O Manto Diáfano nº 2 - 20 de junho de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 2 ∙ Brasília/DF ∙ 20 jun 2016

VIOLÊNCIA Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil / Fotos Públicas

CONTRA A MULHER


4 Revista eletrônica Nº 2 ∙ 20 jun 2016 ∙ Brasília/DF

Violências sexuais: entre sentidos (ou contra sentidos) tradicionais e modernos

VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Ronaldo Conde Aguiar Henrique Carlos de Oliveira de Castro Arnaldo Barbosa Brandão

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COLABORADORES Lia Zanotta Machado Aline Cardoso Eloisa Rosa Rodrigo Stumpf González

#iuzomi

EDITORES Benício Schmidt Fabiano Cardoso Arno Vogel DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

14 Por Pessoa, a dança. Se Bernardo fosse bailarino.

16 Shakespeare e o Impeachment

17 Encaixotando Brasília


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nº 2 ∙ Brasília/DF ∙ 20 jun 2016

EDITORIAL

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este número especial temos como intenção discutir, pensar, analisar e fomentar os problemas recentes ocorridos no país. Mais um estupro coletivo fez tremer as redes sociais e, mais importante, fez com que as pessoas começassem a repensar suas atitudes perante comportamentos, antes, considerados normais ou toleráveis. Em trecho do livro da Professora Lia Zanotta Machado, da Universidade de Brasília, Feminismo em Movimento, o tema estupro é visto pelo viés da culpabilização do estuprador e do mal que ele causa à vítima, pois o estupro “imprime a marca da vergonha e da impureza na mulher vítima, torna impuro o local onde foi realizado, mas parece não tornar impuros os sujeitos do ato, a não ser que eles venham a ser denunciados, julgados e presos.” Já Aline Cardoso discute as reações dos movimentos feministas e os embriões que eles têm gerado entre jovens que querem discutir questões de gênero e aonde esta movimentação pode nos levar, mesmo com todos os direitos sendo ameaçados por um congresso tido como o mais retrógrado desde a ditadura iniciada em 1964. Eloisa Rosa, professora de dança do Instituto Federal de Brasília, aborda, de forma muito feminina e poética, o gênero na dança apoiada e ao mesmo tempo conduzindo pelo salão a Bernardo Soares para se descobrirem bailarinas ou não. Por meio de comparações entre os personagens de Shakespeare e políticos brasileiros, Rodrigo Stumpf González nos remete ao processo de impeachment de Dilma Roussef e à política brasileira, que seria digna de representação pela literatura do mestre inglês. Encerramos a edição com a continuação de nosso romance escrito por Arnaldo Barbosa Brandão, Encaixotando Brasília. Boa leitura.

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Violências sexuais: entre sentidos (ou contra sentidos) tradicionais e modernos Lia Zanotta Machado – Antropóloga

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quê mais ignominioso do que um estupro? O estupro é definido pelo senso comum como um ato desumano, inumano, inconcebível e indizível. Imprime a marca da vergonha e da impureza na mulher vítima, torna impuro o local onde foi realizado, mas parece não tornar impuros os sujeitos do ato, a não ser que eles venham a ser denunciados, julgados e presos. Neste caso, o estigma da monstruosidade parece, neles, colar e aderir. Antes, no entanto, de que venham a ser caracterizados como tal, o ato do estupro parece não ter por efeito torná-los impuros, ou

recobertos de vergonha. São as mulheres vítimas, as que recorrem a rituais de purificação: lavam-se e esfregam seus corpos como se pudessem retirar a marca da impureza. Amigos e familiares tendem a querer esconder ou negar que sua amiga ou familiar foi estuprada, em função da desonra. Os estupradores, ao contrário, mal se distanciam da cena, voltam às atividades cotidianas, sem recorrerem a nenhum ritual de purificação ou de reintegração. O estupro pode ser preparado ou não, mas parece não ser percebido como um momento

Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil / Fotos Públicas

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Entrevistado pelos programas de televisão Brasil Urgente e Cidade Alerta, em 21 de junho de 2003, um motoboy em São Paulo, acusado de sete estupros, responde à pergunta do entrevistador de que recado daria às suas vítimas. Enquanto o entrevistador parece esperar alguma mensagem de arrependimento relativa às vítimas, o acusado responde que “elas deveriam tomar cuidado e não andar de madrugada”. Perguntado se ele sabia que havia estuprado duas jovens menores, ele responde enfaticamente: “Não sei de nada não. Eu nunca pergunto nada não... Conversei e deu no que deu. Foi na amarra. Não sabia (da idade delas).” Perguntado de porque praticara os estupros, responde que “encheu a cara de cachaça e de droga e aí fez o que aconteceu”. Mas reconhece um problema, além das drogas: “Foi problema de cabeça”. O entrevistador pergunta se não seria problema de sexo. “Sexo, não. Antes eu me masturbava. Faz um ano, fiz a primeira vez. Nada aconteceu. Depois que nada acontece, a gente pensa que nada vai acontecer.” Na escuta de homens acusados de realizar E dá um conselho a quem estupra atos de estupro, violências sexuais contra como ele: “para aqueles que não aconfilhas, enteadas, cunhadas, companheiras teceu nada, pode acontecer com aquele que fizer o mesmo, como aconteceu coe esposas são realizadas como extensão do migo”. O acontecimento extraordinário “direito” de posse sobre os familiares. é, assim, para os estupradores, a prisão. Este caso do motoboy reforça minha conclusão anterior (MACHADO, 1999) de que é a prisão que é percebida não faria uma coisa dessas”, “um homem que não como fato extraordinário. A denúncia e a prisão é que anda com Deus, só pensa nas coisas materiais da parecem propiciar alguma reflexão mais profunda de vida, vem uma força e o domina e o leva a estuprar”, que algo havia de “errado” no que faziam ou no que relatam que, depois do ato de estupro, retiram-se da eram. E então vem o pedido de ajuda: “Eu só penso cena e voltam às atividades cotidianas de trabalho, que tenho que pagar o que fiz, mas eu penso que presem que os estupros os levem a qualquer ato de pu- ciso de ajuda. Sou honesto e trabalhador”. rificação ou interrupção do trabalho, ou das atividaEles parecem não reconhecer nem o desejo dela des de roubo e assalto. de não querer a relação sexual, nem o seu sofrimenSe algum erro cometeram, entendem que seu ato to posterior. A posição da mulher parece nada signijá está reparado, porque “ela também errou”. Ela “va- ficar, a não ser a própria possibilidade de desafiar a gabundeava a altas horas”. Todos os estupradores de lei simbólica do interdito social, como se obedecesmulheres desconhecidas, no conjunto dos apenados sem a um mandato. que estamos nos referindo, relacionaram a admissão O estuprador parece confiar no senso comum de da relação sexual com a fraqueza, a bebida, a droga, que todos os homens concordariam de que as vadias ou a tentação do diabo no momento de fraqueza. A e prostitutas não teriam direito de dizer não. Con“categoria nativa” da fraqueza masculina aparece em fia ainda no entendimento que apenas as mulheres quase todos eles. de família não podem ser estupradas. Não está lonA contrapartida da fraqueza é o simultâneo van- ge de se aperceber do que chamo de hegemonia de gloriar-se da “façanha” e a banalização do ato. uma leitura cultural sobre o estupro, que se situa no

