O Manto Diáfano nº 3 - 30 de junho de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 3 ∙ Brasília/DF ∙ 30 jun 2016

Afeganistão: da Rota da Seda aos conflitos contemporâneos Belo Monte não foi apenas um erro Uma noite que durou três dias Não vai ter Brexit

REFORMA POLÍTICA Para abrir o debate


4 Reforma política (Como sair da Encrenca?)

6 Reforma política: pauta maximalista Revista eletrônica Nº 3 ∙ 30 jun 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Ronaldo Conde Aguiar Henrique Carlos de Oliveira de Castro Arnaldo Barbosa Brandão COLABORADORES Carmem Lícia Pallazo Maurício Galinkin Carlos Muller Leandro Machado de Magalhães Paulo Timm Steve Scheibe Arnaldo Barbosa Brandão (romancista). EDITORES Benício Schmidt Fabiano Cardoso Arno Vogel Walter Mota DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

8 Belo Monte não foi apenas um erro

11 Não vai ter Brexit

12 Violência, Estupro, Desordem: Ignorância!

14 Afeganistão: da Rota da Seda aos conflitos contemporâneos

16 Houve uma noite que durou três dias e o que ocorreu então nos assombra há 200 anos

19 O Impedimento

22 Encaixotando Brasília


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EDITORIAL

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mundo se move entre consultas, referendos, eleições e guerras civis. Também com a assinatura de pacto de paz entre a guerrilha e o governo colombiano. No Brasil, seguimos aos solavancos do noticiário, provocados pelas ações judiciais e policiais, no âmbito da Lava Jato; bem como pelos estertores do dolorido processo de impedimento da presidente. A paralisia das decisões e a insegurança institucional são confrontadas pela depressão econômica, cujos traços mais cruéis são dados pelo aumento contínuo do desemprego, aumento da violência individual e coletiva e pela incerteza geral. Esse número inicia um debate, que imaginamos profícuo e sem preconceitos, sobre uma questão desafiadora: a Reforma Política no Brasil. São muitos os institutos a serem debatidos, redefinidos, visando o funcionamento do sonho democrático e participativo. Iniciamos por arguir sobre a existência de instituições básicas, que conferem à política brasileira certa atipicidade no mundo, pelo caráter único de prebendas, privilégios a mandatários, sejam juízes, parlamentares ou executivos, de modo geral. Esse número conta com colaborações de Carmem Lícia Pallazo (historiadora), Maurício Galinkin (engenheiro e jornalista), Carlos Muller (jornalista), Leandro Machado de Magalhães (economista, Bristol, UK), Fabiano Cardoso (editor), Benício Schmidt (editor), Paulo Timm (economista), Steve Scheibe (cientista político, California, USA) e Arnaldo Barbosa Brandão (romancista). Boa leitura.

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Reforma política (Como sair da Encrenca?) Benício Schmidt

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processo da Operação Lava-Jato, de modo especial, é muito menos controverso do que o Mensalão, marca definitivamente as possibilidades da política brasileira. Resultado de execução de serviços de controle público, da contabilidade aos processos decisórios – antes praticamente desconhecidos no país – é um dos subprodutos da globalização econômica e de seus requerimentos jurídicos, buscando regular e fiscalizar os fluxos financeiros e o comércio internacional. Tráfico de armas e lavagem de dinheiro, proveniente do narcotráfico e outros ilícitos, são metas decorrentes das novas abordagens. O sistema político brasileiro tem sido rapidamente hegemonizado, especialmente depois de 1988, pelos Congressistas e Executivos que procuram fazer da atividade político-representativa uma intermediação de negócios. Não regulamos o lobby, mas fazemos os eleitos seus diretos operadores. A resultante era previsível: cerca de 60% dos Congressistas integram diferentes listas de indiciamentos policiais e jurisdicionais, sob o manto da desconfiança comum generalizada da opinião pública, que percebe que a maioria de seus representantes deve estar no Congresso motivada pela proteção do instituto do Foro Privilegiado, um verdadeiro salvo-conduto que favorece à desmoralização da própria política nacional. Pretendemos, a partir deste número, abrir um debate direto, incisivo, sobre o conteúdo do processo de reforma política hábil para sair desta encrenca, hoje caracterizada pela precariedade das instituições, falta de estabilidade e segurança das normas que regem a política econômica e pelo cansativo debate sobre como terminará o período presidencial até 2018. Neste número, o diálogo é com Paulo Timm. Proponho linhas gerais de uma Proposta Minimalista, enquanto ele, mais à frente, pega a via da maximização dos objetivos reformistas.

Foro Privilegiado: Mecanismo do ordenamento jurídico brasileiro, designando forma especial de julgamento de autoridades, sendo uma exceção à Constituição brasileira no seu artigo 5. Sua necessidade viria da imprescindível proteção ao exercício da função ou do mandato. Um exemplo está no artigo 102 da CF, inciso I, letra “b”, atribuindo ao STF o julgamento do presidente da república, vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, os ministros de Estado e o Procurador Geral da República, quando há alguma infração penal comum a ser apurada. O que se defende, aqui, é o cargo, não a pessoa. Deixando o cargo, o foro privilegiado é perdido. Desde a primeira Constituição a matéria era tolerada em momentos excepcionais, em processo na esfera penal; no mais, havia forte resistência a este instituto no período imperial. A resistência continuou nas constituições republicanas (1937, 1946, 1967 e 1969); sendo, ironicamente, sofridos abrandamentos na CF de 1988, a “constituição cidadã”. ▶

Foto: SergioAraujoPereira via Visual Hunt CC BY

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comuns diante da Lei, seria um avanço no processo necessário de reforma política no Brasil.

Recentemente, iniciativa do próprio Governo, houve debate no Congresso Nacional para ampliar este foro especial, abrangendo sua competência ao julgamento de infrações cometidas antes, durante e depois do mandato. Um mandato permanente de impunidade. O STF reagiu contra, revogando sua Súmula 394 (03/04/1964), segundo a qual “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Sob a nova interpretação as autoridades que não estão no exercício de seus cargos deverão ser julgadas pela primeira instância, juízes monocráticos. Cabe aos juízes federais processar e julgar ex-deputados, ex-senadores, ex-ministros ou até mesmo ex-dirigentes de autarquias ou empresas públicas, na área federal. Ex-autoridades municipais ou estaduais terão o julgamento dos juízes de direito. Em países como Estados Unidos e Inglaterra (common law) a incidência dos casos envolvendo autoridades raramente é levada às cortes superiores. Outros Estados europeus ou desconhecem, ou submetem os supostos crimes a longas deliberações de vários níveis jurisdicionais. Acreditamos que a simples abolição do instituto, com políticos profissionais igualados aos cidadãos

2 Privilégios Funcionais: São vários itens que merecem consideração, ainda que esta seja, inicialmente uma singela coleção de platitudes, embora oferecidas e garantidas aos Congressistas brasileiros, de modo especial, entre as autoridades constituídas no Brasil. São desconhecidas pelo mundo, no seu conjunto, e raramente oferecidas com a generosidade nacional: transporte em carros oficiais personalizados, subsídios habitacionais, gastos com transporte em geral para o congressista e seus auxiliares etc. No total, por exemplo, o custo de um Deputado Federal chega, hoje, ao montante de R$ 169 mil reais por mês, sem contar os gastos diretamente derivados da tesouraria da Câmara que cobre as regalias com o destacamento de motoristas e outros “pequenos” gastos com a pertinente atividade do parlamentar. Um caso único no mundo! O debate está iniciado. Passemos ao texto de Paulo Timm sobre a matéria. ■

Foto: pixabay

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Reforma política: pauta maximalista Paulo Timm – Economista

"Por acaso existe alguém capaz de pensar que a democracia, depois de ter destruído o feudalismo e vencido os reis, retrocederá diante dos burgueses e dos ricos? Será possível que interrompa sua marcha justamente agora que se tornou tão forte e seus adversários tão fracos?" (A. de Tocqueville. A democracia na América, Introdução).

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eu amigo Benício Schmidt se auto-depõe como um Minimalista a clamar por um mínimo de mudanças a título de Reforma Política. Vou pelo outro lado de um imaginário túnel na vã esperança de abrir um buraco nesta inextricável conjuntura nacional. Minhas proposições apontam para a utopia, ou seja, horizontes que devem ilustrar o andar da carruagem. Nada, porém, de grandes formulações. Vamos andando metro a metro. Ele propõe dois passos. Lá vão meus dois, também.

