O Manto diafano nº 1 - 10 de junho de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016

Política e economia nos tempos de Temer Encaixotando Brasília Neoliberalismo

Voto de desconfiança


o manto diáfano

nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016

5 Política e economia nos tempos de Temer Revista eletrônica Nº 1 ∙ 10 jun 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Ronaldo Conde Aguiar Henrique Carlos de Oliveira de Castro Arnaldo Barbosa Brandão Arno Vogel COLABORADORES Rodrigo Stumpf González Henrique Carlos de Oliveira de Castro Arnaldo Barbosa Brandão EDITORES Benício Schmidt Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck

7 Presidencialismo de coalizão com voto de desconfiança

10 Neoliberalismo

PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

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VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

Encaixotando Brasília

14 Leia-se com um barulho desses


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Verbena Editora é uma casa editorial formada por professores e pesquisadores nas diversas áreas das Ciências Sociais, destinada a publicar materiais de referência para as discussões políticas que se fazem necessárias no momento atual. Acreditamos que a democracia é construída a partir do entendimento coletivo das necessidades sociais e, portanto, só pode florescer em um ambiente de diálogo. Para o fortalecimento do diálogo e da democracia, entendemos que é preciso construir um quadro analítico que se distancie do atual momento em que a mídia é pautada por uma intensa batalha de narrativas, resultante da respectiva disputa acirrada pelo poder político. Diante dessa perspectiva, apresentamos nossa contribuição através da revista semanal “O Manto Diáfano”, título que faz referência à citação de Eça de Queirós: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”. Enquanto concebíamos este projeto, esta frase nos pareceu exemplificar com bastante picardia o momento atual. A citação é oriunda do romance “A Relíquia”, e tornou-se seu subtítulo. Este romance foi publicado em 1887, na forma de folhetins da Gazeta de Notícias da cidade do Porto. Por todas as referências, nos pareceu uma forma de homenagear o célebre autor português e também destacar nossa linha editorial, destinada a discutir política e literatura. Além de ser uma provocação oportuna e necessária: a de definirmos qual o lado estamos dispostos a encarar nesta realidade atual – a nudez forte da verdade, ou o manto diáfano da fantasia? Esperamos trazer aos leitores, todas as semanas, artigos com análises da situação política e econômica do Brasil e do mundo, de diferentes perspectivas, desde que democráticas. Também aspiramos discutir e disponibilizar ao público um pouco da produção literária atual em suas diversas faces. Neste sentido, estaremos publicando sempre trechos de livros que tratem de questões atuais e também, a cada edição um capítulo de uma novela literária, reverenciando e revivendo a tradição dos periódicos antigos, dos quais tantos bons trabalhos vieram a público, incluindo aí o clássico de Eça de Queirós de quem tomamos emprestada a citação. Desejamos, ao longo das edições, que nosso veículo semanal se construa como um ponto de partida para as necessárias discussões do momento atual, e acreditamos contribuir com isto, dentro dos limites de nossas capacidades e esforços com a construção de um futuro democrático e solidário para o país. Os Editores

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EDITORIAL

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esse número um de nossa revista eletrônica e pensando em sacudir a poeira de disputas rasas e muitas vezes inúteis, abordamos alguns ângulos desafiadores da conjuntura política brasileira. O governo interino de Michel Temer, ainda em disputa por fatos e evidências que o levarão, ou não, à perenidade curta a expirar em 2018, introduz sutis mudanças nos procedimentos de formação do próprio governo do País. Do presidencialismo de coalizão vigente, Temer comanda um ajuste ao parlamentarismo ainda não consagrado legalmente, mas em operação prática. Faz uma apresentação demandando a presença de técnicos, primordialmente, para ceder ministérios a 11 partidos políticos. Praticamente, divide setorialmente a administração federal, conferindo a economia a nomes bem conhecidos e com razoável aprovação pública, devida a trajetórias e experiências anteriores no próprio Estado; reservando aos políticos profissionais os demais comandos. Difícil arranjo, pois nasce de um governo que não apresentou programa definido em 2014 e vê sua crise de legitimidade atingida por graves decorrências econômicas e financeiras em 2018. Daí nasce um governo interino, também sem detalhados programas, mas com metas clássicas de ajuste fiscal, emagrecimento dos gastos públicos e redefinição de padrões para a continuidade de políticas sociais. A incerteza corre solta pelo Planalto, gerando apatia, desânimo, ansiedade e alguma forte esperança por parte de diferentes setores da sociedade brasileira. O momento é de rápido amadurecimento de projetos de reforma política, incluindo aí a possibilidade do desvoto, equivalente ao recall dos sistemas parlamentaristas. Não temos essa tradição, mas nada nos impede de adotá-la como norma. Todo este material navega no âmbito de um contexto extremamente debatido e questionado por sua eficácia, fortemente embasado em políticas conhecidas como expressão do neoliberalismo. Terminamos com uma alusão romântica à construção de Brasília, cuja criação está permanentemente sendo posta em dúvidas por especialistas e pelo público. Uma alusão ao nosso permanente processo de construção da nacionalidade, de nossa identidade. Boa leitura e longa vida ao Manto Diáfano!