extraordinário e uma cena fora do ordinário. A pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher (NEPeM/CEAM/UnB), com apenados no sistema presidiário e com vítimas entrevistadas junto à Delegacia da Mulher e à comunidade brasiliense, é a base das minhas reflexões1. Na escuta de acusados apenados por estupro de mulheres desconhecidas, também resultado das pesquisas realizadas pelo NEPeM/UnB, há relatos de preferência por lugares ermos, paradas de ônibus, margens de estradas com mato alto, lugares não iluminados e veículos como lugares de realização do estupro. Embora atribuam ao estupro a ideia de um “crime nojento” e o considerem um ato que apenas pode ser feito por um “cara muito doido, cheio de coca na cabeça”, “um cara que só pode ser doente mental porque do jeito que tem mulher caindo em cima, estuprar para quê?”, “um cara que fosse certo


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realizados imediatamente, para que a denúncia e a prova possam se tornar efetivas. Violências sexuais ocorrem em lugares ermos e em espaços familiares. Entre conhecidos e desconhecidos. Na escuta de homens acusados de realizar atos de estupro, violências sexuais contra filhas, enteadas, cunhadas, companheiras e esposas são realizadas como extensão do “direito” de posse sobre os familiares. (Ver BANDEIRA & ALMEIDA, 1999). É como se esse “direito” adviesse de um “contrato de casamento” em que homens, ao se proporem como provedores, concebem-se como detentores do direito à sexualidade das esposas e companheiras a qualquer tempo e, muitas vezes, detentores, por extensão, do direito ao acesso à sexualidade dos outros familiares. Combinam-se atividades cotidianas de paternidade, como os proventos e o cuidado da educação das filhas e enteadas, com atividades de abuso e violência sexual. Sem buscar as razões e des-razões individuais dos que realizam o ato do estupro, entendo que o sentido simbólico do estupro é pretender instituir a mácula no feminino. O não da mulher, por ser tão categórico, que se defende não apenas verbal como fisicamente, assume a figura do “interdito do incesto”. Transformar um possível feminino interditado, em feminino sexualmente apoderado, é produzir simbolicamente a maculação do feminino genérico: dessacralizá-lo. Os olhares masculinos dos acusados de estupro destituem as mulheres de seu estatuto de pessoas. Trata-se de instaurar em toda sua plenitude a mulher objeto sexual, sequestrando-lhe o caráter de pessoa. Assim, o que parece faltar é a generalização de uma leitura e entendimento culturais de que os direitos das mulheres estão sendo violentados e de que o sentido cultural do erotismo deve passar pela revolução cultural da igualdade entre homens e mulheres e de uma reinvenção das ideias de feminino e masculino compatíveis com a igualdade de direitos sexuais e políticos. Estes novos sentidos ganham espaço lentamente, mas ganham. Vai se desenvolvendo a construção social de um masculino e de um feminino que não aceita qualquer maculação do feminino, e de um feminino e de um masculino que se veem numa posição simétrica dos dois gêneros em relação ao sexo e ao poder. Enquanto estes novos sentidos tomam espaço lentamente, devemos nos concentrar nas armadilhas culturais que envolvem as visões sobre o estupro

campo da referência à mulher enquanto “pessoa relacional”, isto é, a mulher que não pode ser estuprada é predominantemente a mulher de família, paradigmaticamente a mulher entendida na sua qualidade relacional: como mãe, irmã, ou filha. Um acusado de estupro chega a se surpreender que a mulher que ele dizia vagabunda, porque estava altas horas na parada de ônibus, “tinha um irmão, que a socorrera”. No mesmo ano de 2003 foi noticiado o estupro de uma estudante no campus da Universidade de Brasília. Houve outras vítimas no campus da UnB...

Foto: Ed Yourdon via Visual hunt CC BY-NC-SA

Estupros ocorrem nos campus de universidades brasileiras em outros estados, no campus universitário de outras universidades americanas, de outras universidades europeias. São incessantes as dúvidas levantadas contra as vozes das vítimas e são incessantes os pedidos de silêncio às vítimas, como se a não denúncia pudesse diminuir o sofrimento do estupro. O sofrimento das vítimas é de ordem física e moral, é intensa. Mas é preciso reverter o discurso hegemônico: a grande vergonha é a dos homens que estupram e não a das mulheres vítimas. Lembremo-nos dos rituais de purificação exercidos pelas vítimas. Parecem ter pouca eficácia para dissolver a marca corporal do estupro, porque este marca a “alma”, isto é, torna-se marca da “pessoa”. Daí ser indelével. Porque é uma marca da “pessoa moral”, e, porque, na construção cultural do feminino, a marca moral é situada na interioridade, a marca é profunda e se inscreve na construção da subjetividade. É esta simbolização cultural do estupro como vergonhoso para a mulher que torna tão difícil a denúncia dos atos de estupro, necessária para o seu combate. E são estes mesmos rituais de purificação, tão carregados de sentido, que não devem ser 6


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presentes tanto no senso comum, como entre familiares de vítimas e acusados, quanto entre agentes do sistema policial e da justiça. São incessantes as dúvidas levantadas contra as vozes das vítimas e são incessantes os pedidos de silêncio às vítimas, como se a não denúncia pudesse diminuir o sofrimento do estupro. Estupros ocorrem como arma de humilhação e vingança em períodos de guerras. Se o conflito entre Bósnia e Sérvia é de memória recente e lancinante, o período ou a “situação de paz” no Brasil é cada vez mais relativa, dado o crescimento do mundo do tráfico de drogas e a instalação de um clima permanente percebido como de guerra, estupros também assumem o caráter de humilhação das mulheres e dos seus companheiros. O estupro emerge como possibilidade a grupos concorrentes de tráfico demonstrarem seu controle ou vingança. A ladrões e assaltantes, aparece como um “bônus” de violência a mais que lhes brinda a oportunidade de um assalto e roubo de carro bem sucedido. A “virilidade em excesso” do estupro e o “imaginário” da violência em nome da “honra”, passam a ser encenados na realidade, como se fossem puros jogos mascarados, como simulacros das relações de desafios ou como atos banais. Em nome do masculino, pode-se reinventar a representação do masculino como puro poder espetacular, arbitrário ou banal. Esta reinvenção pode estar se fazendo como um contrajogo das tendências atuais de se desestabilizar “a noção do masculino definido como ação e controle”. ▶ 1