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Foto: asleeponasunbeam via VisualHunt CC BY-NC-ND

Extinção do Senado: Tenho defendido há tempos esta proposta, com a transformação das belas dependências daquela Casa num grande centro de excelência em Estudos Políticos. A ideia pode parecer, à primeira vista, pura loucura. Ainda que fosse, lembremo-nos de Erasmo de Roterdam (14661536), para quem, já no século XVI, no “Elogio à Loucura”, era ela a grande inspiradora da vida. Para que serve o Senado? Segundo a doutrina, como uma representação dos Estados Federados, de caráter moderador, no processo legislativo. Tudo conversa fiada. Quem representa os Estados são seus Governadores. Por que não incluí-los, por exemplo, no Conselho da República, com poderes de avaliação dos instrumentos legais orçamentários da União. Moderação? Ora, isso é reminiscência da Boa Sociedade dos notáveis, sempre preocupada

em conter os excessos da cidadania. Cortar o Senado é justamente o caminho para acelerar a tramitação legislativa. A ideia do Senado, nos tempos modernos, correspondia, também, à tentativa de dar aos Estados Federados uma equivalência representativa entre os menores e maiores. Isso, porém, foi retemperado com os limites no número de Deputados Federais em Estados de maior população e número mínimo nos menores. Ou seja, já existe um processo de moderação ao “excesso” de representação. Quanto a recursos, também se criaram novos instrumentos de compensação entre os Estados mais e menos desenvolvidos, seja por meio de Programas e Agências Regionais, tais como SUDENE (Nordeste) e SUFRAMA (Manaus), ou das transferências fiscais diretas realizadas pelo Fundo de Participação dos Estados (FPE). ▶ 6


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2 Fim do monopólio da Representação pelos Partidos Políticos: Nesse novo cenário de profunda heterogeneidade Quando se organizaram os Estados Modernos, depois da queda do social em sociedades modernas e complexas, Absolutismo, os Partidos Políticos os partidos vão gradualmente declinando sua foram concebidos como estuários importância como instrumento de organização e das alternativas ideológicas, com vistas à formulação de prescrições formação de consciência e liderança. substantivas para a ação dos Governos. Custaram a ganhar alguma consistência programática com correspondentes sociais. Na virada fissão religiosa, até as questões ligadas ao consumo, do século XIX para o XX, porém, já estavam nesta meio ambiente e moradia. trilha. Constituíram-se, assim, os dispositivos para Nesse novo cenário de profunda heterogeneia organização da sociedade em torno de ideias que, dade social em sociedades modernas e complexas, no Poder, se habilitavam a construir consensos e os partidos vão gradualmente declinando sua imdesafiar não apenas a governabilidade, como seu portância como instrumento de organização e formais importante produto: a legitimidade. Com isso, mação de consciência e liderança. Estas se redistrinaturalizaram-se os Partidos como dispositivos de buem horizontalmente ao longo de todos os eventos acesso ao Poder, daí acabando por monopolizar o sociais e cadeias de acontecimentos projetando anprocesso de representação. seios cada vez maiores de participação de seus protagonistas na formulação das políticas públicas. Ao O século XX, porém, denominado por Norber- mesmo tempo o fechamento dos partidos nas mãos to Bobbio como Século dos Direitos, mudou com- de verdadeiras oligarquias dirigentes impede a esses pletamente o perfil da sociedade civil, que, de vago protagonistas o acesso à vida pública. conceito hegeliano de subjetividade, transformouTrata-se, pois, de romper o monopólio da repre-se em realidade cada vez mais visível e palpável. Ao sentação política pelos Partidos Políticos, abrindo-a mesmo tempo, a Agenda dos direitos individuais e a este variado conjunto de novos agentes sociais. O sociais foi ganhando novos contornos, deslocando- risco desta abertura poderia ser o reforço do cor-se da grande narrativa do conflito capital/trabalho, porativismo, o qual, entretanto, poderia ser contido para a defesa de uma miríade de segmentos em tor- pelos próprios Partidos sobreviventes, como instruno de interesses específicos, desde afirmação iden- mentos de articulação de demandas específicas com titária, como gênero, idade, origens nacionais, con- o interesse geral da sociedade. ■

http://www.allabroad.org/


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Belo Monte não foi apenas um erro Maurício Galinkin – Jornalista, editor do blog Observatório do Agronegócio (www.observatoriodoagronegocio.com.br)

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ão foi apenas um erro. A cada decisão governamental, um novo erro ocorreu. Até agora os erros sobrepuseram-se de maneira a produzirem desastres de forma exponencial. E os erros foram transformando-se, ao incidirem na realidade, em crimes. Sim, não há como disfarçar e usar um termo mais ameno: crimes contra a população indígena, contra os ribeirinhos, contra as populações tradicionais e, até mesmo, contra a população que habita as cidades da região. Sem contar o desprezo pelo que a Constituição brasileira de 1988 determina... Estou me referindo ao processo de decisão de construir a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, née Kararaô. E ao processo social desta construção. Não, não estou focando o tamanho da corrupção monetária (dizem que foram R$ 150 milhões de propina distribuída), pois isso é um “trocado” frente à corrupção ética e moral que perpassou todo processo, desde a decisão de construir a como lidar com as populações locais.

“vazio” a ser ocupado. Aviso aos navegantes: defenE o PT no governo do o Estado Democrático de demonstrou que essa Direito e a nossa Constituipercepção não é um ção de 1988, e sou contrário “privilégio” da direita. ao afastamento da presidente Dilma Rousseff por esse golpe Assim como caráter, e parlamentar (sem que tenha a falta de idoneidade e ocorrido qualquer crime de ressua inexistência, a inponsabilidade por parte dela, teligência ou a burrice, no meu modesto entender) em não há grupo social ou andamento no momento em político cujos memque escrevo essas linhas. bros sejam todos bons, idôneos, inteligentes ou que tenham a percepção e o respeito pelos “outros” que vivem na Amazônia, por exemplo. Mas esperava-se, ou melhor, nós que nos colocamos na esquerda do espectro político, esperávamos que pelo menos os governos do PT fossem mais sensíveis às questões e repercussões sociais de um empreendimento como Belo Monte. Mas, que nada...

Sim, não há como disfarçar e usar um termo mais ameno: crimes contra a população indígena, contra os ribeirinhos, contra as populações tradicionais e, até mesmo, contra a população que habita as cidades da região.

O que vem por aí

Para um histórico do processo citado recomendo a leitura dos artigos de Eliane Brum, para conhecer um pouco da realidade local, do desespero e caos social implantado na região, e também matérias que estão nos sítios do Instituto Socioambiental (ISA), do Movimento Xingu Vivo, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ou nos blogs do procurador da República Felício Pontes Jr., de Telma Monteiro e de Sakamoto. Cabe, no entanto, alertar quanto ao que ainda vem por aí. De acordo com o professor Célio Bermann, da USP, Belo Monte não tem a menor viabilidade

As reportagens de Eliane Brum (na revista Época e, mais recentemente no jornal El País) mostram uma pequena parte do que lá aconteceu, e deixam qualquer brasileiro acabrunhado e revoltado. Para uma parte de nossos compatriotas, lamentavelmente, ainda vale aquela ideia de que a Amazônia é um 8


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técnica (e econômica) se não forem construídas outras quatro usinas a montante, no Xingu. Argumenta Bermann, em entrevista dada em outubro de 2011 a Eliane Brum, publicada na revista Época:

ex-presidente José Sarney – “e que nada que traga o novo é (por eles) considerado”, afirma o procurador. Ao argumento que hidrelétricas produzem “energia limpa”, ainda hoje adotado pelo governo Federal, ele rebate (em entrevista também a Eliane Brum, publicada na revista Época em outubro de 2011):

No atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas dependerá da quantidade de chuva. (...) Em outubro, na época da estiagem, serão apenas 1.100 megawatts, um décimo.

Hidrelétricas, principalmente na Amazônia, estão muito longe de configurar energia limpa. (...) No caso do metano, Belo Monte vai produzir quase a mesma quantidade emitida por São Paulo, a maior cidade do Brasil, segundo o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).