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Política e economia nos tempos de Temer Benício Schmidt

ao contrário do propagado pelo Governo Dilma, como justificativa das operações. Isso justificou o pedido de impedimento da presidente, iniciado por três juristas de São Paulo junto ao STF e depois levado ao Congresso, em sucessivas votações, suspendendo o mandato da eleita por até 180 dias. Assume um novo governo, sob a liderança do Vice-Presidente Temer, com a promessa de reconstruir o sistema de decisões nacionais, baseado em um modelo inicialmente técnico, provido por especialistas em detrimento dos tradicionais ministérios comandados por políticos profissionais. Todavia, as forças que sustentavam o Governo Dilma, capitaneadas pelo PT, ameaçaram não aprovar nenhuma iniciativa de Temer junto ao Congresso Nacional. Dado o fato, o novo grupo dirigente, rapidamente, se recompôs com os parlamentares instalando ministros de onze partidos políticos, seguindo o velho e consagrado método brasileiro de partilha política da administração federal. O que seria um “novo presidencialismo” sob Temer passou a ser um “embrionário parlamentarismo”, sob a mesma batuta. Não é desprezível este detalhe, para considerações sobre o presente e o futuro do sistema político brasileiro! O ambiente político será desanuviado dos excessos de clivagens ideológicas, em troca de maior pragmatismo das urgências sobre decisões necessárias, no sentido de restabelecer padrões mínimos de normalidade no funcionamento da máquina estatal. Liberais, mais do que intervencionistas, os novos dirigentes, apoiados em sólida maioria parlamentar, vão deflagrar projetos de amplas reformas e ações de dinamização na participação internacional do país, principalmente no âmbito do comércio internacional. De fato, mesmo que seja pelo movimento baseado na Lei da Gravidade, o parlamentarismo deve avançar como modelo decisório, independente do presidencialismo legalmente vigente; como, aliás,

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil / Fotos Públicas / 31 mai 2016

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m novo governo, ainda interino, assumiu o poder em 12 deste maio de 2016. Não se trata de uma simples mudança, ou solução passageira a inúmeros impasses que a política e a economia brasileiras enfrentam. Politicamente, a interrupção do Governo Dilma começou pelo pedido de “recontagem dos votos nas eleições de 2014”, encaminhado pelo PSDB, devidamente negado pelo TSE. Em seguida foi protocolado pedido de cassação da chapa Dilma-Temer, pela prestação de contas de campanha, programas enganosos e assim por diante. Isso está em processo, agora sob o comando de Gilmar Mendes, presidente do TSE. Matéria pendente. Além disso, houve muitos movimentos de opinião contra os desmandos do governo, além do início do desvelamento das pedaladas fiscais, que atingiram basicamente o FGTS, programas relativos à safra agrícola corrente, o programa Minha Casa Minha Vida e, principalmente os repasses ao BNDES sob a forma de empréstimos subsidiados a empresas nacionais, a chamada “Bolsa Empresário”. O total envolvido nestes repasses legalmente indevidos chegou a R$ 55,8 bilhões, sendo que para os empresários atingiu o montante de 17,3 bilhões. A Bolsa Escola não esteve envolvida nestas operações, 5


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ficou muito claro no discurso inaugural de Michel Temer como presidente interino. No tocante à economia também haverá fortes mudanças de direção. A redução dos gastos públicos com vistas à diminuição da dívida pública (hoje em 75% do PIB), à renegociação das dívidas de Estados e Municípios frente à União, a abertura da economia aos investimentos estrangeiros, à redefinição da política de concessões nos serviços públicos e à projetada venda de ativos públicos ao capital privado, nacional e estrangeiro. Outro aspecto central será o debate sobre a desvinculação das receitas da União (DRU), do atual nível de 20% para 30%, com

produção econômica. Há uma proposta, ainda embrionária, de extinção da unicidade sindical e do imposto sindical, com claros efeitos sobre a vida das organizações sindicais atuais. Quanto à política de elevação real do salário mínimo – prática afirmativa dos últimos anos – há uma proposta de que ela seja substituída por uma regra que seja sustentável no longo prazo e atue de forma contracíclica. Regra esta ainda indefinida. Todas estas reformulações, ainda sendo gestadas, serão certamente confrontadas com as condições reais econômicas e sociais. Pela primeira vez, por exemplo, a demanda de recuperação judicial chega ao nível das grandes empresas, em 2015-16. Fenômeno que tem atingido majoritariamente a pequenas e médias, chega agora ao caso de Como será feita a combinação entre a grandes empresas, geralmente liausteridade, desestatização e manutenção das gadas ao circuito produtivo do setor de óleo e gás, em conseqüência políticas de bem-estar social? Problema grave de direta do desmantelamento deste engenharia política e econômica. complexo produtivo, em todo o território nacional. A isso pode ser acrescentado o resistente endividamento das famílias, atingindo cerca isso afetando principalmente os gastos federais com de 68% delas, como desenlace do crescimento negaeducação e saúde, hoje com alocação obrigatória de tivo do PIB e do desemprego. recursos orçamentários. Como será feita a combinação entre a austeriHá, ainda nos subterrâneos do Palácio do Pla- dade, desestatização e manutenção das políticas de nalto, projetos de mudanças que afetam aos traba- bem-estar social? Problema grave de engenharia polhadores. A Lei de Greve do funcionalismo público, lítica e econômica. ainda a ser regulamentada, deverá definir setores esAos trabalhadores e suas entidades representatisenciais e punições seletivas à prática. Nas relações vas cabe o diagnóstico deste novo ambiente criado de trabalho, em geral, é possível identificar movi- a partir da substituição de Dilma Presidencialista mentos em direção à prevalência das negociações por Temer Parlamentarista. Não é só uma mudança frente à “legislação rígida“, identificada na CLT; com simbólica, mas de regime de negociação e decisão, extensões sobre a possível terceirização ampliada na com claras opções ideológicas distintas. ■

