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Objetivos, apresentação e justificativas Cia de Teatro Ueinzz, uma história Dispositivos de Trabalho Colaboração com Alejandra Riera Sobre o catálogo/livro Finnegans Ueinzz e o hipertexto Instalação Finnegans Ueinzz Arqueologia e tele-visão Ações artístico-pedagógicas Plano de Trabalho Adendos Ficha técnica
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Verso capa – imagem Imagem de ensaio Finneganz ueinzz
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“Para mim, a questão que se impõe é de se permitir ao teatro reencontrar sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica, linguagem de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, mas que terá a mesma importância intelectual e significação sensível que a linguagem das palavras. As palavras serão apenas empregadas em momentos determinados e discursivos da vida como uma luz mais precisa e objetiva aparecendo na extremidade de uma idéia. Eu me proponho tentar fazer em torno de um tema conhecido, popular ou sagrado, um ou mais ensaios de realização dramática, onde os gestos, as atitudes, os signos, serão inventados á medida que forem pensados, e diretamente no palco, onde as palavras nascerão para rematar e concluir esses discursos líricos feitos de música, de gestos, de signos ativos. Será necessário encontrar um meio de escrever, como nas pautas musicais, com uma linguagem cifrada de um novo gênero, tudo aquilo que foi composto.” Antonin Artaud
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“Você não pode reclamar que essa coisa não foi escrita em inglês. Ela não foi escrita. Não é para ser lida. É para ser vista e ouvida. Sua escrita não é sobre alguma coisa. É a coisa em si.” Samuel Beckett
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objetivos O projeto Finnegans Ueinzz procura dar continuidade á pesquisa criativa da Cia de Teatro Ueinzz, através de uma pesquisa acerca do universo de James Joyce, mais especificamente as obras Finnegans Wake e Ulisses. Essa pesquisa parte de alguns dispositivos criativos que funcionarão como agenciadores para a nossa criação. Esses agenciadores terão desdobramentos diretamente relacionados e eles, e outros desdobramentos indiretos, a saber: A criação do Espetáculo Finnegans Ueinzz, a partir da obra Finnegans Wake; a ser apresentado na galeria b_arco e em alguns Ceus; - performances-intervenções a partir de Finnegans Wake apresentadas em locais de intenso fluxo urbano urbano; - performance Ulissezz (a partir da obra Ulisses); - oficinas sobre os processos criativos da Cia de Teatro Ueinzz; - a documentação do processo em dvd; - publicação de um catálogo sobre o work in process; - debates e ensaios abertos; - continuação do processo iniciado com a colaboradora Alejandra Riera em 2008, uma instalação/ambiente multimídia com um trabalho que utiliza o suporte de vídeo e a presença dos performers.
apresentação e justificativa Finnegans Ueinzz é sobre energia e invenção. Ponto de partida: as diversas línguas misturadas que compõem a sinfonia-sonho de James Joyce
Realização
Cia de Teatro Ueinzz
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Verso Uma imagem , talvez um labirinto?
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diversas camadas de linguagem são fundidas, colocadas em choque sobrepostas formando a cena polissêmica Ueinzz
Finnegans Ueinzz uma nova língua colocada em cena uma nova linguagem cênica sendo experimentada
A Cia de Teatro Ueinzz explorando e ampliando os procedimentos da Performance e do instaurados por
Renato Cohen nos espetáculos
Ueinzz Viagem a Babel (1997) Dédalus (1998 a 2000) Gothan Sp (desde 2001)
Work in Process
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O grupo se reinventa em uma jornada pela linguagem de Joyce, onde atores e espectadores encontram-se para celebrar as potĂŞncias da vida imantadas pelo conceito ampliado de arte de Joseph Beuys
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Pรกg 9 Frente Esta imagem , em bom tamanho pode ser em pb
cultura=capital cultura = capital
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magem Beyus utro blackboards,com a frase er humano Ê um artista�
cada ser humano ĂŠ um artista
Na construção de sentidos e na criação das cenas, percorremos vários caminhos. O texto de Finnegans Wake, de James Joyce, serviu como dispositivo e um disparador de processos de diferentes ordens que com-vivem sem uma hierarquia. cenas criadas a partir de: estímulos textuais, imagéticos, sonoros, mitológicos, pessoais e oníricos em laboratórios onde experimentamos sobreposições de narrativas, percursos físicos e criação de línguas. Livre associação, colagem, assemblage e palimpsesto, criam uma estrutura onde o espectador é convidado a ter um olhar produtivo sobre a obra -sempre em processoEx: Ao optar por um determinado percurso espacial-imagético-sonoro, o espectador está seguindo pistas e propostas, inerentes. O espectador é livre para segui-las ou subvertê-las. Durante o espetáculo os performers estão sempre em um percurso, que às vezes toma a frente, imanta e outras vezes está lá como uma sombra, um duplo, uma figura-fundo. A presença dessas personas, e dessas sub-tramas, cria uma estrutura aberta, que inclui, amplia e muitas vezes implode o dramático, pelo seu próprio esgotamento. O que vemos então, desses escombros ilusionistas, é o surgimento de uma nova cena, onde as expectativas convivem com as ficções das realidades.
Chegamos por fim a um estado onde percebe-se o inevitável:
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todas as ficções são biográficas; toda a realidade é uma ficção.
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Esse conceito nos leva a uma obra ancorada na presença dos performers e na experiência do que acontece naquele momento. Essa experiência foi imbuída de vivências, de preparações, de imantações de determinados universos:
REINVENÇÃO do conceito de arte, da obra de James Joyce nos performers, das ficções pessoais de cada performer, da reverberação dos encontros: encontros com a obra e com os espectadores. da estrutura cênica; de si mesmo, e do compartilhamento dessa reinvenção.
ESPAÇO DE PARTILHA onde o público ao participar desta experiência pode colocar em cena sua ficção pessoal.
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“Uma grande parte de cada existência humana se passa em um estado que não pode ser compreendido corretamente com o uso da linguagem desperta, da gramática correta, e da trama sequencial.” James Joyce
“Em nossos ensaios, há uma contaminação entre aquecimento, exercícios preparatórios, consciência corporal, jogos e improvisações. Cada um tem suas características e os seus propósitos, mas em nosso processo criativo não há uma pré-expressividade: existir é estar em cena, de modo que em nosso percurso há um atravessamento geral desses procedimentos.” cia de teatro Ueinzz
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Sempre em Processo Ueinzz Uma História O projeto teatral Ueinzz nasceu em 1997, no Hospital-Dia “A Casa”, quando os diretores Sérgio Penna e Renato Cohen foram convidados pela instituição para coordenarem uma atividade de teatro para aproximadamente vinte pacientes psiquiátricos, no âmbito das atividades expressivas tradicionalmente realizadas na quarta-feira, sob a coordenação geral de Peter Pál Pelbart, na época terapeuta do Hospital-Dia, e a equipe de coordenadores, Paula Patrícia Francisquetti, Ana Carmen Del Collado, Eduardo Lettiere e Erika Inforsato, entre outros. A idéia inicial proposta por um dos pacientes era fazer teatro “de verdade”, e não teatro “de louco para loucos”. Assim, os diretores empreenderam a montagem de uma peça a ser apresentada fora do Hospital-Dia, e que a partir do universo singular dos atores, fizesse valer cenicamente seu repertório mítico, imaginário, gestual, sonoro, vivencial.
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O percurso da companhia, pode ser traçado a partir de relatos provenientes de fontes diversas como: lembranças, fragmentos de textos publicados e não publicados registros vários, roteiros, reflexões, filmes, imagens quaisquer teorizações, Um grupo constituído, em continuo processo de invenção, um coletivo sempre em processo de trabalho e criação.
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o nome e sua origem Num dos primeiros ensaios, os diretores propuseram um exercício clássico sobre os diferentes modos de comunicação disponíveis entre seres vivos – alguns se comunicam com gestos, outros com caretas, com sons, os humanos usam a linguagem.. Perguntaram que língua cada um fala, e um paciente que costumava apenas soltar gemidos indistintos respondeu imediatamente e com grande clareza e segurança, de todo incomuns nele - alemão! Surpresa geral, ninguém sabia que ele falava alemão. -E que palavra você sabe em alemão? -Ueinzz.. -E o que significa Ueinzz em alemão? -Ueinzz.. Todos riem...
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Eis a língua que significa a si mesma, A língua que se enrola sobre si, língua esotérica, misteriosa, glossolálica.
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Passadas algumas semanas, inspirados no material coletado nos laboratórios, os diretores trazem ao grupo sua proposta de roteiro: uma trupe nômade, perdida no Caos do deserto, sai em busca de uma torre luminosa (Babelina), e no caminho cruza obstáculos, entidades, tempestades. Em meio à andança, também se depara com um oráculo, que em sua língua sibilina indica o rumo que convém aos andarilhos. O ator para a personagem do oráculo é prontamente designado: é este que fala alemão. Ao lhe perguntarem onde fica a torre Babelina, ele deve responder: Ueinzz. O paciente entra com rapidez no papel, tudo combina, o cabelo e bigode bem pretos, o corpo maciço e pequeno de um Buda turco, seu jeito esquivo e esquizo, o olhar vago e perscrutador, de quem está em constante conversação com o invisível. É verdade que ele é caprichoso, quando lhe perguntam: Grande oráculo de Delfos, onde fica a torre Babelina?, às vezes ele responde com um silêncio, outras com um grunhido, outras ele diz Alemanha, ou Baurú, até que lhe perguntam mais especificamente, Grande oráculo, qual é a palavra mágica em alemão? e aí vem, infalível, o Ueinzz que todos esperam. De qualquer modo, o mais inaudível dos pacientes, caberá a ele a incumbência crucial de indicar ao povo nômade a saída das Trevas e do Caos. Depois de proferida, sua palavra mágica deve proliferar pelos alto-falantes espalhados pelo teatro, girando em círculos concêntricos e amplificando-se em ecos vertiginosos, Ueinzz, Ueinzz, Ueinzz.
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A voz ordinária que no Hospital se desprezava porque sequer era ouvida, encontrava aí, no espaço do teatro, uma reverberação extraordinária, uma eficácia mágico-poética. O primeiro espetáculo chamou-se Ueinzz – (niguém sabia como escrever)
algum tempo depois a trupe foi batizada, e continua até os dias de hoje:
Cia de Teatro
Ueinzz ...
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Nessa obra coletiva todo disparate ganhava um lugar, mesmo e sobretudo quando representasse uma ruptura de sentido. Uma singularidade a-significante, tal como Ueinzz, pode tornar-se foco de subjetivação, faísca autopoiética – eis um cristal de singularidade que passa a ser portador de uma produtividade existencial inteiramente imprevista, mas compartilhável.
É uma produção, de obra, de subjetividade, de inconsciente, de rupturas e remanejamentos na trajetória de uma existência, seja ela individual ou coletiva.
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Ueinzz,
A primeira peça:
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viagem a Babel O primeiro processo, detalhes e resultado No primeiro ensaio, os diretores de teatro se apresentam. Renato Cohen se põe no centro, e mostra como se pode, com pouquíssimos elementos, criar uma personagem. Traz na mão um enorme chapéu preto de borracha, longuíssimo, achatado, modelado pelos cubofuturistas russos, e o põe na cabeça. Subitamente seu corpo se avoluma e se adensa, e ele ganha uma aura incomum, como se fora um mago ou um gigante. Pega um bastão de madeira e cruza o ar chispando, em seguida traça com um giz um círculo no chão. Convida alguém para uma luta e anuncia que aquele espaço do círculo é imantado, quem estiver dentro estará protegido, quem ficar de fora perderá força. Com esse pequeno gesto se inaugura para todos o espaço sagrado do teatro, onde cada um pode virar ator, onde cada gesto, som ou postura ganham densidade e leveza, a fragilidade é esplendor, mesmo a brutalidade adquire graça e ritmo. Um dos “pacientes” se dispõe a vestir o chapéu do mago e começa a recitar um texto meio profético ou religioso, com o bastão em mãos, que agora já virou um cajado, e em poucos segundos assistimos à sua transfiguração incorporal: seu corpo meio largado ganha a desenvoltura do profeta andarilho, sua voz discursiva sustenta o anúncio dos tempos vindouros, sua recitação político-sociológica e místico-delirante ganha aí uma função ritual, uma legitimidade cênica, um compartilhamento ritual. O delírio deserta o campo psiquiátrico para reencontrar sua função mais ancestral, divina ou divinatória. Eis nesse primeiro encontro o embrião do Profeta Zanguezzi, “o homem que atravessa os tempos”, e que na peça conduzirá a trupe pelo deserto.
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Ueinzz , Viagem a Babel Viagem a Babel Cena Y
Profeta Zanguezzi (Condução da Trupe pelo deserto, um texto de Khlébnikov)
-“Para aqueles que estão vivos... e ainda não morreram Acordem para a contemplação... A contemplação irá levá-los A contemplação é um forte guia.”
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No segundo encontro resolvemos ensaiar numa outra casa recém alugada pelo Hospital-Dia, e fazemos o trajeto de duas quadras com os apetrechos trazidos pelos diretores, o chapéu cubofuturista, o cajado e uma lamparina antiga, com uma vela no meio. Sugere-se ir com a vela acesa, atravessar a rua como se atravessa um rio perigoso; o cajado terá o poder de cortar a água do rio, e cada um salta à sua maneira o tal do rio invisível. Em poucos minutos está configurada uma trupe de andarilhos numa travessia imemorial de um deserto ou de um Mar Vermelho – ou será uma procissão medieval guiada por uma luz de vela? –, em pleno bairro da Aclimação e à luz do dia, para assombro da vizinhança. E este que conduz na rua a lamparina com um prazer indisfarçável é já o Homem da Luz, que com seu manto amarelo iluminará na peça o caminho do Profeta Zanguezzi, abrindo uma passagem de luz para ele e a trupe em meio às trevas. É claro que o Homem da Luz e o Profeta nunca se entenderam perfeitamente sobre qual deles conduz de fato a trupe, um acha que são suas palavras que guiam, o outro que é sua lamparina que abre passagem. Bem ou mal, é com ambos que saímos do primevo Caos do Universo.
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Ueinzz , Viagem a Babel Abertura Cena 1
Narradora 1 (texto de Paulo Leminski) “Caos massa rude e indigesta apenas peso inerte desconjuntada semente da discórdia das coisas terra, mar e ar ciciam confundidos”.
Narrador 2 (voz inspirada, texto de Hesíodo) _“Sim primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros o mais belo entre deuses e mortais... Nove noites e dias uma bigorna de bronze cai do céu e só no décimo atinge a terra e, caindo da terra o Tártaro nevoento. E nove noites e dias uma bigorna de bronze cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro.” (na palavra Tártaro, o narrador deve ser enfático)
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Com sua voz já normalmente trêmula e grave, a boca desdentada, e é preciso imaginar como ressoa para ele o tártaro dos dentes e o Tártaro de Hesíodo, a odontologia e a ontologia, o Caos da boca e o Caos do mundo, neste paciente que a cada manhã chega dizendo que está morto e para quem cada dia é uma longa travessia, uma saída do Tártaro e do Caos rumo a uma Torre luminosa, antes que a noite volte a derramar sobre o mundo seu manto de horror e escuridão. Num dos exercícios mais divertidos propostos pelos diretores, cada um deve encher o pulmão e atravessar a sala correndo, de braços abertos e com a respiração presa, para no final soltar o ar dizendo uma palavra de sua escolha. Um faz isso meio saltitante, o outro encurvado, o terceiro flutuando, este vem como uma besta fera, aquele no seu passo de gigante à beira do colapso e com uma voz cavernosa e radiofônica que parece sair de um alto falante embutido a três metros de distância do corpo, e todos no final se largam nos braços de um dos diretores que os espera na ponta da sala.. E esse gigante, uma vez chegado a seu destino, tendo feito estremecer as paredes da casa e quase ter aplastado o diretor todo baixinho, fica ali a seu lado, incentivando os que vêm, gritando “Solta o fôlego!” Quando a trupe saída do Caos está toda caída no deserto, depois de uma tempestade de areia fulminante, caberá a ele vir, com seu andar desconjuntado, como um treinador de heróis, gritando em meio aos corpos deitados para ressuscitálos: “Eu sou Gul, o grande treinador de heróis. Para quem quiser entrar no meu campo de batalha, precisa gritar. Solte o folêgo e grite uma palavra qualquer!”
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Na primeira apresentação pública, Gul, antes desta cena, por acaso sobrou no alto de uma escadaria, longe do palco. Para chegar até a trupe teve que descer a escada, com seu passo trêmulo e extrema dificuldade de locomoção, ao que se acrescem os óculos muito espessos, no meio da escuridão e da música tensa. Ninguém podia garantir que não se esborracharia no caminho, ou que simplesmente suspendesse bruscamente sua cena, ou gritasse pedindo ajuda. “O espectador nunca tem certeza que um gesto ou uma fala terão um desfecho, se serão ou não interrompidos por alguma contingência qualquer, e cada minuto acaba sendo vivido como um milagre. É por um triz que tudo acontece, mas esse por um triz não é ocultado – ele subjaz a cada gesto e o faz vibrar. Não é só que a segurança do mundo se vê abalada, mas esse abalo introduz no mundo (ou apenas lhe desvela) seu coeficiente de indeterminação, de jogo e de acaso.” depoimento de um espectador
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Um misto de precariedade e milagre, de desfalecimento e fulgor, que outra coisa busca o teatro, afinal? Aquela moça que recebeu o papel de Serafina que era fina fina fina e que morreu de amores por Serafim, ela passa a peça no alto, em meio ao público, num quarto todo cheio de rendas brancas, e quando chega sua vez desce devagarzinho a escadaria e parece feita de pluma, o passo hesitante, e seu corpo diz o inefável, essa fronteira entre a vida e a morte, e ninguém entende por que todos choram tanto nessa cena, já que nada ali aconteceu, a não ser a presença delicadíssima feita de um fiapo de vida. Um dos atores mais politizados, contestador, provocativo, que sempre coloca em xeque as decisões alheias, que o tempo todo tenta dar ordens e com freqüência encarna um vereador, ou um general autoritário, ou um guerrilheiro revolucionário, ou mesmo um pensador, e nessa peça o papel de um Imperador anarquista, inspirado em Heliogábalo, de Artaud.
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Ueinzz , Viagem a Babel Cena X Narrador ( entrada do Imperador anarquista) - “Um estranho ritmo manifesta-se na crueldade do anarquista coroado, este iniciado, faz tudo com capricho e em duplicata. Nos dois planos quero dizer. Cada gesto seu tem dois gumes. Ordem, desordem anarquia/poesia, dissonân cia/ritmo, discordância/generosidade, crueldade”. Imperador ( entrando) - “Eu sou o Imperador anarquista, fruto da psicanálise e amaldiçoado pela psiquiatria, vocês são meus brinquedos...” Atenção: O Imperador reescreveu seu texto original inúmeras vezes (é um ator-autor), mudando-o a cada ensaio. Povo (Peter Pál Pelbart) ( gritando ) - “Corrupto”, “Canalha”, “Energúmeno”, O Imperador manda prendê-lo, e seguem-se suas queixas de ser sem-terra, sem-teto e sem-teta, até que o Imperador lhe entrega um saquinho de terra, uma telha de verdade e um rádio para ouvir a voz do presidente. Em seguida o Imperador arremessa um frango de plástico sobre a platéia, e dentaduras “feitas no Congresso”, em irônica homenagem ao Plano Real. Após a performance, alguns espectadores comentavam na saída que aquele paciente barbudo (Peter Pál Pelbart) que gritava energúmeno até que era um ator razoável, mas o Terapeuta Imperador foi a estrela da noite
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Considerações Esta primeira apresentação, feita no Tucarena se deu na confluência de dois grandes vetores que atravessam nossa cultura. O primeiro é o do teatro, com seu cortejo de magia e assombro, esse espaço ritual e sagrado, campo privilegiado de experimentação estética. O segundo vetor é o da vida quando ela experimenta seus limites, quando ela tangencia estados alterados, quando é sacudida por tremores fortes demais, por rupturas devastadoras, intensidades que transbordam toda forma ou representação, acontecimentos que extrapolam as palavras e os códigos disponíveis, ou o repertório gestual comum, mobilizando linguagens que põem em xeque a língua hegemônica, que reinventam uma vidência e uma audição. É a vida quando ela está às voltas com o irrepresentável, ou com o inominável, ou com o indizível, ou com o invisível, ou com o inaudível, ou com o impalpável – com o invivível. Há nisso que chamam de loucura uma carga de sofrimento e dor, sem dúvida, mas também um embate vital e visceral, em que entram em jogo as questões mais primevas da vida e da morte, da razão e da desrazão, do corpo e das paixões, da identidade e da diferença, da voz e do silêncio, do poder e da existência. Ora, a arte sempre veio beber nessa fonte desarrazoada, desde os gregos, e sobretudo a arte contemporânea, que está às voltas com o desafio de representar o irrepresentável, de fazer ouvir o inaudível, de dar a ver o invisível, de dizer o indizível e o invivível, de enfrentar-se ao intolerável, de dar expressão ao informe ou ao caótico.
