O Manto Diáfano nº 5 - 20 de julho de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 5 ∙ Brasília/DF ∙ 20 jul 2016

Reforma da previdência A morte de Ivald Granato A falência da Oi

"DEMOCRACIA É A PIOR FORMA DE GOVERNO, COM EXCEÇÃO DAS DEMAIS QUE FORAM TENTADAS". Foto: via Visual Hunt

(CHURCHILL)


4 A reforma na Previdência Social em discussão

7 Os novos temores: a falácia da relação de dependência Revista eletrônica Nº 5 ∙ 20 jul 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Ronaldo Conde Aguiar Henrique Carlos de Oliveira de Castro Arnaldo Barbosa Brandão COLABORADORES José Matias-Pereira Julio Pérez Díaz Marco Aurélio Nogueira Rodrigo Stumpf González Carlos Muller Bruna Campello Jacob Klintowitz Murilo de Aragão Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) EDITORES Benício Schmidt Fabiano Cardoso Arno Vogel Walter Mota DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

11 Sem uma nova cultura, reforma política não se completa

13 O paradoxo da democracia

15 Conjuntura Nacional e Internacional

19 O incrível e triste fado da supertele luso-brasileira

23 Mulheres também do Riso

24 A morte em São Paulo

28 Os tempos e a política

29 Encaixotando Brasília


EDITORIAL O

s tempos têm sido difíceis de distinguir, entre o momento atual, o médio e o longo prazo. Não somente são tempos adensados, compactando incidências – do terrorismo aos impasses mundiais dos regimes reconhecidos como democráticos – como trazem perplexidades à tona, com uma contundência desconhecida, depois que o fascismo foi derrotado na Europa. O que se erigiu como parâmetro de convivência, entre partidos, ideologias e confissões religiosas tinha e tem dois supostos essenciais: uma economia de bem-estar e instituições representativas em pleno funcionamento. Os dois parecem viver em circunstâncias críticas e desafiadoras, no Brasil e no mundo. Além do registro e da homenagem ao grande artista Ivald Granato, falecido neste último dia 3, apresentamos textos centrados na conjuntura dilemática brasileira e algumas notações sobre dimensões permanentes à existência da democracia. Um tempo desafiador à existência social digna. Boa leitura. Os Editores

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A reforma na Previdência Social em discussão José Matias-Pereira – Economista

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tema seguridade social, em particular do sistema previdenciário no Brasil, em decorrência de suas distorções, vem sendo discutido, com maior e menor intensidade pela sociedade nas últimas décadas, em especial, nos âmbitos do parlamento, governo, trabalhadores e no meio acadêmico. Fenômenos como a elevação da expectativa de vida da população, revisão de legislações que permitem as aposentadorias precoces, mudanças no perfil demográfico da população, entre outros, surgem no centro desses debates.

Fazem parte desse rol as aposentadorias, pensões, auxílio-doença, salário-maternidade, salário-família, auxílio reclusão e outros que são garantidos pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Inclui-se, ainda, o Sistema Único de Saúde (SUS), de cobertura universal e acesso a todas as pessoas. É inegável, portanto, que o sistema previdenciário brasileiro se apresenta como um instrumento relevante e essencial para o funcionamento da sociedade, notadamente dos trabalhadores. Constata-se, quanto ao custeio que o sistema se caracteriza como contributivo, e de repartição, quanto à forma do emprego de seus recursos, definindo, dessa forma, o seu aspecto de solidariedade. Entre outros aspectos, esse sistema contribui para manter a renda para os seus usuários, além de gerar um clima de segurança social para os beneficiários, que sabem que podem contar com a previdência quando precisarem. É relevante ressaltar que um sistema previdenciário necessita se sustentar tanto no presente como no futuro. Constata-se, no entanto, que muito pouco se tem feito para enfrentar os problemas da previdência social no Brasil, em particular, os financeiros e atuariais. As avaliações dos resultados das ações e medidas adotadas nas últimas quase três décadas, para se alcançar os objetivos de equilíbrio atuarial e financeiro da previdência social preconizados pela Constituição Federal brasileira são frustrantes. As inúmeras propostas elaboradas no âmbito do governo e no parlamento sobre a seguridade social no país reforçam essas argumentações. A partir da Constituição de 1988, foi proposto ao Congresso Nacional um número significativo de projetos de Lei e de Emendas Constitucionais que visam alterar a política de seguridade social e os direitos do mundo do trabalho, com especial ênfase para as políticas previdenciárias. Além das discussões realizadas no parlamento, a criação de fóruns, com a participação de trabalhadores, empregadores e técnicos, para debater a necessidade de mudanças na previdência social, foram