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Presidencialismo de coalizão com voto de desconfiança Como o afastamento de Dilma Roussef é uma reforma constitucional disfarçada Rodrigo Stumpf González – Cientista Político

O Brasil é um modelo híbrido. Como presidencialismo tem a eleição do Chefe do Poder Executivo por maioria absoluta com mandato fixo. Porém a fragmentação partidária no Congresso Nacional exige uma composição com um número grande de partidos, o que levou à denominação de Presidencialismo de Coalizão, o que nos afastaria do modelo majoritário para se aproximar do consensual. O processo de afastamento da Presidente Dilma, em curso no Congresso provoca mudanças em ambos os aspectos, se constituindo em uma verdadeira emenda constitucional informal, criada pelas decisões de ambas as casas do legislativo, com o beneplácito do STF. Ao se admitir a aplicação do afastamento por motivações predominantemente de avaliação política dos resultados do Governo, adicionada da responsabilização da Presidente por atos não praticados por ela, mas por auxiliares e mesmo membros do seu partido que não ocupam cargos públicos, se reforça a natureza de norma penal em branco da acusação que leva ao afastamento, cujo preenchimento não se dá por lei adicional, mas pelo simples convencimento de uma maioria qualificada da avaliação negativa dos atos não apenas da Presidente, mas de seu governo e partido. Ora, tal julgamento de natureza exclusivamente política é característico do voto de desconfiança do parlamentarismo, em que uma maioria pode afastar o Chefe de Executivo por convencimento político que ele não deve mais permanecer no cargo. Os processos ocorridos na Câmara e em curso no Senado para julgamento da presidente são teatrais,

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s dois sistemas de governo clássicos, parlamentarismo e presidencialismo, se distinguem pela natureza do cargo e do mandato do Poder Executivo. Enquanto no presidencialismo a mesma pessoa é Chefe de Estado e Chefe de Governo, com eleição direta e mandato fixo, no parlamentarismo elas estão separadas e o Chefe de Governo, tem escolha e permanência no cargo dependente do apoio de uma maioria do legislativo. Além desta distinção, conforme os modelos de democracia de Arend Lipjhart, diferenciam-se democracias majoritárias, baseadas na regra de predominância da vontade da maioria (parlamentar) e democracias consensuais, nas quais as decisões são tomadas por amplos acordos entre setores divergentes. Enquanto há parlamentarismos consensuais e majoritários, o presidencialismo seria predominantemente majoritário. 7


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pouco ou nada tem a ver com julgamento de infrações à lei. As próprias declarações dos parlamentares e a escolha de um representante da oposição para relator no Senado demonstram que a decisão política já está tomada, seguindo-se o rito para dis-

Trata-se da crônica de uma morte anunciada, em que todos os personagens sabem o desfecho final, mas não querem manifestá-lo publicamente perante a vítima.

farçar a natureza puramente política do convencimento da maioria pelo afastamento. Trata-se da crônica de uma morte anunciada, em que todos os personagens sabem o desfecho final, mas não querem manifestá-lo publicamente perante a vítima. Desta forma se está instalando na constituição brasileira um voto de desconfiança por maioria qualificada, que permite substituir o Chefe do Poder Executivo antes do fim do mandato. A criação do precedente, chancelado pela inércia do STF, opera com emenda constitucional tácita que, por um lado, aproxima o presidencialismo brasileiro do parlamentarismo, quebrando a regra do mandato fixo e instaurando a responsabilidade do executivo perante o legislativo e não perante o eleitorado. No futuro, qualquer grupo parlamentar capaz de agregar dois terços de ambas as casas pode almejar substituir o presidente pelo vice, ou ambos para convocar novas eleições ou escolher indiretamente um substituto. A definição de limite de mandato torna-se condicional à manutenção de apoio da maioria qualificada e não de acordo com o texto constitucional. Poderia se argumentar que o STF pode mudar sua interpretação, mas isto seria pouco provável sem que haja uma renovação da maioria dos membros da corte, o que pode demorar décadas para ocorrer, tendo em vista a idade dos atuais ministros e o aumento da idade para aposentadoria compulsória Por outro lado, muda o modelo democrático brasileiro, que deixa de ser consensual para se tornar majoritário, uma vez que a Constituição deixa de ser 8