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Kant distinguiu o belo e o sublime justamente pelo caráter do objeto que nos impressiona, respectivamente finito ou infinito, acabado ou inacabado, mensurável ou incomensurável. Lyotard sugeriu que a arte contemporânea teria tomado essa trilha do sublime kantiano. Por exemplo na pintura contemporânea, que presentifica o excesso do impresentificável utilizando o informe como indício desse mesmo impresentificável. De alguma maneira o desafio que atravessa o projeto estético contemporâneo também revolve o espetáculo Ueinzz, nos diversos signos de inacabamento que nele evocam um impresentificável, seja ele de dor, turbilhão ou colapso, mas também de iminência, suspensão e intensidade. Em contrapartida, é preciso dizer o quão valiosa é a ritualização inclusiva dessas lógicas singulares, dos ritmos emergentes e insurgentes, dos universos insólitos, das rupturas de comunicacão, o quanto a ritualização e coreografização disso tudo pode dar visibilidade ao mais impalpável e legitimidade àquilo que o senso comum social despreza, teme ou abomina, e assim inverte-se o jogo das exclusões sociais e sua crueldade. Se o teatro vem buscar na loucura a força do irrepresentável, é muito grande o que ele pode oferecer em troca, ao dar recursos para que isso que se considera como puro caos ganhe figuração, permitindo que a expressão dessas rupturas de sentido não soçobre no vazio. Nesse teatro acontece de cada um poder reconhecer-se como ator e autor de si mesmo, diferentemente daquilo que o teatro do mundo reserva à loucura, ao enclausurá-la na sua nadificação. Nesse teatro cada subjetividade pode continuar tecendo-se a si mesma, com a matéria prima precária que lhe pertence, e retrabalhá-la. Subjetividades em obra em meio a uma obra coletiva, no teatro concebido como um canteiro de obras a céu aberto. Nessa obra coletiva todo disparate ganha um lugar, mesmo ou sobretudo quando representa uma ruptura de sentido. É o caso da palavra Ueinzz, sentido a ser descoberto, proliferado, multiplicado, segundo as várias apropriações a que se presta, mas que também pode tornar-se um ponto de apoio, um chão, um foco de subjetivação para aquele sujeito que o enuncia ou o coletivo que o acompanha. Nisso há uma estética, há uma clínica e há uma ética que poderia ser resumida em pouquíssimas palavras como sendo a de uma certa relação com a diferença. Não se trata de um respeito sacrossanto pelo exótico, nem de uma idealização estetizante do sofrimento, muito menos de uma mera constatação que isola cada um na sua diferença dada e ali o enclausura, fazendo dela uma identidade excêntrica. Trata-se, ao contrário, de um certo jogo vital com os processos cuja regra básica é que cada cristal de singularidade, por exemplo um Ueinzz, possa ser portador de uma produtividade existencial inteiramente imprevista, mas compartilhável. É que se trata, como diria Artaud, de roubar à idéia de existir o fato de viver, extraindo da mera existência a vida, ali onde ela esmorece enclausurada.
Autoinvenção Um belíssimo estudo de Richard Sennett mostrou a que ponto a moderna sociedade industrial esvaziou a dimensão teatral do espaço público, desqualificando as máscaras produzidas na cena social e remetendo cada qual para sua suposta interioridade original, seu eu. Todo o jogo teatral em larga escala foi substituído pelo predomínio de um espaço interior esvaziado, a tirania da intimidade oca, que já não pode alimentar-se de nada pois é referida a si mesma, no máximo ao seu círculo doméstico ou familiar. Sennett mostra precisamente que o eu de hoje só está assim esvaziado porque o espaço público que o nutria, e o teatro que lhe era coextensivo, foram desqualificados e esvaziados. Ora, essa observação ressoa inteiramente com os textos de Nietzsche, e toda sua valorização da máscara, e da vida como produtora de máscara, e da consciência que tinham disso os gregos. Uma máscara não esconde um rosto original, mas outra máscara, e assim sucessivamente, de modo que o rosto próprio não passa da metamorfose e criação incessante de máscaras. Não se trata de retirar a máscara para encontrar a verdade oculta, ou a identidade velada, mas compreender a que ponto a própria verdade ou mesmo a identidade é uma entre as várias máscaras de que a vida precisa e que ela produz. Se a matriz estética substitui para Nietzsche a matriz científica, é porque se trata de produzir o ainda não nascido, não mais de descobrir o já existente. Questão de autoinvenção, não de autorevelação, de criação de si, não de descoberta de si. É o que se vê na construção das personagens, que se têm ressonância com traços próprios às pessoas que os encarnam (com efeito, cada personagem foi construída a partir dos atores, e com que justeza e cuidado os diretores foram alfaiates da alma, cerzindo personagens sob medida! – a ponto de ser praticamente impossível “passar” o papel de um para um outro, já que os papéis não são universais vazios intercambiáveis), ao mesmo tempo, ao invés de intensificar psicologicamente os traços de cada um, nos seus draminhas íntimos, iluminando a suposta verdade psíquica interior do sujeito, o que rapidamente descambaria para um psicodrama de qualidade duvidosa, ao invés disso o teatro faz esses traços conectarem-se com personagens da história, do mito ou da literatura (o Profeta, o Homem da luz, o Treinador de heróis, a Rainha, mas também a Esfinge, o Imperador anarquista, a Torre Babelina), com elementos cósmicos ou outros (o Caos, a Tempestade, as Trevas, a Luz, a palavra oracular). Nessa conexão tais traços singulares são colocados em evidência mas ao mesmo tempo desterritorializados de seu contexto psiquiátrico, e, arrastados para longe de si mesmos, são prolongados até uma vizinhança que lhes permite uma transmutação amplificada, numa dinâmica que extrapola completamente os dados iniciais e personológicos, fazendo-os reverberarem com a cultura como um todo e experimentarem variações inusitadas. É onde o teatro oferece aos atores um campo de metamorfose e de experimentação de um potencial insuspeitado. Pois os traços que compõem uma personagem (as singularidades que habitam cada um) não são elementos para uma identidade reconhecível, numa mímese referencial; eles não se somam num contorno psicossocial, ainda que isso possa estar presente, mas como máscara: a “rainha”, o “imperador”...
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Não é um ator representando uma personagem, mas tampouco é ele se representando, é o ator produzindo e se produzindo, criando e se criando ao mesmo tempo num jogo lúdico e existencialisante, desdobrando uma potência, ainda que na forma de uma entidade histórica ou cósmica. O que conta, para além da máscara, são os estados intensivos que esses traços expressam ou desencadeiam, as mutações de que esses traços são portadores, as composições de velocidade e lentidão que cada corpo consegue, consigo e com os demais, as passagens fluxionárias, os índices corpóreos, incorpóreos, sonoros, luminosos, o puro movimento molecular, o gesto quântico, o trajeto rizomático. Daí porque o espectador não se pergunta “o que aconteceu?” ou “o que aconteceu com tal personagem?”, mas “o que me aconteceu”?, registrando o sentido eminente do Acontecimento – a afetação.
Estética
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contemporânea e loucura
Se a estética contemporânea é fragmentária e fluxionária, rizomática e metaestével, complexa, não-narrativa e não-representacional (e o que é um teatro não-representacional – sendo o teatro tradicionalmente o lugar da representação?), é preciso dizer que em tudo isto ela ressoa estranhamente com o que nos vem do universo da psicose. Daí talvez sua espantosa capacidade em acolhê-lo, e a força desse encontro. Não se trata de expressar um universo interior já existente (uma cena interior, um lugar nesta cena), mas sobretudo de criar um estado, um gesto, um trajeto, um rastro, uma cintilância, uma atmosfera. Toda o desafio consistiu em recusar o dramalhão sentimental ou psicológico em favor do trágico no seu sentido mais rigoroso. Seria necessário, para precisar esse tema, novamente evocar Nietzsche e toda a questão do dionisíaco, da relação dos gregos com a dor e a morte, do plus de vitalidade que segundo o filósofo eles extraíam do lado tenebroso da vida, da alegre afirmação do efêmero e do múltiplo que alguns intérpretes de Nietzsche tão bem souberam pôr em evidência. O encontro entre o teatro e a loucura opera o resgate desse tema nietzschiano, confirmando o quanto o autor de Zaratustra usava o passado mas escrevia para o futuro, das artes e da cultura.
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De qualquer modo, no contexto circunscrito que nos ocupa, o teatro ofereceu para as mutações descritas anteriormente, um campo de imantação privilegiado. Ele oferece um plano de composição, um plano de imanência: nele tudo ganha consistência desde que passe por essa laboriosa metamorfose mágico-poética. Através dele, o impalpável ganha volume, o pesado fica leve, o mais discrepante recebe lugar e há espaço para o erro. Não é, pois, mero encaixe inclusivo, mas transmutação processual. A própria peça, pelo menos a primeira, é uma deriva, uma busca, uma deambulação, uma errância, e nem mesmo o encontro final com a torre Babelina, e a rainha negra que sai de dentro dela freiam esse nomadismo, reterritorializam o espírito, interrompem sua vagabundagem incessante. Na primeira apresentação, nos últimos minutos do espetáculo, a trupe girava em círculos em torno da torre Babelina, já que o acesso à saída do anfiteatro estava barrada por excesso de público. Um espectador, paciente de uma outra clínica, resolveu ajudar: colocou-se diante do Homem da Luz e do Profeta e os guiou por um caminho lateral em meio à platéia. Os atores tinham certeza de que ele sabia para onde os levava, para alguma porta secreta que ele conhecia, mas engano - deram de cara com uma parede imensa, e ali os abandonou. Foram dali margeando a parede até encontrar a saída. Se no início o público estava espalhado pelos corredores esperando a trupe entrar ritualmente, dizendo em coro Ueinzz, Ueinzz, na saída final se postaram no hall, como que para uma foto de grupo, assistindo à saída dos espectadores, e eles um pouco confusos, sem saberem se saíam ou aplaudiam ou se ainda ia acontecer alguma coisa... Tudo é passagem, o próprio final ainda é errância.
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Estamos curados?
“No fim dessa primeira apresentação os atores chegaram ao camarim eufóricos, felizes, preenchidos, gritando Estamos curados!
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Não se trata de acreditar nisso literalmente, mas é provável que o teatro ajude a curá-los, e também aos “terapeutas” que os acompanham de uma série de cacoetes. Por exemplo, do cacoete de reduzi-los à personagem exclusiva chamada doente (ou doente-mental), papel ao qual muitas vezes eles mesmos se aferram monocordicamente, embora quando o jornal “O Estado de São Paulo” no artigo que fez sobre o espetáculo os chamou assim, a indignação tenha sido geral – eles eram atores, não doentes mentais, doente mental é o jornalista! Seria preciso então deixar de representar monotonamente sempre a mesma pecinha hospitalar e edipiana, abrir portas e janelas, mudar de teatro (!), mudar de cena (o que haveria de mais radicalmente analítico do que mergulhar numa outra cena, transformando as coordenadas de enunciação da vida?), mudar o cenário, mudar de roteiro, sobretudo mudar o olhar sobre os atores e sobre a fronteira que nos separa deles, não para tornar tudo indiferente – ah, a ilusão mais perigosa! – mas para deixar emergir outras personagens (e quantas outras experimentam mesmo os “terapeutas” nessa quebra e reconstrução incessante de sua “identidade” profissional), outros estados, outras afetações e outras conexões. O teatro pode ajudar a curar-nos da crença generalizada, partilhada por muitos pacientes e também inúmeros profissionais de saúde mental, sobre sua suposta impotência ou ensimesmamento estéril, incomunicabilidade social, incapacidade criadora. Ou da idéia de que a clínica deve ficar de um lado e a cultura de outro, como se a arte não fosse ela mesma a um só tempo crítica e clínica, como se a arte não fosse já um dispositivo, como se o olhar de um diretor de teatro, a escuta de um músico, não fossem, na sua exterioridade em relação ao campo clínico tradicional, e na possibilidade de assistirem a nascimentos que nosso olhar viciado abortaria, poderosamente clínica, e no mais alto grau.
A cena que o teatro propõe (mas isto não é de hoje, nem novo, talvez seja até o mais antigo do teatro – e o mais antigo, já é sabido, tem sua dimensão inesgotável de porvir) também pode ajudar a curar-nos da tentação de substancializar as personagens cotidianas e seus impasses. Pois ali cada personagem emerge com a força secreta da ficção, isto é, contingente e necessária, precária e eterna, volátil e imemorial, tudo isso ao mesmo tempo. E cada personagem faz fremir, por trás de seu contorno fugidio e do “por um triz” em que se sustenta, singularidades impalpáveis. Em todo caso, a primeira apresentação de Ueinzz – uma viagem a Babel, no Tucarena, deu-se para um público de mais de 350 espectadores. E o que no início parecia uma experiência bem sucedida logo tornou-se o embrião de uma companhia teatral. Os atores não só se entregaram de corpo e alma à proposta, beneficiando-se amplamente com o resultado, como também demonstraram o mais vivo desejo de continuarem se apresentando, ensaiando, montando outras peças. Várias apresentações, ainda no primeiro ano, confirmaram que ali estava em gestação uma trupe com grande capital expressivo e múltiplas possibilidades de experimentação, e até de profissionalização.
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A segunda peça:
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Dédalus É o que o segundo ano de atividades veio confirmar e fortalecer, com a montagem de uma segunda peça, intitulada Dédalus, apresentada em várias temporadas, no TUSP, no Centro Cultural São Paulo, no Teatro Oficina, em viagens a Campinas e Brasília, etc.
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Mais sofisticada em termos de narrativa (mitologia grega, ficção científica, alusões a Dante), de individualização de personagens, de complexidade cênica, de variação de tom e de gênero (entre o trágico e o cômico), essa peça fez confluir a dança, o canto, a poesia, a improvisação, o repertório individual e mítico, pessoal e universal. Os atores ganharam em presença, em densidade, em desenvoltura, em mobilidade cênica, em sintonia coletiva, em coordenação grupal. A entrada de um patrocinador permitiu desde o início deste ano um trabalho mais cuidado com o cenário, com o figurino, com a projeção de imagens em telão, com a produção geral, dando ao grupo a infraestrutura necessária, garantindo o contorno profissional da trupe, e permitindo remunerar toda a equipe de apoio, técnica, artística e terapêutica, que num primeiro momento prestou apoio na base exclusiva do voluntarismo. Totalizamos, neste ano, 16 apresentações, várias delas em dias seguidos, comprovando não só a consistência do grupo, mas também, dado o público que compareceu, a divulgação na imprensa, o interesse despertado entre os multiplicadores de opinião, que o espectro de interessados aumentava num crescendo. Com essa peça fomos ao Festival Internacional de Curitiba, onde ocorre o seguinte episódio, que ilustra as várias dimensões envolvidas nessa experimentação, conforme o relato do coordenador: “Faltam poucos minutos para a trupe entrar em cena. O público se apinha nas arquibancadas laterais do teatro, um assombroso galpão envolto em brumas e mergulhado na atmosfera da música estrepitosa. Cada ator se prepara para proferir em grego o embate agonístico que dá início a esse espetáculo “sem pé nem cabeça”, conforme o comentário elogioso de um crítico da imprensa.
Eu aguardo tenso, repasso na cabeça as palavras que devemos lançar uns contra os outros, em tom intimidatório e desenfreada correria. Passeio os olhos em meio ao público e percebo nosso narrador recuado do microfone alguns metros – ele parece desorientado. Aproximo-me, ele me conta que perdeu seu texto. Enfio a mão no bolso de sua calça, onde encontro o maço de folhas por inteiro. O paciente-ator olha os papéis que estendo à sua frente, parece não reconhecêlos, põe e tira os óculos, e murmura que desta vez não participa da peça – esta é a noite de sua morte. Trocamos algumas palavras e minutos depois, aliviado, vejo-o de volta ao microfone. Mas sua voz, em geral tão trêmula e vibrante, soa agora pastosa e desmanchada, como a dramatizar o texto que reza: “Minha memória anda fraca...” Sinto suas palavras deslizando umas sobre as outras, viscosas, diluindo-se progressivamente, e aquilo que deveria servir de fio narrativo para nossa labiríntica montagem teatral deságua lentamente num pântano escorregadio. Bruscamente o narrador interrompe sua cena, e fazendo uso de suas últimas reservas, dirige-se à saída do teatro, onde o encontro sentado na mais cadavérica imobilidade, balbuciando sua exigência de uma ambulância – chegou a sua hora. Como em Blade Runner o herói sente esgotar-se o seu tempo, me ocorre na hora, mas ao contrário dele, nosso narrador não parece querer prolongar nada, não pede um suplemento de tempo, antes sua abolição final. Ajoelho-me ao seu lado e ofereço minha vizinhança. Ele diz: “Vou para o charco”. Como assim? pergunto eu. “Vou virar sapo”. O príncipe que virou sapo, respondo carinhosamente, pensando em como esta primeira tournée artística de nossa Nau dos Insensatos representa para ele uma espécie de lua de mel. Mas ele me responde, de modo inesperado: “Mensagem para o ACM [iniciais de um famoso político de direita no Brasil]”. Sem titubear digo que “estou fora”, não sou amigo do ACM, melhor mandar o ACM para o charco e ficarmos nós dois do lado de fora. Depois a situação se alivia, ao invés da ambulância ele pede um cheesburger do McDonald´s, conversamos sobre o resultado da loteria em que apostamos juntos e o que faremos com os milhões que nos esperam. Ouço os aplausos finais vindos de dentro, o público começa a retirar-se e passa por nós. O que eles vêem é Hades (meu personagem) com a cabeça encostada no ombro de Caronte, ajoelhado aos seus pés, e recebemos uma reverência respeitosa de cada espectador, para quem essa cena íntima parece fazer parte do espetáculo. Por um triz nosso narrador não se apresentou, por um triz ele sim se apresentou, por um triz ele não morreu, por um triz ele viveu...” Peter Pál Pelbart
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A terceira peça:
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“Na passagem para o terceiro ano, estávamos já em condições de propor um projeto mais complexo, com a montagem de Gotham-SP, apresentada no KVA e posteriormente numa temporada no Teatro Oficina.“
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Desdobrada a partir de um fio narrativo evocado por um dos atores, em torno de Gotham City, entrelaçado ao Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, a peça mistura o universo das histórias em quadrinho, as múltiplas cidades que compõem uma cidade e as inúmeras cidades que habitam cada morador de uma cidade, a vida de cada um dos atores. Com essa peça o grupo realizou uma turnée por várias capitais do País, com apoio da Telemar, entre eles no Teatro do Hipódromo, no Rio de Janeiro, e em Belo Horizonte. Também apresentou-se em Fortaleza, a convite do Simpósio Internacional Nietzsche-Deleuze, ao lado do Dragão do Mar, e no Cariri, a convite do Sesc. As várias viagens deram ao grupo uma maturidade, uma mobilidade, e também uma agilidade artística – em cada lugar convidava-se algum ator, cantor, músico ou personagem da cena local para interagir em cena, o que sempre resultou em surpresas e ganhos.
Roteiro de Gotham SP Toda noite, do alto de sua torre, o prefeito de Gotham esbraveja indistintamente contra magnatas, prostitutas e psiquiatras. Promete mundos e fundos, o controle e a anarquia, o pão e a clonagem. Mas na noite de estréia no KVA, antes de entrar em cena, ele pede um Lexotan. Mal consegue acreditar no que vê: Marta Suplicy vai assistir a peça. O prefeito da cidade imaginária não sabe o que fazer com a prefeita da cidade real: protestar, competir, seduzir, acanhar-se? Gotham-SP tem também um imperador muito velho. Quase cego, quase surdo, quase mudo, como Kublai Khan, ele é o destinatário de vozes perdidas. Em vão: nem o imperador caquético nem o prefeito que vitupera têm qualquer poder sobre o que se passa na cidade, menos ainda sobre o humor dos que nela sussurram. “Aqui faz frio”, repete a moradora em seu cubículo, e conclui: “Se amanhã o hoje será nada, para que tudo?” Um passageiro pede companhia ao taxista, que apenas ecoa suas lembranças e temores. A diva decadente busca a nota musical impossível, Ofélia sai de um tonel de água atrás do amado, os anjos tentam entender onde pousaram, Josué ressuscitado reivindica uma outra ordem no mundo... Falas sem pé nem cabeça, diria um crítico – mas elas se cruzam agonisticamente numa polifonia sonora, visual, cênica, metafísica.. Vozes dissonantes que nenhum imperador ou prefeito consegue ouvir, nem orquestrar, mas tampouco abafar. Cada um dos seres que comparece em cena carrega no corpo frágil seu mundo gélido ou tórrido... Uma coisa é certa: do fundo de seu isolamento pálido, esses seres pedem ou anunciam uma outra comunidade de almas e corpos, um outro jogo entre as vozes – uma comunidade dos que não têm comunidade.