Foto: Pixabay.com

A Constituição Federal do Brasil de 1988 estabeleceu, entre outras medidas, que constituem direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Assim, o Sistema Brasileiro de Seguridade Social está baseado em princípios definidos na Constituição Federal de 1988, e de forma específica, nos seus artigos 194 a 204, e compreende o conjunto integrado de ações dos poderes públicos e sociedade. Por sua vez, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social. 4


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uma prática recorrente nesses períodos de governo, que encerraram os seus ciclos de debates sem obterem consenso. As dificuldades políticas que afloraram dessas discussões levaram os governos FHC, Lula e Dilma, por motivos distintos, a recuarem nas suas intenções de implementarem uma ampla reforma da previdência social. O desejo do governo Temer de fazer uma reforma nessa área, ressurge em decorrência dos equívocos cometidos pelos governos petistas na gestão da economia, que desestruturou as finanças públicas. A forte queda do produto interno bruto (PIB), nos últimos dois anos, vem repercutindo no aumento acelerado do desemprego e na queda da arrecadação. Para distintos autores, como por exemplo, Giambiagi (2000), existem três causas observadas do desequilíbrio na previdência social no país: i. as mudanças introduzidas pela Constituição de 1988, que estenderam o benefício à população rural e o piso previdenciário de um salário mínimo, ampliando o volume de gastos públicos; ii. Regras benevolentes de aposentadoria, sobretudo as aposentadorias por tempo de serviço e regras diferenciadas por sexo; e iii. Baixo crescimento econômico, que seria responsável pela queda das arrecadações, retroalimentando o déficit. Vale ressaltar que a denominada transição demográfica se apresenta como uma ameaça concreta para a previdência social da grande maioria dos países no mundo. Esse fenômeno é caracterizado pelo acelerado crescimento da duração média da vida humana, com o consequente aumento do número e da duração das aposentadorias. Para agravar esse quadro, constata-se uma redução da taxa de fecundidade, o que reflete na composição etária da população. É preocupante para os governos, a administração pública e a sociedade, quando o sistema de previdência social não funciona de maneira adequada. Observa-se, no caso brasileiro, que é cada vez mais difícil, no âmbito da gestão da previdência social, promover a ampliação da cobertura previdenciária; melhoria do atendimento à população; ampliação da rede de agências; o equilíbrio financeiro da previdência urbana; e a redução do contencioso judicial. A sociedade brasileira, na medida em que vem sendo chamada para financiar – por meio da elevação da carga tributária – os crescentes déficits da previdência, tem cobrado dos governantes e políticos que se encontre uma solução para o problema. Essas manifestações de descontentamento surgem

num contexto mundial e nacional complexo, em que estão presentes os resquícios das crises econômicas, das reformas do Estado incompletas, mudanças no perfil demográfico e no mercado de trabalho. Observa-se, entretanto, que os debates e negociações que antecedem cada votação pelo parlamento brasileiro de reajustes das aposentadorias e pensões pagas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), nas últimas décadas, têm como pano de fundo apenas a preocupação em resolver questões emergenciais nessa área. No contexto atual, além das discordâncias sobre o percentual a ser aplicado no reajuste das aposentadorias, baseado na alegação de que eles contribuem para elevar ainda mais os crescentes déficits da previdência social, vai ser preciso levar em consideração nesse debate, também, os aspectos que envolvem as finanças públicas, e que contribuem para elevar o nível das dificuldades de governança do país. É revelador, nesse sentido, o estudo realizado por Lima e Matias-Pereira (2014: 847-868), que analisaram os efeitos da dinâmica demográfica na sustentabilidade do regime geral de previdência social brasileiro e, mais especificamente, mensuraram os efeitos da dinâmica demográfica nas receitas previdenciárias e nas despesas previdenciárias para o período de 2003 a 2030, e as perspectivas de equilíbrio a partir dos resultados encontrados. Na análise do período de 2012 a 2030, tanto para o Cenário 1 como para o Cenário 2, os autores verificaram que é “remota a possibilidade de equilíbrio das contas previdenciárias. Diante dos resultados encontrados, eles inferiram que a dinâmica demográfica não só afetou as contas previdenciárias no período de 2003 a 2011, como afetará de forma ainda mais significativa até o ano de 2030, sinalizando a premente necessidade de correções no modelo de financiamento atual do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) brasileiro”. O descalabro nas finanças públicas deixado pelo governo da presidente afastada pode ser mensurado pelo tamanho do déficit fiscal no Orçamento de 2016, num total de R$ 170,5 bilhões. Os desajustes na previdência social, nesse contexto, estão contribuindo de forma decisiva para agravar o déficit fiscal do país. Estima-se que o déficit da Previdência Social, em 2016, será de R$ 133,60 bilhões. Esse déficit, em 2015, foi de R$ 85,818 bilhões. Constata-se, 5