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amparo para as minorias, permitindo-se a tomada de decisões pela maioria inclusive com a flexibilização da constituição por via interpretativa. O leitor pode perguntar-se então, se o afastamento de Dilma é um golpe. Depende da concepção de democracia subjacente. Se conforme o modelo consensual considerarmos que é necessário um estrito respeito às regras do jogo, estamos diante de uma ruptura institucional. Se a perspectiva for do mode-

lo majoritário, a maioria parlamentar sempre tem razão. Sua legitimidade é a confiança atribuída aos membros do poder legislativo. Porém, mesmo nos países que adotam modelo majoritário, esta é a regra do jogo, que não costuma ser mudada conforme muda o vento. O problema de inovações feitas no calor da disputa política é seu efeito de Caixa de Pandora. Depois de aberta, não se pode fechá-la e o futuro torna-se menos previsível. ■

O voto de desconfiança é uma evolução civilizatória. Ricardo Prata Soares – Sociólogo e Cientista Político

O poderoso presidencialista De Gaulle rendeu-se a ele para acabar com as barricadas nas ruas em 68. E a Grécia e Islândia foram os últimos episódios no caso na Europa. No Brasil com fragilidades democráticas indiscutíveis, nos dez casos de presidentes eleitos (incluindo Tancredo, as duas gestões Lula e duas Dilma), em cinco acabamos experimentando a solução do vice ou presidente interino. Não é pouco e é a prova que nosso presidencialismo híbrido é a causa da crise e não a solução do voto de desconfiança. Toda semente híbrida pode nos causar surpresas, pois não é genuína. A polinização é inevitável desde que haja abelhas, marimbondos, beija flores e besouros. Os EUA souberam equilibrar o voto universal para presidente com sua diversidade em tamanho e tradição com o peso dos votos dos delegados, como assistimos mais uma vez. Nós não, transformamos imberbes territórios em estados onde os votos para

senador valem mais de dez vezes que os de SP, MG e RJ, para ficar somente nos maiores. E ficamos com o gosto amargo do experimento, elegendo no Amapá um desprestigiado senador do Maranhão e um novato do Paraná, de um só golpe de marketing. Poderia ser feito em Roraima, o menor deles, ou Rondônia. E isto sem contar o desiquilíbrio que ocorre para a Assembleia dos deputados. Noutros termos, copiamos o modelo inicial Americano, mas não seus ajustes. Na prática supervalorizamos o voto presidencialista (este universal). Introduzimos oportunismo nas campanhas, onde se pode prometer no final de linha três refeições por dia para cada habitante sem explicar como. E nos últimos dois eventos a elementar obrigação de apresentar um programa de governo não foi cumprida. (Está na hora do TSE declarar em suas normas que o candidato a presidente, governador e prefeito que não apresentar seu programa detalhado e com 9

responsabilidade fiscal, fica excluído automaticamente da eleição). Basta isto para impedir o estelionato eleitoral. E esquecemos que o Congresso é o único bastião com representação de todas as forças vivas da nação, com sua diversidade de região, de interesses, de experiência, de pluripartidarismo e de soluções de sustentabilidade. Entendo que a correção desta hibridez presidencialista é a formalização do ‘desvoto’, como na proposta de Fábio Konder Comparato, a cada dois anos e durante a eleição regulamentar. Para presidentes e governadores a revisão seria na eleição para prefeito e vice-versa. Isto eliminaria este recurso de ficar pedindo impeachment a cada presidente eleito meses depois da posse. E se o presidente tiver rejeição superior a 50%, o vice assume interinamente. Afinal vice é para estas coisas mesmo como nos ensina nossa trajetória (agora no fundamental II) de aprendizado em democracia representativa. ■


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Neoliberalismo Henrique Carlos de Oliveira de Castro – Cientista Político

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capital that derives its moral support from neoconservative values (PHILLIPS, 1998, p. xvi). Essa definição é útil basicamente por reconhecer o neoliberalismo como um projeto político de determinado grupo social, que necessita se tornar hegemônico. Para tanto, precisa fazer parte da vida cotidiana das pessoas, seja pela promessa de que os problemas sociais e econômicos seriam resolvidos, seja por utilizar valores já arraigados na sociedade, como a defesa da propriedade privada. Por outro lado, por entendê-lo como um projeto político, o neoliberalismo seria dependente, entre outras coisas, da estrutura socioeconômica da sociedade e da sua inserção no mercado internacional. Em suma, haveria diferentes neoliberalismos. A importância da definição de Lynne Phillips é que abre caminho para que se estudem empiricamente os diferentes tipos de neoliberalismos existentes. Isso não é menor, uma vez que, na maioria dos estudos, o neoliberalismo tem sido tratado como um fenômeno macro, sem que sejam estudados os seus aspectos micro, ou seja, em pouco ou nada se estudam as opiniões das pessoas. Assim, um estudo de cultura política que trate o neoliberalismo deve, além de fazer uma revisão com vistas a situar academicamente o problema, formar bases para a construção de indicadores que possam servir para o estudo. De fato, já se tornou senso comum a caracterização da nova conformação que o mundo experimenta de neoliberal3. Segundo os seus defensores, o neoliberalismo significaria a redenção da sociedade, na medida que permitiria o aumento da produção e da riqueza (MAMALAKIS, 1995; SHEARMUR, 1993; STUDLAR, McALLISTER & ASCUI, 1990). Para tanto, bastaria reorganizar a sociedade de acor-