Cultura do estupro A chamada cultura do estupro vem de uma história de longa duração, que esteve presente nos códigos penais e civis que estabeleciam concretamente a desigualdade de direitos entre homens e mulheres. No período colonial, basicamente o chefe de família tinha o poder de posse sobre as mulheres e os filhos, como se fossem escravos ou servos. Isso marcou o masculino. Embora isso já não esteja mais na nossa Constituição de 1988, que fala de igualdade de gênero, a legitimidade da ideia de posse e da desigualdade persistem. No Brasil Colônia estupro era só contra uma mulher virgem. Essa noção permanece na nossa memória, de que o estupro seria contra mulher virgem, “honesta”, fiel, casada. Assim, persiste a ideia, contra todas as outras mulheres, de que elas é que teriam provocado. A legislação muda, mas até há pouco tempo o estupro era um crime contra os costumes, não contra a dignidade da pessoa. Ainda vigora a ideia de que quando as mulheres dizem não, elas na verdade estão dizendo sim. Porque “caberia” a elas dizer não, mas na verdade elas “querem”. Então nega-se a palavra da mulher e não se dá valor ao corpo da mulher, à pessoa; tudo é objeto de posse do homem.

A cultura de estupro e o patriarcado O patriarcado é um fato, e existiu legalmente. Não é só uma memória das pessoas, da cultura do homem machista. E o seu reflexo na cultura do estupro está sediada na memória dos nossos códigos penais e civis. O patriarcado não está na cabeça das feministas. Ele foi inscrito e legitimado, legalizado nos códigos civis e penais da história do Brasil durante a Colônia, Império e República. A igualdade de gênero só aparece em 1988 com a Constituição. A desigualdade diminuiu ao longo do tempo, mas se manteve na República, no Código Civil, dando direitos desiguais à mulher, até o estabelecimento da atual Constituição.

Parte das considerações que aqui trago se baseiam nas análises realizadas em dois artigos meus publicados (MACHADO, 1999; MACHADO & MAGALHÃES, 1999) em livro que resultaram da pesquisa e onde se encontram também artigos das professoras Lourdes Bandeira, Mireya Suárez e Rita Segatto, assim como de estudantes pesquisadores. Trata-se do livro organizado por Suárez e Bandeira, Violência, Crime e Gênero no D.F., Editora da UnB e Paralelo XV, Brasília, 1999, reeditado pela Editora da UnB em 2003. Bibliografia BANDEIRA e ALMEIDA, (1999). “Pai e avô: o caso de estupro incestuoso do pastor”. In: SUÁREZ, Mireya e BANDEIRA, Lourdes (orgs.). Violência, Gênero e Crime no Distrito Federal. Brasília. Ed. Paralelo 15/Ed. da UnB. (Trecho extraído de ZANOTTA, Lia. Feminismo em Movimento, 2ª Ed. 2010. Verbena Editora: Brasília. pp 76-81).

Trecho editado e extraído de entrevista dada pela professora Lia Zanotta Machado à TV Justiça em junho de 2016.

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Da violência da honra à violência do espetáculo A escuta de jovens infratores e de jovens em condição de vulnerabilidade permitiu a reflexão, a partir da situação brasileira, dos efeitos das novas sociabilidades inscritas em alguns aspectos fortes da “alta modernidade”, sobre a construção das categorias de masculinidade, e sobre a construção de novas modalidades de violência. Esta escuta

também é resultado das pesquisas qualitativas que fizemos junto a jovens atendidos ou parentes de jovens atendidos pelos Serviços de Atenção Integral à Saúde em Brasília e de jovens incorporados em Programas de Semi-Liberdade1. O caminho para o uso das drogas e o exercício de assaltos do jovem Eduardo, 20 anos, pai recente

de uma filha com sua companheira de gangue, e morador de um bairro periférico, parece seguir um roteiro performático em que o modo de se apresentar e se fazer reconhecer socialmente passa pelo exercício espetacular de ações agressivas que mostrem sua capacidade de desafiar e enfrentar, não importa a quem.

“A gente saía já pra brigar, só pra procurar confusão. (...) Sei lá, tem muito bicho que gosta de sair assim e se demonstrar o tal, sabe? Ter autoridade, assim, ser o maioral lá, igual lá tem festa todo final de semana, a gente tem um lugarzinho de curtir igual todo lugar, saber falar doidão, a intenção é de procurar briga, sair armado, aí brigar, dar tiro (...) bastava esbarrar, igual mesmo quando eu saía com Ana. Aí olhava pra ela, eu já ia procurar briga. ‘O que foi?’ Da outra vez mesmo eu tava lá em casa e ela tinha saído com a prima dela e tinha três caras no bar bebendo e jogando sinuca, aí no que ela passou, os caras ficaram mexendo. Eu fui lá dentro de casa, peguei a arma, coloquei todo mundo para correr do bar. (...) ‘Tá mexendo com mulher de malandro, rapaz? Que negócio é esse aí? Não respeita mais não?’ Aí os bichos ficou: ‘Pelo amor de Deus, cara!’ Aí eu bati o taco na boca de um, eu tava sozinho, aí eu falei: ‘sai voado daqui todo mundo!’ Aí eu fui para casa, aí hoje em dia mesmo ele passa por mim e baixa a cabeça. (…) É a sua casa. Aí aquilo ali é a sua quebrada, ali você comanda. Um outro cara de outra quebrada tem que passar na dele, muitos passam encarando, sabe? É a hora que rola o acerto. (...) Passar na dele é passar pianinho, quieto, sem encarar os outros, com a cara feia.” ▶