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diante da magnitude desses déficits, que a alteração desse cenário não é uma tarefa fácil. Os indicadores socioeconômicos e demográficos, agravados pela crise política e ética existentes no país sinalizam que é preciso encontrar meios que leve a uma ampla reforma da previdência social. Ao mesmo tempo em que se deve evitar de ferir direitos adquiridos, é preciso que se reexamine, por exemplo, as idades mínimas de aposentadorias vigentes. Está evidenciado, também, a necessidade de uma melhor organização e de gestão do sistema, em particular da destinação das receitas. Sabe-se, de antemão, que sem ações e medidas ousadas e criativas, nos campos político e técnico, dificilmente serão resolvidos os problemas da previdência social (Matias-Pereira, 2016). Fica cada vez mais evidente, diante da grave crise fiscal do Estado, que a depressão econômica contribui para aumentar a premência da realização da reforma da previdência social. O lado mais perverso da crise econômica é o crescimento acelerado do desemprego, que está coincidindo com o fenômeno de uma rápida mudança na estrutura etária da população. Estima-se que o Brasil deverá chegar Ao final de 2016 com um contingente de 14 milhões de pessoas desempregadas. É frustrante para a sociedade brasileira ver que a janela de oportunidade demográfica, que permite que mais pessoas se integrem ao mercado de trabalho, está ocorrendo no meio de uma crise econômica sem precedentes. Por sua vez, o aumento da longevidade e a maturação dos segurados ativos, que passam a demandar benefícios de inatividade, são ameaças concretas à solvabilidade fiscal do sistema.

http://www.allabroad.org/ 6

Pode-se concluir, assim, apoiado na literatura e na análise dos dados econômicos e demográficos, que existem diversos fatores econômicos, políticos e demográficos, que indicam a necessidade de se promover uma profunda reforma da previdência no Brasil antes do final desta década. A reforma, sem prejudicar direitos adquiridos, é essencial para a reorganização das contas públicas. Os objetivos devem ser orientados para o aperfeiçoamento do sistema, atendendo aos critérios básicos de equidade e de equilíbrio financeiro-atuarial, conforme determina a Constituição Federal. É recomendável que o tema seja debatido de forma exaustiva pelo parlamento, trabalhadores, academia e sociedade, sem motivações ideológicas ou corporativas. Levando-se em consideração os fatores que foram determinantes para o fracasso das reformas realizadas no passado, é importante que se defina uma agenda política preliminar, na qual se estabeleça um conjunto coerente de princípios gerais e estratégias que irão nortear as discussões da anunciada proposta de reforma da previdência social que o governo Michel Temer pretende submeter ao Congresso Nacional. ■

Referências Bibliográficas GIAMBIAGI, F. As muitas reformas da previdência social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Economia, 2000. (Texto para discussão, 430). LIMA, Diana Vaz de; MATIAS-PEREIRA, José. Demographic dynamics and the sustainability of Brazilian Social Security General Policy. Revista de Administração Pública - RAP, v. 48, n. 4, p. 847-868, ago. 2014 . MATIAS-PEREIRA, José. Tempestade perfeita: Análise da crise econômica, política e ética no Brasil. São Paulo: Livronovo, 2016.


