida, com direito a fotos de família e muita dança, os noivos tiraram os trajes e se despediram civilizadamente. No dia seguinte, a atriz, que nunca havia se casado, agradeceu ao ator, e insistiu que ele era a única pessoa no mundo capaz de lhe ter propiciado tal experiência.
Tendo em vista o conjunto dessas experiências, ao cabo de alguns anos foram produzidos alguns registros em domínios os mais diversos, e também desdobramentos em várias mídias.
“Eu sou coringa, o enigma” As cineastas franco-brasileiras Carmen Opipari e Sylvie Timbert, da revista Chimères, fundada por Deleuze e Guattari, ao ouvir uma palestra sobre a companhia em 2000, em Paris, interessou-se em realizar um documentário sobre o grupo. Por alguns meses ao longo do ano seguinte acompanharam de perto o cotidiano e os bastidores da companhia, bem como os trajetos de vida dos atores na cidade de São Paulo. Disso resultou o longa “Eu sou coringa, o enigma”, excelente testemunho da vida da companhia e de seu processo de criação, bem como do modo como ele se entrelaça com a vida de seus criadores. O filme participou de alguns festivais pelo mundo e foi tema de um artigo elogioso, redigido pelo psicanalista e militante Jean Claude Pollack, publicado no Le monde diplomatique.
outras experiências fílmicas
“Bicho de Sete Cabeças” Alguns atores da companhia foram convidados a participar no filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodansky. A idéia original sugerida por Sérgio Penna, preparador de atores do filme, e na época ainda diretor da Cia Teatral Ueinzz, foi que nossos atores fizessem papéis de pessoas normais, enquanto atores globais representassem internos psiquiátricos. Essa inversão foi instigante, e testemunhou desse trânsito já conquistado entre o universo da loucura e o da não-loucura.
“Sobreviventes” Em 2007 Miriam Chnaiderman convidou o grupo para pequenas inserções no documentário que realizava, feito de entrevistas com pessoas que passaram por situações-limite (tortura, exílio, choque elétrico, etc). As inserções do grupo no filme Sobreviventes deveriam servir como um contraponto aos relatos. Na verdade, o grupo foi convidado por que a diretora vê nessa experiência um exemplo forte e coletivo de como pessoas que passaram por uma experiência limite usaram essa bagagem em seu favor, num salto estético, ressignificando suas existências.
XII Documenta de Kassel A experiência com Alejandra Riera, resultou nos vídeos e na instalação exibidos na XII Documenta de Kassel. Com isso, o grupo deslocou-se em 2007 à cidade em que se dava a mais importante exposição de arte contemporânea. Ali, o dispositivo montado em São Paulo por ela e pelos atores foi reativado, no espaço da cidade alemã, em pleno evento artístico, com todos os paradoxos aí envolvidos, do ponto de vista de escala (a exposição gigante, instituída, a pequena e precária companhia de teatro, o glamour do mundo da arte, a fragilidade dos atores). Essa frequentação insólita deu lugar a muitos momentos de grande força. Por exemplo, o grupo discutindo por horas o sentido da obra do artista Ricardo Basbaum, com interpretações as mais originais sobre o sentido de seus “objetos” esquisitos que circularam pelo mundo. Ou mais tarde, as entrevistas feitas nas ruas da cidade, onde por acaso foi abordado um general exilado, amigo do deposto ditador Saddam Hussein. Ou a visita à fábrica Volkswagen, a maior da Alemanha, onde pouco a pouco se revela o passado nazista da empresa. Ou a visita a uma mostra paralela (Salon des refusés) no antigo centro de triagem e de tortura da Gestapo. Ou a apresentação numa sala de cinema da cidade dos fragmentos filmados em São Paulo. Tudo isso foi documentado, e ainda espera um formato, em vídeo e por escrito, por parte de Alejandra Riera. Em 2008, ela e o coordenador foram convidados a apresentarem alguns fragmentos da experiência realizada em São Paulo para os internos e técnicos da Clínica de La Borde, no centro da França, clínica histórica, fundada e dirigida por Jean Oury e por Félix Guattari ainda desde os anos 50. A apresentação de filmes e a conversa com a população que vive ali gerou um longo e riquíssimo debate, e alguns membros da equipe gostariam de ver a trupe, em algum momento, mostrar seu trabalho ao vivo. Alguns desdobramentos dessa conexão são possíveis no futuro, a depender da solidez do grupo e de seu trabalho.
Publicações, eventos, seminários, etcs
Vida em Cena, 2008
Ed Sulinas (org. Selda Engelmann, Tania Gallli Fonseca e Peter Pál Pelbart) Publicação resultado de um seminário sobre arte e loucura intitulado A Vida em Cena, realizado na Universidade Federal do Rio Grande Sul , com convidados do País na área de artes, literatura e filosofia, tais como Celso Favaretto, Juliano Pessanha, Daniel Lins, entre outros. O volume contém fotos do espetáculo, transcrição das conferências, e reflexões sobre o sentido da arte ou os desafios da arte contemporânea.