Segundo ele, não faz o menor sentido construir-se uma hidrelétrica de 31 bilhões de reais (segundo a estimativa mais recente, mas que ainda pode custar mais, especialmente se forem cobradas efetivamente as obras e ações mitigadoras previstas no licenciamento – ambientais e sociais – que a empresa Norte Energia tem procurado não realizar) para operar, na média anual, com apenas 38% de sua capacidade instalada. E completa Célio Berman:

Limpeza étnica

Lembra o procurador Pontes Jr. que no passado não se valorava economicamente os danos ambientais e sociais. Para ele, hoje, deixar de fazer isso “é se colocar fora do processo histórico.” O Ministério Público Federal tem ajuizadas ações que cobram, entre outras questões, “o valor de 100 quilômetros do Xingu, que vão desaparecer com a construção da usina; o impacto econômico negativo da perda de 270 espécies de peixes na Volta Grande, que irá secar, lembrando que alguns só existem lá” e serão, assim, extintos; “a valoração do desmatamento para a formação dos reservatórios e do desmatamento associado”. Do ponto de vista social, acrescenta o procurador da República Felício Pontes Jr., existem, também, os custos causados pelos impactos sobre os grupos indígenas e populações ribeirinhas,

Já o procurador da República Felício Pontes Jr., autor de várias ações contra a construção da UHE (Usina Hidroelétrica) Belo Monte, argumenta que o setor elétrico do governo Federal é dirigido pelas mesmas pessoas que o comandavam décadas atrás – e eu acrescento, são pessoas que nele já mandavam na época da ditadura e que seguiram sob a batuta do

como o fim a navegação, a proliferação de mosquitos e de doenças como malária e dengue, que deverão levar à necessidade de remoção, o que é proibido pela Constituição, no caso dos indígenas. Não há nada de limpo nisso, a não ser que estejam falando de limpeza étnica (arremata o procurador em sua entrevista a Eliane, em 2011). ▶

Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência instalada de 11.200 megawatts existir de fato. (op. cit.)

Foto: Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) via Visual hunt / CC BY-NC-SA

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Analisando “o conjunto da obra” vemos que não foram “erros” que ocorreram. Se, tecnicamente, essa UHE só se viabilizará com a construção de quatro outras rio acima, e que em momento algum foram colocadas em discussão, até agora, pelo menos, houve uma deliberada omissão para tornar mais “palatável” a decisão de construí-la. Má-fé, porquê não dizer claramente? E o que falar sobre condicionantes ambientais e sociais, criadas para reduzir um pouco seus fortes impactos na região, e que não foram cumpridas pelo consórcio construtor e que deixaram de ser efetivamente condicionantes para obtenção da licença de operação? Assim, não dá para classificar o que aconteceu e ainda acontece como “erros”. Lembro que tudo que esse pequeno esboço sobre Belo Monte nos mostra, dentro do quadro legal do país, não se configura como “crime de responsabilidade” do presidente da República nem dos tomadores de decisão em toda hierarquia do setor elétrico do Estado. As ações do procurador Pontes Jr. na Justiça devem demorar a produzir qualquer efeito prático, dado o conhecido ritmo em que o judiciário opera no país, mas se tiverem êxito – e espero e torço para que o tenham – farão com que o Estado seja responsabilizado e pague pelos custos e sofrimentos que impôs às populações locais. Ou seja, todos nós seremos chamados a pagar esses custos que beneficiaram, única e exclusivamente, o consórcio construtor da usina. Mas, pergunto, e aqueles efetivamente responsáveis pelas decisões técnicas e políticas de construir a UHE de Belo Monte, não podem ser responsabilizados e chamados a pagar essa conta? Teriam eles, se isso não ocorrer, cometido crimes de irresponsabilidade? A quem respondem esses “tomadores de decisão”? Apenas a história os julgará? ■

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

Fontes citadas: Eliane Brum: <http://desacontecimentos.com/>. Instituto Socioambiental – ISA: <https://www.socioambiental.org>. Leonardo Sakamoto: <http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/>. Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB: <http://www.mabnacional. org.br>. Movimento Xingu Vivo para Sempre: <http://www.xinguvivo.org.br/>. Procurador Felício Pontes Jr.: <http://belomontedeviolencias.blogspot.com.br/>. Revista Época, 12/10/2011: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ noticia/2011/09/um-procurador-contra-belo-monte.html>. Revista Época, 31/10/2011: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ noticia/2011/10/belo-monte-nosso-dinheiro-e-o-bigode-do-sarney.html>. Telma Monteiro: <http://telmadmonteiro.blogspot.com.br>.

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www.pequi.org.br


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Não vai ter Brexit Leandro de Magalhães – Economista

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avid Cameron, logo após o resultado do É importante lembrar que esse foi um ReferenReferendum que decidiu favorável à saída dum consultivo. Como David Cameron deixou para da Grã-Bretanha da União Europeia, anunciou que seu sucessor o acionamento do Artigo 50, a escolha não ia acionar o Artigo 50, o que oficializaria a in- dentro do partido conservador será dividia entre tenção de Saída da União Europeia (UE). Cameron aqueles que querem que o próximo líder acione o deixou para o seu sucessor a decisão de quando dispositivo imediatamente, e aqueles que dirão que acionar o Artigo 50. é necessário uma nova eleição com um claro manEsse simples ato (que contradiz a promessa do dato para negociar a saída da União Europeia. próprio Cameron antes do Referendum de acionar Nessa nova eleição, candidatos terão que se posio dispositivo imediatamente), implica um ganho de cionar claramente se querem ou não acionar o Artipelo menos três meses. Nos próximos meses o públi- go 50. Os Conservadores estarão divididos, os Libeco se dará conta das reais consequências e custos de rais já se declararam contra, e os Trabalhistas estão deixar a UE. Os efeitos mais imediatos são a queda da libra esterlina, o aviso de um possível rebaixamento no grau de investimento e o anúncio de que Já há sinais que se o Referendum fosse hoje, a bancos estão preparando a mudança de maioria seria a favor de permanecer na UE. Nos muitos funcionários para o continenpróximos meses essa maioria tenderá a aumentar. te. Mais importante, a queda da libra aumentará o preço de quase todos os bem de consumos e insumos, da gasolina ao pão. O país entrará em recessão e a maioria dos investimentos previstos ficará em suspenso até as coisas se acalmarem. tentando retirar Jeremy Corbyn do comando, por Esses três meses serão essenciais porque a maio- ser a favor da Saída da UE. Alguns trabalhistas seria favorável à saída do Reino Unido parece ter sido rão a favor da Saída, mas a maioria trabalhista será temporária. Composta por anti-imigrantes e na- a favor de permanecer na UE (os sindicatos eram cionalistas que não mudarão de opinião, mas tam- favoráveis à permanência). bém de muitos votos de protestos e de pessoas que Já há sinais que se o Referendum fosse hoje, a acreditaram nas promessas enganosas da campanha maioria seria a favor de permanecer na UE. Nos para a Saída, liderada por Boris Johnson. Nesses três próximos meses essa maioria tenderá a aumentar. meses ficará claro que o acesso ao livre mercado eu- Para que o próximo Primeiro Ministro acione o Arropeu somente é possível com a livre circulação de tigo 50, ele ou ela terá que ir contra a nova maioria, pessoas. Não se pode ter um sem o outro. Também aceitar a Saída da Escócia do Reino Unido, e deixar ficará claro que o custo de sair do mercado único é claro ao eleitorado que: ou se tem prosperidade com enorme comparado ao custo da imigração (que to- imigração ou se tem uma recessão sem imigração. dos os estudos indicam, contribui para a economia). Não se pode ter os dois. Ficará claro que a Escócia votará para se separar do Ou o Reino Unido continua na UE assim como Reino Unido. Há poucos conservadores que gosta- está, ou adota o sistema norueguês. Mantém-se no riam de ser responsáveis pelo desmembramento do mercado único e mantém o livre movimento de pesReino Unido. soas, mas perde a participação nas decisões. ■ 11


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Violência, Estupro, Desordem: Ignorância! Steve Scheibe – Cientista Político