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Os novos temores: a falácia da relação de dependência Julio Pérez Díaz

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s novos temores têm um ar mais técnico e sofisticado, Sintetizando seu mote principal, o que menos primitivo e, precisamente por isso, parecem muito mais realistas. aparentemente deveria atemorizar é que o Centram-se em aspectos econômicos envelhecimento demográfico que acompanhou e políticos, mas, para lançar-se à area chegada do amadurecimento das populações na pública, seu primeiro ato reflexo é armar-se de projeções de população. põe em perigo o bem-estar dos próprios idosos e Sintetizando seu mote principal, das pessoas de outras idades. o que aparentemente deveria atemorizar é que o envelhecimento demográfico que acompanhou a chegada do amadurecimento das populações põe em perigo Em minha opinião, esta maneira de entender as o bem-estar dos próprios idosos e das pessoas de consequências das mudanças demográficas em curso outras idades. O motivo é que tanto o desenho do é perfeitamente questionável. Mas, para que não me Estado como os mecanismos privados de solidarie- acusem de juízo precipitado, vamos examinar com dade entre pessoas de diferentes idades se gestaram mais detalhes os argumentos em que se baseia, antes em outros tempos, quando a estrutura de idades era de expor os motivos pelos quais a considero incorreta. jovem, e não vão resistir a uma mudança como a O lugar privilegiado para fazer cálculos sobre esse que está ocorrendo. futuro tão negro são as contas do Estado. Uma de suas A premissa irrenunciável deste novo tipo de te- funções é redistribuir parte da riqueza criada nas atimor é simples: os idosos são dependentes dos jovens vidades produtivas do país, para fazer frente a gastos e dos adultos. Dependentes tanto do ponto de vis- e investimentos de interesse geral, e para garantir um ta social como familiar. São também dependentes bem-estar mínimo a todos os cidadãos, até àqueles econômicos por terem deixado de ser produtivos, e que não podem conseguir isso por si mesmos. Os o são até fisicamente, por terem perdido a funcio- recursos necessários são obtidos por diversos meios, nalidade física e mental necessária para desenvol- mas o principal são os impostos. Os impostos de renver-se na vida cotidiana. Quando, a essa premissa da de trabalho apenas são pagos, logicamente, por acrescenta-se a evolução previsível da estrutura de quem trabalha. Por outro lado, os recursos e serviços idades, os medos estão justificados. Se a proporção que o Estado proporciona dirigem-se a toda a populade velhos aumenta, como é certo que vai ocorrer, a ção, mas, especialmente, a quem não trabalha; quem relação entre pessoas dependentes e pessoas que co- tem um salário pode ter alternativas para obtê-los. brem essa dependência irá piorar, e nos levará a um Entre os recursos econômicos proporcionados pelo ponto insustentável. Quase ninguém se detém para Estado, a parte mais volumosa corresponde às pensões revisar a premissa devido a seu evidente simplismo. e, concretamente, às pensões de aposentadoria, ao meUma vez aceitada sem crítica alguma, o resto é fácil. nos nos Estados “de bem-estar” que caracterizam boa 7


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carga futura para o sistema, mas, como já vimos, a generalização da sobrevivência até a maturidade torna esses casos cada vez menos prováveis. Outro assunto preocupante é o número de anos que os aposentados vão cobrar suas pensões. Se os contribuintes sobrevivem até a idade de aposentadoria, não é a mesma coisa viverem pouco tempo mais ou dezenas de anos a mais. As perspectivas tampouco são “boas” neste sentido. A esperança de vida em tais idades está melhorando muito, de modo que os pensionistas demoram cada vez mais tempo para morrer. Ainda não cessaram as preocupações sobre o futuro do sistema de pensões. A proporção de aposentados aumenta em relação às outras idades, os que falecem antes de se aposentar são muito poucos, e os que se aposentam vivem cada vez mais tempo, porém, além disso, as pensões que cobram são cada vez maiores. O motivo não é apenas que se reajuste o valor de acordo com o aumento do nível de vida, mas que os novos aposentados são trabalhadores que contribuíram mais que os anteriores e, portanto, têm direito a ganhos superiores. Sob o ponto de vista de quem está em idade de trabalhar, as coisas não estão muito melhores. Os jovens demoram cada vez mais tempo para se declarar ativos e ainda mais para começar a ter um posto de trabalho estável e bem remunerado, de modo que sua contribuição para as contas públicas deve ser cada vez mais escassa. Acrescente-se que a natalidade minguante que se instaurou na Espanha desde meados dos anos setenta provocará, em um futuro imediato, entradas cada vez menores de novos jovens ativos. Se nos detivemos nesses detalhes é porque não se trata de uma questão menor. As quantidades de dinheiro em jogo são astronômicas.

parte da Europa. Este é um dos fatos que mais claramente parecem confirmar os medos “demográficos” atuais. Não é difícil expor as causas. Evolução projetada da distribuição por grandes grupos de idade e da relação de dependência senil*. Espanha 1990-2020.