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A Cia de Teatro Ueinzz talvez seja para eles algo desta ordem. No marasmo de ensaios semanais, às vezes se perguntam se de fato algum dia se apresentaram ou voltarão a cena. Textos são esquecidos, a Cia, ela mesma parece uma virtualidade impalpável. Ao surgir uma data, um teatro disponível, um mecenas ou um patrocinador, ou até vislumbre de uma temporada. tudo renasce: O figurinista recauchuta os figurinos, a 1900 se compromete a doar aos atores a pizza inescapável que precede cada apresentação, o boca a boca constrói uma divulgação mambembe e bastante eficaz. Atores ali, mas quase apagados, reaparecem. Um campo de imantação é reativado, prolifera e faz rizoma. Os solitários vão se enganchando, os dispersos se convocam mutuamente, um coletivo feito de singularidades díspares se põe em marcha, num jogo sutil de distâncias e ressonâncias, de celibatos e contaminações compondo um
“agenciamento coletivo de enunciação”. Guattari
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Mas mesmo quando tudo “vinga”, é sempre no limite tênue que separa a construção do desmoronamento. Em algumas reflexões suscitadas pelo trajeto da companhia, falou-se da relação entre “vida precária” e “prática estética” no contexto biopolítico contemporâneo. Se é a subjetividade que ali é posta a trabalhar, o que está em cena é uma maneira de perceber, de sentir, de vestir-se, de mover-se, de falar, de pensar, mas também uma maneira de representar sem representar, de associar dissociando, de viver e de morrer, de estar no palco e sentir-se em casa simultaneamente, nessa presença precária, a um só tempo plúmbea e impalpável, que leva tudo extremamente a sério e ao mesmo tempo “não está nem aí”, como o definiu depois de sua participação musical numa das apresentações o compositor Livio Tragtemberg – ir embora no meio do espetáculo atravessando o palco com a mochila na mão porque sua participação já acabou, ora largando tudo porque chegou a sua hora e vai-se morrer em breve, ora atravessar e interferir em todas as cenas como um líbero de futebol, ora conversar com o seu ‘ponto’ que deveria estar oculto, denunciando sua presença, ora virar sapo... Ou então grunhir, ou coaxar, ou como os nômades de Kafka em A Muralha da China, falar como as gralhas, ou apenas dizer Ueinzz... O cantor que não canta, quase como Josefina, a dançarina que não dança, o ator que não representa, o herói que desfalece, o imperador que não impera, o prefeito que não governa – a comunidade dos que não têm comunidade.
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Num contexto marcado pelo controle da vida (biopoder), as modalidades de resistência vital proliferam de maneiras as mais inusitadas. Uma delas consiste em pôr literalmente a vida em cena, não a vida nua e bruta, como diz Agamben, reduzida pelo poder ao estado de sobrevida, mas a vida em estado de variação, modos “menores” de viver que habitam nossos modos maiores e que no palco ganham visibilidade cênica, legitimidade estética e consistência existencial. O teatro pode ser um dispositivo, entre outros, para a reversão do poder sobre a vida em potência da vida. Afinal, na esquizocenia a loucura é capital biopolítico. Mas o alcance dessa afirmação extrapola em muito a loucura ou o teatro, e permitiria pensar a função de dispositivos multifacéticos – ao mesmo tempo políticos, estéticos, clínicos – na reinvenção das coordenadas de enunciação da vida. Nas condições subjetivas e afetivas de hoje, com as novas formas de “ligação” e de “desligamento” que caracterizam a multidão contemporânea, e que se deixam ler na “comunidade dos que não têm comunidade”, um dispositivo “minúsculo” como o que apresentamos ressoa com as urgências maiúsculas do presente.
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2004
Em , pouco depois da apresentação do grupo no Porto Alegre em Cena, falecia Renato Cohen, para grande tristeza de toda a companhia. Sua marca no trabalho do grupo ainda se deixa ver em toda parte, e com o tempo foi intensificada.
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2005
Em parte do grupo foi convidado para um convívio de uma semana com os atores do Théâtre du Radeau, no espaço La Fonderie, em Le Mans, na França, num projeto de afetação recíproca. O diretor do Radeau, François Tanguy, entrou com a trupe num grau de empatia, corpoa-corpo, comunicação xamânica dificilmente imaginável, apesar da barreira absoluta da língua. Circulando com uma barra de madeira que termina num pente, um objeto que nós usaríamos para coçar nossas costas, mas que lhe foi presenteado por Laymert Garcia dos Santos, que por sua vez o recebeu de algum cacique do Xingú, ele fez longas sessões com os atores. Para os índios, esse instrumento serve para ir escarificando as costas do interlocutor durante uma conversa, e deixar no seu corpo alguma marca do encontro. Tanguy usou esse mesmo princípio com os atores de Ueinzz, nas suas conversas de corpo-a-corpo. Ademais, almoçavam juntos ouvindo-o ler em voz alta O suicidado da sociedade, ao lado de um antropólogo muito velho, amigo pessoal e outrora editor de Artaud. Foi nessa que um dos atores perguntou certa vez a François se a trupe tinha sido convidada porque éramos anjos decaídos. No último dia, antes da apresentação, François lhe respondeu performaticamente: colocou sobre suas costas uma imensa asa feita de pano caída, que o ator carregou durante a peça inteira. Nesse ínterim havia acontecido o mais inusitado. O ator havia proposto a Laurence, uma das atrizes da Cia francesa, um casamento. Ela era bem mais velha, talentosíssima, e quando compreendeu de maneira performática o teor da proposta, acolheu-a imediatamente. Terminada a apresentação da peça, o casamento foi celebrado num clima feérico. Algo do limite entre razão e desrazão, entre teatro e vida foi deslocado, e assumido coletivamente. O noivo foi vestido por François Tanguy com uma suntuosa túnica aveludada, verde escura, à maneira de um príncipe russo, e sobre sua cabeça foi colocada uma enorme cabeça de veado feita de renda branca, transparente. A atriz, por sua vez, foi vestida com um traje de noiva com cauda longa, e todos os “convidados” puseram perucas de todo tipo. No final da cerimônia presidida por Tanguy, com uma ironia divertida, com direito a fotos de família e muita dança, os noivos tiraram os trajes e se despediram civilizadamente. No dia seguinte, a atriz, que nunca havia se casado, agradeceu ao ator, e insistiu que ele era a única pessoa no mundo capaz de lhe ter propiciado tal experiência.
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Tendo em vista o conjunto dessas experiências, ao cabo de alguns anos foram produzidos alguns registros em domínios os mais diversos, e também desdobramentos em várias mídias.
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“Eu sou coringa, o enigma” As cineastas franco-brasileiras Carmen Opipari e Sylvie Timbert, da revista Chimères, fundada por Deleuze e Guattari, ao ouvir uma palestra sobre a companhia em 2000, em Paris, interessou-se em realizar um documentário sobre o grupo. Por alguns meses ao longo do ano seguinte acompanharam de perto o cotidiano e os bastidores da companhia, bem como os trajetos de vida dos atores na cidade de São Paulo. Disso resultou o longa “Eu sou coringa, o enigma”, excelente testemunho da vida da companhia e de seu processo de criação, bem como do modo como ele se entrelaça com a vida de seus criadores. O filme participou de alguns festivais pelo mundo e foi tema de um artigo elogioso, redigido pelo psicanalista e militante Jean Claude Pollack, publicado no Le monde diplomatique.
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outras experiências fílmicas
“Bicho de SeteCabeças” Alguns atores da companhia foram convidados a participar no filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodansky. A idéia original sugerida por Sérgio Penna, preparador de atores do filme, e na época ainda diretor da Cia Teatral Ueinzz, foi que nossos atores fizessem papéis de pessoas normais, enquanto atores globais representassem internos psiquiátricos. Essa inversão foi instigante, e testemunhou desse trânsito já conquistado entre o universo da loucura e o da não-loucura.
“Sobreviventes” Em 2007 Miriam Chnaiderman convidou o grupo para pequenas inserções no documentário que realizava, feito de entrevistas com pessoas que passaram por situações-limite (tortura, exílio, choque elétrico, etc). As inserções do grupo no filme Sobreviventes deveriam servir como um contraponto aos relatos. Na verdade, o grupo foi convidado por que a diretora vê nessa experiência um exemplo forte e coletivo de como pessoas que passaram por uma experiência limite usaram essa bagagem em seu favor, num salto estético, ressignificando suas existências.
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XII Documenta de Kassel A experiência com Alejandra Riera, resultou nos vídeos e na instalação exibidos na XII Documenta de Kassel. Com isso, o grupo deslocou-se em 2007 à cidade em que se dava a mais importante exposição de arte contemporânea. Ali, o dispositivo montado em São Paulo por ela e pelos atores foi reativado, no espaço da cidade alemã, em pleno evento artístico, com todos os paradoxos aí envolvidos, do ponto de vista de escala (a exposição gigante, instituída, a pequena e precária companhia de teatro, o glamour do mundo da arte, a fragilidade dos atores). Essa frequentação insólita deu lugar a muitos momentos de grande força. Por exemplo, o grupo discutindo por horas o sentido da obra do artista Ricardo Basbaum, com interpretações as mais originais sobre o sentido de seus “objetos” esquisitos que circularam pelo mundo. Ou mais tarde, as entrevistas feitas nas ruas da cidade, onde por acaso foi abordado um general exilado, amigo do deposto ditador Saddam Hussein. Ou a visita à fábrica Volkswagen, a maior da Alemanha, onde pouco a pouco se revela o passado nazista da empresa. Ou a visita a uma mostra paralela (Salon des refusés) no antigo centro de triagem e de tortura da Gestapo. Ou a apresentação numa sala de cinema da cidade dos fragmentos filmados em São Paulo. Tudo isso foi documentado, e ainda espera um formato, em vídeo e por escrito, por parte de Alejandra Riera. Em 2008, ela e o coordenador foram convidados a apresentarem alguns fragmentos da experiência realizada em São Paulo para os internos e técnicos da Clínica de La Borde, no centro da França, clínica histórica, fundada e dirigida por Jean Oury e por Félix Guattari ainda desde os anos 50. A apresentação de filmes e a conversa com a população que vive ali gerou um longo e riquíssimo debate, e alguns membros da equipe gostariam de ver a trupe, em algum momento, mostrar seu trabalho ao vivo. Alguns desdobramentos dessa conexão são possíveis no futuro, a depender da solidez do grupo e de seu trabalho.
Publicações, eventos, seminários, etcs
Vida em Cena, 2008
Ed Sulinas (org. Selda Engelmann, Tania Gallli Fonseca e Peter Pál Pelbart) Publicação resultado de um seminário sobre arte e loucura intitulado A Vida em Cena, realizado na Universidade Federal do Rio Grande Sul , com convidados do País na área de artes, literatura e filosofia, tais como Celso Favaretto, Juliano Pessanha, Daniel Lins, entre outros. O volume contém fotos do espetáculo, transcrição das conferências, e reflexões sobre o sentido da arte ou os desafios da arte contemporânea.
A Teatralidade do Humano, 2006
Evento do Instituto Telemar, onde foram apresentados alguns fragmentos da peça Gotham-SP, e foi dada uma conferência sobre o trajeto da companhia.
Primeiro Ato, 2006
promovido pelo Itaú Cultural, foi realizada uma conferência de abertura onde comparece em grande medida a experiência do grupo.
Le devenir-mineur des minorités, 2000
seminário organizado pela revista Chimères, em Paris, em 2000, Peter Pá Pelbart apresentou o texto “Poétiques de l´alterité”.
The Guattari Effect, 2008
seminário promovido pela Middlesex University, em 2008, apresentou “L´inconscient déterritorialisé”. a companhia hoje tornou-se objeto de interesse por parte de diretores, atores, pesquisadores de teatro, de performance, psicólogos, agentes de saúde mental, empreendedores culturais e responsáveis por políticas públicas.
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“Os atores da Cia têm em seu favor um raro aliado, que desfaz a representação em seu sentido mais artificial: o tempo. O tempo do ator incomum é mediado por todos seus diálogos, ele é transbordado pelos subtextos, que se tornam seu próprio texto. A resposta nos diálogos não vem imediata, racional, ela percorre outros circuitos mentais. Há um delay, um retardo cênico, que põe toda a audiência em produção. O ator, de modo intuituvo, se desloca entre a identificação stanislavskiana e a colocação à distância de Brecht. E ele se excita, diante dos aplausos do público, ele realiza sua “tourada” cênica, medindo forças com a audiência e suas próprias sombras interiores... ...É nessa lentificação que a loucura, a criação e o pensamento se liberam no espaço. Não é o tempo ficcional da representação, mas aquele do ator. Pode-se dizer que o ator e o personagem compartilham de um mesmo corpo cênico, na distância de seus respectivos tempos, desafiando a convenção teatral. O performer entra e sai de seu personagem, deixando ver outras dimensões de sua atuação, mais do que numa interpretação. Eles estão portanto muito próximos da não representação, esses atores, herdeiros do teatro que contestou a representação naturalista dos anos 60. Com uma tal processualidade, é um work in progress, uma abertura à improvisação, e a disponibilidade para aceitar a margem de erro que daí decorre... ...Atores que abandonam sua posição para assistir a cena dos outros, e retomam a sequência dramática. Atores que realizam grandes monólogos e, também, que os abandonam sem completar suas frases. Essa estridente partição de erros, de achados, de reinvenção de texto, se constrói diante do público. O espetáculo se torna então ritual, onde todos assistem o impossível continuando, os corpos curvados que dançam, as vozes inaudíveis que ganham potências amplificadas graças à eletrônica instalada no espetáculo. Renato Cohen
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Conexões, tranversalidades
“Nos espetáculos de Bob Wilson, os diversos elementos em cena têm igualmente o mesmo peso, sem hierarquia, como também em Merce Cunningham, com uma vida em si, a música, a dança, a fala, a luz, sem que sirvam um ao outro, como uma justaposição de várias atividades artísticas, mesmo se elas formam um todo fantástico, com quadros cênicos e emoções que derivam antes do inconsciente do que da inteligência” Jacó Guinsburg “Mais do que criar uma construção poética formal e organizada, trata-se de transcrever palavras ditas e pensadas em contextos contemporâneos, utilizando assim uma espécie de reservatório inconsciente da cultura... Bob Wilson foi pioneiro na utilização de não artistas em suas obras, sublinhando suas habilidades individuais em vez de imitar o que quer que seja. É um teatro de performers, não de atores. Ele mesmo trabalhou durante anos com um autista”.
“Ele utiliza a linguagem que a sociedade se recusa a compreender. Eu tento apreender essa linguagem para ampliar o desenvolvimento da minha consciência”. O fato de que tudo isso produza um texto incoerente não é, em si mesmo, incompatível com a realidade. Visto que não existe aqui um desenvolvimento narrativo, todas as atividades em cena se mantêm num estado de permanente “presente absoluto” pela continua estimulação da energia do performer”. Jacó Guinsburg
“Toda essa energia atual, ao vivo, dos atores-autores, com essa livre manipulação dos códigos cênicos, reinventa a relação entre arte-vida numa tensão limite, em contra posição ao tempo simbólico do teatro”.
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Trem Fantasma
Direção de Christoph Schliegensief
Em 2007 a Cia de Teatro Ueinzz foi convidada pelo diretor alemão a tomar parte de seu espetáculo Trem Fantasma, montado em São Paulo no SESC Belenzinho. A trupe representava um grupo de velhos cantores de ópera, decadentes, num fim de festa. Por ali passava o público antes de subir no trem de um parque de diversões e percorrer os vários palcos criados pelo diretor, inspirados nas óperas de Richard Wagner.
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2007
No final de a companhia convidou Cassio Santiago a dirigí-la, pois ele tinha um trajeto rico em performance. Fora aluno, assistente e amigo de Renato Cohen, e num certo sentido, prolongava a sua linhagem. Realizou uma montagem na Biblioteca Municipal, com a peça Comendador Peçanha.
2008
iniciou com esta nova e rica parceria, apoiada na proposta corajosa do diretor de montar um trabalho à partir do Finnegans Wake, de James Joyce, com vários cruzamentos com a cena e a arte contemporânea. Processo de trabalho desenvolvido por um ano que resultou em três ensaios abertos apresentados a um público restrito, em dezembro, onde ficou demonstrado que a companhia permanece fiel ao seu espírito, e ao mesmo tempo deu um salto em termos de encenação, de concepção e de ambição estética. O trabalho com os atores, o fluxo cênico, a liberdade de atuação, as associações com universos múltiplos da cultura, da história, da literatura, dos mitos, da cosmogonia, tudo isso compareceu de maneira intensa e original. Também colaboraram nesse processo a atriz e diretora Elisa Band, que também trabalhou com Renato Cohen durante 5 anos, e desenvolve desde 1998 uma parceria artística com Cassio Santiago na área de performance, como dramaturgista e colaboradora na direção, a figurinista Simone Mina, a iluminadora Alessandra Domingues, o músico Lívio Tragtenberg, e houve a incorporação de novos atores provenientes de universos distintos. A companhia se reconfigurou em função dessas entradas e rearranjos, ganhando uma nova dinâmica e um novo fôlego, recuperando uma vitalidade que fora abalada desde a morte de Renato Cohen. É, portanto, uma nova fase promissora que se abre, em que se torna necessária uma estruturação material mais sólida, a fim de permitir uma ampliação e irradiação da pesquisa do grupo, e apresentação pública dos resultados deste trabalho e também a elaboração e publicação de todo o material e questões vividas pelo grupo durante estes 11 anos de existência.
Espaço Possível 66
Para os ensaios e apresentações do processo de trabalho desenvolvido durante o ano de 2008 foi firmada uma parceria com o Espaço Cultural B_arco, que acolheu o grupo generosamente desde o início de 2008, oferecendo-lhe um espaço de ensaio. Após as 3 apresentações do processo de trabalho no final de 2008, o Espaço B_arco sugeriu a continuidade desta parceria de uma forma mais sólida e contínua com o grupo, a fim de que o espaço de ensaio e de apresentação se tornasse a sede fixa do grupo. O espaço necessita de reformas e manutenção. O grupo assumiria estas ações básicas de implementação de equipamentos e arranjo de infraestrutura e ali se inauguraria um novo espaço teatral da cidade, gerido e administrado pela Cia de Teatro Ueinzz. A criação desta sede e espaço cultural em uma área geográfica como o bairro de Pinheiros, carente de espaços teatrais constituiria uma base adequada e segura para os projetos vindouros, e a continuidade do trabalho com condições adequadas. Desta base em Pinheiros temos como proposta além da pesquisa e ensaios contínuos, realizar uma série de atividades, e trocas criativas com vários pontos da cidade, ampliando e irradiando assim nossas ações culturais pela cidade de São Paulo, trocando a antiga relação centro-periferia por uma ação prática mais abrangente e inclusiva, ao se levar uma série de atividades a Ceus, ou espaços públicos de grande fluxo urbano. Estamos agora em um momento crucial, onde, conforme descrito anteriormente, a pesquisa e a prática do grupo, em seus 11 anos de existência, adquiriram uma maturidade e um grau de elaboração onde é vital estabelecer uma estrutura maior e mais sólida, que nos possibilite potencializar, exercer e dar continuidade a nossa pesquisa com as condições que precisamos.
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A primeira parte do processo criativo da Cia
de Teatro Ueinzz para Finnegans Ueinzz, partiu de alguns dispositivos.
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1.2.3.4.5. laboratórios e improvisações à partir de situações definidas por pequenos grupos de performers
cena-sonho
configuração de personas
criação de uma nova lingua
aquecimento, ritmo e dançareinvenção do coletivo
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“um processo aberto, e assim como esses dispositivos surgiram durante a fase inicial do processo, outros surgirão, trazidos pelos performers, pela direção, pelos musicos, sempre à partir, não do texto literário, mas da área de experiência e livre associação que esse texto provoca em cada participante.” Cássio Santiago
1.2.3.4.5.
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Aquecimento, ritmo e dança reinvenção do coletivo Com 11 anos de existência, o Grupo Ueinzz passa agora por uma fase de importante transformação, de uma síntese do seu processo continuado de pesquisa e de uma busca pela sustentabilidade criativa do grupo. Essa síntese não tem a pretensão de fazer alguma espécie de inventário ou retomada do processo criativo do grupo, mas resgatar e impulsionar sua potência criativa, descobrir os impulsos vitais que poderão manter sua criatividade pulsante. Em termos artísticos, trata-se de redefinir novos métodos e propostas de trabalho, mas ao mesmo tempo dar continuidade às especificidades e peculiaridades do grupo. Para essa nova proposta de criação à partir do universo criativo de James Joyce, mais especificamente Finnegans Wake e Ulisses, foram convidados alguns performers, e outros colaboradores. Como já foi dito anteriormente, não há a divisão funcional entre jogos, aquecimento, exercícios ou cena: tudo pode ser potencialmente uma cena, ou uma cena pode ser um aquecimento. Mas isso é consequência:o que buscamos em cada encontro é criar esses disparadores que gerem um percurso criativo, um fluxo de intensidades, para isso são elaborados alguns procedimentos, que são propostos ao grupo: quando há aderência destes no coletivo, eles são desenvolvidos. Nessa primeira parte podemos citar : • exercícios com os olhos fechados: roda com pega-pega no meio, abraço, duplas de cego, seguir o som, formar rodas • dança-coral de Rudolf Laban e desdobramentos, como dança espelho, espelho que se transforma, dança coral em grupos que se comunicam. • própriocepção: vivências de pesos diferentes, deslocamentos pelo espaço, sentir o esqueleto, a pele, os músculos • exercícios rítmicos: se movimentar em diferentes ritmos • exercícios de som: ressonância, soltura das mandíbulas, vogais O Grupo Ueinzz tem uma característica muito forte que é a heterogeneidade entre seus itegrantes, e todo seu trabalho opera com a idéia da valorização da diferença para a construção de um coletivo coeso. Não há, nos jogos e exercícios propostos, uma tentativa uniformizante, ou o encontro de um denominador rítmico comum, mas a busca e o desenvolvimento de alguma espécie de coesão, desenvolvimento da unidade na diferença, desvelando assim um teatro ancorado na escuta e no pleno diálogo com as necessidades do coletivo.