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descrição do subdesenvolvimento é paralela os problemas nos Estados Unidos e no Brasil têm à descrição da guerra: tédio interrompido raízes similares. Toleramos a violência, o assassinapor momentos de terror e de desastres. O drama bra- to, o estupro e a desordem social generalizada e não sileiro é cansativo e marcado por trágicos eventos, admitimos limitar nossas liberdades individuais ou sendo a maioria provocada pelos próprios homens. assumir as responsabilidades para mudar nossas O recente estupro praticado por uma gangue, por culturas, pois isso é matéria de alta complexidade. exemplo, provocou passeatas com a mídia tratando Religião, instituições, fatores econômicos e sociais da “cultura do estupro”, “misoginia”, “machismo” e também formam a cultura. E a tensão entre o indivíoutras “enfermidades sociais”. Muitos foram rápidos duo e seus grupos de referência (família, igreja, clube em identificar as presentes carências da sociedade etc.) podem, com frequência, levar a patologias innacional (segurança, educação, policiamento etc.); dividuais e coletivas. Viver nos tempos modernos é enquanto outros meios exaltaram a necessidade da encarar profundas contradições. Paz e harmonia exisadesão brasileira a melhores padrões civilizatórios. tem como ideais, tão somente. Mas estes ideais são De algum modo, os problemas brasileiros são re- quebrados quando os indivíduos buscam maior liberlativamente menores quando comparados aos dos dade, liberação dos controles sociais e autoexpressão Estados Unidos, com sua cultura de armas e mortes de suas preferências. A religião e a cultura interagem massivas. O massacre de Orlando é somente atípico onde a participação em grupos nasce da necessidade quanto ao número de mortos e feridos, pois há massacres diários, ao longo do ano. Para estrangeiros, os Estados Unidos parecem tão inseReligião, instituições, fatores econômicos e sociais guros e perigosos como uma camitambém formam a cultura. E a tensão entre o nhada ao longo da favela do Morro indivíduo e seus grupos de referência (família, do Alemão, no Rio de Janeiro. Muitos estadunidenses, com igreja, clube etc.) podem, com frequência levar a frequência, fazem suas críticas culpatologias individuais e coletivas. pando os indivíduos, não a cultura existente. Eles dizem que Trump, Obama e Hillary devem ser culpabilizados pelo engajamento em guerras e outras atividades criminosas e secretas. É ver- de pertencimento, superando a solidão. A autonomia dade que os residentes nos Estados Unidos amam individual também induz muitas pessoas a ações niisuas armas e adquirir uma tornou-se cada vez mais listas, encobertas pelos véus da religião e outras justicomum, como as usadas no ataque na Flórida. Ao ficativas coletivas. O atirador de Orlando clamou, no contrário, o Brasil possui uma estrita legislação para último minuto, por razões ideológicas e por participar o controle de armas; mas isso não impede os trafi- do assim chamado Exército Islâmico; mesmo que não cantes de droga de possuírem suas AK-47, e outros haja, ainda, evidência de tais afiliações. equipamentos de uso restrito, para intimidação. Os estupradores do Rio de Janeiro, por sua vez, Podemos culpar a legislação, as administrações, parecem compor uma gangue de amigos: jovens, os governos e outras agências pelas falhas. Contudo procurando autossatisfação e aprovação do próprio 12


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grupo. Suas motivações se originam de um intenso desejo sexual que nada tem a ver com amor, a forte presença da fome, a ausência de poder e tendo a desesperada necessidade por aceitação e afirmação comuns à juventude. Isso é verdade, especialmente para quem vem de famílias fragilizadas, onde a falta de apoio é comum. Além disso, as bem conhecidas atitudes do machismo brasileiro, tirando vantagem do promíscuo comportamento masculino, não afetam em nada o despudor com que postam fotos deles mesmos com as vítimas. Ao longo da história atrocidades são cometidas e explicadas, e mesmo justificadas, em nome da moral ou de ideais materiais não atingidos. Obama visitou Hiroshima e, enquanto não se desculpou por algo que ocorreu antes de seu nascimento, lamentou que a tecnologia que permite o combate às doenças e ajuda na compreensão do cosmos “pode se transformar em máquinas de morte”. Ele disse que o avanço tecnológico “sem um equivalente progresso das instituições pode nos destruir”. Uma coisa é certa: a tecnologia disponível no massacre de Orlando ajudou ao aumentar o número de vítimas. O estupro do Rio de Janeiro foi realizado com baixa tecnologia, mas a postagem na Internet refletiu a alienação e a necessidade de afirmação. O Brasil tem enormes deficiências institucionais, como ocorre nos Estados Unidos. Os que estão desesperadamente desconfortáveis consigo mesmos, suas vidas e expectativas, cometem, com a ajuda da tecnologia, desesperados atos de abuso, estupros, mortes e destruição em grande escala e com doentia regularidade. Alucinantes melhoramentos tecnológicos não têm ajudado, ao contrário, à superação de uma cultura de ignorância e destruição. As manifestações podem tomar diferentes formas. No Brasil há níveis massivos de violência, individual e grupal, levando a ondas de estupros, assaltos e mortes. Nos Estados Unidos há permanentes ondas de violência, incluindo estupros e mortes. Em ambos países os resultados produzem angústia e questionamentos. Nosso reconhecimento destes trágicos eventos e nossa habilidade para purgá-los e superá-los indicam que nossas consciências ainda não estão anuladas, exauridas. Talvez o que melhor podemos fazer é agir de acordo com o juramento de Hipócrates. Embora não gostemos e não queiramos estar juntos, ainda precisamos acreditar em nossos corações. Não podendo fazer o bem que deveríamos, ao menos podemos evitar a prática do mal. ■ 13


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Afeganistão: da Rota da Seda aos conflitos contemporâneos Carmen Lícia Palazzo – Historiadora

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s guerras civis e outras formas de desestabilização política que têm ocorrido na região da Ásia Central costumam ser descritas pela imprensa internacional associadas a atos de violência de caráter religioso, com foco no fundamentalismo islâmico. Um exemplo emblemático é o da chamada Guerra do Afeganistão iniciada com a invasão soviética, em dezembro de 1979. No mesmo contexto, foram divulgadas imagens da destruição das imensas e milenares estátuas dos budas de Bamian e, no cotidiano, as de mulheres com burca, a mais total

cobertura feminina de todo o mundo muçulmano. No entanto, uma análise do curto prazo considerando apenas o Afeganistão contemporâneo obscurece o conhecimento de uma região que já foi ponto de encontro de mercadores, peregrinos e aventureiros que intercambiaram produtos, ideias e crenças desde a Antiguidade. Encontros estes ocorridos em uma rede de caminhos que posteriormente, no século XIX, foram chamados de Rota da Seda. Muito antes do surgimento do Islã diversas religiões estiveram em contato na Ásia Central, entre elas

Foto: pixabay

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o budismo, o zoroastrismo, o maniqueísmo e o cristianismo nestoriano. No século VII o monge chinês Xuanzang deixou um relato no qual fez referência à esplêndida vista do vale com as duas colossais estátuas dos budas esculpidos na montanha. O nomadismo sempre foi um fator que dificultou a formação de nacionalidades fortes e abrangentes e, comumente, prevaleceu na região a organização tribal e a fidelidade clânica. De um modo geral toda a Ásia Central apresenta-se, ainda hoje, como um mosaico de tribos e o Afeganistão é um claro exemplo da diversidade étnica e linguística. As principais etnias em solo afegão são as dos pashtuns, tajiques, hazaras, uzbeques e baluchis. Como religião, foi o Islã que, expandindo-se com as conquistas persas e turcas a partir do século VIII, tornou-se dominante. No final da Idade Média, com a descoberta da América, diminuiu a importância econômica da Rota da Seda. A história do Afeganistão oscilou, então, entre efêmeras conquistas regionais e longos períodos de submissão, principalmente à Pérsia. No entanto, o Islã afegão, assim como o de toda a região da Ásia Central, assumiu características próprias assimilando comportamentos pré-islâmicos e sincréticos em razão do passado culturalmente muito rico e da diversidade linguística, já que nenhuma das tribos tinha o árabe como idioma. No século XX, porém, a religiosidade islâmica passou a ser um fator de união contra o domínio soviético na Ásia Central ocorrendo um recrudescimento do Islã mais radical como reação à opressão vinda de fora. Em 1978 a URSS participou de um golpe de estado no Afeganistão e, entre 1979 e 1989 desenrolou-se uma sangrenta guerra contra o domínio soviético, iniciando a chamada Guerra do Afeganistão. Posteriormente entraram em cena os Estados Unidos, o Paquistão e alguns países europeus. Naquele momento, grupos islâmicos de resistência começaram a receber apoio praticamente incondicional do Ocidente, o que os tornou uma força importante não apenas no Afeganistão, mas em toda a região, com a emergência da liderança de Bin Laden. O fim da URSS, em 1990, e a independência do Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Turcomenistão e Quirguistão complicou a situação de toda a região, pois mesmo não sendo mais socialista a Russia continuou sua perseguição aos muçulmanos, já que o islamismo era uma real força de resistência à sua ingerência em grande parte da Ásia Central. Acirrou-se, então, o conflito pela hegemonia por parte de russos, mas com a entrada cada vez mais ativa de outros atores. No Paquistão