m tema que tem sido tratado nos meios acadêmicos de forma recorrente é o chamado neoliberalismo, termo utilizado indiscriminadamente para abranger uma série de ações, posturas, posições, atitudes e políticas1. No entanto, o debate sobre o conceito propriamente dito tem sido feito na medida inversa da polêmica. De fato, a maioria dos debates ou tem se limitado a enumerar as suas características e as suas origens, ou o tem tratado como um neologismo, derivado do liberalismo clássico2. Isso não implica a inexistência de conceito. Entre as tentativas de sua conceituação, duas me parecem adequadas, por sua amplitude e objetividade. A primeira é dada por Beeson e Firth, ao analisarem o impacto das reformas neoliberais nas políticas públicas na Austrália dos anos 1980. Segundo os autores, although not simply an economic doctrine, ‘neoliberalism’ is a convenient shorthand for a range of ideas, practices and approaches to the conduct of government that are associated with a normative preference for small states and a reliance on market mechanisms to determine economic outcomes. (BEESON & FIRTH, 1998, p. 215). A definição, no entanto, peca porque se limita basicamente a caracterizar o fenômeno. Essa limitação, contraditoriamente, é a sua maior virtude, uma vez que consegue deixar claro o foco do estudo. A segunda definição é dada em recente livro de Lynne Phillips. Como os autores anteriores, ele caracteriza o neoliberalismo como um processo de crescente confiança nos mecanismos de mercado para a organização da sociedade e das atividades econômicas. No entanto, ele vai além. Utilizando Hans Overbeek e Kees van der Pijl, ele define neoliberalismo como (...) the current profit-seeking project of transnational 10


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do com as suas “formas naturais”: haveria tarefas típicas de Estado e tarefas típicas da sociedade civil. E mesmo os defensores dessa visão naturalista da sociedade não conseguem chegar a um acordo: se há um consenso entre eles de que a economia estaria entre as tarefas típicas da sociedade civil, não conseguem decidir quais seriam as naturais ao Estado: até as classicamente defendidas como inerentes a ele – segurança, saúde, educação – deveriam ser geridas segundo as regras do mercado. No entanto, a sociedade humana é fruto da atividade deliberada. Em outras palavras, mesmo com o perigo de ser redundante, deve-se reafirmar que a sociedade humana é uma construção humana. Não existe uma forma natural de organização social, mas ela é uma construção intelectual, no sentido de que os diferentes tipos de organização da sociedade surgem de proposições humanas para a resolução de problemas humanos concretos4. Como exemplos da atividade intelectual humana na construção da sociedade, podemos citar dois grandes fenômenos políticos deste século: a Revolução Russa de 1917 e a solução proposta para a Depressão de 1930. A Revolução Russa de 1917 foi construída com base nas propostas de Lênin e de outros intelectuais orgânicos do movimento socialista europeu da virada do século. As obras “O desenvolvimento do Capitalismo na Rússia” e “O imperialismo, Fase Superior do Capitalismo” de Lênin, por exemplo, foram de singular valia para explicar como poderia, ao contrário do que Marx propunha, um país atrasado como a Rússia ser o primeiro a experimentar uma Revolução Socialista. Quanto à Depressão de 1930,

a solução foi encontrada por um economista chamado Keynes, que propugnou o fim do capitalismo concorrencial e defendeu a necessidade da presença do Estado para regular as distorções que o próprio desenvolvimento do capitalismo acarreta. Naturalmente entender que a sociedade humana é uma construção não implica uma visão conspirativa de mundo, que enxerga meia dúzia de pessoas, em um gabinete enfumaçado e secreto, propondo e executando mudanças no mundo (HUGON, 1999). O papel do intelectual nos processos de mudança – como foi o caso da implementação das políticas neoliberais – está justamente em sua possibilidade de entender o mundo que o cerca e apontar soluções, que poderão (ou não) ter viabilidade política e social. Neste sentido, há intencionalidade na ação política e na construção histórica, e fenômeno neoliberal não é exceção. ■ 1

David A. Baldwin, na introdução de livro por ele editado, em que é feito um debate entre neoliberalismo e neorrealismo, manifesta a sua inconformidade com o uso indiscriminado dos termos, que estariam (...) so deeply embedded in the literature that litle can be done (BALDWIN, 1993, p.10). 2 Um belo apanhado sobre o neoliberalismo, que reproduz as duas tendências acima enumeradas pode ser encontrado no “Dossiê liberalismo/neoliberalismo” da Revista USP, número 17, de 1993. 3 Na caracterização de governos, o termo neoliberal geralmente tem sido utilizado de forma negativa. No início do seu primeiro mandato, o Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em um misto de irritação e desagravo, que continuava sendo social-democrata, que o Brasil não era a Inglaterra e que seu governo não poderia ser taxado de neoliberal, sendo, na realidade, “neossocial”. Fosse um político qualquer, não o renomado sociólogo e cientista político Fernando Henrique Cardoso, o inusitado da criação deste novo termo poderia ser considerado apenas uma bobagem a mais. No entanto, a reação do presidente indica quão negativo é o termo. 4 Uma análise do neoliberalismo como opção política e construção histórica pode ser encontrada em Hugon (1999).