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Criação de uma nova língua Joseph Campbell em seu livro: “A Skeleton Key to Finnegans Wake” nos diz que James Joyce “teve que fundir o dicionário moderno, convertê-lo em plasma proteico e re-instaurar a “gênese e a mutação da linguagem” para transmitir sua mensagem.” Durante os ensaios, começamos a perceber o que já intuíamos, e pudemos observar de uma forma mais concreta que a busca neste processo de trabalho não é a transposição da obra, mas trabalhar com sua radicalidade, que é a de propor um novo tipo de relação entre quem criou e quem “lê” ou “assiste” a obra. Nossa busca é transpor para a cena o assombro que ela causa, oferecer ao leitor esse “plasma proteico” em um estado pulsante , pleno de significados. O leitor de Finnegans Wake só pode adentrar nessa obra de uma forma ativa, não existe a possibilidade de ser passivo, é preciso cada vez que se lê a obra,escolher possíveis leituras. Cada leitor faz o seu percurso. James Joyce com essa obra, antecipou a idéia da arte moderna, onde para ler a arte o leitor/fruidor precisa colocar-se no jogo, e mais ainda, inventar o próprio jogo. A propostade Finnegans Ueinzz não é adaptar a obra, o que seria impossível e resultaria em um hermetismo vazio e literário, mas transpor para a cena a radicalidade inventiva da re-criação de uma nova linguagem, reinventando ao mesmo tempo a própria sintaxe teatral. Converter o teatro ao seu “plasma protéico”, à sua vitalidade e poder de transformação. Dentro da idéia desta reinvenção da língua proposta por Joyce, propusemos que cada um inventasse uma língua, e assim vamos pesquisando e construindo as possibilidades de cena com essa língua inventada e sempre desconhecida. Cada fala pode ser revelada às vezes através de tradutores, às vezes em uma palestra, ou um discurso, ou como contar um segredo importante e terrível. Em Joyce, esse elaborado gesto de se transformar a linguagem a partir do seu menor núcleo é chamado de “palavras-valise”, onde há vários significados para cada significante.
Sem contexto como ponto fixo, parâmetro, esses significados se multiplicam e desestabilizam-se, tornando-se uma subversão à normatização e ao conforto dos significados únicos.
A vingança da língua!
Sem um contexto para restringir os significados, eles se multiplicam em progressão “alucimétrica”, pois a descontextualização faz com que todas as palavras e frases possam ser lidas de várias maneiras, possam ter ao mesmo tempo vários significados, sem a hierarquia de um significado”profundo” em oposição ao “superficial”, pois o que define esses conceitos de profundidade e superficialidade é a nossa tentativa de hierarquização e a nossa pré-seleção inconsciente. Em Finnegans Wake ambos estão ali, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Em nossa pesquisa para a criação destas várias línguas, essa mesma desestabilização ocorre: - ao se misturarem “línguas” absolutamente diferentes entre si, que mesmo sendo inventadas por cada um, elas trazem cada uma delas, uma atmosfera diferente. - quando os tradutores inventam e não traduzem o que está sendo dito, pois não há a busca de uma lógica e concordância temporal. ex: o estrangeiro fala um minuto, e o tradutor traduz durante 20 minutos) - quando um performer conta um segredo muito importante para o público, em uma confissão pública intensa, sem a presença de um tradutor. - quando vários performers falam simultaneamente monólogos interiores nessa língua inventada, criando uma massa de sons indistinguíveis,que ao mesmo tempo evocam as paisagens sonoras de Gertrude Stein e uma língua babélica, este é o exato momento em que a confusão começa e todos falam línguas diferentes: o momento da queda, tema recorrente e importante em Finnegans Wake e também em nosso trabalho.
A queda da língua ao seu estado arcaico.
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Se o gosto não é eterno mas histórico, e se o próprio conceito de beleza está sendo cada vez mais fragmentado, o que é cena, e o que é preparação dessa cena também se reconfiguram, em um teatro . “muito mais ancorado na presença do que na representação”
Sílvia Fernandes
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configuração de personas
Enquanto Ulisses se passa todo em um dia, para James Joyce, Finnegans Wake seria a noite daquele dia. Finnegans Wake evoca e imanta um universo onírico. Uma das vertentes de nossa pesquisa acontece a partir desse dispositivo: o universo dos sonhos. Um universo onde coexistem diferentes elementos e linguagens. Um mundo hipertextual, que comporta o dramático, o narrativo, o épico, e transborda essas divisões. A criação e a produção de sentido no universo dos sonhos acontecem de um modo não linear, e sempre à partir da experiência e da singularidade das pessoas do grupo. Durante o processo, cada um dos integrantes do grupo traz relatos de sonhos. Esse material é dividido, recortado, desterritorializado e reterritorializado, por todos. Qualquer um pode se apropriar do que quiser, reinventando ali sua ficção pessoal. Esta abordagem dos sonhos, engloba algumas etapas: 1- a busca e entrega desses sonhos, a coleta, as anotações, ou os relatos orais, e as narrativas, onde as pessoas contam os seus sonhos, trocam de sonhos, e cada um escolhe um sonho para narrar. 2- a criação de uma persona, uma busca onírica, desejante e livre associativa, um agenciamento à partir do corpo, da dança inventada por cada um à partir dos seus sonhos, de alguma figura que surge em sua imaginação, em seu corpo. Indicações abertas, seja através de um movimento físico, de um estímulo sonoro, de uma figura mitológica, ou da atmosfera evocada pelas cores de um pintor impressionista ou qualquer outra coisa que o performer deseje naquele momento. Um acontecer sem uma elaboração racional ou consciente, pelo fluxo e pelo movimento e o papel da direção passa a ser: um olhar atento ao que emerge dos performers, criando condições para que esse fluxo aconteça.
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cena-sonho
À partir destas ações, as narrativas dos sonhos, contadas pelos performers, e as travessias das personas pelo espaço surgem cenas. Parte do processo que consiste em experimentar, e desenvolver as inúmeras possibilidades criativas das cena e seus elementos.
Uma cena assimétrica, não ilustrativa, composta de camadas e sobreposições que conseguem trazer à tona essa atmosfera onírica. (ELISA BAND) Durante os ensaios abertos realizados no final de dezembro, no espaço B_arco vieram à tona a potência dessas combinações. As narrativas e os sonhos, fundamentos de algumas cenas impulsionaram uma grande narrativa, simultânea e composta por todos os sonhos. Fluxo e torrente entre as narrativas simultâneas emergiram.
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O sonho entra no processo de trabalho, não como sonho: eu sonhei que... mas o sonho é narrado sem essa contextualização, o que transporta o outro, o observador para dentro do sonho. O sonho não é mais o contrário da vida acordada, não está em contato com ela. Cia de Teatro Ueinzz
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Laboratórios e improvisações a partir de situações definidas por pequenos grupos de performers
um certo estímulo uma proposta de situação, uma atmosfera sonora, um trecho do texto ou algum dos inúmeros temas de Finnegans Wake, ou até mesmo a clássica proposta à partir de definições de onde, quê e quem, os atores são solicitados a dividirem-se em pequenos grupos e elaborarem uma cena/ improvisação, que depois será apresentada para o resto do grupo. O formato e a duração de cada cena variam muito. Algumas vezes somente o mote é definido, ou algumas diretrizes gerais, e os performers improvisam toda a cena diante dos outros.Outras vezes há um texto, ou a cena é ensaiada diversas vezes até ser preparada cuidadosamente em cada detalhe. É dessa forma que algumas das improvisações são desenvolvidas e transformadas a partir das indicações da direção e dos outros performers. Essas improvisações também se abrem para a inserção de outros universos textuais, sonoros, e imagéticos em conexão com o processo: Machado de Assis (primeiro capítulo de Esaú e Jacó), Poemas de Anna Akhmatova, Trechos de livros e textos Antonin Artaud, fragmentos de Solness, O Construtor de Ibsen (texto que inspirou James Joyce a escrever um dos capítulos de FW), obras do pintor Claude Monet, obras do artista plástico Thomas Hirschhorn, vida e obra do artista Joseph Beuys, Ópera “O Anel dos Nibelungos”de Wagner, trechos de poemas de William Blake, Fragmentos da “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, de Laurence Stern, (obra escrita entre 1759 e 1767 que influenciou Joyce a escrever Finnegans Wake.)
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Para podermos realizar nossa proposta de se transcriar o universo de James Joyce em cenas, performances e as demais atividades propostas, faz-se necessário experimentar profundamente cada um dos 5 dispositivos descritos acima. Para isso acontecer, além dos ensaios com o diretor, a dramaturgista, e o elenco e demais membros do grupo, é importante a contratação de alguns profissionais para uma imersão mais profunda em algumas áreas, e assim potencializar a troca entre o grupo, o público e o entorno.
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criação de uma nova lingua workshop com Madalena
Bernardes
sobre voz e movimento
cena-sonho
Workshop com Lynn
Mario Menezes
sobre linguagem e campo simbólico
e mais profissionais sondados/convidados para participação em algum momento do processo de construção de Finnegans Ueinzz:
Celso Favaretto Silvia Fernandes Paola Bernstein Jacó Guinsburg Donald Schuller Juliano Pessanha
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“Os espetáculos serão feitos diretamente em cena e com todos os meios que a cena oferece, mas tomada como uma linguagem do mesmo nível dos diálogos do teatro escrito e das palavras. O que não quer dizer que estes espetáculos não serão rigorosamente elaborados e preestabelecidos definitivamente antes de serem encenados”. Antonin Artaud
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Uma colaboração com Alejandra Riera
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Maquete-sem-qualidades é uma forma inédita de arquivo, onde se misturam fotografias, legendas, textos, relatos, documentos filmados criados desde 1995 pela artista argentina Alejandra Riera. Maquete-sem-qualidades por sua natureza leve e precária, pode ser feita ou desfeita, e não almeja á posteridade. O presente é aquilo que importa. Um livro em movimento. Um esboço. Um plano de uma evasão. Um lugar onde se pode contar, pensar o mundo e nós mesmos, onde é possível se defrontar com problemas não resolvidos. Maquete-sem-qualidades abre um lugar onde muitas vozes se fazem ouvir, onde múltiplas cumplicidades se tecem e também interrogam o estatuto da obra, do autor e do artista. Mais do que nomes próprios, são lugares de que se necessita para liberar a palavra, compartilhar as responsabilidades, as vergonhas, as esperanças, e as resistências. Maquete-sem-qualidades são verdadeiros “espácios-refúgio”, onde se desdobra um trabalho em curso,um trabalho sempre coletivo.
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Em 2005, Alejandra Riera veio a São Paulo e conheceu o trabalho da Cia de Teatro Ueinzz e propôs a ela uma parceria, em torno de um projeto intitulado por ela de “Enquete sobre o nosso Entorno”, mais um movimento de sua Maquete sem qualidades. Com os atores da companhia ela criou um dispositivo de enquete e registro, algo preciso e ao mesmo tempo aberto. A cada dia acontecia uma saída coletiva, para algum ponto da cidade, escolhido pelos atores, onde cada um abordava alguém de sua escolha, qualquer um: pedestre, vendedor, estudante, policial, anônimo, morador de rua, e lançava à queima roupa as perguntas que lhe viessem à mente. Situação insólita, onde tanto o entrevistado quanto o entrevistador ignoravam tudo um do outro,o que criava uma estranheza, e reviravolta das regras de uma entrevista jornalística. Tudo ali girava em falso: os lugares derrapavam, as máscaras profissionais , institucionais e pessoais sustentadas por cada um, caíam por terra, revelando dimensões inusitadas da inquietante “normalidade” cotidiana que nos rodeiam. Uma conversa trivial, desvelando a impotência, a miséria afetiva, e a blindagem sensorial.
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Dispositivo colaboração com 88
alejandra Rivera: Enquetes, exposição e vários encontros
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A artista Alejandra Riera pretende acompanhar a Cia de Teatro Ueinzz ao longo de um mês na cidade de São Paulo. Essa interação se dará em várias direções. A temporada de apresentações da companhia, seja no B_arco, seja em outros espaços, como nos CEUs, será filmada pela artista. Esse material será editado por ela de modo a dar continuidade ao trabalho que começou a desenvolver com o grupo em 2007: enquetes sobre o entorno Não se trata de um teatro filmado, nem de um documentário sobre um grupo, porém de uma intervenção cotidiana, a partir da experiência do grupo, produzindo um acontecimento (ou não acontecimento) no espaço público, nas ruas e locais onde ela e o grupo percorrerão para captar as imagens, e no espaço privado da galeria, onde se dará a “exposição”. Pelo tempo de uma semana, será remontada no espaço B_arco a instalação levada para a Documenta XII, de Kassel, com vídeos realizados na cidade de São Paulo, juntamente com os atores da Cia, com textos escritos por ela, com fotos e fragmentos de imagens. O conjunto, inédito em São Paulo, estará aberto para visitação, ao longo de 7 dias. No transcorrer da semana, serão propostas conversas com interessados, todos os dia às 17:00, com a presença da artista e/ou dos atores, explicando sua concepção artística e seu trajeto com a companhia.
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sobre o livro /catálogo: Catálogo: S.m. 1. Relação ou lista sumária, metódica, e geralmente alfabética, de pessoas ou coisas. 2. Bibliot. lista, volume ou fichário onde estão metodicamente descritos os livros e outros documentos de uma biblioteca”. (Dicionário aurélio) Pensamos a produção de um catálogo enciclopédico, uma espécie de arquivo múltiplo, um inventário, uma coleção, um acervo. Idéia de indexação nos permite navegar pelas conexões mais inusitadas, propondo uma produção de sentidos onde, assim como na nossa cena, o leitor pode escolher seu percurso, seu traçado de leitura.
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Finnegans
“Passam-se mais coisas e todas elas passam quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra, mas simultaneamente. Aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem em um aqui e um agora.” Otávio Paz
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Ueinzz e hipertexto
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“Joyce fissiona cada átomo de escrita para com eles sobrecarregar o inconsciente de toda a memória do homem: mitologias, religiões, filosofia, ciências psicanálise, literaturas. E a operação desconstrói a hierarquia que, num sentido ou noutro, ordena essas últimas categorias a uma ou outra dentre elas.” Derrida
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As encenações de Finnegans Ueinzz, de Ulissezz e das performances ganham forma de modo semelhante aos processos de construção e desconstrução operados por James Joyce. Assim como a fusão de palavras de James Joyce, cenas, gestos, emoções e idéias são fundidas formando uma gramática cênica diferente a cada apresentação e mutável. Gestos são disjuntados de seu contexto original e colocados em relação com gestos vindos de outros lugares, o que se vê em cena é uma construção ao vivo de células teatrais e performáticas que reproduzem a quintessencia de Finnegans Wake e de Ulisses, ou seja, o seu próprio processo de construção e formalização. Para uma condução artística que dialogue com todas as instâncias do processo criativo adotamos um modo não-linear de organização das informações e experiências. O conceito de hipertexto experimentado junto a Renato Cohen em Ka e Doutor Faustus Liga a Luz, Ueinzz Viagem à Babel, Dédalus e Gothan SP, mais uma vez nos trouxe possibilidades valiosas na construção de uma cena polissêmica. O hipertexto possibilitou colocar na cena significantes de universos aparentemente inconciliáveis. O verdadeiro Work in Progress precisa conectar a vida à cena, e estas conexões tornam-se complexas à medida que o trabalho criativo dá forma à energia do coletivo.
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Pierre Lévy estabeleceu seis princípios abstratos para o hipertexto, que aqui aparecem como motes para alguns retratos do Work in Progress Finnegans Ueinzz.
Seis princípios
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“O princípio da metamorfose”
Existe uma constante renegociação dos signos agenciados no espetáculo com a subjetividade dos performers. Novas cenas são criadas a cada dia de apresentação, muitas permanecem fixas e outras se transformam, desdobram ou ramificam.
“O princípio da heterogeneidade”
Não existe em Finnegans Ueinzz a utopia da organicidade nas cenas ou a vontade de criar um todo orgânico. Por esta razão é possível adaptarmonos a situações espaciais, emocionais e teatrais muito diferentes, pois as cenas integram todos os elementos que costumam constituir o entorno do espetáculo. Elementos muito diferentes e que costumam estar colocados em planos diferentes, aqui aparecem associados.
“O princípio da multiplicidade e de encaixe de escalas”
Assim como Finnegans Wake pode ser lido a partir de qualquer página, a leitura de Finnegans Ueinzz pode começar de qualquer signo apresentado. Todos os elementos estão conectados em escala fractal, e todos eles existem em relação uns aos outros. É possível eleger qualquer conexão como parte de uma rede de sentidos.
“O princípio de exterioridade”
Finnegans Ueinzz dialoga constantemente com novas informações e experiências surgidas no cotidiano. A cada dia de ensaio ou apresentação, novos elementos, externos, influenciam diretamente o Work in Progress, seja um acontecimento da vida dos atores ou um evento ocorrido no âmbito da política internacional.
“O princípio de topologia”
A imanência dos espaços e da própria vida é o que dá forma a este Work in Progress. Assim como em Finnegans Wake, onde o que mais interessa são as palavras em si e não o que está além das palavras, no Finnegans Ueinzz o processo é o espetáculo e não uma forma de preparação para o espetáculo. Sem a linearidade, a proximidade se torna mais preponderante, as conexões se dão em todas as direções, derrubando fronteiras e estabelecendo interfaces com a vizinhança.
“O princípio de mobilidade dos centros”
Não existe um centro, mas diversos centros conectados por nós que possibilitam ir de um centro a outro. Da linguagem teatral à subjetividade dos atores, tudo pode ser o centro, e podemos nos mover constantemente de um centro a outro.
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A
instalação
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“Quando eu falo de colagem que é o que eu realmente gosto de fazer, eu divido isso com muitas pessoas pois todos já fizeram uma colagem alguma vez na vida mas então rapidamente elas vão para algo mais sério.E isso é na verdade o que eu mais gosto na colagem porque sempre fica algo suspeito quando se faz colagem. Então meu trabalho está sempre baseado em colagem, mas é claro que não é uma colagem feita sobre uma mesa, mesmo quando eu trabalho, por exemplo, com minha vizinhança, isso é colagem, e uma grande colagem, uma colagem viva, com muitos materiais, com muitos elementos, com muitas pessoas, com muitas complicações, com muitos problemas, mas ainda com a idéia de juntar o que não se pode juntar (...) eu estou interessado na precariedade, eu amo a palavra precariedade porque a lógica da precariedade é a preciosidade, a fragilidade, a atenção que você tem que ter nas coisas Não somente nos eventos físicos ou psicológicos, mas uma atenção no amor, atenção a seu próprio comprometimento, atenção a suas próprias consequências. A precariedade é um estado frágil, um estado de graça , precariedade significa, entre outras coisas, que a pessoa tem que estar aberta, tem que estar atenta quando algo acontece para perceber o momento, e o momento é sempre precário, não há como fixá-lo, não há um momento para a eternidade, não há um momento que se possa fixar para todo o tempo, então é isso o que quero e é por isso que eu amo a palavra precariedade e é por isso que eu acho que estou interessado em repetições de momentos precários e é assim que eu concebo meu trabalho e é assim que eu vejo meu trabalho e é assim que eu vejo também as outras obras de arte, porque, por exemplo, as cavernas de Lascaux são precárias, ou as pirâmides do Egito são precárias, ou vários outros movimentos da história recente são muito precários, mesmo quando eles tem 40 metros de altura , feitos de ferro ou feitos de concreto, então não há dúvidas sobre a materialidade relacionada a precariedade (...)” Thomas Hirschhorn
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A instalação, onde se passa Finnegans Ueinzz, é composta de palavras escritas por meio de materiais diversos sobre superfícies também diversas.Exs: em uma sala com paredes brancas, pode ser usado carvão vegetal, em salas com paredes pretas, giz ou tinta cal. Todas as anotações necessárias para a execução da peça e o roteiro de cenas preenchem todas as paredes. Um mapa dos acontecimentos é revelado aos espectadores que podem ler o libreto da peça nas paredes e no fundo da cena, mapa para também ler as figuras que se sucedem durante a apresentação. Um esboço do rio que leva do Finnegans Wake às criações da Cia de Teatro Ueinzz. Um intrigante roteiro nasce da interação entre figuras em movimento e o fundo carregado de anotações. As correspondências e diferenças entre o que se passa diante dos espectadores e o que está anotado nas paredes produz uma dança de sentidos, expectativas e até mesmo emoções que impregnam o espetáculo.
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As cenas mudam, as anotações na parede mudam também, ajuste ou desajuste entre figura e fundo, importa a mudança, a dinâmica. A influência dos Blackboards de Joseph Beuys e da Anschool de Thomas Hirschhorn pode ser percebida na transitoriedade dos conceitos e leituras do espetáculo, e oferece uma situação propícia para descobertas durante as apresentações que se transformam dia após dia, constituindo não apenas um espetáculo, mas vários espetáculos com uma raiz comum, como afluentes de um mesmo rio, ou como várias camadas de um sítio arqueológico.