os talibans eram vistos como possíveis aliados caso houvesse uma guerra com a Índia, o que levou as autoridades a fecharem os olhos para a formação de guerrilheiros em suas mesquitas fundamentalistas. Este foi, sem dúvida, um erro estratégico de enormes consequências para os paquistaneses. Os americanos, por sua vez, armaram os talibans contra os russos. O cenário era de caos com o crescente tráfico de drogas para sustentar as guerrilhas. Um grupo bem pouco conhecido da imprensa internacional, denominado Movimento Islâmico Uzbeque, associou-se também aos talibans em diversas atividades, dificultando a retomada da normalidade no país. Ahmed Rashid, especialista em crises asiáticas e com sólida formação islâmica, escreveu que os talibans se apartaram de todas as tendências muçulmanas que, durante séculos, foram características do Afeganistão, entre elas a dos místicos sufis. A religião foi apropriada pela etnia pashtun como bandeira de seu nacionalismo, que importou a vertente deobandista do Paquistão para se opor ao controle do grupo tajique de Cabul. A população lhes deu apoio simplesmente em troca da promessa de restabelecimento da ordem diante do caos da guerra civil.1 Fatores múltiplos levaram à guerra no Afeganistão, porém um estudo mais aprofundado das possibilidades atuais de recuperação do país implicam em uma análise de longo prazo que considere tanto sua história milenar quanto a interferência externa da antiga URSS e atual Rússia, do Paquistão e dos Estados Unidos. O fundamentalismo islâmico é muito recente na Ásia Central e suas vertentes místicas mais antigas estão submersas com o uso político da religião. Toda a complexidade cultural centro-asiática terá que ser levada em conta no processo de reconstrução do Afeganistão, sem que se insista demasiadamente na religiosidade como a principal responsável pela violência. É sempre oportuno lembrar as palavras de Marc Bloch, historiador francês executado pelos nazistas, escritas pouco antes de sua morte: “(…) a superstição da causa única, em história, é em geral a forma insidiosa da busca do responsável, do julgamento de valor. ‘De quem é a culpa ou mérito’, pergunta o juiz. O intelectual contenta-se em perguntar: ‘por quê’. E ele aceita que a resposta não seja simples.2 ■ 1

RASHID, Ahmed. Jihad. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 261.

2 BLOCH, Marc. Apologie pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1974, p. 157. [Tradução nossa].

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Houve uma noite que durou três dias e o que ocorreu então nos assombra há 200 anos Carlos Muller – J​ornalista

"Somos legión los que intentamos relatar aquellos días de Villa Diodati" William Ospina

coincidências, passou três anos pesquisando o assunto antes de publicar o livro “El año del verano que nunca llegó”, tem uma versão que, como dizem os italianos, “Se non è vero, è ben trovato”. De fato, a casa parece ter sido destinada a acolher rebeldes, heréticos e intelectuais excêntricos, a começar por seu construtor, o calvinista Giovanni Diodati, tradutor da bíblia para o italiano e perseguido pela Igreja Católica. Em 1638, o poeta inglês John Milton foi a Pisa para encontrar-se com Galileu, que lá se refugiara da Inquisição. O astrônomo mostrou-lhe o telescópio e a lua, o que o deixou tremendamente impressionado. Na volta, Milton hospedou-se na Villa, onde teve um sonho no qual um exército de anjos rebeldes, liderado pelo mais belo deles, trazia na mão direita uma espada de fogo e na esquerda um escudo na forma da lua como vista pelo telescópio. Os revoltosos foram derrotados pelos fiéis a deus e seu comandante jogado na terra onde se converteu em serpente para induzir os humanos a pecar e, assim, serem expulsos do paraíso. Milton, autor de um panfleto em defesa do divórcio aos 16 anos, anticatólico e antimonarquista, mais tarde Ministro de Cromwell, teria ficado tão abalado pelo sonho que começaria a escrever seu poema mais importante “O paraíso perdido”, baseado no Gênesis, no qual Lúcifer é considerado pelos críticos o personagem mais interessante, embora essa não fosse a sua intenção. Outros intelectuais famosos e inquietos teriam passado pela Villa, entre os quais Rousseau e Voltaire. Há alguns anos, a propriedade foi leiloada pela Christie’s e arrematada por um milionário russo misterioso. Mas isso já é outra história.

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o povoado de Cologny, às margens do Lago Léman, perto de Genebra, fica a Villa Diodati. É uma propriedade muito especial pelas pessoas que nela se hospedaram ao longo de séculos, mas em particular pelo que ocorreu em junho de 1816. Nesse mês, a temperatura na região é amena e os dias ensolarados. Mas naquele ano o mau tempo foi constante. Durante três dias o céu esteve escuro como à noite e a chuva só amainava para voltar como tempestade.

Foto: Villa Diodati – By Robertgrassi (Own work) [Public domain], via Wikimedia Commons

Segundo algumas fontes, a Villa Diodati foi construída em 1710. Outras indicam que ela já existia há um século. O escritor colombiano William Ospina que, obcecado pelos personagens e pelas 16


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Naqueles dias de junho de 1816, estavam na casa o poeta Lord Byron, seu médico, John Polidori, que se instalaram dez dias antes, o também poeta Percy Shelley, sua amante, Mary Godwin, mais tarde com o sobrenome Shelley (então com 16 anos) a meia irmã de Mary, um ano mais velha e amante de Byron, Clara Mary Jane Clairmont que, ao iniciar a relação com o poeta, adotou o pseudônimo Claire. Byron tinha título de nobreza e algum dinheiro. Chegou a ser membro do Parlamento, mas sua especialidade era a poesia... e os escândalos. Puxava de uma perna e aparentemente tinha problemas de saúde, suposta razão para contratar um médico pessoal. Sua ida para Genebra, no entanto, tinha outro motivo. Seu casamento acabara e estava na iminência de ser preso por homossexualismo e incesto (manteve uma relação com a irmã Augusta). Era o grande expoente do romanticismo inglês. Mais tarde seria venerado na Suíça e na Grécia por seu apoio à independência desses países, embora não tivesse chegado a combater. Viajou à Grécia disposto a fazê-lo, mas adoeceu e morreu, oito anos depois daquele verão, mais em consequência das sangrias a que foi submetido do que da enfermidade contraída. Polidori era médico recém-formado com pretensões literárias e espião a soldo do editor de seu cliente, com quem também, ao que tudo indica, mantinha uma relação homossexual (com Byron). Ingênuo intelectualmente, era a vítima preferida da mordacidade do lorde. Percy, com 23 anos, fora expulso da universidade, repudiado pelo pai e pela esposa depois de publicar o livro “Necessidade do ateísmo” e pregar o amor livre. Morreria afogado antes de completar 30 anos, mas ainda é considerado um dos grandes poetas ingleses do século XIX. Mary acabava de ter o segundo filho com Percy, depois de perder uma menina. Não tinha nada de adolescente iludida. Seu pai, William Godwin, era um intelectual disposto a defender tudo o que significasse rebeldia (Era uma referência para Percy). Sua mãe, Mary Wollstonecraft, que morreu dias depois de seu nascimento, esteve na França durante a revolução. Foi uma precursora do feminismo, autora do que provavelmente é o primeiro livro sobre os direitos da mulher: “A Vindication of the Rights of Woman” (1792). As fontes intelectuais sobre as duas irmãs, que não tiveram educação formal, eram completadas por Mary Jane Vial Clairmont, mãe de Claire e ma-