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“Demonstrar ser o tal, o maioral” sintetiza a força do argumento do narrador. O autocentramento e a procura dos olhos e espelhos (os amigos da gangue) para a sua performance são aqui evidentes. “Ter autoridade e ser o maioral” são valores fundados no valor do exibicionismo. Debord (1967), autor da “sociedade do espetáculo”, entende que a exibição se transforma no lema essencial da existência. Birman (2000) sintetiza: “vive-se assim para a exibição, para a mise-en-scène sempre recomeçada no espaço social, para a exaltação do eu”. (p.167). Atrás de cada ato de agressão não subjaz um conflito relacional. Os atos de agressão não se dirigem para sujeitos determinados, em nome de um conflito relacional instalado. O estilo de subjetividade aqui é o da exterioridade e da aparência e da exaltação exibicionista do eu. Sua contraparte é a indiferença e uma dessensibilização em re-

lação à alteridade inscrita neste cenário, quase teatral. Os projetos de “tempo longo” são os dos “otários”. Neste discurso, o mundo das gangues, das drogas e dos assaltos aparece como uma “opção”. Contudo, essa opção é reelaborada e entremeada por muitos desses jovens por um discurso ressentido da exclusão. Outros, como é o caso de Eduardo, insistem na ideia de “opção”. Situam-se como se estivessem “fora da ordem social” e, deste imaginário e fantasioso lugar, decidem quando se introduzem, ou no “mundo dos otários”, no “mundo da malandragem e do consumo das drogas”, no “mundo da bandidagem”, ou no “mundo do tráfico”. Tal categoria nativa de “opção”, remete à hiper-realização do ideal de “sujeito autônomo e dono de sua vontade”. Ele, porque se pensa poder estar em qualquer um destes “mundos morais”, se coloca fora do mundo das regras sociais, e “escolhe” onde e quando se inserir. ▶

A educação como arma para combater a cultura do estupro Existe algo que pode ser feito no interior das próprias famílias. Os principais lugares de formação e educação que nós temos no Brasil, por um lado são as relações familiares, e por outro lado a formação escolar. Nas famílias, especialmente nas classes populares em comunidades com mando do tráfico ou das milícias e onde o acesso ao trabalho é incapaz de chegar a todos, o valor da virilidade às vezes é levado a qualquer custo. Nas classes médias e mais altas, existe também uma transmissão de valores masculinos em que a sensibilidade, por exemplo, em um homem, no lugar de ser vista como positiva, é vista como “negativa”, feminilizada. Então a virilidade é ensinada “contra” as mulheres. Controlar as mulheres e desafiar os outros homens. Essa é a virilidade ensinada. A grande “novidade” é que já temos a ideia da igualdade, de

que homens e mulheres podem ter sensibilidade e serem respeitosos, que é possível o cuidado tanto dos homens para as mulheres quanto das mulheres para os homens. A cultura da sensibilidade, do respeito e da cidadania. Essa cultura arcaica de que os homens devem controlar as mulheres e responder a qualquer desafio dos outros homens por meio da violência física e verbal tem que terminar, tem que ser enfrentada. Isso implica uma formação psicológica. A política educacional pode dialogar com a cultura familiar e fazer uma crítica à cultura do estupro. Porque ao falar contra a discriminação de gênero, falamos que homens e mulheres podem respeitar o outro. O estupro é o desrespeito absoluto. Todas as campanhas contra a discriminação de gênero que vinham sendo feitas, estão sob, digamos,

interdição do Congresso Nacional. Porque no Plano Nacional de Educação enviado pelo Executivo então vigente, estava registrada a necessidade de uma luta contra a discriminação de gênero, a discriminação sexual, racial, e contra a discriminação religiosa. Mas o Congresso retirou a discriminação de gênero do texto. A retirada da palavra gênero do Plano Nacional de Educação deveria ser considerada inconstitucional porque a Constituição diz que não pode haver discriminação sexual. Isso depende de uma interpretação jurídica, mas como sexo e gênero estão inter-relacionados, em termos sociais é um desastre a retirada do termo gênero. As políticas públicas educacionais precisam expandir com urgência a ideia de cidadania com igualdade de sexo e de gênero: sem discriminação, sem violência e sem estupro.

Trecho editado e extraído de entrevista dada pela professora Lia Zanotta Machado à TV Justiça em junho de 2016.

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Trata-se da construção de um valor, o mais radical, de se pensar a “auOs jovens, ávidos de fugir ao anonimato, tonomia do indivíduo” em relação são recrutados como “guerreiros” e circulam à sociedade, a “hiperliberdade”. Os constrangimentos só advêm de sua inem torno à reputação e ao exibicionismo do serção em cada um destes “mundos”. “maioral”. A ética do trabalho parece menos A crença na “opção” é fortemente sedutora e cada vez menos acessível. presente nas narrativas dos jovens infratores analisados por Assis & Sousa (1999), mesmo quando em situações de inserção no tráfico das drogas torna-se quase impossível “sair vivo” em A iniciação ao mundo e às identidades violentas função das regras do “mundo das drogas”. e controladoras se reforça nas relações familiares e Giddens (1991), embora apostando positivamen- nos espaços públicos: na “casa” e na “rua”. te na sociedade pós tradicional, assinala que a conA magnitude comparativa internacional dos íntraparte do valor positivo em torno da autonomia dices de violência por homicídios no Brasil parece individual é a generalização de comportamentos vi- apontar para a intensidade do imbricamento entre ciados ou compulsivos. Os vícios parecem estar si- as formas recentes de violência e as tradicionais de tuados como o contra sentido da alta modernidade. longa duração. Uma nova modalidade de “individualismo” pareConcluo, assim, que as modernas e tradicionais ce estar sendo configurado. Não como substituto da formas de violência no Brasil se articulam e se nuclássica modalidade do “individualismo de direitos”, trem entre si exacerbando a ideia da masculinidade mas como uma outra modalidade que, ora acompa- como poder e da valorização da sociedade violenta. nha a primeira, ora com ela se confronta. Fundada na As formas modernas e tradicionais das violências forte ideia do “sujeito autônomo, dono de sua vonta- entre homens e contra as mulheres se reforçam e se de”, tão bem caracterizada por Dumont (1985), a ên- imbricam continuamente. Não se pode desarticuláfase se desloca da ideia de uma interioridade do su- -las. A dimensão de gênero vai sendo ressignificada jeito e de uma universalidade de direitos, para a ideia mas continua fundante para se entender e se enfrende uma exterioridade da aparência e da hipervalori- tar as formas e articulações das violências. zação da “liberdade” e da “singularidade” individual. O enfrentamento da violência no Brasil não pode A pacificação ocorrida pela constituição de su- se voltar exclusivamente para o combate à criminajeitos de direito, e sujeitos “interiorizados” das an- lidade organizada, mas deve também enfrentar as teriores temporalidades da modernidade individu- violências relacionais entre gênero e intra gêneros alistas, parece estar em perigo face ao processo de que vêm de uma longa duração. ■ dessensibilização diante da alteridade e ao valor da autoexaltação de sujeitos singulares que se querem 1 Retomo parcialmente algumas considerações em Machado, Lia (2004). ver nas imagens especulares. As novas formas modernas de violência cínica Bibliografia que acompanham a aparição da sociabilidade do esASSIS, Simone Gonçalves de & SOUZA, Edinilsa Ramos de. (1999). petáculo e das subjetividades exteriorizadas se artiCriando Caim e Abel: pensando a prevenção da infração juvenil. Ciênc. culam com a força da criminalidade organizada saúde coletiva [online]. Vol. 4, n. 1, pp. 131-144. ISSN 1413-8123. doi: 10.1590/S1413-81231999000100011. em torno do tráfico. Os jovens, ávidos de fugir ao BIRMAN, Joel (2000). Mal-Estar na Atualidade. Rio: Civilização Brasileira. anonimato, são recrutados como “guerreiros” e cirDEBORD, Guy. (1967). La Société du Spetacle. Paris: Gallimard. culam em torno à reputação e ao exibicionismo do DUMONT, Louis. (1985). O Individualismo. Uma perspectiva antropoló“maioral”. A ética do trabalho parece menos sedutogica da ideologia moderna. Rio: Rocco. ra e cada vez menos acessível. GIDDENS, Anthony. (1991). Modernity and self-identity in the late moEstas formas modernas de violência se nutrem dern age. Cambridge, Polity Press. das formas tradicionais de longa duração da violência brasileira em torno da ideia de honra, do (Trecho extraído de ZANOTTA, Lia. Feminismo em Movimento, 2ª Ed. 2010. Verbena Editora: Brasília. pp 81-85). desafio entre homens e do controle das mulheres. 10