Encaixotando Brasília Retomando a tradição dos antigos folhetins, a revista O Manto Diáfano traz a novela “Encaixotando Brasília”, oriunda do romance homônimo de Arnaldo Barbosa Brandão, publicado pela Verbena Editora em 2012. O texto de Arnaldo conta a história política de Brasília a partir de uma ficção desenvolvida no período da posse do primeiro

governador da cidade. Com uma narrativa ágil, permeada por tiradas de humor e picardia que caracterizam a escrita do autor, Arnaldo nos leva por uma narrativa alucinante, com um desfecho inusitado, onde os personagens e suas características psicológicas são apresentados em contraste com a organização do espaço urbano e da vida política da cidade. 11

Nos próximos números você poderá acompanhar o desenrolar desta novela, esperamos que aproveitem a leitura. Aos leitores mais ávidos, que desejem encontrar-se rapidamente com o desenrolar da história, lembramos que o livro Encaixotando Brasília encontra-se disponível para aquisição em nossa loja virtual e nas melhores livrarias do país.


ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão

Capítulo 1 Ele soltou mais uma vez sua risadinha e completou: — Rapaz, estás mal da cabeça, continuas confundindo ficção com realidade. Se eu tivesse uma risadinha como aquela guardada no bolso da calça azul, que vestia todos os dias, jamais teria me estrepado, não estaria agora nesta situação, tomando estes remédios de tarja preta e misturando ficção com realidade, como diz o Gaúcho. Pensei em começar o tal discurso com um verso do João Cabral, que ele vivia declamando em altos brados pelo pátio da prisão, quando estávamos no Oiapoque. Antes que dormisse de novo, rabisquei em letra de forma num papelzinho e botei debaixo da caixinha de Haldol na mesinha de cabeceira:

O sonho Terminada a primeira eleição para governador de Brasília, meu telefone tocou na madrugada. Era o Gaúcho. Olhei o relógio, vi de relance a escuridão estrelada e decretei: “muito cedo, o governador que se dane”. Lua cheia, noite clara no cerrado, vagalumes pra todo lado, o sono escapou por entre as estrelas mais uma vez, noites claras deixam-me excitado, aí perco o sono e começo a rever os fantasmas do passado, até que aparecem as primeiras manchas vermelhas no céu para os lados do Lago Paranoá. Lembro que o Gaúcho tocou sua primeira alvorada às seis, logo voltaria a encher o saco, tinha a mania de imitar uma corneta quando me ligava cedo, fazia de sacanagem só para me ouvir dizer palavrões. Queria que escrevesse o discurso de posse, aí veio com aquela conversa fiada de sempre: — Quem melhor do que você, companheiro, meu discípulo de literatura? Olha, quero um discurso a La Fidel, delirante e demorado, com muitos trovões e relâmpagos, se não chover depois não é culpa nossa, é dos americanos. — Que Fidel porra nenhuma, nunca gostei de ditadores caribenhos, só faço exceção ao coronel Aureliano Buendía, aquele que fez trinta e duas revoluções e perdeu todas.

“Cultivar o deserto como um pomar às avessas.” Os lobos-guarás terminavam sua ronda noturna, silenciosos como hienas, a maioria estava debaixo das cagaiteiras que ficavam próximas ao Palácio do Buriti, onde hoje está o Faraó curtindo sua merecida solidão, naquele caixotão horrível de mármore branco. Mais pra cima, continua lá o cimo do morro, não há mais vestígios dos pequizeiros, cagaitas e lobeiras, limparam tudo para botar em pé a cruz da primeira missa, temos esse hábito: rezar mis-

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sas, derrubar as árvores e tacar fogo no capim, é uma maneira de dizer a todos que chegamos. Num passado, nem tão distante, era ali que os boiadeiros costumavam juntar o gado à tardinha, quando o bem-te-vi empoleirava-se no galho mais alto e entoava seu canto de guerra e o gavião fazia seu rasante na ânsia de pegar os filhotes do bem-te-vi. De lá era possível avistar toda a região em volta, desde os morrotes da região de Sobradinho, que impediam a visão de Planaltina, até o vale onde corriam o Vicente Pires, o Bananal e o Torto, que, por muito tempo, foram o bebedouro do gado, depois lavanderia pública e agora, bem depauperados, ainda contribuem com o Lago Paranoá. Era o ponto mais alto, não havia dúvida, dali dava pra sonhar com uma cidade paradisíaca, ou seja, com uma anticidade. — Um bom lugar para botar a caixa d’água, disse o coronel que acompanhava JK desde Belo-Horizonte. Os outros homens riram, como se a sugestão fosse brincadeira, JK deu uma gargalhada e aproveitou para destacar-se do grupo, ao lado do coronel e do engenheiro magro. Logo atrás vinha um homem grandalhão e louro, o único que usava botas, chapéu de couro e calça de montaria. Chegou a cavalo e falava alto, trazia na garupa uma mulher alourada de cabelos aos ventos, que, pelas roupas, parecia ser cigana. JK percebeu a presença do homem grandalhão e via-se, pela saudação, que eram amigos próximos. — Nonô, acho que esta porra é uma ilha, o horizonte me diz que é uma ilha. Já pensou bem no que você está querendo criar? Uma cidade pra políticos, que deste matagal vão decidir sobre a vida do meu compadre que mora no Urubuquaquá, nos cafundós de Minas, disse o homem, ao mesmo tempo em que apeava. — Não é ilha não, temos um mapa, é terra firme, embora nesta vastidão quem pode assegurar alguma coisa? Atualmente tudo é decidido no Rio, de frente pro mar, talvez seja melhor decidir de frente para o matagal.