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Não estetizar a estética do momento da criação, os ensaios. Não acrescentar elementos para potencializar um clima teatral estetizado. Apenas a precariedade como elemento de base do processo de formalização do espaço e do espetáculo. A preciosidade que nasce na precariedade e o artificialismo do espetáculo são colocados em função, e advém daí uma potência arcaica, teatral e performática que dá vida a todas as cenas.
Elementos precários não são usados por opção ideológica, mas apenas pelo fato de serem fáceis de usar por qualquer pessoa que queira transformar um espaço, seja um espaço entre as palavras ou entre as pessoas. A instalação é montada por impregnação de informações sobre as cenas e transforma-se continuamente na medida da transformação das cenas e da própria leitura produzida pelos espectadores.
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A forma peculiar como Thomas Hirschhorn põe em prática o conceito ampliado de arte de Joseph Beuys é uma grande inspiração para a tessitura dos conceitos descritos. A ampliação do conceito de collage proposta por Hirschhorn contribuiu, por exemplo, na organização dos significantes do espetáculo, possibilitando considerar as diferenças entre espaços geográficos, institucionais e poéticos na aventura criativa que é traduzir Finnegans Wake cenicamente junto ao grupo Ueinzz e suas potencialidades estéticas.
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A instalação passa a ser um mapa do sítio arqueológico que é a interpretação dos atores. Uma interpretação que mistura diferentes tempos e valores, da mesma forma que Joyce faz em muitas passagens de Finnegans Wake, elementos novos saltam o tempo todo como uma piracema dentro do fluxo-rio que é o Finnegans Ueinzz.
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A idéia de Finnegans Ueinzz foi enxergar a obra de Joyce pelos olhos de Samuel Beckett, ou seja, pelos olhos de uma literatura menor, da mesma forma pudemos enxergar a cena produzida durante todos estes anos como a arte do mais baixo nível como gostava de dizer Tadeusz Kantor, referindo-se ao teatro como a mais inferior das artes e por isso mesmo com qualidades e possibilidades únicas. E este pensamento revelou-se importante no decorrer do século XX, na constituição daquilo que hoje é chamado, de forma genérica, de Teatro Pós-dramático e na sobrevivência das artes cênicas por meio do teatro e da performance. Todo o século vinte encontra-se dentro de Finnegans Ueinzz. O espetáculo televê o percurso de inúmeros encenadores como Tadeusz Kantor, Jerzy Grotowski, Robert Wilson, Peter Brook, mas não reverencia nenhum deles, não segue o caminho proposto ou percorrido por nenhum deles, realizando um teatro que tem em James Joyce sua força motriz. Este modo de trabalho também surgiu motivado pelos textos de Antonin Artaud que propôs novas possibildades para o teatro e nos levou a esta experimentação e questionamento de novos caminhos para a práxis teatral.
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Finnegans Ueinzz
“O Finnegans Wake, mais ainda que o Ulisses, assinala o dissídio com a era da representação (do romance como raconto ou fabulação) e instaura, no domínio da prosa, onde se movia o realismo oitocentista com seus sucedâneos e avatares, a era da textualidade, a literatura do significante ou do signo em sua materialidade ela mesma.” Augusto e Haroldo de Campos
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arqueologia e tele-vis達o
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Sobre a representação Em nossa tradução cênica, essa ruptura é a da performance, o signo em sua materialidade ela mesma, a cena pós-dramática, ou performática.
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O espetáculo é um sítio arqueológico onde o valor dos elementos cênicos muda constantemente. Cada novo elemento que surge modifica a recepção de todos os outros. Como uma jóia de poucos séculos atrás que aparece ao lado de um caco de vaso de barro que tem dezenas de séculos. O relativismo e a própria teoria da relatividade estão em cena, a descoberta de quarks cênicos que podem oferecer um experiência especial para os espectadores. Em Joyce, palavras são colocadas em choque semântico, novas palavras e sentidos surgem na correnteza do texto, não saímos do lugar, porém tudo passa por nós e se manifesta: cenas bíblicas, Homero, fragmentos da literatura universal, resquícios de histórias antigas e referências ao próprio cotidiano:
Finnegans Wake,
Finnegans Ueinzz
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Construção de sentido
O dramaturgista, assim como o diretor, colaboram na construção de um sentido, mas um sentido em forma de palimpsesto, hipertextual, onde convivem elementos de instâncias e linguagens muito diferentes.
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A construção de um sentido se dá antes da questão da linearidade versus não linearidade. Como muitas das cenas não se repetem, o que se repete é a existência de determinada cena no tempo. O que vai ser falado, quais desdobramentos a cena vai ter em cada apresentação fica a critério dos performers, que estão o tempo todo relacionando-se com as propostas do diretor e da dramaturgista. Essa relação ora é um jogo, ora é um embate, ora um embate amoroso, ora um ritual, que podem sofrer alterações de duração e transformações de percurso.
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Há outras cenas mais fixas, partiturizadas, onde o performer construiu aos poucos um percurso e precisa dessa repetição para construir seu sentido pessoal de estar ali. Há ainda outros casos, como o monólogo de uma performer que tem um mote (leitmotif), ela passa de um motivo a outro de maneiras diferentes a cada dia, mas sempre passa por todos na mesma ordem. Então, quando falamos em construção de um sentido estamos falando da construção de um sentido da experiência, dos encontros, de como elaborar um fluxo de intensidade em cada encontro e nas apresentações.
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Reinvenção da linguagem
Na criação da cena convivem e acumulam-se elementos de ordens diversas, sem hierarquia. Não há linguagem a ser explorada, mas qualidade de presença.
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Quando trabalhamos em uma pesquisa sem definirmos portos seguros de experimentação, temos que definir durante o processo nossas próprias diretrizes, e redefini-las constantemente de acordo com o que surge no processo Isso exige da equipe um olhar e principalmente uma escuta muito mais sensível ao que configura-se através da presença dos performers em cada encontro. Ou seja, o nosso trabalho ancora-se no processo, e não há nenhuma corrente, ou teoria ou linguagem específicas que funcionem como linha diretriz .
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É uma série de experiências que propomos, que se constróem a partir dos encontros, e que podem ser vistas como uma recriação de procedimentos e práticas relacionados á performance, ao viés transcultural de Peter Brook, a cena polissêmica de Robert Wilson, a práticas corporais de contato e desenvolvimento com o corpo sutil, assim como a dança–coral desenvolvida por Rudolf Laban e a anti-estética do butoh.
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ações
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art铆stico-pedag贸gicas, oficinas e workshops
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“[...] a criatividade não é monopólio das artes. Quando eu digo que toda pessoa é um artista eu quero dizer que cada um pode cultivar a artisticidade tanto na pintura como na música, na técnica, na cura de doenças, na economia ou em qualquer outro domínio. A nossa idéia cultural é muitas vezes redutora. O dilema dos museus e das instituições culturais é que limitam o campo da arte, isolando-a numa torre de marfim. O nosso conceito de arte deve ser universal, terá que ter uma natureza interdisciplinar com um conceito novo de arte e ciência... Joseph Beuys
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Desde o surgimento da arte moderna (vamos estabelecer esse ponto para nosso propósito), vimos que o gosto não é eterno, mas histórico. O antagonismo belo versus feio, bom gosto versus mau gosto já foi ultrapassado, e hoje se pensa e se frui muito mais no sentido da experiência, daquilo que nos toca, como Walter Benjamim chamou de “princípio da tactibilidade’. Esse novo modo de compreender a arte opera um novo campo de formação artística. É preciso compreender essa transformação em seu sentido mais amplo, a ação artística, em nosso entender, tem que estar acompanhada de uma proposta de formação artística. É claro que essa palavra pode soar um pouco pretensiosa, pois a formação artística não existe, ela se faz a partir da experiência de cada um, que constrói sua própria formação, mas o que achamos importante, é oferecer alguns elementos, alguns encontros, alguma experiência que contribua com novos pontos de vista no percurso artístico das pessoas. De todas as pessoas que quiserem se aventurar em tomar contato com a criatividade. Nossa proposta inclui a realização de algumas
oficinas, workshops e estágios
para todos que estiverem interessados em conhecer o processo de criação do grupo. Propiciando essa aprendizagem procuramos gerar processos em que as pessoas possam construir seus próprios percursos de leitura.
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Plano de trabalho
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- Finnegans Ueinzz
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O plano de trabalho para Finnegans Ueinzz, com duração de 8 meses, tem como eixo principal a continuidade do work in process do grupo Ueinzz. Algumas fatias deste processo criativo serão apresentadas em forma de espetáculo, performances, publicações (livro e dvd) e ações pedagógicas como oficinas, ensaios abertos e debates. As oficinas, performances, distribuição do catálogo e do dvd, ensaios abertos, debates, e parte das apresentações dos espetáculos serão atividades distribuídas à população gratuitamente, os custos já estão inseridos no orçamento do projeto.
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Ações a serem desenvolvidas Laboratórios e Experiências - continuidade da pesquisa sobre James Joyce e do work in process Finnegans Ueinzz, a partir dos 5 dispositivos criativos descritos anteriormente. - ensaios abertos. - continuação do processo iniciado com a colaboradora Alejandra Riera em 2008.
Arte e Pedagogia - oficinas conduzidas pelo diretor e pelos coordenadores do grupo Ueinzz para interessados, sobre os procedimentos criativos do espetáculo Finnegans Ueinzz. - debates junto de algumas apresentações. - workshops com profissionais que potencializem a pesquisa criativa da Cia.
Apresentações Públicas - circulação do espetáculo Finneganz Ueinzz, incluindo apresentações gratuitas em Ceus e espaços públicos em regiões com poucas atividades culturais. - performances acerca de Finnegans Wake apresentadas durante o período de construção do espetáculo. - performance Ulyssezz: inspirada no livro Ulysses, de James Joyce. - instalação/ambiente multimídia com um trabalho que utiliza o suporte de vídeo e a presença dos performers em colaboração com Alejandra Riera.
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação - produção do espetáculo Finneganz Ueinzz. - documentação do processo em DVD. - publicação de um catálogo sobre o work in process.
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Cronograma
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mês 1 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação
Laboratórios e Experiências 1- Continuação de improvisações e laboratórios para a construção de novas cenas, a partir de alguns dispositivos descritos no ítem “Dispositivos para a criação em Finneganz Ueinzz”, a saber: aquecimento, ritmo e dançareinvenção do coletivo, e laboratórios e improvisações a partir de situações definidas por pequenos grupos de performers. 2- Experimentação com som, objetos e adereços. 3- Início das leituras e estudos de Ulysses, de James Joyce, com todo o grupo e convidados
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Pesquisa e contato com espaços e instituições para agendar as apresentações fora da sede do grupo. 2- seleção e estruturação de pequenas sequências para apresentações públicas em locais de grande fluxo.Cenas que potencialmente tenham mais afinidade com uma intervenção em um local público e de grande fluxo urbano. Ex: Centro de São Paulo, e/ou no bairro do Grajaú. 3- planejamento das oficinas abertas a seremd desenvolvidas com o grupo e o público no espaço de ensaio 4- Pesquisa e organização sobre o material gerado pela Cia de Teatro Ueinzz durante estes 10 anos. 5- Pesquisa e organização de material produzido para ensaios de Ulyssezz e Finnegans Ueinzz 6- Inicio da captação de imagens dos ensaios e apresnetações publicas para confecção de DVD e livro/ catálogo
Estágios Início do processo de seleção dos estagiários
ETAPA 1 mês 2 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação
Laboratórios e Experiências 1- aprofundamento das novas cenas novas e desenvolvimento das improvisações; a partir dos dispositivos: aquecimento, ritmo e dança-reinvenção do coletivo,configuração de personas e laboratórios e improvisações a partir de situações definidas por pequenos grupos de performers 2- experimentação com som, objetos, adereços e figurinos 3- Leituras, estudos e improvisações de Ulysses, de James Joyce, a partir dos dispositivos: aquecimento, ritmo e dança-reinvenção do coletivo, configuração de personas, e laboratórios e improvisações a partir de situações definidas por pequenos grupos de performers. 4- Seleção e estruturação das pequenas sequências para apresentações públicas
Arte e Pedagogia 1- Definição das oficinas a serem realizadas, definição dos profissionais e locais para sua realização. 2- Exercício de recepção e leitura durante os ensaios, estudos para possíveis nomes de debatedores e formatos para os debates
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Nesse segundo mês os ensaios e preparações para a apresentação da performance, apesar de pertencerem ao mesmo Finnegans-agenciamento, já estão se desenvolvendo especificamente para as apresentações na rua. Pesquisa, escolha e contatos com o local de apresentação para a primeira performance. Definição de som e figurinos. 2- Continuação de Contato e negociações sobre as datas e locais das apresentações fora da galeria. 3- Continuação da Pesquisa e organização sobre o material gerado pela Cia de Teatro Ueinzz durante estes anos. 4- Continuação Pesquisa e organização de material produzido para ensaios de Ulyssezz e Finnegans Ueinzz 5- Continuação da captação de imagens dos ensaios e apresentações públicas para confecção de DVD e livro/catálogo
Estágios Seleção e contratação dos estagiários de direção, sonoplastia e produção
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mês 3 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação e estagiários
Laboratórios e Experiências 1- Continuação e aprofundamento das cenas novas, desenvolvimento das improvisações e experimentação de sequências de cenas, a partir dos dispositivos: aquecimento, ritmo e dança-reinvenção do coletivo, criação de uma nova lingua, configuração de personas, cena-sonho, laboratórios e improvisações a partir de situações definidas por pequenos grupos de performers 2- Continuação da experimentação com som, objetos, adereços e figurinos. 3- Improvisações sobre Ulysses, de James Joyce, a partir dos dispositivos: aquecimento, ritmo e dança-reinvenção do coletivo, configuração de personas, laboratórios e improvisações a partir de situações definidas por pequenos grupos de performers.
Apresentações Públicas Duas (2) apresentações públicas da primeira performance, a partir do universo de Finnegans Wake.
Arte e Pedagogia 1- Exercício de recepção e leitura das performances na rua. 2 - workshop com Madalena Bernardes sobre voz e movimento.
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Continuação da Pesquisa e organização sobre o material gerado pela Cia de Teatro Ueinzz durante estes 10 anos. 2- Continuação Pesquisa e organização de material produzido para ensaios de Ulyssezz e Finnegans Ueinzz 3- Captação de imagens dos ensaios e apresentações publicas, e das oficinas para confecção de DVD e livro/catálogo 4- Contato e negociações sobre as datas e locais das apresentações fora da galeria, definição das datas de apresentação na galeria. 5-Divulgação: Inicio da divulgação das oficinas, datas e locais. Definição e divulgação dos ensaios abertos
ETAPA 2 mês 4 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação e estagiários
Laboratórios e Experiências 1- Aprofundamento das cenas novas, desenvolvimento das improvisações a partir dos dispositivos: aquecimento, ritmo e dança-reinvenção do coletivo, criação de uma nova lingua, configuração de personas, cena-sonho, laboratórios e improvisações a partir de situaçoes definidas por pequenos grupos de performers. 2- Experimentação de sequências de cenas. 3- Análise da apresentação da primeira performance, seleção e estruturação de pequenas sequências para a segunda performance. 4- Construção de cenas e sequências da performance Ulyssezz a partir dos dispositivos: aquecimento, ritmo e dança- reinvenção do coletivo, configuração de personas, laboratórios e improvisações a partir de situaçoes definidas por pequenos grupos de performers
Apresentações Públicas 1- Primeiro ensaio de Finnegans Ueinzz aberto ao público
Arte e Pedagogia 1- Início das oficinas para interessados em conhecer os processos criativos do grupo, especificamente nas áreas de desenvolvimento da presença cênica, e modos de condução com 12 horas de duração. 2- Definição e contato com os debatedores
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Pesquisa, escolha e negociação (se necessário) do local de apresentação da segunda performance 2- Continuação Pesquisa e organização de material produzido para ensaios de Ulyssezz e apresentações de Finnegans Ueinzz, outras perfromances e oficinas. 3- Captação de imagens dos ensaios e apresentações publicas, e das oficinas para confecção de DVD e livro/catálogo 4- Primeiras definições da instalação, do som, objetos, adereços, figurinos e demais materiais.
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mês 5 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação, estagiários, sonoplasta, figurinista e iluminador.
Laboratórios e Experiências 1- Construção de cenas e sequências da performance Ulyssezz. 2- Experimentações com som e projeções.
Apresentações Públicas 1- Segundo ensaio de Finnegans Ueinzz aberto ao público 2- Apresentação da segunda performance em espaço público
Arte e Pedagogia 1- Continuação e término das oficinas 2 - Workshop com Lynn Mario Menenzes sobre linguagem e campo simbólico
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Preparação e organização dos debates: Formato, duração, temas. 2- Continuação Pesquisa e organização de material produzido para ensaios de Ulyssezz e apresentações de Finnegans Ueinzz, outras perfromances e oficinas. 3- Captação de imagens dos ensaios e apresentações públicas, e das oficinas para confecção de DVD e livro/catálogo. 4- Definições e produção da instalação, do som, objetos, adereços, figurinos e demais materiais. 5- Definição e produção de material gráfico (folder e cartaz) 6- Divulgação das apresentações de finnegans Ueinzz. 7- Divulgação: Divulgação dos debates
ETAPA 2 mês 6 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação, estagiários, sonoplasta, figurinista e iluminador.
Laboratórios e Experiências 1- Ensaios de cenas e definições de sequências da performance Ulyssezz. 2- Definição de som e projeções. 3- Manutenção criativa da performance Finnegans Ueinzz
Apresentações Públicas 1- Cinco (5) apresentações de Finnegans Ueinzz, na sede do grupo
Arte e Pedagogia 1- Análise da apresentação da segunda performance 2- Debate após apresentação do espetáculo
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Continuação Pesquisa e organização de material produzido para ensaios de Ulyssezz e apresentações de Finnegans Ueinzz, outras performances e oficinas. 2- Captação de imagens dos ensaios e apresentações públicas, e das oficinas para confecção de DVD e livro/catálogo. 3-Divulgação: Distribuição de material gráfico (folder e cartaz). Divulgação das apresentações de Finnegans Ueinzz. 4- Definição das datas do trabalho com a artista Alejandra Riera Pesquisa e definição dos locais de captação externa. Produção do experimento: organização de passagens, estadia e alimentação.
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mês 7 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação, estagiários, sonoplasta, figurinista e iluminador.
Laboratórios e Experiências 1- Manutenção criativa do espetáculo Finnegans Ueinzz 2- Ensaios gerais reunindo todos os elementos para a performance Ulyssez 3- Preparação do trabalho com os performers, captação de imagens nos ensaios, nas apresentações e em pontos da cidade de São Paulo (CEUs, centro, etc) com os performers.
Apresentações Públicas 1- Cinco ( 5 ) apresentações de Finnegans Ueinzz.
Arte e Pedagogia 1- debate após apresentação do espetáculo
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Pesquisa e definição do local de apresentação da performance Ulissez 2- Divulgação: Distribuição de material gráfico (folder e cartaz). Divulgação das apresentações de Finnegans Ueinzz 3- Preparação do material para edição do DVD 4- Edição, diagramação e impressão da publicação (livro)
ETAPA 3 mês 8 profissionais envolvidos: diretores, performers, equipe de coordenação, estagiários, sonoplasta, figurinista e iluminador.
Laboratórios e Experiências 1- Planejamento de novos desdobramentos e possibilidades (ações e espetáculos futuros)
Apresentações Públicas 1- Apresentação da performance Ulyssez
Arte e Pedagogia 1- Reflexão crítica acerca da trajetória criativa do grupo nos 7 meses de trabalho. 2- Reverberação e análise das apresentações
Registros, Pesquisa, Organização, produção e divulgação 1- Edição, finalização, lançamento e distribuição do dvd 2- Lançamento e distribuição da publicação (livro/catálogo)
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ADENDOS
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Excertos do livro
A Skeleton Key to Finnegans Wake de Joseph Campbell e Henry Morton Robinson. tradução livre de Elisa Band e Marisa do Nascimento Paro trechos elucidativos da obra de Joyce e de suas potencialidades para nossa criação cênica. Trecho 1 - Introdução a um Assunto Estranho (Joseph Campbell e Henry Morton Robinson) Fluente adivinha e resposta fluida, Finnegans Wake é uma poderosa alegoria da queda e ressurreição da humanidade. É um estranho livro, um misto de fábula, sinfonia e pesadelo - um monstruoso enigma a acenar imperiosamente dos abismos sombrios do sono. Sua mecânica assemelha-se à de um sonho, um sonho que libertou o autor das necessidades da lógica comum, possibilitandolhe comprimir todos os períodos da história, todas as fases do desenvolvimento individual e racial, em um desenho circular, de que cada parte é começo, meio e fim. No torvelinho dessa gigantesca charada, efígies obscuras passam ressoando, desaparecem em horizontes nublados, e são substituídas por outras imagens, vagas mas semiconscientemente familiares. Como em um palco giratório, heróis mitológicos e eventos da mais remota antiguidade ocupam os mesmos planos espaciais e temporais que as personagens modernas e os acontecimentos contemporâneos. Todos os tempos acontecem simultaneamente; Tristão e o Duque de Wellington, Adão e Humpty Dumpty fundem-se num único objeto da percepção. Múltiplos significados estão presentes em cada linha; alusões encadeadas a palavras e frases-chave são entretecidas como temas de uma fuga musical no molde da obra. Finnegans Wake é um prodigioso, multifacetado monomito; não apenas o cauchemar de um cidadão de Dublin, mas a saga onírica da humanidade manchada de culpas, em evolução. (Tradução de Augusto de Campos publicada no Panaroma do Finnegans Wake).