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#iuzomi Adolescência, feminismos e masculinidades Aline Cardoso – Feminista, produtora cultural e pesquisadora em gênero e sexualidade.

Um cenário nada otimista

que deveriam ser um direito básico como respeito, por exemplo, demonstram, no mínimo, a desonestidade com que as mulheres têm seus discursos e direitos tratados. Após esse crime, diversos outros estupros coletivos, ou não, têm estampado, quase diariamente, os principais portais de notícia na internet. Vale lembrar, ainda, que, caso o PL 5069/13 seja sancionado, o atendimento a vítimas de violência sexual ficará dificultado e limitado.

O

Brasil enfrenta uma forte onda conservadora e retrógrada nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A desigualdade de direitos civis, ligada a gênero, ainda é atual e a violência ligada à misoginia é uma realidade brutal encarada e temida diuturnamente pelas mulheres. Resultado disso é a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, que tipifica um crime muito praticado no Brasil: homicídio qualificado de mulheres. Diversas outras iniciativas de cerceamento aos direitos de escolha sobre o corpo da mulher também têm ganhado destaque no cenário político e vêm movimentando as lutas feministas, como a descriminalização do aborto. Recentemente, uma adolescente sofreu estupro coletivo e foi manchete de diversos jornais e, claro, tornou-se alvo de injúrias e ataques misóginos que tentaram colocá-la como a provocadora da violência que sofreu. Mais uma vez as redes sociais foram o lugar onde a indignação e revolta por parte das mulheres foram expressadas no intuito, quase pedagógico, de explicar que não importa roupa, local e comportamento, a culpa nunca será da vítima. Tais manifestações foram elaboradas com frases que evocam “homens, não (insira aqui alguma violência misógina)”. Paralelamente, diversos homens, com o objetivo de tirar o foco da mulher e fazer uma vitimização – quase tosca –, vieram às redes sociais reclamar da generalização que os movimentos feministas fazem de “todos” os homens, como se todos fossem um agressor em potencial, ficando evidente o terreno nada empático e solidário que eles oferecem às mulheres. Tais atitudes para com as reivindicações feministas, onde homens ofuscam suas protagonistas em busca de absolvição e congratulações perante atos

Uma luz no fim do túnel?

Foto: wdroops via VisualHunt / CC BY-NC-SA

“Atrevida, faça uma revista para melhorar a vida das moças e não transformá-las em bonequinho de macho, ninguém quer viver presa não, não precisamos ter aval de homem para ser feliz não, que vergonha!”. Este foi um dos comentários mais “curtidos” na postagem intitulada “Os makes que os garotos não curtem nas meninas”, na página da rede social Facebook da revista Atrevida, cujo público-alvo são adolescentes do sexo feminino. A postagem, feita em abril de 2015, recebeu tantos comentários negativos que teve de ser apagada da página. No entanto, tal matéria pode ser acessada no portal UOL, onde a revista hospeda seu hotsite. ▶ 11


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O “empoderamento” feminista das meninas adolescentes é cada vez mais perceptível, seja pela liderança feminina em ocupações escolares e protestos civis; em redes sociais por meio de duras críticas a reportagens de tradicionais revistas femininas direcionadas ao público adolescente; por canais de vídeos que vão desde beleza e maquiagem da maneira que as meninas querem – e não como os meninos dizem gostar –; a vídeos de aceitação de belezas “fora do padrão”, como aceitação do corpo gordo e cabelos crespos naturais. Há, ainda, a recente onda de campanhas nas redes usando hashtags para abordar situações de abuso como as campanhas #meuprimeiroassédio, #meuamigosecreto, #mexeucomumamexeucomtodas que, não necessariamente eram direcionadas ao público adolescente, mas que tiveram boa adesão por parte dessa faixa etária. Não menos importante estão muitas cantoras de funk que, apesar de controvérsias entre diferentes frentes feministas, colaboram para o “empoderamento” das meninas e mulheres, especialmente as de classes mais populares e periféricas. Um exemplo de criança que têm se destacado no meio artístico é MC Sofia, com músicas que levam o empoderamento a crianças negras. No ano de 2015, a pauta sobre gênero esteve fortemente presente no meio adolescente por intermédio da escola. Um exemplo disso foi o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que abordou, em dois momentos, temas sobre feminismo: em questão que trazia a célebre frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, da filósofa Simone de Beauvoir, e no tema da redação “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Tal escolha, feita na maior e mais democrática prova de avaliação para inserção de jovens na universidade, causou bastante impacto na sociedade brasileira e, como já era de se esperar, o “ENEM feminista” causou grande reboliço nas redes sociais, ora sendo elogiado como um grande avanço, ora duramente criticado e visto como o perigo que a “ideologia” feminista representaria nos jovens. O ENEM acabou por levantar dados e suspeitas importantes sobre a violência contra a mulher: acredita-se que muitas das redações escritas eram relatos de violências sofridas pelas estudantes ou por alguma conhecida próxima. Tal fato demonstra, visto que tal violência fora cometida contra mulheres ainda na adolescência, há muito a se educar e trans-

formar a educação patriarcal e machista perpetuada na sociedade. Assim, as meninas adolescentes têm se destacado como importante voz nas militâncias feministas. Como cenário, temos a internet com as redes sociais e blogs com conteúdos feitos e voltados por e para esta faixa etária, somando-se a isto a escola, espaço de socialização onde adolescentes passam grande parte do dia, sendo assim, local de convivência e trocas sociais e afetivas, para além do ensino curricular. A adesão de mulheres cada vez mais cedo nos movimentos feministas é um fenômeno contemporâneo, facilitado por ferramentas tecnológicas que