A Teatralidade do Humano, 2006
Evento do Instituto Telemar, onde foram apresentados alguns fragmentos da peça Gotham-SP, e foi dada uma conferência sobre o trajeto da companhia.
Primeiro Ato, 2006
promovido pelo Itaú Cultural, foi realizada uma conferência de abertura onde comparece em grande medida a experiência do grupo.
Le devenir-mineur des minorités, 2000
seminário organizado pela revista Chimères, em Paris, em 2000, Peter Pá Pelbart apresentou o texto “Poétiques de l´alterité”.
The Guattari Effect, 2008
seminário promovido pela Middlesex University, em 2008, apresentou “L´inconscient déterritorialisé”. a companhia hoje tornou-se objeto de interesse por parte de diretores, atores, pesquisadores de teatro, de performance, psicólogos, agentes de saúde mental, empreendedores culturais e responsáveis por políticas públicas.
“Os atores da Cia têm em seu favor um raro aliado, que desfaz a representação em seu sentido mais artificial: o tempo. O tempo do ator incomum é mediado por todos seus diálogos, ele é transbordado pelos subtextos, que se tornam seu próprio texto. A resposta nos diálogos não vem imediata, racional, ela percorre outros circuitos mentais. Há um delay, um retardo cênico, que põe toda a audiência em produção. O ator, de modo intuituvo, se desloca entre a identificação stanislavskiana e a colocação à distância de Brecht. E ele se excita, diante dos aplausos do público, ele realiza sua “tourada” cênica, medindo forças com a audiência e suas próprias sombras interiores... ...É nessa lentificação que a loucura, a criação e o pensamento se liberam no espaço. Não é o tempo ficcional da representação, mas aquele do ator. Pode-se dizer que o ator e o personagem compartilham de um mesmo corpo cênico, na distância de seus respectivos tempos, desafiando a convenção teatral. O performer entra e sai de seu personagem, deixando ver outras dimensões de sua atuação, mais do que numa interpretação. Eles estão portanto muito próximos da não representação, esses atores, herdeiros do teatro que contestou a representação naturalista dos anos 60. Com uma tal processualidade, é um work in progress, uma abertura à improvisação, e a disponibilidade para aceitar a margem de erro que daí decorre... ...Atores que abandonam sua posição para assistir a cena dos outros, e retomam a sequência dramática. Atores que realizam grandes monólogos e, também, que os abandonam sem completar suas frases. Essa estridente partição de erros, de achados, de reinvenção de texto, se constrói diante do público. O espetáculo se torna então ritual, onde todos assistem o impossível continuando, os corpos curvados que dançam, as vozes inaudíveis que ganham potências amplificadas graças à eletrônica instalada no espetáculo. Renato Cohen
Conexões, tranversalidades
“Nos espetáculos de Bob Wilson, os diversos elementos em cena têm igualmente o mesmo peso, sem hierarquia, como também em Merce Cunningham, com uma vida em si, a música, a dança, a fala, a luz, sem que sirvam um ao outro, como uma justaposição de várias atividades artísticas, mesmo se elas formam um todo fantástico, com quadros cênicos e emoções que derivam antes do inconsciente do que da inteligência” Jacó Guinsburg “Mais do que criar uma construção poética formal e organizada, trata-se de transcrever palavras ditas e pensadas em contextos contemporâneos, utilizando assim uma espécie de reservatório inconsciente da cultura... Bob Wilson foi pioneiro na utilização de não artistas em suas obras, sublinhando suas habilidades individuais em vez de imitar o que quer que seja. É um teatro de performers, não de atores. Ele mesmo trabalhou durante anos com um autista”.
“Ele utiliza a linguagem que a sociedade se recusa a compreender. Eu tento apreender essa linguagem para ampliar o desenvolvimento da minha consciência”. O fato de que tudo isso produza um texto incoerente não é, em si mesmo, incompatível com a realidade. Visto que não existe aqui um desenvolvimento narrativo, todas as atividades em cena se mantêm num estado de permanente “presente absoluto” pela continua estimulação da energia do performer”. Jacó Guinsburg
“Toda essa energia atual, ao vivo, dos atores-autores, com essa livre manipulação dos códigos cênicos, reinventa a relação entre arte-vida numa tensão limite, em contra posição ao tempo simbólico do teatro”.
Trem Fantasma
Direção de Christoph Schliegensief Em 2007 a Cia de Teatro Ueinzz foi convidada pelo diretor alemão a tomar parte de seu espetáculo Trem Fantasma, montado em São Paulo no SESC Belenzinho. A trupe representava um grupo de velhos cantores de ópera, decadentes, num fim de festa. Por ali passava o público antes de subir no trem de um parque de diversões e percorrer os vários palcos criados pelo diretor, inspirados nas óperas de Richard Wagner.