drasta de Mary. A senhora Clairmont era tradutora dos irmãos Grimm. Por intermédio de um deles, Jacob, as três souberam da lenda judaica do Golem, um monstro feito de barro e manipulado por um rabino. Souberam, também, das malvadezas de certo médico alemão, Johann Conrad Dippel. Ele faria sinistras experiências com cadáveres, vivia perto de Darmstad e, segundo Radu Florescu, o romeno autor de “Em busca de Frankenstein”, seria o senhor do castelo de... Frankenstein. As margens do lago Léman eram frequentadas pela aristocracia europeia, que ainda se recuperava do furacão napoleônico. Byron era o que hoje se chamaria de uma celebridade. Assim, além do círculo íntimo, das tertúlias na Villa participaram várias outras pessoas, entre as quais Matthew Lewis, autor de “O Monge”, uma novela sobre um crime praticado num mosteiro espanhol. O que levou Percy, Mary e Claire a se juntarem a Byron e Polidori não tinha nenhuma relação com literatura, mas ao fato de Claire, depois de seduzir Byron por meio de uma série de cartas, ainda em Londres, ter proposto a viagem a Genebra, para onde sabia que o poeta estava por viajar, porque além da paixão (não exatamente correspondida), estava grávida de um filho dele. O mau tempo fez com que entre os dias 16 e 19 todos permanecessem na Villa Diodati. Não se arriscavam a sair à rua e o tédio era geral. Em busca de distração, Byron propôs um desafio que consistia em inventar uma história assustadora. Para “criar o clima”, começaram lendo contos de “Phantasmagoriana”, uma coletânea de histórias de fantasma que Polidori levava na bagagem. Depois, Byron recitou, de memória e com direito a onomatopeias, um trecho do poema sombrio “Christabel”, de Samuel Taylor Coleridge: “É meia-noite no relógio do castelo / e as corujas despertam o galo com seu canto...” Dos cinco presentes, apenas dois contaram uma história, dias depois – Polidori e Mary, posteriormente Shelley. Antes disso, Byron começou a contar o caso de lorde Ruthven, vivo e morto ao mesmo tempo, que dormia de dia e perambulava durante a noite. Ele chegou a escrever um fragmento, mas abandonou a história. Depois da “performance” de Byron, todos foram dormir... ou não. A tempestade com raios e trovoadas despertou Mary em meio a visões assustadoras. Começara a gestação de “Frankenstein”. A história se tornou um livro que seria lançado 17


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numa versão estilisticamente “revista” por Percy e sem identificação de autoria, em 1º de janeiro de 1818, com o título "Frankenstein – o Prometeu moderno". Surgia uma escritora, um personagem e todo um gênero literário... Polidori partiu de lorde Ruthven e criou “O vampiro”. Junto com informações sobre as atividades do cliente famoso, o médico mandou seus originais para o editor. Por mal entendido ou de olho nos lucros que os livros de Byron proporcionavam, o editor publicou a história como se fosse do poeta. Só depois de algum tempo Byron exigiu por carta a correção. Já era tarde. Polidori havia se suicidado tomando ácido prússico, como era conhecido o cianeto ou cianureto de hidrogênio, um poderoso veneno cujas propriedades, segundo Ospina, foram descobertas pelo inventivo Dr. Dippel. “O Vampiro” renasceria como “Drácula” em 1897, pela mão do irlandês Abraham (Bram) Stoker. A mais longa das noites tinha razões nada poéticas.

O tédio que levou Byron a propor o desafio de criar histórias assustadoras era mais do que uma atitude existencial de poetas românticos. Junho de 1816 ficaria conhecido como o apogeu do “verão que não aconteceu”, (no hemisfério norte). A chuva ininterrupta com tormentas assustadoras não foi um evento climático fortuito, mas decorrência de um fenômeno específico. No ano anterior, ocorrera a erupção do vulcão Tambora, na atual Indonésia (ver mapa), uma das maiores de que se tem registro. Suas cinzas envolveram a terra, provocaram uma redução global das temperaturas e fenômenos extremos em todo o mundo. A produção agrícola despencou e os preços dos alimentos dispararam, provocando rebeliões em vários países. Padres e místicos de todos os matizes viram no fenômeno um sinal do fim dos tempos, não raro um sinal divino de que a humanidade voltava a cometer o pecado de desobedecer aos desígnios supremos e pretender um conhecimento que, desde o princípio dos tempos, não lhe era dado alcançar. Eva havia sido a primeira. Mary Shelley estaria no mesmo caminho. Afinal, além de adúltera, ousara escrever um livro nefasto. Se você, leitor, reconhece mitos, preconceitos e superstições contemporâneas neste relato, não é por acaso. São o que torna “Frankenstein” e “Drácula” clássicos e sucessos literários e cinematográficos até hoje. E se quiser saber mais sobre a erupção do Tambora e seus efeitos, veja o artigo de Brian Fagan, catedrático emérito de Antropologia na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara: <http://elpais.com/elpais/2016/06/08/ciencia/1465406477_390660.html>. ■

Foto: Localização do vulcão Tambora, numa das ilhas do arquipélago indonésio – Wikimedia Commons

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O Impedimento Fabiano Cardoso

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burocracia é quase um transtorno obsessivo compulsivo. Em vez de se apagar e acender uma luz três, quatro, cinco vezes, rodar uma maçaneta incessantemente, lavar as mãos até sangrarem para que o mundo não se acabe, para que ninguém morra, temos que preencher diversos formulários, requisitos para poder viver em um lugar onde apenas tivemos a falta de sorte de nascer e, dependendo do momento econômico mundial e da posição da pirâmide social em que se tenha vindo ao mundo, este lugar pode-se tornar eternamente fixo. O direito (ou, em alguns casos, o dever) ao voto, por exemplo, pelo qual tantas e tantos pereceram, acarreta diversos deveres. A discussão sobre se o voto universal é válido ou não, pois não exclui parcela considerável de uma população analfabeta real (sem falar nos analfabetos funcionais) pode inferir em débitos pecuniários de diversas cervejas numa mesa de bar ou até de diversas garrafas de vinho numa mesa de jantar, a depender de quem se discute e de como se tenha chegado a tal assunto. Um dos argumentos, por exemplo, é o fato de que, sendo o voto excluído aos analfabetos, seria dever do Estado provir educação (ao menos a fim de alfabetizar) para que houvesse a inclusão de todos no sufrágio. Em contrapartida há os que riem de tal argumento em um país que já, segundo fontes ideologicamente suspeitas, deu o direito ao voto de acordo com a quantidade de mandiocas plantadas. Pois bem, com o passar dos anos e da fraca democracia que temos, há os que, mesmo tendo acesso a todo tipo de informação (e talvez justamente por conta disso), preferem se eximir da culpa e da responsabilidade de se escolher o salvador da pátria e se esquivam de votar. O problema é que em alguns casos a retaliação pode ser dura. Agora imaginem se a retaliação é puramente burocrática. “O seu castigo é pegar uma fila pra pegar uma guia de recolhimento para depois pegar outra fila a fim de pagar esta guia de recolhimento e depois pegar outra fila para comprovar que a guia de recolhimento foi paga.” Mas tudo dito com palavras menos

duras. E imaginem esta retaliação num país onde as regras são mudadas de acordo com a conveniência de alguém. Este exercício imaginativo ocorreu… Veriano esticou o braço em busca do telefone celular que começara a tocar um ruído estridente. Era o despertador que, insistentemente, o obrigava a se mexer naquela manhã fria. A dúvida de Veriano se baseava em desligar o despertador e se levantar, ou em deslizar o polegar pela tela do telefone e se dar mais dez minutos de preguiça. Acabou por optar pelos dois. Desligou o alarme e voltou a fechar os olhos. Escolha perigosa que, em geral, nos leva a perder a hora, ou, no caso, pelo menos metade dela. Aqui não se chegou a tanto. Foram mais ou menos o tempo de duas sonecas, uns vinte minutos em que Veriano dormiu um pouco mais e acordou de um susto. Nesse curto espaço de tempo tivera um sonho sem sentido, em que os locais eram ao mesmo tempo estranhos e familiares, as pessoas eram todas e nenhuma, mas ao menos ele conseguia, no sonho, abrir as portas e dar passos largos a lugar algum. Levantou-se e começou a espreguiçar-se e, fez um café para começar o dia. Ligou o rádio e, após algumas notícias sobre o trânsito, os radialistas começaram uma discussão sobre política. Veriano, bem baixinho, diz a si mesmo: “esses políticos são todos iguais.” E, neste momento, num átimo de segundo, se lembra que, talvez, tenha algum tipo de problema com seu título de eleitor. E continua, mas dessa vez, num volu-