A adesão de mulheres cada vez mais cedo nos movimentos feministas é um fenômeno contemporâneo, facilitado por ferramentas tecnológicas que agilizam e facilitam o trânsito de informações.

agilizam e facilitam o trânsito de informações. Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, realizada em 2010, cerca de 40% das mulheres entre 14 e 17 anos já se consideram feministas e começam, a passos largos, a se inteirarem dessa jornada histórica, promovendo discussões e embates construtivos em prol da equidade de gênero, de direitos, de desmistificação do espaço privado e liberdade de mobilidade segura em espaços públicos, além de inserirem pautas ligadas à diversidade sexual. É necessário destacar que, entre as adolescentes feministas, a importância pela autonomia do corpo é largamente defendida e debatida. Seja pela liberdade sexual de fazer escolhas de parceiros/as sem coerção ou sem serem julgadas por suas próprias escolhas, seja por usarem a vestimenta que bem entendem em locais e horários sem serem julgadas ou “cantadas” no espaço público. O assédio é debatido no sentido de apontar os verdadeiros culpados disso: o assediador/estuprador. Essas adolescentes já sabem que a culpa nunca é da vítima e lutam contra essa cul12


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pabilização feita pela justiça e pela mídia. Formam um senso crítico que desperta a atenção de mulheres ligadas – ou não – aos diversos movimentos feministas existentes, emocionando e contribuindo na soma de agentes e de pautas para estas militâncias. Entendendo o modelo patriarcal da sociedade e da educação sabemos o quanto é desbravadora e corajosa a trajetória que os movimentos têm traçado. Os resultados e lutas têm ganhado cada vez mais espaço de divulgação, análise e até certa consideração e respeito1. Ou seja, não há dúvidas de que as problematizações acerca de importantes assuntos da sociedade, ligadas às questões de gênero, estão sendo colocadas e percebidas cada vez mais cedo.

• equivalência no tempo de licença paternidade, sendo esta estendida ao mesmo tempo que o da mãe, beneficiando a mulher pela divisão de tarefas com o bebê e beneficiando filhos e pais por terem mais tempo juntos neste importante momento de criação de laços afetivos; • benefícios para a saúde e sexualidade do homem; • educação mais acolhedora com os meninos, sem cerceamento de afetos e sem reforço de estereótipos, criando homens mais confiantes e menos propensos a perpetuar características opressoras e machistas, diminuindo, inclusive, a incidência de mortalidade de homens jovens e adultos no espaço público; dentre outros benefícios3. Entender os benefícios da equidade de direitos entre homens e mulheres parece simples se não fosse uma tarefa árdua no patamar legislativo e social, dado o histórico de comportamentos perpetuados há gerações. O cenário nada otimista, mencionado no início deste artigo, ganha novos contornos se pensarmos que hoje os jovens estão formando um senso crítico cada vez mais cedo, já na adolescência. Eu diria que a juventude não está perdida, ainda que tenhamos muitos direitos pelos quais lutar e muito diálogo para fazer com que meninos e homens entendam seu lugar de voz nessa jornada. Já dizia a poetisa, “a revolução será feminista”. Eu acredito nisso. ■

E os meninos? Quando investigamos movimentos feministas, por obviedade, a figura masculina é vista como o maior perpetuador de opressões, violências e desigualdades de gênero. Pierre Bourdieu, sociólogo atuante nos anos 1990, parte do princípio que nas relações de gênero as vantagens masculinas se dão especialmente no campo de forças simbólicas, indo além das questões relacionadas à força física. Neste sentido reproduziu-se, historicamente, relações entre dominantes (homens) e dominados (mulheres). Assim, percebe-se uma desvantagem das mulheres que são percebidas como objetos de trocas simbólicas pelos homens2. Outros estudos apontam crises das masculinidades, onde os homens estariam fragilizados neste processo de manter um status de homem viril dominante. A sociedade patriarcal se perpetua no cotidiano e é importante questionarmos o lugar do homem como sujeito que também sofre com consequências do patriarcado. Abaixo, alguns aspectos que trariam benefícios a homens e mulheres se superássemos alguns destes fortes resquícios: • não obrigatoriedade do alistamento militar, permitindo a liberdade de escolha que não cerceie ou interfira em escolhas individuais de vida; • igualdade salarial que permitiria aos homens, em relações heterossexuais, trabalhar “menos” para “sustentar” uma casa, já que as mulheres receberiam salários justos, promovendo relações mais saudáveis e divisões de trabalhos domésticos igualitários;

1 Relativizo tal “consideração” e “respeito” por perceber que em diversas circunstâncias o diálogo vem pela insistência por parte das feministas com pessoas que detêm privilégios e poderes acima delas. Por exemplo, coordenadores pedagógicos e professores que lidam com movimentos organizados destas jovens, não bastando mais as negativas por suas propostas, afinal, estas meninas estão prontas para debates acima do esperado no ambiente escolar. É mais que um short, trata-se de discutir o machismo perante a normatização que coloca meninas como objetos sexuais, muitas vezes a partir da pré-puberdade. Assim, tal “consideração” e “respeito” não vêm por serem direitos e afetos inerentes ao ser humano mulher, mas sim por imposição muito suada e batalhada por estas jovens. 2 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997. 3 A violência que atinge homens jovens, assim como a taxa de mortalidade masculina, devem ser analisadas em relação a diversos marcadores sociais, como raça e classe socioeconômica. Estatisticamente a mortalidade de jovens negros e pobres é bem superior à de brancos. Isso se deve muito ao contexto racista em que vivemos, de extrema desigualdade social e de oportunidades ou de falta de oportunidades. Este assunto merece uma análise a parte, não sendo possível resumir neste certame.

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Por Pessoa, a dança. Se Bernardo fosse bailarino. Eloisa Rosa – Departamento de Dança do Instituto Federal de Brasília-IFB.

Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer – tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório!) Poisada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anónimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida! Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que poisa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia. (Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, assinado pelo heterônimo Bernardo Soares). ▶

Foto: Txanoduna via Visual Hunt / CC BY-NC-ND

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S

e Bernardo fosse bailarino, sua covardia seria pela investigação de um composto de cenas que talvez nunca acontecessem. Ele dançaria sem dançar. Mas se ele fosse um bailarino não covarde, dançaria a mosca. O desassossego seria efêmero. Talvez não precisasse chamar Bernardo. Pessoa poderia ser Fernando sendo outrem em alguns instantes no palco. Outrem como mosca. A maldição e o encantamento da efemeridade mudariam o destino da obra em questão. Quando olha para o teto e a régua é sobre ele, descobre a alteridade. Quando se sente mosca, uma alma à mosca, dormindo mosca, fechado mosca e sendo ele mesmo, seu corpo, Bernardo descobre parte da dança: o processo criativo. Se Bernardo fosse bailarino, dançaria mosca pela descoberta do seu corpo para ser mosca. O que o atravessa se torna um com ele, investigação corporal, isso é dança. Dança. Se Bernardo fosse bailarino, não se furtaria dos seus instintos, carnalmente diretamente. Bernardo é um pouco bailarino. Quando se põe a pensar pelo corpo, quando se abriga em suas sensações, quando na humilhação de ser pouco, “é-se” muito. Quando tem fome da extensão do tempo, “ser-se” sem condições. Se ele fosse completo bailarino, Pessoa seria Fernando? Pela dança pode imaginar-se tudo. Bernardo é um pouco eu. Quando a vida é a espera na estalagem pela diligência do abismo no gozo da brisa. Bernardo é um pouco eu. Na fraternidade das sutilezas. Por que fomos tão negados em nossa existência? A arte mora na mesma rua da vida, aliviando, sem aliviar de viver. A arte tão monótona como a vida atribui sentido às coisas. Pela dança, o mundo tem sentido. Por que Bernardo e não Pessoa? Por que o corpo é tão pouco que merece ser infinitamente recriado em diferentes sentidos e significações? O corpo é muito ou pouco por recriar-se? Recriar-se significando o mundo. Isso é dança. Se Bernardo também ouvisse e não só reparasse no corpo? Ele seria bailarino. E se Bernardo fosse bailarina? Um sorriso escapa a face. Se Bernardo fosse bailarina? Talvez Pessoa nunca fosse publicado. Se Bernardo fosse bailarina? Talvez Fernando não quisesse Bernardo. Se Bernardo fosse bailarina? Talvez houvesse um tio para ser tratado. Se Bernardo fosse bailarina? Um dissenso na rima, uma mulher bailarina. ■ 15


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Shakespeare e o Impeachment Rodrigo Stumpf González – Cientista Político

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as últimas semanas, com o desenrolar do processo de afastamento da Presidente Dilma Routssef no Congresso Nacional, surgiram comparações entre a conjuntura política brasileira e a ficção de séries de televisão de sucesso. Para alguns, o caso brasileiro rivalizava com House of Cards, inclusive tendo ocorrido citações a Michel Temer como Frank Underwood nos debates durante a admissibilidade do processo no Senado. Para outros, seria uma versão de Game of Thrones. No entanto, talvez seja no teatro de William Shakespeare que possamos encontrar paralelos para o caso brasileiro. A coincidência adicional com os marcos da política brasileira são os fatos que os 500 anos de seu nascimento transcorreram em abril de 1964, marco de outra ruptura institucional, assim como neste abril de 2016 passaram os 500 anos de sua morte. A tramitação na Câmara dos Deputado forneceu uma farta lista de candidatos a Falstaff. O mais recente foi o deputado Waldir Maranhão e sua anulação por 24 horas da sessão da Câmara, digna de uma noitada na taberna. Eduardo Cunha poderia dar um bom Iago, se agora fora do cargo buscar outra ocupação. No entanto, no Senado o tom ficou mais sério, remetendo às peças com finais trágicos. A profícua obra do dramaturgo britânico permite que cada um identifique o ocorrido, de acordo com a sua leitura do processo, com uma obra em particular. Assim, para os propositores e apoiadores da denúncia contra a presidente, como o PSDB, parte do PMDB, a FIESP e a imprensa simbolizada no Estadão e na Veja, a semelhança seria com Macbeth, com uma troca dos papéis principais, masculino e feminino. Lula encarnaria Lady Macbeth e Dilma o rei disposto a tudo para assegurar o trono. O sangue em suas mãos é do equilíbrio fiscal.

Para os setores da oposição que apoiaram o afastamento, mais inclinados por um senso de oportunidade que pelo convencimento dos crimes, como o PSB e o PR, estaríamos vendo a reedição de Ricardo III. O soberano derrotado é abandonado no campo de batalha cercado pelos inimigos, pagando pelos seus erros e arrogância. Os que até agora eram governistas, como PT e PCdoB podem ver Dilma no papel do Rei Lear, traído e abandonado pelos que, antes próximos, se aproveitaram de sua benevolência, mas consideraram insuficiente o benefício recebido. Quem analisa o caso brasileiro de fora consideraria uma remontagem de Hamlet, em que o usurpador do trono vem do próprio palácio. Tendo Dilma e Temer as posições do fantasma do rei morto e de seu sucessor, resta saber quem ficaria com o papel do príncipe herdeiro que descobre a traição e busca vingança. O PT parece carecer de jovens herdeiros. Os ministros do Supremo poderiam em rodízio representar Rosencrantz e Guildenstern. O final já se sabe: ninguém sobrevive (politicamente falando, no nosso caso). A promessa de mobilização e oposição implacável a Temer feita pelas lideranças do PT soa como a cena de abertura de A Tempestade. Lula encarnaria a Próspero e Dilma a Miranda. Os sindicatos e movimentos sociais seriam um Caliban institucional. Os mais otimistas prefeririam assistir a uma reedição de Sonho de uma Noite de Verão. Mas esta teve sua última representação na comemoração da vitória eleitoral de 2014 e aparentemente estará fora de cartaz por um largo tempo. A temporada é de tragédias. As comédias de amor terão de esperar por 2018. ■ 16


ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão

Capítulo 2 Foi bem ali no topo do morro, onde ficaria a caixa d’água, que a cidade começou, quando JK acenou para o grande arquiteto do universo (deus) que acompanhava de longe a comitiva e disse-lhe: — Oscar, quero uma cidade bem egípcia com muitas pirâmides, muitos palácios e o Rio Nilo em volta, não importa quanto vai custar, e não esqueça da caixa d’água. Os cinco riram, cada um a seu modo, porque eram homens muito diferentes um dos outros. O engenheiro magro era calado, de poucos sorrisos, JK era sonhos e sorrisos, o coronel era a sombra de JK, e tentava tirar os carrapichos que teimavam em se agarrar nas pernas das calças de tropical inglês do Presidente. O homem alto e louro em quem JK depositava grande confiança foi levado pela “velha da foice”. Um homem derrubado por uma árvore? Como? Não é isso que se espera, é sempre o contrário, mas o homem louro e alto era daqueles que se confrontavam até com as nuvens. Oscar, bem, Oscar era deus, como ficou comprovado depois. Um deus enigmático, nunca se sabia o que estava pensando de verdade, nada do que dissesse, nem nada que escrevesse era válido. Só valia o que desenhasse. Dali mesmo desenhou uma avenida de largura considerável, que desceria por alguns quilômetros e iria parar num prédio alto, no final de uma grande esplanada. De um lado e de outro da grandiosa pista, o nada, para não atrapalhar

a vista do grande prédio que tinha em mente, mas antes precisava combinar com o segundo membro da santíssima trindade, encarregado de desenhar a cidade. Conheceram-se há muitos anos quando faziam o projeto do Ministério da Educação no Rio, deus então era um rapaz ainda, mas já impressionava. Para complicar havia o concurso de projetos para a cidade, implicância do Instituto dos Arquitetos, Oscar sabia que disputa entre arquitetos era como concursos literários, briguinhas, discussões miúdas, falações no pé-de-ouvido e, por fim, premiação para os piores livros e para as maiores amizades, “ou não foi assim que Guimarães Rosa perdeu com Sagarana?” Foi o que lhe disse o terceiro membro da trindade, o poeta pernambucano, com quem Oscar contava pra botar em pé os prédios esquisitos que inventava: — É provável que não haja decisão alguma. Melhor fazer como na Pampulha, falar com o presidente que saberá manobrar para que ganhe o projeto de uma cidade monumental, como vocês desejam, por mim preferia como no Recife, o lago atravessando a cidade como se fosse o Capibaribe. JK não pensava numa cidade brasileira como as outras, com ruas, ruelas, becos, esquinas, camelôs, buracos, atropelamentos, assaltos. Imaginava algo peculiar, para ser visto e admirado, de preferência do alto. Queria um artefato, um objeto, que deveria funcionar

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como o passaporte do Brasil para a era moderna. Mal-comparando, uma espécie de foguete à lua, como o dos americanos, a aterragem seria no Planalto Central, cuja paisagem não diferia muito da do satélite. O “complexo industrial-militar” que construiria o artefato seriam as empreiteiras, que já atuavam na construção de estradas, hidrelétricas, portos, indústria automobilística e mais um bocado de coisas, porque JK, conhecendo as entranhas do poder, imaginava que talvez tivesse que voltar para completar sua obra; neste caso precisaria das empreiteiras, o mundo agrário já pertencia ao seu partido. Do sucessor ele esperava o que acabou acontecendo, mas o desenrolar dos fatos posteriores eram imprevisíveis, até mesmo para Dona Marivalda, uma cigana de cabelos longos e olhos claros da etnia Calom, que o acompanhava desde Diamantina e sempre acertava seus prognósticos. A verdade é que JK não tomava decisões importantes sem antes consultar Dona Marivalda, especialista em jogar o Tarô, mas também praticante de outros macetes que permitiam ver o futuro, que iam desde jogar um fósforo aceso numa xícara de café e observar as imagens que se formavam, até avaliar os céus à procura de informações se iria chover ou não, geralmente suas previsões acertavam mais que o serviço de meteorologia, o que não era vantagem do jeito que as coisas funcionavam no serviço público. A pedido de JK Dona Marivalda jogou o tarô. Ele queria saber como seriam os serviços públicos na nova capital: saúde, transportes, educação. Dona Marivalda arregalou os olhos claros e disse, baixinho: “presidente, as cartas dizem que novos prédios e grandes avenidas não mudam muito o funcionamento das coisas, somos descendentes dos portugueses e, felizmente, Portugal nos deixou um legado fatal: o desleixo. Palavra tão portuguesa quanto saudade. Só que o desleixo deles não deve ser lido ao pé da letra (nada que vem de Portugal deve ser lido ao pé da letra). Os portugueses são, na essência, como nós: só queremos levar a vida, sem grandes sonhos. Não sei se mudar o espaço

causará mudanças no resto das coisas, talvez tudo continue como sempre foi, mesmo que se transfira a capital para Marte. E Portugal o senhor sabe como é: Portugal é deixar a ladeira subir por onde ela quiser.” — Não seja tão fatalista minha querida Marivalda e não se esqueça que Portugal mudou o mundo. Nós vamos mudar o Brasil contra todos e contra tudo. Não vamos deixar a ladeira subir por onde ela quiser. Em Brasília já proibi ladeiras, escadarias, favelas, esquinas, essas coisas que botaram no Rio, Salvador e até em Minas. E tem mais, vou acabar também com os criadores de caso que é o que mais temos no Brasil. — Não sou eu presidente, são as cartas, e elas não mentem jamais. — O que elas dizem sobre mim, meu futuro? – insistiu JK, que sempre queria o impossível. — Rei de espada. — Mas isso é voltar ao passado. — É o nosso destino, Presidente, quando se pensa que chegaremos ao mundo avançado e moderno, voltamos ao passado lamacento de sempre, aí recomeçamos outra vez. Os criadores de caso quando viram os rabiscos divinos avisaram: “isto vai dar merda”. JK não quis nem saber, pediu dinheiro emprestado aos gringos a 10% pela tabela Price, chamou os pelegos do IAPI, IAPB, IAPC, IAPTEC e outros IAPs (que depois foram empacotados com o nome de INPS) e exigiu a grana acumulada na CAIXA para a aposentadoria dos trabalhadores. — Não Presidente, é para nosso futuro, disseram os pelegos. JK ficou na dúvida, afinal os pelegos estavam aqui há muitos e muitos anos, deveriam ter alguma sabedoria. Então solicitou os conselhos de Dona Marivalda: — Que futuro que nada presidente, o futuro é a morte, o que fica são as pedras. Ela sabia o que estava dizendo. O sol claro de Brasília invadia o quarto, acordei assustado, debaixo da caixa de remédio, o papelzinho com uns garranchos: “cultivar o deserto como um pomar às avessas”.

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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