— Nonô, você por acaso acha que estes caras vão morar aqui? Vão morar de frente pro mar, isto sim, e é por lá que tomarão as decisões. Aposto uma cerveja que isto aqui é uma ilha, sinto o cheiro de água salgada por perto, ou então, um dia foi mar. Em todo caso apostamos uma cerveja. Onde será que se toma uma cerveja por aqui? — O mais perto é em Luziânia, um lugarejo onde tiravam ouro, ou então em Chapadinha, melhor tomarmos esta cerveja no Catete mesmo, lá é garantido, cerveja gelada, sinuca e pouca amolação. Bernardo, você vai no meu avião para o Rio, aproveitamos pra conversar, precisamos de um goiano como você para fazer a Belém-Brasília andar, e depois quem sabe não se candidata a governador de Goiás. — Não me deseje uma desgraça dessas, homem. JK deu outra gargalhada. Os quatro eram das Gerais, território mapeado por Guimarães Rosa, que sem saber de nada andava ali por perto, revestindo pedrisco por pedrisco as paredes de sua grande obra, não queria modernizar nada, ao contrário, pensava em restituir às palavras seu sentido original, ou como ele disse poucos anos antes de morrer: “Eu queria libertar o homem do peso da temporalidade, devolver-lhe a vida na sua forma original”. Não queria pouco. Acreditava que as palavras têm vida e seus personagens viviam de verdade, em um mundo paralelo. Vai se saber? Afinal o homem tinha partes com o anjo-dos-abismos-insondáveis. JK também não queria pouco, sonhava com a capital de um império nos trópicos e tinha em mente o único que tinha dado certo, só que há milhares de anos. O Brasil é assim mesmo, sempre se espera demais dele, não percebem que estamos na periferia do mundo há muitos séculos, não é a toa que nos botaram na parte de baixo do mapa-múndi, os que desenham os mapas estão sempre no centro ou na parte de cima. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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o manto diáfano

nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016

Leia-se com um barulho desses Fabiano Cardoso

E

stava sentado, ainda tentando decidir se provaria o chá preto a inglesa, com leite, ou se não testaria a hipótese da intolerância à lactose e partiria para o chá preto convencional. Em princípio parecem decisões simplórias, mas a quantidade de tipos de chás nesta padaria de quase esquina faz da tarefa algo mais difícil do que escolher um livro para ler apenas olhando a lombada. O fato de achar que um chá de erva-doce não combina com leite faz com que, para um dia quase frio como o de hoje, um chá de hibisco possa ser mais salutar; ou ainda, por conta das notícias que, como dizia meu avô, de tão ruins nos causam depressão cívica, talvez um chá de melissa ou camomila seja mais adequado; em todo caso, há ainda o chá de guaco que, além de saboroso, é algo anti-inflamatório, ou ainda o de alfavaca, saboroso e cheiroso. De qualquer forma, talvez o melhor seja manter-se junto aos clássicos e o de cidreira é desses, quase um Joyce. Adalberto chegou com uma certa inquietação. Demorou a entrar na padaria porque não decidia quantas tragadas dar no cigarro antes de apagá-lo ao mesmo tempo em que, com a mão, sinalizava para que eu esperasse porque queria falar algo comigo. Adalberto é desses que sempre têm o que falar; é sempre importante o que tem a dizer, mas, ao mesmo tempo, faz preâmbulos, inserções, muda de assunto, esquece o que ia dizer, para, finalmente, dizer e depois ficar perguntando: “não é, não é?”. Quando finalmente decidiu-se a entrar, depois de dar quatro tragadas finais no careta, já começou dando bons dias aos que estavam dentro da padaria, atitude não muito comum nesse bairro de classe média típica. Puxou uma cadeira da mesa ao lado e sentou-se junto a mim. Colocou o celular em cima da mesa e pediu para prepararem um café e um misto no pão francês. Olhou pra mim, com olhos arregalados e disse: — E aí, meu querido, você viu essa? Que trinta porcento dos brasileiros nunca compraram um livro!?