Trecho 2 - Sinopse e Demonstração Finnegans Wake é dividido em quatro grandes partes, ou livros, não nomeados, mas numerados de I a IV. Ao deixar esses livros sem título, Joyce não quer apenas jogar o leitor a deriva sem o mapa ou compasso normalmente assegurados pelos títulos dos capítulos. Antes, sua intenção é que o tema de cada Livro se desenvolva sozinho, dando a entender sua natureza e direção a medida que prossegue o seu desenvolvimento. Os títulos que nós designamos para esses Livros na sinopse seguinte são baseados na relação do ciclo quadripartido de Joyce para as quatro eras do Corso- Ricorso Viconiano. A forma de apresentação dos títulos e da própria sinopse pretendem servir como um corrimão para que o leitor encontre seu caminho ao longo de passagens desconhecidas. Livro I: O Livro dos Pais Capítulo I A Queda de Finnegan Os quatro primeiros parágrafos são os momentos suspensos de tempo entre um ciclo que acabou de acontecer e outro prestes a começar. Eles são na verdade uma abertura , ressonantes com todos os temas do Finnegans Wake. O tema dominante é o trovejar polilíngue do parágrafo 3 (bababadalghara...), que é a voz de deus tornada audível através do barulho da queda de Finnegan. O movimento narrativo começa com a vida, queda e velório do pedreiro Finnegan. A cena do velório se dissolve gradualmente na paisagem de Dublin e cercanias. Sobre o quê nós revemos provas cênicas, históricas, pré-históricas e lendárias da onipresença de Finnegans. A cena do velório re-emerge. Ao som da palavra whisky (usqueadbaugham!) o falecido senta-se e ameaça levantar-se, mas os acompanhantes deitam-no novamente. Toda a estrutura do novo dia foi estruturada no acontecimento da sua morte. O Finnegan primevo já foi substituído por HCE, que veio pelo mar para estabelecer família e negócios.
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Capítulo II Seu Apelido e Reputação É dado um relato mais ou menos confiável dos dias iniciais de HCE e de como ele chegou, através de seu curioso nome. Os rumores sobre sua má conduta no Parque são revistos. Então somos deleitados com a história de como esses rumores cresceram depois do seu encontro com um certo vagabundo no Phoenix Park. As histórias indecentes culminam em uma sátira popular , “A Balada de Perse O´Reilly”, que põe em HCE a culpa de todas as desgraças locais. Capítulo III HCE- Seu Julgamento e Prisão Através da tela nebulosa do escândalo pouco pode ser esclarecido. Como o autor aponta, tudo aconteceu há muito tempo e os participantes não estão mais vivos – ainda que seus correlativos habitem entre nós. Uma sucessão de personalidades aparece voluntariamente para explicar o caso de HCE. Todos se parecem de algum modo com o acusado. Transeuntes são entrevistados para darem uma opinião sobre o famoso transgressor. É contada a história de sua prisão. Seu destino é comparado ao dos “sugar-daddy” americanos. Diz-se que as mulheres em questão acabam mal. Depois que a confusão acaba, HCE, o eterno bode expiatório é preso para sua própria proteção e severamente insultado através do buraco da fechadura da sua cela por um porcalhão dos EUA.
Capítulo IV HCE- Sua Libertação e Ressurreição Vários pensamentos passam pela mente do prisioneiro HCE. Enquanto isso, um túmulo subaquático é preparado para ele no fundo de Lough Neagh, onde, logo, ele é induzido a entrar. Durante o caos geral que se segue imediatamente, aparições fantasmagóricas de HCE são relatadas de diferentes modos, de diversos campos de batalha. O paganismo obsceno do seu dia e a origem de certo monte de lama no qual foi depositada uma carta são descritos pela faxineira, Viúva Kate. Esta é a primeira alusão ao grande
tema da Carta, mencionado diversas vezes em todo o livro. Um novo conflito e prisão, e o julgamento de um certo Festy King, reproduzem com consideráveis variações o caso de HCE. Festy King é Shaun o Carteiro; seu delator, Shem o Escritor; eles são os filhos do grande personagem. Todos agora aguardam uma certa carta que, supõe se , talvez revele toda a verdade. Enquanto isso, os Quatro Juízes Velhos remoem os dias de HCE Nota-se que o habitante do túmulo aquoso escapou e pode estar em qualquer lugar. Talvez ele tenha encarnado no Papa recentemente eleito. Mas sabendo da sua história, o que queremos saber agora é a história da esposa sofredora e clemente. Capítulo 5 O Manifesto de ALP Este capítulo examina minuciosamente a origem e a caligrafia da Grande Carta, que apareceu sob diferentes nomes em diferentes tempos e lugares. Foi extraída de um monte de lama por uma galinha, foi salva por Shem, mas então passada por Shaun como sua própria descoberta. A análise erudita da carta por um eminente professor revelam- na como pré-cristã, pós- bárbara, e particularmente celta. Sugere-se que o escritor responsável pelo manuscrito dessa carta tenha muito de Shem O Escritor. (Essa carta, que ainda sofrerá muitas metamorfoses durante o curso de Finnegans Wake, é a revelação parcial da Mãe Natureza sobre a majestade de Deus, o Pai; simultaneamente, é a comunicação interrompida daquela revelação através da poesia e do mito- ALP a musa, Shem o escriba; finalmente, é o princípio e substância do próprio Finnegans Wake). Capítulo 6 Enigmas- Os Personagens do Manifesto Na forma de uma prova o professor que acabou de analisar a carta manuscrita agora propõe uma série de enigmas a respeito dos personagens revelados até esse ponto: (1) O Pai, (2) A Mãe, (3) A Sua Casa, (5) O Criado, (7) A Faxineira, (8) Os Doze Fregueses Sonolentos, (8) A Sedutora, (9) A História do Homem, (10) A Filha Dele Sonhando com o Amor no seu Espelho, (11) A Polaridade da Batalha dos
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seus Filhos, (12) Aquele Shem Maldito (that cursed shem) A questão 11 é respondida por um professor ponderado , que discute a história e a metafísica do conflito fraterno e demonstra a relação do triângulo Shem-Shaun-Isolda com HCE-ALP.Para ajudar aqueles incapazes de seguir sua complexa tese ele oferece a parábolado “Mookse and the Gripes”, na qual a conquista da Irlanda por Henrique II com o estímulo do Papa Adriano IV é apresentada como a fábula Alice no País das Maravilhas traduzida do javanês. O Professor Jones é uma espécie de Shaun e o seu discurso é uma apologia para vita sua. Capítulo 7 Shem, o Escriba O temperamento vil, o auto exílio, a moradia imunda, as vicissitudes e os escritos corrosivos do outro filho de HCE compõem o tema desse capítulo. É uma paródia mal disfarçada da vida do próprio Joyce como artista. É um capítulo curto, bastante divertido e comparativamente de fácil leitura. Capítulo 8 As Lavadeiras no Vau Duas lavadeiras enxaguando roupas nas margens opostas do rio Liffey fofocam sobre as vidas de HCE e ALP. Cada peça de roupa lembra-as de uma história, que recontam com piedade, ternura e irônica brutalidade. A história principal é a de ALP no jogo de bola de seus filhos, onde ela desvia a atenção do escândalo do pai dando para cada um uma prova do seu próprio destino. A atenção é assim conduzida através de reminiscências dos pais para a geração em formação dos filhos e filhas. Conforme o rio se alarga e o sol se põe, as lavadeiras perdem o contato uma com a outra; elas querem notícias das crianças, Shem and Shaun; a noite cai e elas se metamorfoseiam gradualmente em um olmo e uma pedra; o rio continua o seu murmúrio.
Livro II: O Livro dos Filhos Capítulo 1 A Hora das Crianças Os filhos do taberneiro brincam a noite em frente a taverna. Shem e Shaun, sob os nomes de Glug e Chuff, brigam pela aprovação das garotas. Glug (Shem) perde, e se afasta com uma ameaça rancorosa de escrever uma lamentação vingativa. Chamam as crianças para jantar e ir para cama. Brincam de novo antes de dormir, e são finalmente silenciadas pelo som trovejante da batida da porta pelo pai. Capítulo 2 O Período do Estudo- Triv e Quad Dolph (Shem), Kev (Shaun), e sua irmã estão em suas aulas. Suas pequenas tarefas se abrem para o mundo todo da aprendizagem humana: Teologia Cabalista, Filosofia Viconiana, as sete artes liberais do Trivium e do Quadrivium, com um breve intervalo para a escrita de cartas e belas letras. A atenção é guiada por processos graduais dos mistérios obscuros da cosmogonia à Chapelizod. Enquanto a garotinha medita sobre o amor, Dolph ajuda Kev com um problema de geometria, revelando a ele através de círculos e triângulos os segredos maternos de ALP. Kev indignadamente derruba-o com um golpe; Dolph recupera-se e perdoa. O capítulo termina com um exame final e a formatura. As crianças estão prontas para criar seu próprio Novo Mundo, que se baseará no Velho. Capítulo 3: A Taverna em Festa Este capítulo, aproximadamente um sexto do bruto do Finnegans Wake, é ostensivamente uma grande festa na taverna de HCE. As histórias circulam e o radio e a tv interrompem constantemente. Nós ouvimos por acaso fregueses da taverna contando as fabulosas histórias do Holandês Voador, viajante marítimo o qual nós chegamos a suspeitar ser HCE numa fase anterior. Toda a história da presença de HCE na cidade e seus
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infortúnios no Parque estão sendo relatados sob a cobertura da história do Holandês Voador. A medida que a bebedeira e as histórias se sucedem, nós chegamos a metade do Finnegans Wake, com a parte do sketch televisivo “ Butt e Taff”. Esses personagens de Vaudeville ensaiam a história de como Buckley atirou em um general russo na Batalha de Sevastopol na Guerra da Criméia. Entre ecos do “The Charge of the Light Brigade” aparece a figura do General Russo na tela da televisão; ele é a imagem viva de HCE. Quando o radio e a televisão são desligados todo o grupo reúne-se a Buckley. Mas o taverneiro chega para apoiar o General russo.O grupo concorda quanto a uma condenação ferrenha ao seu anfitrião, o qual, parece, está correndo para a repartição pública. Está quase na hora de fechar. Ao longe ouvimos o som da aproximação de uma multidão, cantando uma balada que comemora a culpa e a derrota de HCE. Ao perceber que ele foi rejeitado pelo povo que governou , o taverneiro limpa seu lugar e finalmente se vê sozinho. Em desespero ele lambe os restos dos copos e garrafas e cai bêbado no chão. Ele agora contempla, como um sonho, a visão do próximo capítulo.
Shaun reconta a fábula esopiana “The Ondt and the Gracehoper” (a futa e o graçanhoto?). Seu principal argumento contra Shem é que a sua linguagem é inaceitável para a decência humana. A visão se dissipa e ergue-se um lamento pelo herói que partiu.
Capítulo 4 Navio-Noiva e Gaivotas HCE, sonhando no chão, se vê como Rei Mark, corneado pelo jovem Tristão, que navegou para longe com Isolda. O barco de lua-de-mel é rodeado por gaivotas , i.e., os Quatro Homens Velhos, os quais observam o vívido evento a partir de suas Quatro Direções. HCE, enfraquecido e exausto, agora não está melhor do que eles.
Shaun, (agora Yawn) deita-se esparramado num cume (atop a ridge) no centro da Irlanda. Os Quatro Velhos e seu Asno chegam para presidir um inquérito. Impiedosamente eles interrogam o grandalhão prostrado, e pouco a pouco ele se desintegra. Irrompem vozes vindas de estratificações cada vez mais profundas. Shaun é revelado como o gigantesco representante das últimas e maiores implicações de HCE. Na medida em que o interrogatório prossegue, torna-se maior aquilo com que os quatro investigadores velhos conseguem lidar. As queixas da Índia e Irlanda violentadas, boatos deturpados, testemunhas e júris auto-contraditórios, gritos desconexos e selvagens de vozes subliminares há muito esquecidas, a própria cena primeva do FINNEGANS WAKE, emanando do titã agonizante. Um grupo de jovens conselheiros não-oficiais assume a direção, para pressionar a conclusão do inquérito. Sua série de perguntas logo co-ordenam as provas.
Livro III: O Livro do Povo Capítulo I Shaun Diante do povo HCE se recompõe e vai para cama com sua esposa. Sua visão onírica do futuro se desdobra. Shaun o Carteiro é visto de pé diante do povo pedindo seus votos e insultando seu rival, Shem. Para ilustrar o contraste com o irmão
Capítulo 2 Jaun diante da Academia de St. Bride Shaun, agora com nome de Jaun (Dom Juan), aparece diante de garotinhas da academia de st. Bride, Isolda e suas 28 companheiras. Ele faz astuciosamente um longo sermão de despedida para elas, prudente e prático, cínico e sentimental , e lascivo. Ele está prestes a partir numa grande missão.. Jaun é um vendedor pomposo, uma paródia do Cristo da Última Ceia, dando conselhos aos poucos presentes em sua Igreja. Ele apresenta Shem, seu irmão, o paracleto que servirá sua noiva durante sua ausência. Apressando-se com belas ladainhas, ele parte – o famoso Mau Portador da Palavra. Capítulo 3 Yawn sob Inquérito
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Eles intimam Kate, a viùva de tempos idos, e finalmente evocam a presença do próprio pai. A voz de HCE emana numa imensa e abarcadora onda, e toda a cena se dissolve na substância primordial de HCE. Capítulo 4 HCE e ALP- Seu Leito de Julgamento Os Quatro Inquisidores Velhos estão agora sentados em torno da cama paterna. Eles são os pilares dos quatro carteiros. A longa noite se transforma no alvorecer; as ficções do sonho se esvanescem nos móveis do quarto. Todos dormem. Um fraco choro é ouvido de Jerry (Shem), o qual teve um sonho horrível. A mãe preocupada pula da cama, apanha o lampião, e, seguida pelo marido, sobe depressa para o quarto do filho. Filho confortado, mãe e pai voltam para cama. Suas sombras na persiana lampejam a cópula de HCE e ALP. O galo canta; amanhece. Macho e fêmea relaxam para uma soneca matinal. Livro IV: Ricorso Vozes angelicais anunciam o dia. O dorminhoco rolou para lá e para cá ; um feixe de luz incomoda sua nuca. O mundo espera o ilustre herói dos novos dias. Enviado do lago da noite e celebrado por vozes femininas, surge o vulto do inocente Santo Kevin. O momento idílico é sugestivo do fascinante alvorecer Cristão da Irlanda no século V. O dia avança. Os dorminhocos estão acordando. As ambiguidades da noite logo serão dispersas. O momento do triunfo da vigília sobre o profundo sonho mitológico é representado como a chegada de São Patrick (ca. A.D. 432) e sua recusa ao Druidismo místico. Depois disso tudo se move em direção ao esclarecimento. No entanto as coisas não mudaram essencialmente, apenas se renovaram. O jornal da manhã e a carta de ALP na caixa de correio contarão para você todas as notícias da noite anterior. Durante o sono matinal, a mulher sentiu o marido se distanciar dela. O tempo passou para ambos; suas esperanças estão agora nos filhos. HCE é agora a casca quebrada de Humpty-Dumpty, ALP o derradeiro fluxo
manchado pela vida enquanto volta para o mar. O impetuoso fluxo do seu desejo por libertação das margens opressivas e por um reencontro com o oceano infinito expande-se em um magnífico monólogo. Anna Liffey volta ao imenso pai-Tritão; neste momento os olhos se abrem, o sonho cessa, e o ciclo está pronto para começar de novo.
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Elementos para uma cartografia da grupalidade Peter Pál Pelbart Para pensar a questão da grupalidade, pretendo oferecer alguns tópicos conceituais distintos, inspirados em diferentes pensadores. Não posso, aqui, aprofundar nenhum deles, será uma evocação supersônica de cada um, talvez um pouco selvagem. O propósito é que cada um escolha, disso tudo, o que mais lhe interesse para pensar a questão dos grupos, deixando de lado o resto, e componha sua problemática segundo suas necessidades. Indivíduo, potência Cada indivíduo poderia ser definido por um grau de potência singular e, por conseguinte, por um certo poder de afetar e de ser afetado. Deleuze gosta de dar o exemplo do carrapato, que busca o lugar mais alto da árvore, depois se deixa cair quando passa algum mamífero, e se enfia debaixo da pele do animal, chupando o seu sangue. A luz, o cheiro, o sangue – eis os três elementos que afetam o carrapato. Ele pode ficar um tempo longuíssimo na espera jejuante em meio à floresta imensa e silenciosa, depois ploft, o festim de sangue, e depois quiçá a morte. Então o que é um carrapato? Ora, ele deve ser definido pelos seus afectos. Como fazer a cartografia de seus afectos? Como mapear “etologicamente” os afectos de uma pessoa? É óbvio que os afectos de que é capaz um burocrata e um dançarino não são os mesmos. O poder de ser afetado de um burocrata, basta ler Kafka para ter uma idéia claríssima. E a capacidade de ser afetado e de afetar de um artista, qual é? Será que a de um dançarino é a mesma que a de um ator? Será que a de um acrobata é a mesma que a do jejuador? De novo Kafka, vejam-se aqueles pequenos contos sobre artistas, em O Artista da Fome, por exemplo. Então somos um grau de potência, definido por nosso poder de afetar e de ser afetado, e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa. Vamos aprendendo a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que com
ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui, e, por conseguinte, o que resulta em alegria, ou tristeza. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros, e a compor, é uma grande arte. A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir. Isso abre para um problema ético importante: como é que aqueles que detêm o poder fazem questão de nos afetar de tristeza? As paixões tristes como necessárias ao exercício do poder. Inspirar paixões tristes – é a relação necessária que impõe o sacerdote, o déspota, inspirar tristeza em seus sujeitos. A tristeza não é algo vago, é o afecto enquanto ele implica a diminuição da potência de agir. Existir é, portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois pólos, essas subidas e descidas, elevações e quedas. Então, como preencher o poder de afetar e ser afetado que nos corresponde? Por exemplo, podemos apenas ser afetados pelas coisas que nos rodeiam, nos encontros que temos ao sabor do acaso, podemos ficar à mercê deles, passivamente, e portanto ter apenas paixões. E esses encontros podem apenas ser maus encontros, que nos dêem paixões tristes, ódio, inveja, ressentimento, humilhação, e isso diminui nossa força de existir e nos separa de nossa potência de agir. Ora, poucos filósofos combateram tão ardentemente o culto das paixões tristes, mas não por razões morais, e sim por razões, digamos, éticas. O que Espinosa quer dizer é que as paixões não são um problema, elas existem e são inevitáveis, não são boas nem ruins, são necessárias no encontro dos corpos e nos encontros das idéias. O que, sim, numa certa medida, é evitável são as paixões tristes, que nos escravizam na impotência. Em outros termos, apenas por meio das paixões alegres nós nos aproximamos daquele ponto de conversão em que podemos deixar de apenas padecer, para podermos agir; deixar de ter apenas paixões, para podermos ter ações, para podermos desdobrar nossa potência de agir, nosso poder de afetar, nosso poder de sermos a causa direta das nossas ações, e não de obedecermos sempre a causas externas, padecendo delas, estando sempre à mercê delas.
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Como se vê, quando se concebe o comum como um fundo virtual, como vitalidade social pré-individual, como pura heterogeneidade não totalizável, ele nada tem a ver com unidade, medida, soberania, muito menos com as figuras midiáticas, políticas, imperiais que pretendem hipostasiá-lo, representálo ou expropriá-lo. Daí porque a resistência hoje passa por um êxodo em relação a essas instâncias que transcendentalizam o comum, e sobretudo pela experimentação imanente desse comum, pelas composições e recomposições que o perfazem, pelas redistribuições de afeto que essas composições e recomposições propiciam, pelos novos possíveis que a partir daí se abrem e se inventam. Nostalgias da comunidade Jean-Luc Nancy, em seu La Communauté Desoeuvrée, lembra que, segundo a tradição teórica ocidental, lá onde há sociedade, perdeu-se a comunidade. Quem diz sociedade já diz perda ou degradação de uma intimidade comunitária, de tal maneira que a comunidade é aquilo que a sociedade destruiu. É assim que teria nascido o solitário, aquele que no interior da sociedade desejaria ser cidadão de uma comunidade livre e soberana, precisamente aquela que a sociedade arruinou. Rousseau, por exemplo, seria o primeiro pensador da comunidade, que tinha a “consciência de uma ruptura (talvez irreparável) dessa comunidade”. Ele foi seguido pelos românticos, por Hegel. Diz Nancy: “Até nós, a história terá sido pensada sob fundo de [uma] comunidade perdida – [uma comunidade] a reencontrar ou a reconstituir”. A comunidade perdida ou rompida pode ser exemplificada de várias formas, como a família natural, a cidade ateniense, a república romana, a primeira comunidade cristã, corporações, comunas ou fraternidades... Sempre referida a uma era perdida em que a comunidade se tecia em laços estreitos, harmoniosos, e dava de si mesma, pelas instituições, ritos, símbolos, a representação de sua unidade. “Distinta da sociedade (...) a comunidade não é apenas a comunicação íntima de seus membros entre si, mas também a comunhão orgânica dela mesma com sua própria essência.” Ela é constituída pelo compartilhamento de uma identidade, segundo o modelo da família e do amor.