Foto: pixabay

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me um pouco maior: “Votar pra quê? Desde que vim pra cá nunca nem mexi com isso de votar.” Pôs o café na caneca, puxou o açucareiro e colocou duas colherinhas. Misturou o café ao açúcar com movimentos circulares em sentido horário. O comentarista de futebol começou a falar sobre a rodada da semana do campeonato nacional e, além das reclamações de praxe sobre arbitragem e se o comentarista acertou ou não os resultados dos jogos, o quadro se acabou, iniciando um intervalo comercial sem fim. Ao que parece, Veriano liga o rádio mais pela companhia matutina, um quê de não se sentir sozinho em casa do que para ter alguma informação que lhe valha o dia. É como se conectar ao mundo apenas para saber que ainda tudo não se acabou; o mundo ainda está lá, ele está lá. Come uma fatia de pão com requeijão, termina o café e se troca para ir ao trabalho. No caminho para a parada de ônibus passa antes na lotérica para fazer sua fezinha. A casa ainda não está cheia, mas deve encher logo, mais uma vez o prêmio acumulou, nada de exorbitante, mas dá pra resolver e complicar a vida de muita gente. Joga os mesmos números desde que um amigo, numa noite no bar após o trabalho, lhe disse que, estatisticamente, ele teria mais chances de ganhar se jogasse sempre os mesmos números. Ainda não ganhou nada, como sempre. Lhe vem à memória a célebre frase do “jogamos como nunca, perdemos como sempre”, dá uma risada de canto de boca, olha para os lados pra se certificar que ninguém o viu rindo, poderia parecer um louco, sabe-se lá, e chega ao caixa, faz o jogo, paga e se dirige à parada. Está vazia e com sombra. O ônibus, até que não está cheio, e ele chega sem demoras ao serviço. Dá os bons-dias, mostra o crachá, entra, pega o elevador (apesar de trabalhar no primeiro andar), atravessa o corredor, entra na sala, liga o computador e espera ele terminar de carregar. Senta-se e, assim que a máquina termina de ligar, abre o jogo de paciência. “Se ganhar uma de primeira, já pego o relatório”. Não ganhou. Continuou jogando até ganhar (o que ocorreu lá pela quarta tentativa) e as cartas caírem numa cascata e quase cobrir a tela do computador. Depois desse desejo satisfatório visual com a tela do computador repleta de cartas de baralho, fecha o programa e abre o do relatório. Enfadonho e moroso, leva quase uma hora para escrever um parágrafo. Quando já estava quase na metade do segundo parágrafo, chega um e-mail com uma urgência da chefia. Veriano olha as horas e dali a pouco tempo já estará

na hora do almoço. Se levanta e vai tomar um café na copa. Volta, dá uma olhada rápida em sites de notícia e, de repente, já chega a hora de sair pra almoçar. Depois de almoçar um troço qualquer, quase parco, frugal, senta-se num banco à sombra e fica a cochilar de olhos abertos. Vem à memória um filme visto há alguns anos sobre um rapaz argentino que acha um tronco que se parece com o Maradona. Tenta lembrar-se do nome, nada. Faz um pouco mais de força e, nada! Desiste e pega o celular para ver se consegue achar os jogos de hoje. Dali daquele banco ele consegue acessar a rede sem fio do café da frente. Seu time só jogará amanhã, as sete e meia da noite e, ao que parece, não vai passar na TV, sequer na a cabo e ele não vai pagar a mais pra ver o jogo. Uma moto acaba de passar por ele engolindo todos os outros ruídos. Veriano abre um jogo de perguntas e respostas, perde na terceira, fecha o jogo, põe o celular no bolso, se levanta e volta ao escritório. Trabalha o restante da tarde tentando resolver o tal problema urgente da chefia. Não consegue porque, ao final das contas, o máximo que pôde fazer foi enviar o pedido a outro colega de outro departamento para esperar que resolvesse um detalhe e, somente assim, voltasse para que ele pudesse finalizar e reencaminhar à chefia. “A urgência vai ficar pra amanhã”, pensa assim que envia um e-mail ao chefe explicando os trâmites do pedido. Feito isso desliga o computador e sai do trabalho. Na porta do edifício um colega o chama para tomar uma cervejinha. Aceita e vão juntos, a pé, até o bar próximo. Conversam sobre mulheres, futebol, uma viagem que o colega fez à Europa com a esposa e um pouco sobre política, mas nada que os façam se desentenderem, afinal, já é fim do dia e estão todos cansados. Na volta, dentro do ônibus, Veriano, vê um grupo de garotos jogando bola e se lembra de uma vez que participara de um campeonato de futebol na escola. Seu time perdera na segunda rodada, de virada, e foram desclassificados. Na volta pra casa, perto da rodoviária, ele fora assaltado, mas os bandidos o deixaram com o dinheiro da passagem, pelo menos poderia voltar pra casa. Comeu um sanduíche de queijo, tomou um copo de leite com chocolate e ficou assistindo TV até pegar no sono. Acordou quando estava passando um filme onde carros explodiam, casas explodiam, barcos explodiam, bombas explodiam e achou melhor desligar o televisor e ir dormir na cama. ▶ 20


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De manhã se levantou sem precisar dar-se mais uns minutos de sono. Dormira bem, quase como um adolescente em sala de aula e, enquanto fazia o café, ligou o rádio. Dali uns instantes, disseram os números da mega-sena. Veriano parou de respirar por uns quatro segundos e quando repetiram os números quase que parou de respirar para sempre, tamanho foi o susto. Não precisava conferir os números no canhoto do bilhete que havia posto em sua carteira no dia anterior após fazer o jogo. A sequência com os números dos dias, meses e os dois últimos algarismos dos anos de nascimento de seu pai e sua mãe era demasiado conhecida para saber que ele era um potencial ganhador. Em seguida veio a notícia de que havia apenas um único apostador que levara o prêmio. Veriano então, calmamente, terminou de comer sua fatia de pão com requeijão, tomou o café, lavou a louça e foi tomar banho. Com a água quente a cair-lhe na cabeça foi se acalmando. “Cacete, vinte e cinco milhões!”. Demorou mais do que o costume, por motivos óbvios e após terminar de se arrumar, pegou o bilhete apenas para conferir se havia colocado os números corretos, vai que… Estavam certos! Vinte e cinco milhões!!! Depois de muito pensar e se acalmar, Veriano decidiu esperar a poeira baixar e buscar o prêmio quase ao final do prazo de um mês. Até lá trabalharia normalmente, faria as coisas como de costume para não “dar bandeira”, afinal são vinte e cinco milhões!!! No vigésimo nono dia, Veriano dirigiu-se, durante seu horário de almoço, à agência da Caixa Econômica que fica do outro lado do bairro onde mora. Quando mostrou o bilhete, junto com o RG e o CPF, o funcionário da Caixa perguntou: “e o título de eleitor, senhor?” Veriano respondeu que não havia levado, “esqueci de trazer, tem problema?” “Vamos ver”. O funcionário rapidamente fez uma busca pelo “sistema” e, após alguns segundos respondeu: “ao que parece o senhor está com o título cancelado, não votou e nem justificou nas últimas três eleições”. Veriano começou a suar, e pensou até em simular um desmaio, se bem que, àquela altura do campeonato, poderia até nem ser uma simulação, afinal eram vinte e cinco milhões! “E o que devo fazer pra regularizar esta situação?” Veriano deu o azar de, por incrível que pareça, ser atendido justamente por um funcionário idôneo, honesto e, mais importante, sem ambições. Não que a pergunta de Veriano tivesse alguma intenção

de ilegalidade, era a mais pura ignorância aliada à inocência de um homem que, ingenuamente, desconhecia o fato de que quando a torrada caía com a manteiga virada para cima diminuíam drasticamente suas chances de se ganhar algo aleatoriamente nas tentativas seguintes. “Bem, o senhor tem que ir até um cartório eleitoral e ver lá o que fazer. Mas acredito que é só pagar uma multa”. “E tem um aqui perto?” Na próxima quadra tem um”. Saiu apressadamente da agência bancária porque já não tinha muito tempo. Ao chegar ao cartório eleitoral e esperar mais tempo do que poderia, fora atendido por um funcionário mau-humorado que, após aguardar o sistema que estava lento achar os dados, lhe entregou duas guias para serem pagas no banco do estado, o que, tendo Veriano que voltar ao trabalho apressadamente, teria que ser feito no dia seguinte a partir das onze horas da manhã. Quando Veriano leu a guia viu que o valor não custeava, sequer, o papel, quanto mais a tinta. Agradeceu ao funcionário mau-humorado e voltou ao trabalho, onde passou o resto da tarde sem render e sem conseguir se concentrar em nada. No dia seguinte, sem ter conseguido dormir, mas com o bilhete no bolso esquerdo da camisa (talvez pela proximidade com o coração), Veriano saiu do trabalho mais cedo no horário do almoço, passou pelo banco à sombra em que ficava sentado e se dirigiu à agencia do banco do estado. Pagou a multa com algumas moedas que tinha no bolso e pôs o comprovante dentro da carteira e, rapidamente, mas de modo que não estivesse correndo para não suar e nem tão devagar a ponto de parecer desleixado, chegou à agência da Caixa, pegou a senha, esperou o chamarem fazendo cara de paisagem, mas com os pés se mexendo insistentemente. De repente, um curto-circuito inicia um incêndio dentro da agência, a fumaça sobe rapidamente e Veriano, ao tentar sair do local junto com várias pessoas em pânico, tropeça, bate a cabeça na quina de uma mesa e desmaia. Acorda quatro dias depois em um hospital, sem o bilhete, mas com o comprovante de regularização de sua situação eleitoral dentro de uma sacolinha, onde os enfermeiros guardaram seus pertences que estavam nos bolsos da calça. Sua calça estava dobrada ao lado. Perguntou sobe a camisa e obteve a resposta de que ela havia ficado muito ensanguentada e fora incinerada. ■