Acho que fiquei tão espantado com o início do assunto direto, sem rodeios, que até esqueci de dizer bom dia e já fui logo entrando no assunto também. — Sério? Onde você leu isso? — Ah, saiu aí, em vários jornais. Por mais que as pesquisas sobre leitura no Brasil sempre acabem em respostas desastrosas, desalentadoras e desesperançosas, sempre me assusto com esses índices baixos. Mas em todo caso, esta me pareceu mais uma pesquisa dentre tantas outras e por isso ainda havia a vaga esperança de que pudesse ser um dado antigo, uma pesquisa ressuscitada de algum compartilhamento sem critério das redes sociais. Adalberto continuou: — Diz também que o brasileiro não lê nem cinco livros por ano. E que o livro mais lido em qualquer tipo de lista é A Bíblia. Porra! Não leem, e quando leem, leem A Bíblia? Aí fica difícil! — Ah, vai! O problema não é ler A Bíblia. Mas interpretar e achar que aquilo é verdade! Mas algumas pesquisas de leitura sempre me incomodaram no quesito qualidade. Você há de concordar comigo que ler Paulo Coelho é bem diferente de ler Saramago, né? — É, mas como que se avalia isso em pesquisa de opinião? 14


o manto diáfano

nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016

— Sei lá. Talvez fazendo uma lista de autores e pedindo pro entrevistado dar sua opinião de quais seriam os mais difíceis de se ler. — Porra! – É, Adalberto fala muito palavrão – Mas o povo nem lê, vai lá saber opinar qual livro é mais difícil ou mais importante de ler do que outro? — É, tem gente que é bastante indecisa. Se der muita opção é capaz do cérebro travar e a opção mais marcada ser a “outro motivo”. Adalberto ficou olhando pra mim com uma cara de serena raiva, um quê de esperando que eu dissesse mais alguma coisa, qualquer coisa, para ele explodir em impropérios; ou apenas baixar a cabeça, olhar a mesa quase vazia, apenas com um celular sobre ela, e resignar-se perante a impotência dos que sabem muito, sabem tanto que nada podem fazer. Neste entreato quase de final crescente de orquestra, quase de melancolia, tirei meu celular do bolso e acessei o Google em busca da tal reportagem. Acabei achando. “44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro, aponta pesquisa Retratos da Leitura.” Já pelo título, realmente, dá pra se assustar, como sempre. Quarenta e quatro por cento de quase duzentas milhões de pessoas é coisa pra dedéu! Mesmo que boa parte seja de crianças que ainda não estão em fase de alfabetização ou de, sequer, escolher ou comprar um livro para ler. Neste momento me lembro de uma ida à Argentina, durante a crise de dois mil e dois. O que eu via de gente na rua, nas praças, nos cafés que estavam a ler um livro era impressionante. Mas é óbvio que isso não se deu de um dia para outro. Muito menos por conta de uma faísca de literatos, como uma moda, como um vislumbre idiota de quando se achou que a leitura no Brasil iria, finalmente, alavancar porque José Saramago ganhara o Prêmio Nobel. É triste saber que a cultura literária no Brasil dependa de brisas efêmeras, de uma novela que faça sucesso, de um filme, de uma minissérie. Aí, bato o olho na informação da matéria: sessenta e sete por cento diz não ter tido influência para ler, mas que, dos que tiveram, trinta e três por cento foram influenciados por uma mulher. Me vêm à memória as prateleiras de livros na casa de minha mãe que, de tanto olhar as lombadas dos livros, por

curiosidade, um dia, puxei um; por sorte, O Homem Nu. Minha mãe viu isso e depois passou a deixar a escada perto da prateleira. Nisso, uma senhora que estava sentada numa mesa um pouco distante de nós, se levanta para tentar aumentar o volume do televisor fixado no suporte da parede. Cena, aliás, um tanto grotesca, pois a mulher – não muito jovem – teve que, de início, se equilibrar na ponta dos pés, quase a cair em cima de outra mesa até desistir e puxar a cadeira de madeira, dessas de bar, dobráveis e tentar subir nela. Adalberto, saído do transe da desilusão, se levantou e disse à senhora que ela não precisava se incomodar – após perguntar-lhe o que desejava. Ele deu um berro em direção ao caixa pedindo que, com o controle remoto, aumentassem o volume do televisor. O programa em questão era um desses em que há problemas a serem resolvidos, de utilidade pública e o escambau! Nada de mais, mas, infelizmente, minha concentração diminuiu e não consegui prestar atenção em quase nada que estava na reportagem. Já não bastassem as letras miúdas em uma tela de celular também diminuta. Ao mesmo tempo, um carro com uma música bem alta estaciona em frente à padaria. Pronto! Minha concentração foi às trincheiras da primeira guerra e por lá ficou, provavelmente ferida de morte. Adalberto se levantou dizendo que precisava ir. Passou no balcão e pegou o misto e o café para levar. Sabia que me encontraria na padaria àquela hora e que gostaria, apenas, de me dar a triste notícia. Estava com cara de quem perdera um parente. Mas Adalberto era um tanto exagerado e dado a humores de lua, como dizem. Por minha vez, pedi um chá de cidreira e fiquei a ver o programa no televisor, que, a essa altura do campeonato, perdido, por sinal por falta de elenco no plantel, não dava pra saber do que se tratava o quadro. Lembrei de outra pesquisa de opinião dita por uma amiga à época da faculdade onde se dizia que, independente do curso feito, os estudantes diziam que os livros de literatura clássica foram os mais importantes para suas formações. A música do carro estava tão alta que resolvi cancelar o chá, me levantei e fui beber em casa quando, pela trilhonésima vez, tentaria recomeçar a ler Ulisses. ■

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