O autor conclui que seria preciso desconfiar dessa consciência retrospectiva da perda da comunidade e de sua identidade, bem como do ideal prospectivo que essa nostalgia produz, uma vez que ela acompanha o Ocidente desde seu início. A cada momento de sua história ele se entrega a uma nostalgia de uma comunidade perdida, desaparecida, arcaica, deplorando a perda de uma familiaridade, de uma fraternidade, de um convívio. O curioso é que a verdadeira consciência da perda da comunidade é cristã: a comunidade pela qual anseiam Rousseau, Schlegel, Hegel, Bakunin, Marx, Wagner ou Mallarmé se pensa como comunhão, no seio do corpo místico de Cristo. A comunidade seria o mito moderno da participação do homem na vida divina. O anseio de comunidade seria uma invenção tardia que visava responder à dura realidade da experiência moderna, da qual a divindade se retirava infinitamente (como o mostrou Hölderlin). A morte de Deus seria um modo de se referir à morte da comunidade, e traria embutida essa promessa de uma ressurreição possível, numa imanência comum entre o homem e Deus. Toda a consciência cristã, moderna, humanista da perda da comunidade vai nessa direção. A comunidade nunca existiu Ao que Nancy responde, simplesmente: “La communauté n´a pas eu lieu” (A comunidade nunca existiu). Nem nos índios guayaqui, nem no espírito de um povo hegeliano, nem na cristandade. “A Gesellschaft (sociedade) não veio, com o Estado, a indústria, o capital, dissolver uma Gemeinschaft (comunidade) anterior.” Seria mais correto dizer que a “sociedade”, compreendida como associação dissociante das forças, das necessidades e dos signos, tomou o lugar de alguma coisa para a qual não temos um nome, nem conceito, e que mantinha uma comunicação muito mais ampla do que a do laço social (com os deuses, o cosmo, os animais, os mortos, os desconhecidos) e ao mesmo tempo uma segmentação muito mais definida, com efeitos mais duros (de solidão, inassistência, rejeição etc.). “A sociedade não se construiu sobre a ruína de uma comunidade.. a comunidade, longe de ser o que a sociedade teria rompido ou perdido, é o que nos acontece – questão, espera, acontecimento, imperativo – a partir da sociedade. (...) Nada foi perdido, e por esta
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razão nada está perdido. Só nós estamos perdidos, nós sobre quem o ‘laço social’ (as relações, a comunicação), nossa invenção, recai pesadamente...” Ou seja, a comunidade perdida não passa de um fantasma. Ou aquilo que supostamente se perdeu da “comunidade”, aquela comunhão, unidade, copertinência, é essa perda que é precisamente constitutiva da comunidade. Em outros termos, e da maneira mais paradoxal, a comunidade só é pensável enquanto negação da fusão, da homogeneidade, da identidade consigo mesma. A comunidade tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância. Daí a condenação categórica do desejo de fusão comunial, pois implica sempre a morte ou o suicídio, de que o nazismo seria um exemplo extremo. O desejo de fusão unitária pressupõe a pureza unitária, e sempre se pode levar mais longe as exclusões sucessivas daqueles que não respondem a essa pureza, até desembocar no suicídio coletivo. Aliás, por um certo tempo, o próprio termo comunidade, dado o seqüestro de que foi objeto por parte dos nazistas, com seu elogio da “comunidade do povo”, desencadeava um reflexo de hostilidade na esquerda alemã. Foram precisos vários anos para que o termo fosse desvinculado do nazismo e reconectado com a palavra comunismo. Em todo caso, a imolação, por meio ou em nome da comunidade, fazia a morte ser reabsorvida pela comunidade, com o que a morte tornava-se plena de sentido, de valores, de fins, de história. É a negatividade reabsorvida (a morte de cada um e de todos reabsorvida na vida do infinito). Mas a obra de morte, insiste Nancy, não pode fundar uma comunidade. Muito pelo contrário: é unicamente a impossibilidade de fazer obra da morte que poderia fundar a comunidade. Ao desejo fusional, que da morte faz obra, contrapõe-se uma outra visão de comunidade, na contramão de toda nostalgia, de toda metafísica comunial. Segundo o autor não surgiu ainda uma tal figura de comunidade. Talvez isso queira dizer que aprendemos devagar que não se trata de modelar uma essência comunitária, mas antes de pensar a exigência insistente e insólita de comunidade, para além dos totalitarismos que se insinuam de todo lado, dos projetos técnico-econômicos que substituíram os projetos comunitárioscomunistas-humanistas. Nesse sentido a exigência de comunidade ainda nos seria
desconhecida, é uma tarefa, mesmo com as inquietudes pueris, por vezes confusas, de ideologias comuniais ou conviviais. Por que essa exigência de comunidade nos seria desconhecida? Pois a comunidade, na contramão do sonho fusional, é feita de interrupção, fragmentação, suspense, é feita dos seres singulares e seus encontros. Daí porque a própria idéia de laço social que se insinua na reflexão sobre a comunidade é artificiosa, pois elide precisamente esse entre. Comunidade como o compartilhamento de uma separação dada pela singularidade. Chegamos assim a uma idéia curiosa. Se a comunidade é o contrário da sociedade, não é porque seria o espaço de uma intimidade que a sociedade destruiu, mas quase o contrário, porque ela é o espaço de uma distância que a sociedade, no seu movimento de totalização, não pára de esconjurar. Em outras palavras, como diz Blanchot em seu livro La Communauté Inavouable, na comunidade já não se trata de uma relação do Mesmo com o Mesmo, mas de uma relação na qual intervém o Outro, e ele é sempre irredutível, sempre em dissimetria, ele introduz a dissimetria. Por um lado, então, o infinito da alteridade encarnada pelo Outro devasta a inteireza do sujeito, fazendo ruir sua identidade centrada e isolada, abrindo-o para uma exterioridade irrevogável, num inacabamento constitutivo. Por outro lado, essa dissimetria impede que todos se reabsorvam numa totalidade que constituiria uma individualidade ampliada, como costuma acontecer quando, por exemplo, os monges se despojam de tudo para fazer parte de uma comunidade, mas a partir desse despojamento tornam-se possuidores de tudo, assim como no kibutz, ou nas formas reais ou utópicas de comunismo. Em contrapartida, está isso que já mal ousaremos chamar de comunidade, pois não é uma comunidade de iguais, e que seria antes uma ausência de comunidade, no sentido de que é uma ausência de reciprocidade, de fusão, de unidade, de comunhão, de posse. Essa comunidade negativa, como a chamou Georges Bataille, comunidade dos que não têm comunidade, assume a impossibilidade de sua própria coincidência consigo mesma. Pois ela é fundada, como diria ele, sobre o absoluto da separação que tem necessidade de afirmar-se para se romper até tornarse relação, relação paradoxal, insensata. Insensatez que está numa recusa que talvez
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Deleuze insiste no seguinte: ninguém sabe de antemão de que afectos é capaz, não sabemos ainda o que pode um corpo ou uma alma, é uma questão de experimentação, mas também de prudência. É essa a interpretação etológica de Deleuze: a ética seria um estudo das composições, da composição entre relações, da composição entre poderes. A questão é saber se as relações podem compor-se para formar uma nova relação mais “estendida”, ou se os poderes podem se compor de modo a constituir um poder mais intenso, uma potência mais “intensa”. Trata-se então, diz Deleuze, das “sociabilidades e comunidades. Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode tomar um outro no seu mundo, mas conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios?” A partir daí, pode-se pensar a constituição de um “corpo” múltiplo com suas relações específicas de velocidade e de lentidão. Pensar um corpo grupal como essa variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre potências singulares, numa certa composição de velocidade e lentidão. Mas como pensar a consistência do “conjunto”? Deleuze e Guattari invocam com freqüência um “plano de consistência”, um “plano de composição”, um “plano de imanência”. Num plano de composição, tratase de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e afetos. É um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. Num plano de composição o que está em jogo é a consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados. Como diz a conclusão praticamente ininteligível de Mil Platôs, o que se inscreve num plano de composição são os acontecimentos, as transformações incorporais, as essencias nômades, as variações intensivas, os devires, os espaços lisos – é sempre um corpo sem órgãos. O comum Seria preciso agora pensar a questão do comum, tão importante quando se considera um grupo, uma sociedade, um conjunto humano. Uma constatação trivial é
evocada com insistência por vários autores contemporâneos, entre eles Toni Negri, Giorgio Agamben, Paolo Virno, Jean-Luc Nancy, ou mesmo Maurice Blanchot. A saber, a de que vivemos hoje uma crise do “comum”. As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para defender a “vida” supostamente “comum”, ou, mais precisamente, para defender uma forma de vida dita “comum”. No entanto, sabemos bem que essa “vida” ou “forma de vida” não é realmente “comum”, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um seqüestro. Se de fato há hoje um seqüestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do “comum” começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro. Num outro contexto, Deleuze lembra que, a partir sobretudo da Segunda Guerra Mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são, meros clichês, os clichês da relação, os clichês do amor, os clichês do povo, os clichês da política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e é quando eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é, imagens prontas, préfabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do empírico, somente então pôde o pensamento liberar-se deles para encontrar aquilo que é “real”, na sua força de afetação, com conseqüências estéticas e políticas a determinar.
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Bartleby dramatize da maneira mais extrema: a recusa de fazer obra. É ali onde a comunidade serve para... nada. É ali, talvez, que ela começa a tornar-se soberana. Ousemos levar esse pensamento ao seu extremo, com todo o risco que ele comporta, já que não se trata aqui de transmitir uma doutrina, mas experimentar um feixe de idéias. Maio de 68 e o desejo de comunidade Seria preciso retornar agora ao tema da comunidade, tendo por pano de fundo essa idéia nada convencional, pois contraria nossa tradição produtivista e comunicacional, tanto de soberania quanto de comunidade. Poderíamos acompanhar o belo comentário feito por Maurice Blanchot sobre o maio de 68, logo na seqüência de suas observações a respeito da obra de Bataille sobre a comunidade impossível, a comunidade ausente, a comunidade negativa, a comunidade dos que não têm comunidade. Depois de uma descrição da atmosfera do maio de 68, que inclui a comunicação explosiva, a efervescência, a liberdade de fala, o prazer de estar junto, uma certa inocência, a ausência de projeto, Blanchot se refere à recusa de tomar o poder ao qual se delegaria alguma coisa – é como se fosse uma declaração de impotência. Como uma presença que, para não se limitar, aceita não fazer nada, aceita estar lá, e depois ausentar-se, dispersar-se. Ao descrever o caráter incomum desse “povo” que se recusa a durar, a perseverar, que ignora as estruturas que poderiam dar-lhe estabilidade, nesse misto de presença e ausência, ele escreve: “É nisso que ele é temível para os detentores de um poder que não o reconhece: não se deixando agarrar, sendo tanto a dissolução do fato social quanto a indócil obstinação em reinventá-lo numa soberania que a lei não pode circunscrever, já que ela a recusa”... É essa potência impotente, sociedade a-social, associação sempre pronta a se dissociar, dispersão sempre iminente de uma “presença que ocupa momentaneamente todo o espaço e no entanto sem lugar (utopia), uma espécie de messianismo não anunciando nada além de sua autonomia e sua inoperância”, o afrouxamento sorrateiro do liame social, mas ao mesmo tempo a inclinação àquilo que se mostra tão impossível quanto inevitável – a comunidade.
Blanchot, nesse ponto, diferencia a comunidade tradicional, a da terra, do sangue, da raça, da comunidade eletiva. E cita Bataille: “Se esse mundo não fosse constantemente percorrido pelos movimentos convulsivos dos seres que se buscam um ao outro..., ele teria a aparência de uma derrisão oferecida àqueles que ele faz nascer”. Mas o que é esse movimento convulsivo dos seres que se buscam um ao outro? Seria o amor, como quando se diz comunidade dos amantes? Ou o desejo, conforme o assinala Negri, ao dizer: “O desejo de comunidade é o espectro e a alma do poder constituinte – desejo de uma comunidade tão real quanto ausente, trama e modo de um movimento cuja determinação essencial é a exigência de ser, repetida, premente, surgida de uma ausência”? Ou se trata de um movimento que não suporta nenhum nome, nem amor nem desejo, mas que atrai os seres para jogá-los uns em direção aos outros, segundo seus corpos ou segundo seu coração e seu pensamento, arrebatando-os à sociedade ordinária? Há algo de inconfessável nessa estranheza, que, não podendo ser comum, é não obstante o que funda uma comunidade, sempre provisória e sempre já desertada. Alguma coisa entre a obra e a inoperância... Talvez seja o que tenha interessado a JeanLuc Nancy: requalificar uma região que já nenhum projeto comunista ou comunitário carregava. Repensar a comunidade em termos distintos daqueles que, na sua origem cristã, religiosa, a tinham qualificado (a saber, como comunhão), repensá-la em termos da instância do “comum”, com todo o enigma aí embutido e a dificuldade de compreender esse comum, “seu caráter não dado, não disponível e, nesse sentido, o menos ‘comum’ do mundo”. Repensar o segredo do comum que não seja um segredo comum. O desafio obrigou o autor a um deslocamento, a saber, falar mais em estar-em-comum, estar-com, para evitar a ressonância excessivamente plena que foi ganhando o termo comunidade, cheia de substância e interioridade, ainda cristã (comunidade espiritual, fraternal, comunial) ou mais amplamente religiosa (comunidade judaica, ‘umma) ou étnica, com todos os riscos fascistizantes da pulsão comunitarista. Mesmo a comunidade inoperante, como a havia chamado Nancy em seus comentários a partir de Bataille, com sua recusa dos Estados-nação,
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partidos, assembléias, povos, companhias ou fraternidades, deixava intocado esse domínio do comum, e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os fundamentalismos instrumentalizam crescentemente. O socialismo das distâncias Que esse tema seja mais do que uma obsessão individual de um autor, atesta-o sua presença recorrente entre pensadores dos anos 1960-70. Em curso ministrado no Collège de France em 1976-77, por exemplo, Roland Barthes gira em torno da questão Comment vivre-ensemble (Como viver junto). Ele parte daquilo que considera ser seu “fantasma”, mas que, visivelmente, não é apenas um fantasma individual, e sim o de uma geração. Por fantasma Barthes entende a persistência de desejos, o assédio de imagens que insistem num autor, por vezes ao longo de toda uma vida, e que se cristalizam numa palavra. O fantasma que Barthes confessa ser o seu, fantasma de vida, de regime, de gênero de vida, é o “viver-junto”. Não o viver-a-dois conjugal, nem o viver-emmuitos segundo uma coerção coletivista. Algo como uma “solidão interrompida de maneira regrada”, um “pôr em comum distâncias”, “a utopia de um socialismo das distâncias”, na esteira do “pathos da distância” evocado por Nietzsche. Barthes refere-se com mais precisão a seu “fantasma”, ao evocar a leitura de uma descrição de Lacarrière sobre conventos situados no monte Athos. Monges com uma vida em comum e, ao mesmo tempo, cada um seguindo seu ritmo próprio. “Idiorritmia” (idios: próprio, ruthmos: ritmo). Nem o cenobitismo, forma excessiva da integração, nem o eremitismo, forma excessiva da solidão negativa. A idiorritmia como forma mediana, idílica, utópica.. O fantasma do viver-junto (ou sua contrapartida: o viver-só) está muito presente em toda a literatura. Por exemplo o viver-junto em A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ao mesmo tempo fascinante e claustrofóbico, ou o viver-só no Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. Ou a biografia de alguns pensadores, como é o caso de Espinosa, que no final da vida se retira para Voorburg, perto de Haia, onde aluga um quarto e de vez em quando
desce para conversar com seus hospedeiros – verdadeiro anacoreta, comenta Barthes, ao chamar a atenção para o desejo de criar uma estrutura de vida que não seja um aparelho de vida. Em todo caso é um modo de fugir ao poder, negá-lo ou recusá-lo (anachorein, em grego: retirar-se para trás). Hoje poderia ser traduzido em termos de fatasma de distanciamento, atos de arrebatamento em relação à gregariedade, e que recebe vez por outra uma ressonância política inusitada. O comum e a singularidade qualquer É o caso de Giorgio Agamben, com seu livro intitulado A Comunidade que Vem. Ali ele recorda a bela frase de Heráclito: “Para os despertos um mundo único e comum é, mas aos que estão no leito cada um se revira para o seu próprio”. O comum era o logos. A expropriação do comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando toda a linguagem é seqüestrada por um regime democráticoespetacular, e a linguagem se autonomiza numa esfera separada, de modo tal que ela já não revela nada e ninguém se enraiza nela, quando a comunicatividade, aquilo que garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a própria comunicação, atingimos um ponto extremo do niilismo. Como desligar-se dessa comunicatividade totalitária e vacuizada? Como desafiar aquelas instâncias que expropriaram o comum, e que o transcendentalizaram? É onde Agamben evoca uma resistência vinda, não como antes, de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque na praça Tienanmen, que já não se define por sua pertinência a uma identidade específica, seja de um grupo político, seja de um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar, a singularidade qualquer que o recusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio Estado na figura de uma formação identitária reconhecível. A singularidade qualquer, que não reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a condição, dizia Agamben vários anos atrás, de toda
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Ora, hoje, tanto a percepção do seqüestro do comum como a revelação do caráter espectral desse comum transcendentalizado se dá em condições muito específicas. A saber, precisamente num momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público, seja como política, hoje o comum é o espaço produtivo por excelência. O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história, pois no seu núcleo propriamente econômico e biopolítico, a prevalência do “comum”. O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum, a saber, a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação e, por conseguinte, a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nesse contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Nem poderia ser diferente: afinal, o que seria uma linguagem privada? O que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber exclusivamente auto-referido? Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela apropriação do comum, pela expropriação do comum, pela privatização do comum, pela vampirização do comum empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, com finalidades que o capitalismo não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.
Sensorialidade alargada Se a linguagem, que desde Heráclito era considerada o mais comum, tornou-se hoje o cerne da própria produção, como intelecto geral, como conjunto dos cérebros em cooperação, como intelectualidade de massa, é preciso dizer que o comum contemporâneo é mais amplo do que a mera linguagem, dado o contexto da sensorialidade alargada, da circulação ininterrupta de fluxos, da sinergia coletiva, da pluralidade afetiva e da subjetividade coletiva daí resultante. Esse comum passa hoje pelo bios social propriamente dito, pelo agenciamento vital, material e imaterial, biofísico e semiótico, que constitui hoje o núcleo da produção econômica mas também da produção de vida comum. Ou seja, é a potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de produção de laço, de capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, como diz Maurizio Lazzarato na esteira de Tarde, que é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Por isso mesmo este comum é o visado pelas capturas e seqüestros capitalísticos, mas é esse comum igualmente que os extrapola, fugindo-lhe por todos os lados e todos os poros. Sendo assim, seríamos tentados a redefinir o comum a partir desse contexto preciso. Parafraseando Paolo Virno, seria o caso de postular o comum mais como premissa do que como promessa, mais como um reservatório compartilhado, feito de multiplicidade e singularidade, do que como uma unidade atual compartida, mais como uma virtualidade já real do que como uma unidade ideal perdida ou futura. Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria a-orgânica, um corpo sem órgãos, um ilimitado (apeiron) apto às individuações as mais diversas. Apesar de seu uso um tanto substancializado, em alguns casos o termo “multidão” tenta remeter a um tal conceito, na dinâmica que propõe entre o comum e o singular, a multiplicidade e a variação, a potência desmedida e o poder soberano que tenta contê-la, regulá-la ou modulá-la.