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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão

Capítulo 3 veis ainda não exerciam o comando, desapareciam no vazio e pareciam meio perdidos diante de tanto espaço. Alto, alto mesmo, só o prédio que o Oscar tinha imaginado no final de uma grande esplanada, que dava às costas para a Praça dos Três Poderes. A praça, bem, a praça nesta época era jovem e logo cedo dormia em sono profundo, e como se fosse uma jovem mulher, esta era a melhor hora para apreciá-la. Naquele vazio eu precisava de alguma referência para me orientar, seja uma árvore de flores amarelas, um poste diferente com uma placa qualquer, um prédio cor-de-rosa na esquina. Qualquer coisa servia, mas não havia nada, era tudo igual e repetido, incluindo a vegetação recém-nascida e os nomes das ruas. Então, como se tivéssemos que recriar o mundo, fomos criando diferenciações: nas paredes cor de barro da W3 ainda eram visíveis as pichações recentes e já desbotadas, devido à chuva persistente que durava três meses e o sol inclemente dos outros nove, quando as aves simplesmente desapareciam e os meus beiços rachavam com a falta de umidade. No Eixão, que cortava como um facão nordestino a cidade de norte a sul, ainda se podia ver o lema “Diretas Já” nos restos das faixas penduradas nas sibipirunas, que davam suas primeiras e tímidas florações.

Cultivando o deserto Era o que eu fazia desde muito tempo em Brasília, outra cidade, outra poeira, talvez outros lobos-guarás. Não havia ainda a mistura de cheios e vazios, só vazios, era como se tirassem as cores dos quadros do Mondrian. Não havia cruzamentos, sinais de trânsito, placas, luminosos, barulho. Não havia o Lago Sul nem o Lago Norte, nem aqueles gigantescos cilindros espelhados, que iludem os passarinhos que costumam trafegar pelo que resta de cerrado na beira do Lago Paranoá e acabam trombando nos cilindros. Todos os dias os vigias vão retirar dezenas de pássaros mortos cujo fedor incomoda os funcionários. O que havia eram cães mortos que escapuliam das pequenas favelas no meio do cerrado e confundiam a luz da lua cheia com faróis dos automóveis. À noite, um ou outro vulto atravessando o espaço e desaparecendo na escuridão, ainda não havia esta iluminação feérica de hoje, visível dos aviões e até da estação espacial que ronda os céus do universo. Os poucos prédios eram baixos, renegavam a própria ideia do arranha-céu, davam lugar ao horizonte interminável, que sugeriu ao amigo de JK que isto era uma ilha estabelecida em um mar alto. Os automó-

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Substituía o outro refrão, mais poético e mais apropriado para o coro das manifestações: “o povo unido jamais será vencido”, que ficara no lugar dos anteriores: “Abaixo a Ditadura” ou “Ame-o ou Deixe-o”, conforme o gosto do freguês. No Núcleo Bandeirante me surpreendi com uma pichação inusitada: “Reforma Agrária na Lei ou na Marra”, na época não sei, hoje não interessaria a mais ninguém, devia estar por ali desde os inícios. O fato é que de refrão em refrão íamos levando a vida no deserto, até o dia em que o general acordou cedo e decidiu acabar com aquilo. A manhã começou com o corneteiro caprichando no toque de alvorada, o mesmo toque que o Gaúcho vivia imitando com voz de cana rachada pra me acordar cedo. O general levantou-se com lentidão, efeito dos tranquilizantes que tomava há mais de vinte anos. Começou no dia em que o médico do posto de saúde da Praia Vermelha o atendeu em estado de choque. Todas as tentativas de parar com as pílulas cor-de-rosa foram inúteis, deu-se o contrário, no início era a metade do comprimido, depois passou pra um, nesta época engolia três na hora de dormir e assim era obrigado a parar de beber qualquer coisa líquida às dez da noite, senão acordava de madrugada e saía batendo em tudo pelas redondezas até chegar ao banheiro, que era ligado ao quarto por um pequeno corredor, o único espaço condizente com uma verdadeira residência, por sorte o construtor colocou uma pequena janela com dimensões coerentes com a estreiteza do corredor. Deu uma olhada pela janela na tentativa de ver o Lago, tentou abrir a janela e não conseguiu, viu as emas trazidas pela mulher do Jânio passeando nos jardins, como se estivessem na Casa-Grande de algum Senhor de Engenho. Com algum esforço, atingiu uma espécie de salão revestido em mármore branco italiano, contendo uma banca de dimensões exageradas, um extenso espelho aumentava ainda mais o salão. O vaso branco, o bidê e meia dúzia de toalhas brancas com as letras PR em azul completavam o ambiente. O general detestava o Palácio, vivia

praguejando: “isso aqui não é uma moradia, parece mais um clube recreativo”, e, depois, tinha péssimas recordações do banheiro, desde o dia em que o cochilo virou sono e o sono, sonho. Caiu do bidê e tiveram que chamar o médico, isso foi logo no início do mandato. Desta vez sentou-se no vaso e ficou uns trinta minutos pensando que aquele seria um dia como poucos, a filha dele costumava dizer que “era um dia pra peixes-banana”, ele não sabia bem de onde vinha a frase, mas sabia que seria um dia dos diabos. Era sentado ali, quase nu, com uma caneta e caderninho nas mãos, onde costumava planejar seu dia a dia e preparava-se para a reunião costumeira das manhãs. A reunião das nove era a continuação do banheiro do general. Dela saíam as tais “grandes decisões nacionais”, que JK mencionou na inauguração da cidade e se eternizou numa placa de mármore na Rodoviária, e que começa falando de solidão. Lembrou-se quando um senador disse-lhe que daria um bom dinheiro para saber o que pensava enquanto fazia a barba. Quase respondeu: “devia me pagar pelo que penso quando estou cagando, isso sim”. Conseguiu finalmente chegar ao chuveiro, percebeu que, como sempre, a água corria para o lado contrário ao do ralo e fez a si mesmo a pergunta que todos fazemos quando estamos putos: “por que será que no Brasil a água corre sempre para o lado contrário ao do ralo? Por que as janelas nunca fecham direito? Por que há sempre vazamentos no telhado, até aqui neste palácio de merda?” Vestiu-se rápido, resíduo dos tempos de cadete, atravessou o enorme salão pisando leve pra não acordar a mulher e a filha, entregou a pasta marrom para o ajudante de ordem que o acompanhava desde a Fronteira, sentou-se no banco de trás do carro preto e foi para o Planalto, lá tomaria café. Era o melhor momento do dia, gostava de observar o cerrado ainda alquebrado pelas queimadas, com predominância de traços escuros e que se tornavam mais escuros ainda devido aos óculos do general, atrás dos quais se escondia da luz do sol, da claridade da lua e de tudo mais.

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A caravana de carros pretos avançava solitária pela estradinha asfaltada, até chegarem à Praça dos Três Poderes. Estacionaram no subsolo, queriam evitar a guarda dos dragões enfileirados e mais ainda a rampa, onde o Médici recebeu os campeões da Copa de 70 e hoje é o ponto mais importante da Praça, onde os turistas alvejam os amigos e parentes com seus celulares e máquinas fotográficas modernas. Quem diria que com tantos monumentos, uma rampa de concreto acabaria sendo o ponto mais fotografado da cidade? O ajudante de ordens balbuciou: “a guarda está em forma, presidente”. “Quem gosta disso é o pessoal da

cavalaria”, respondeu o general. “Dizem que Juscelino gostava”, puxou conversa o ajudante com a pasta do general na mão. “É bem possível, Juscelino adorava fogos de artifício”, respondeu o general. Atravessou o quarto andar do palácio em passos mais rápidos e comentou baixinho para o ajudante de ordens: — Esse Niemeyer, além de comunista é muito burro, por que não fez como no Catete, ou então como os americanos, onde o presidente trabalha e mora no mesmo lugar, será que não percebeu que presidentes trabalham 24 horas? — Nem todos, não é presidente?

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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