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política futura. Bento Prado Jr., referindo-se a Deleuze, utilizou uma expressão adequada a essa figura que emerge dos vários textos mencionados: o solitário solidário. * * * A propósito do Bartleby, de Melville, aquele escriturário que a tudo responde que “preferiria não”, Deleuze comenta: a particularidade desse homem é que ele não tem particularidade nenhuma, é o homem qualquer, o homem sem essência, o homem que se recusa a fixar-se em alguma personalidade estável. Diferentemente do burocrata servil (que compõe a massa nazista, por exemplo), no homem comum tal como ele aparece aqui se expressa algo mais do que um anonimato inexpressivo: o apelo por uma nova comunidade. Não aquela comunidade baseada na hierarquia, no paternalismo, na compaixão, como o seu patrão gostaria de lhe oferecer, mas uma sociedade de irmãos, a “comunidade dos celibatários”. Deleuze detecta entre os americanos, antes mesmo da independência, essa vocação de constituir uma sociedade de irmãos, uma federação de homens e bens, uma comunidade de indivíduos anarquistas no seio da imigração universal. A filosofia pragmatista americana, em consonância com a literatura americana que Deleuze tanto valoriza, lutará não só contra as particularidades que opõem o homem ao homem, e alimentam uma desconfiança irremediável de um contra o outro, mas também contra o seu oposto, o Universal ou o Todo, a fusão das almas em nome do grande amor ou da caridade, a alma coletiva em nome da qual falaram os inquisidores, como na famosa passagem de Dostoievski, e por vezes os revolucionários. Deleuze pergunta, então: o que resta às almas quando não se aferram mais a particularidades, o que as impede então de fundir-se num todo? Restalhes precisamente sua “originalidade”, quer dizer um som que cada uma emite quando põe o pé na estrada, quando leva a vida sem buscar a salvação, quando empreende sua viagem encarnada sem objetivo particular, e então encontra o outro viajante, a quem reeconhece pelo som. Lawrence dizia ser este o novo messianismo ou o aporte democrático da literatura americana: contra a moral européia da salvação e da caridade, uma moral da vida em que a alma só se realiza
pondo o pé na estrada, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar salvar outras almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando com seus iguais acordos e acordes, mesmo fugidios. A comunidade dos celibatários é a do homem qualquer e de suas singularidades que se cruzam: nem individualismo, nem comunialismo. Neste percurso ziguezagueante, percorremos a comunidade dos celibatários, a comunidade dos sem comunidade, a comunidade negativa, a comunidade ausente, a comunidade inoperante, a comunidade impossível, a comunidade de jogo, a comunidade que vem, a comunidade da singularidade qualquer – nomes diversos para uma figura não fusional, não unitária, não totalizável, não filialista de comunidade, e que pode ser transposta para pensar o grupo, levando-se sempre em conta as especificidades. Para tanto, seria preciso retomar nosso início, a respeito das afetações recíprocas, para repensar a questão da grupalidade de maneira mais múltipla, acentrada, calcada sobretudo no jogo entre as singularidades e o comum, e na potência ampliada da composição – sempre levando em conta o plano de consistência.
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O inconsciente desterritorializado Não posso deixar de mencionar uma circunstância sem a qual a comunicação que segue perderia parte de seu sentido. Há mais de duas décadas, em paralelo com minhas atividades acadêmicas na universidade em São Paulo como professor de Filosofia, iniciei um trabalho terapêutico num Hospital-Dia Psiquiátrico chamado “A Casa”. Quis o acaso que a primeira vez que pus os pés naquela instituição foi em companhia do próprio Guattari, cuja supervisão institucional tive a incumbência de traduzir. Em todo caso, desde aquele dia começou minha convivência cotidiana com pacientes ditos psicóticos, que infletiu minha vida pessoal, profissional, e nutriu, inevitavelmente, minha pesquisa filosófica. Não posso negar que as teorizações de Guattari a respeito da esquizofrenia, do inconsciente maquínico, da transversalidade na instituição, sua experiência em La Borde, o modo como contrabandeava fragmentos de sua prática para o domínio filosófico e micropolítico me inspiraram enormemente ao longo desses anos. Um dos resultados mais concretos dessa frequentação foi um projeto concreto, que já existe há dez anos, a saber: a constituição de uma trupe de teatro com pacientes ditos psiquiátricos. Essa experiência extrapolou os muros da instituição e adentrou o circuito teatral da cidade, intrigando críticos e irrigando coletivos de arte. Em poucos anos, nos desligamos do circuito hospitalar, com mais de cem intervenções, no Brasil, na França, mais recentemente na Documenta de Kassel. A nova montagem será baseada no Finnegans Wake, e chamará Finnegans Ueinzz. Pois bem, assim que a montagem de Finnegans foi decidida, no final do ano passado, fui impelido a ler Joyce freneticamente, e certa bibliografia crítica a respeito. En passant, não pude deixar de interessar-me pelo lugar ambíguo que ocupa Joyce no trajeto de Deleuze. Se rastreamos rapidamente na sua obra as referências ao autor de Ulisses, constatamos facilmente que elas são de três tipos. O primeiro é uma aproximação elogiosa, de Joyce com Nietzsche, a respeito dessa relação imanente e não extrínseca entre caos e cosmos, onde a repetição traz a diferença – tangenciando o núcleo especulativo da filosofia
deleuziana. O segundo tipo de referências é sobre a novidade literária trazida por Joyce, que consistiria nessas múltiplas linhas narrativas que se ‘enrolam’ num caosmos simultâneo, fazendo explodir a identidade da narrativa, do narrador, dos personagens. No terceiro tipo de referências, já nos livros escritos em parceria com Guattari, aparece certa reticência quanto ao anseio de Joyce por uma obra em que coubesse o universo inteiro, por mais fragmentária que fosse sua escrita. Aí, o contraste com Beckett é patente: numa situação pessoal similar (estrangeiro, irlandês, desterrado) Beckett faz o inverso de Joyce: uma “literatura menor”, feita de gagueira e subtração, sem pretensão totalizante. Ora, em contraste com essa ambiguidade final de Deleuze e Guattari, se percorremos a biografia cruzada de François Dosse, constatamos uma curiosidade notável. Quando morreu, Guattari tinha em sua mesa de cabeceira dois livros: Les Chiens D´Éros, de D. H. Lawrence, e Ulysses, de Joyce, em inglês1. Na mesma biografia, Marie Depussé dá um estranho depoimento sobre as ambições literárias de Guattari: “Il n´était pas un véritable écrivain et je pense qu´il en a souffert. Il avait envie de créer. Je crois qu´il a été trop obsedé par Joyce”. O último livro de Guattari leva no título a marca distorcida de Joyce, Caosmose. Quis o destino que minha leitura de Guattari nos últimos meses se cruzasse com a de Joyce, e duvido que essa coincidência tenha me ajudado a compreender um ou outro, ao contrário. Um texto de Beckett, no entanto, a respeito de seu amigo de exílio, me permitiu situar-me à cheval entre esses dois projetos extravagantes e tão divergentes. Diz Beckett, dirigindo-se aos críticos do Work in Progress. “E se vocês não o compreendem, Senhoras e Senhores, é porque são decadentes demais para recebê-lo... Os senhores queixam-se de que esse material não é escrito em inglês. Não está escrito de forma alguma. Nem é para ser lido – ou antes não é sobre alguma coisa; é a coisa em si... Quando o sentido é dormir, as palavras adormecem.. Quando o sentido é dança, as palavras dançam... A linguagem está bêbada. As próprias palavras estão efervescentes e tortas... O Sr. Joyce desofisticou a linguagem. E deve-se comentar que nenhuma língua é tão sofisticada quanto o inglês. É mortalmente abstrata. Peguemos a palavra doubt. Ela quase não
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uma incompatibilidade, e muito menos desqualifica a relevância desse diálogo fecundo que a autora, entre muitos, inclusive no Brasil, tais como Chaim Katz, Joel Birman, Garcia-Roza, Maurício Porto e outros, a partir de um trabalho de consultório, mas também abrindo-se em alguns casos para contextos institucionais ou urbanos, tais como o acompanhamento terapêutico, desdobram com uma coragem superior. Mas devo dizer que há, nesse programa que Guattari sustenta com uma obstinação peculiar, e sua deliciosa faceta Julio Verne, e sua militância, e seu esforço de colocar num mesmo plano, como o formulou Deleuze, os conceitos filosóficos, as funções científicas, as experiências vividas, as criações da arte, um “surfe” necessário sobre o infinto, ou a infinitização, ou o infinitivação [de infinitivo].. Não se trata de uma ontologia do infinito, nem de uma dialética entre o finito e o infinito. Tendo a pensar, estranhamente, que parte dessa ambição lhe vem de sua experiência com a psicose, e outra, de uma aposta política. Para lançar uma fórmula que vale o que valem as fórmulas lapidares, de um lado, uma direção pós-psicanalítica de seu pensamento, de outro, uma postura pós-niilista. Talvez seja tarde para mostrá-lo no detalhe, e sobretudo a articulação entre ambas as direções. Em todo caso, pensar à luz da esquizofrenia, recusando a classificação psiquiátrica, impele a instalar-se numa multiplicidade que põe em xeque o dentro e o fora, o interior e o exterior, o corporal e o incorporal, o individual e o social, o psiquismo e a história, o espaço interno e a geografia, o humano e o inumano, o antropológico e o etológico, a esfera do homem e da máquina (as várias máquinas, técnicas, sociais), a forma e sua dissolução, a velocidade invivível e sua interrupção, impelindo a um embate pático com os pacientes, isto é, ao confronto imediato e complexo, em desafio a essas dicotomias, na direção de uma multiplicidade substantiva, de movimentos intensivos, de um infinitivo que desafia os contornos identitários, implicando numa pluralidade de temporalidades, bem como numa reinvenção do mundo a partir de fragmentos heterogêneos, sínteses disjuntivas, conexões transversais, esquizas, colapsos, paralizações, deslizes ou colapsos de sentido... Que um enquadre delimitado e preciso como aquele proposto desde Freud tenha dificuldade em conter tamanha proliferação, não é de surpreender, e a própria
experiência de La Borde, desde o início, já constitui um experimento na direção dessa ampliação, à qual Guattari referiu-se desde os seus primeiros escritos de Psychanalyse et Transversalité, relacionando sua clínica com a exterioridade sócio-histórica (veja-se o exemplo do paciente parecido a Kafka, o gravador, a escrita). A reivindicação reiterada da abertura à alteridade não remete, como nas concepções fenomenológicas sobre a intersubjetividade, à alteridade de um outro sujeito, porém à alteridade mais completa, a da própria situação – a transversalidade. Mas a situação é precária e mutante. Daí o tema do reconhecimento da finitude, da morte, do sem-sentido, no seio de um próprio grupo ou instituição, toda a recusa da eternização que uma estrutura institucional ou grupal ou fantasmática social poderia suscitar, e que aquilo que mais tarde se chamará de Agenciamento, deverá incluir. “Llegará el dia en que se estudie con la misma seriedad, el mismo rigor, las definiciones de Dios, del presidente Schreber o de Antonin Artaud, como las de Descartes o Malebranche?.. La investigacion filosofica tendría asi que preocuparse no solamente de un constante ordenamiento conceptual, sino igualmente en elaborar, sobre el “terreno”, las condiciones de estabelecimiento y permanencia de una logica del sin-sentido a medida de su irrupcion en todos los domínios”5 Bem, eu gostaria de terminar esse recorrido por Guattari retomando um exemplo no domínio do teatro que mencionei no início. É um pequeno salto, desses que Guattari também realizava ao dar, em meio a uma teorização densa, exemplos minúsculos sobre um ateliê em La Borde. No fim da primeira apresentação de nossa companhia, os pacientes chegaram ao camarim eufóricos, felizes, preenchidos, gritando Estamos curados! Não se trata de acreditar nisso literalmente, mas eu diria que o teatro ajuda a curá-los, e a nós também, de uma série de cacoetes. Por exemplo, do cacoete de reduzi-los à personagem exclusiva chamada doente (ou doente-mental), papel ao qual muitas vezes eles mesmos se aferram monocordicamente, embora quando o jornal “O Estado de São Paulo” no artigo que fez sobre o espetáculo os chamou assim, a indignação tenha sido geral – eles eram atores, não doentes mentais, doente mental é o jornalista! Seria preciso então deixar de representar monotonamente sempre a mesma pecinha hospitalar e edipiana, abrir
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nos dá nenhuma sugestão sensória de hesitação, da necessidade de uma escolha, de irresolução estática. Ao contrário do alemão “Zweifel”, e em grau não menor o italiano “dubitare”. O sr. Joyce reconhece o quanto “doubt” é inadequado para expressar um estado de extrema incerteza, e o substitui por “in twosome twominds”...Esse texto que os senhores consideram tão obscuro é um extrato quintessencial da linguagem e pintura e gesto, com toda a inevitável claridade da antiga inarticulação. Aqui está a selvagem economia dos hieróglifos. Aqui palavras não são contorções polidas da tinta do impressor do século XX. Aqui, elas estão vivas...” Largo no ar a provocação: deixar ressoar esse texto de Beckett, pendularmente, entre o projeto literário de Joyce e a ambição filosofante de Guattari, na distância abissal que os separa, apesar do cortejo de neologismos, barbarismos, desequilíbrios, verdadeiros arrastões em alta ebulição que os caracteriza. Um leitor já familiarizado com os livros conjuntos, e também com os textos independentes de Guattari, ao passar os olhos nos esboços de Guattari publicados por Nadeau recentemente, é tomado de assalto por uma impressão paradoxal. Por um lado, o jorro, a velocidade associativa, a despreocupação de mostrar as articulações, a liberdade do salto, a linguagem heterodoxa, os exemplos coloquiais do mais elementar cotidiano, os xingamentos, alternadas com as mais densas construções, neologismos, a presença ainda tão marcante de Lacan, as fórmulas lapidares, toda essa matéria que escorre para tantos lados, e que constituirá o miolo conceitual de O Anti-Édipo. Ao mesmo tempo, diante desse diário de bordo, dessa relutância em “fazer obra”, o leitor fica surpreso e admirado de como Deleuze apostou e se encarregou dessa tarefa, com que arte conectou-se com a direção geral da explosividade construtivista e cartográfica guattariana, ainda que a lógica dessa maquinação não tenha sido inteiramente desbravada. Daí por que o pequeno texto escrito por Deleuze por ocasião da morte de Guattari deve ser levado a sério: “Jusqu`à la fin, mon travail avec Félix a été pour moi source de découvertes et de joies. Je ne veux pas parler pourtant des livres que nous avons faits ensemble, mais de ceux qu´il a écrits seul. Car ils me semblent d´une richesse inépuisable... Félix s´élève à un étrange niveau
qui contiendrait la possibilité de fonctions scientifiques, de concepts philosophiques, d´experiences vécues, de création d´art. .. Ainsi le merveilleux système à quatre têtes das Cartographies: “Les territoires, les flux, les machines et les univers”... L´oeuvre de Félix est à découvrir ou redécouvrir. C´est une des plus belles manières de maintenir Félix vivant”. 2 Ora, os livros autônomos de Guattari não são comparáveis às notas para o AntiÉdipo, e o esforço dos amigos, notadamente Danielle Sivadon, de assistí-lo em lhes dar um contorno é disso uma prova contundente. Mas temos a impressão rara de que cabe a cada leitor de Guattari fazer com seus textos, pelo menos mentalmente, algo semelhante ao que fez com eles Deleuze, a saber: acolher suas maquinações, prolongá-las, conectá-las com os domínios diversos, fazê-las trabalharem. Dar-lhes liberdade de evoluirem por conta própria, estendendo-lhes matéria para tanto, ao invés de reduzí-los a fórmulas polêmicas, por mais que deles não estejam ausentes fórmulas, muito menos “enjeux” polêmicos, nos mais diversos campos. Não é uma tarefa óbvia, e percebe-se que se o diálogo com os psicanalistas, linguistas, antropólogos ou historiadores é incessante, a bagagem filosófica rapsódica e no mais das vezes alusiva não nos dispensa, muito pelo contrário – e é talvez esse o sentido da observação de Deleuze – de uma “posta em diálogo” de suas construções com a própria filosofia, ou uma posta em diálogo filosófica, como o praticou Deleuze, com esses textos de natureza tão híbrida, cuja ambição, de fato, parece ser, como o formula Deleuze, construir um plano onde coexistam “la possibilité de fonctions scientifiques, de concepts philosophiques, d´experiences vécues, de création d´art”. E quando Guattari introduz o tema do caos, antes mesmo da “sistematização” proposta conjuntamente em Qu´est-ce que la philosophie?, ainda que para definir o caos, o caosmos ou a caosmose ele retome características antes atribuídas ao Corposem-órgãos em O Anti-Édipo ou Mil Plateaux, é preciso dizer que os agenciamentos, na sua contingência e consistência, implicam inevitavelmente o infinito, por mais que a acepção desse termo seja polissêmica, “doutrina plurívoca do infinito”3, como diz a autora: ora como velocidade infinita, ora como o infinitivo do verbo no acontecimento, sua impessoalidade, ora ainda como o infinitesimal leibniziano4. Nada disso significa
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portas e janelas, mudar de teatro (!), mudar de cena (o que haveria de mais radicalmente analítico do que mergulhar numa outra cena, transformando as coordenadas de enunciação da vida?), mudar o cenário, mudar de roteiro, sobretudo mudar o olhar sobre os atores e sobre a fronteira que nos separa deles, não para tornar tudo indiferente – ah, a ilusão mais perigosa! – mas para deixar emergir outras personagens (e quantas outras experimentamos nessa quebra e reconstrução incessante da “identidade” de terapeuta), outros estados, outras afetações e outras conexões entre eles, entre nós. O teatro pode ajudar a curar-nos da crença generalizada, partilhada por muitos pacientes e também inúmeros profissionais de saúde mental, sobre sua suposta impotência ou ensimesmamento estéril, incomunicabilidade social, incapacidade criadora. Ou da idéia de que a clínica deve ficar de um lado e a cultura de outro, como se a arte não fosse ela mesma a um só tempo crítica e clínica, como se a arte não fosse já um dispositivo, como se o olhar de um diretor de teatro, a escuta de um músico, não fossem, na sua exterioridade em relação ao campo clínico tradicional, e na possibilidade de assistirem a nascimentos que nosso olhar viciado abortaria, poderosamente clínica, e no mais alto grau. A cena que o teatro propõe (mas isto não é de hoje, nem novo, talvez seja até o mais antigo do teatro – e o mais antigo, já é sabido, tem sua dimensão inesgotável de porvir) também pode ajudar a curar-nos da tentação de substancializar nossas personagens cotidianas e seus impasses desejantes. Pois ali cada personagem emerge com a força secreta da ficção, isto é, contingente e necessária, precária e eterna, volátil e imemorial, tudo isso ao mesmo tempo. E cada personagem faz fremir, por trás de seu contorno fugidio e do “por um triz” em que se sustenta, singularidades impalpáveis. Esses índices mágico-poéticos podem desfraldar novas composições de universo, novas dobras subjetivas. Por aí, talvez, essa conjunção de teatro e loucura nos sirva para evocar, tanto entre loucos como entre os que se dizem sãos, aquilo que o desejo ainda está por descobrir de si e de sua potência na cena contemporânea.6 Como diz um comentador americano, this “occurs, for example, when singular traits of faciality, rythm, or corporeality are diverted from their siginying tasks and instead arte
freely put to work in the bringing into existence of a motif, a refrain or ritornello capable of sustaining a tentative process of self-positing. This process is akin to an artistic experiment with the seeming chaos of a-significance. “Te artist – anda more generally aesthetic perception – detach and deterritorialize a segment of tje real in such a way as to make it play the role of a partial enunciator”, Guattari explains. He continues: “A singularity, a rupture of sense, a cut, a fragmentation, a detachment of a semiotic content – in a dadaist or surrealist manner – can originate mutant nuclei of subjectivation”7 Ampliando imensamente o espectro dessa observação, é preciso lembrar que Guattari foi um dos primeiros a evocar o lugar central da produção de subjetividade no contexto capitalístico. Num contexto marcado pelo controle da vida (biopoder), as modalidades de resistência vital proliferam de maneiras as mais inusitadas. Uma delas consiste em pôr literalmente a vida em cena, não a vida nua e bruta, como diz Agamben, reduzida pelo poder ao estado de sobrevida, mas a vida em estado de variação, modos “menores” de viver que habitam nossos modos maiores e que no palco ganham visibilidade cênica, legitimidade estética e consistência existencial. No âmbito restrito ao qual me referi aqui, o teatro pode ser um dispositivo, entre outros, para a reversão do poder sobre a vida em potência da vida. Afinal, na esquizocenia8 a loucura é capital biopolítico. Mas o alcance dessa afirmação extrapola em muito a loucura ou o teatro, e permitiria pensar a função de dispositivos multifacéticos –ao mesmo tempo políticos, estéticos, clínicos – na reinvenção das coordenadas de enunciação da vida. Nas condições subjetivas e afetivas de hoje, com as novas formas de “ligação” e de “desligamento” que caracterizam a multidão contemporânea, e que se deixam ler na “comunidade dos que não têm comunidade”, um dispositivo “minúsculo” como o que apresentamos ressoa com as urgências maiúsculas do presente.. Sim, é o aspecto purgatorial de um trabalho, como dizia Beckett a respeito da obra de Joyve: ausência absoluta do Absoluto. O Inferno é a ausência estática da vida de uma maldade que nada consola. O Paraíso, a ausência de vida de uma imaculação que nada consola. O Purgatório é uma inundação de movimento e vitalidade..
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ficha tÉcnica
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projeto FINNEGANS UEINZZ atores e performers Adélia Faustino Alexandre Bernardes Ana Carmen Del Collado Ana Goldenstein Catherine de Lima Colazzi Eduardo Lettiere Erika Inforsato Fabrício Pedroni Iza Cremonine John Laudenberger Leo Lui Luís Guilherme Ribeiro Cunha Onéss António Cervelin Paula Francisquetti Peter Pál Pelbart Roberto Couri Valéria Manzalli Yoshiko Minie concepção, direção e instalações cenográficas Cássio Santiago coordenação de pesquisa Peter Pál Pelbart coordenação de atores Ana Carmen Del Collado, Eduardo Lettiere, Érika Inforsato, Paula Francisquetti e Peter Pál Pelbart coordenação dramatúrgica (colaboração na direção e dramaturgia) Elisa Band figurinos Simone Mina iluminação Alessandra Domingues música original Livio Tragtenberg produção Ricardo Muniz Fernandes