Fonte: Projeções da população da Espanha calculadas a partir do Censo de População de 1991. Total nacional: 1990-2020. Madrid, INE (1995). * A denominação tendenciosa relação de dependência senil é simplesmente a relação numérica entre as idades de 15-64 e as de 65 anos e mais. Aqui a representação foi convertida no número de pessoas em idade ativa por cada uma das que têm mais de 64 anos.

Se o número de idosos aumenta, também cresce o gasto com pensões. Cabe acrescentar que o mesmo ocorre com o gasto em atenção à saúde, pois já se sabe que a saúde piora durante a velhice. Mas não somente aumenta o número de pessoas. Isso não seria um problema se as pessoas do resto das idades aumentassem no mesmo ritmo. Como isso não ocorre, ao mesmo tempo em que aumenta a quantidade, cresce também a proporção dos “dependentes” idosos. Dessa maneira, para cada indivíduo que recebe uma pensão, é cada vez menor a quantidade de pessoas que contribuem com suas cotizações para pagá-la. A chamada relação de “dependência senil” se obtém simplesmente comparando a população em idade ativa com a população de mais de 64 anos, e sua evolução futura se deduz diretamente das projeções demográficas. Se em 1990, por cada “dependente senil” havia mais de quatro pessoas em idade ativa, em 2020 já serão pouco mais de três. Além disso, o amadurecimento das populações tem também efeitos perversos sobre as consequências econômicas desta evolução. Se os trabalhadores falecerem antes de se aposentar, converter-se-ão em “contribuintes líquidos” e não representarão uma

Custo das pensões. Espanha, 1997, 1998 e 1999 (bilhões de pesetas). Tipos de pensões

Orçamento inicial 1997

Orçamento inicial 1998

Orçamento inicial 1999

Contributivas

7,07

7,47

7,89

Não-contributivas

0,20

0,22

0,23

Fonte: Orçamentos Gerais do Estado.

O gasto social total, incluindo pensões, prestações sociais, educação, moradia, fomento ao emprego e saúde se situou, em 1997, em 14 bilhões de pesetas, equivalentes a 46,8% do gasto público e a 17,8% do PIB (Produto Interno Bruto). Portanto, os mais de 7 bilhões dedicados a pensões implicam, somente eles, mais de uma quarta parte de todo o gasto público 8


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(26,8%) e nada menos que 1 de cada 10 pesetas geradas pelo conjunto da atividade produtiva nacional (exatamente 10,2% do PIB). Segundo o Ministerio del Empleo y Seguridad Social, passará de pouco mais de 7 milhões de pensões em 1998 a quase 10 milhões e meio em 2025, e só o número de benefícios de aposentadoria crescerá 1,6 milhões. Nesses dados se baseiam aqueles que afirmam que “(…) a conclusão é óbvia: o sistema público de pensões atual deve ser reformado porque, em sua configuração atual, é inviável e vai caminhando indefectivelmente até sua quebra”. As causas parecem claras, e assim entende o mesmo autor quando afirma: “Pois bem, o elemento que condena o sistema de partilha à quebra é a tendência demográfica. A queda na taxa de natalidade e o progressivo envelhecimento da população são evidentes e se acentuam cada vez mais suas tendências”1. Algo parecido ocorre com o gasto em saúde. O envelhecimento demográfico provoca um aumento do gasto porque aumenta a proporção de pessoas com saúde precária. O fato de o gasto em saúde crescer ao mesmo tempo em que aumenta a proporção de idosos torna-se confirmação suficiente. Como se pode deduzir de tudo o que foi dito anteriormente, parece que, desta vez, os alarmes provocados pelo envelhecimento demográfico se sustentam em argumentos de peso. E ainda há algo mais. Se na Europa a sustentabilidade do Estado de Bem-Estar preocupa, do outro lado do Atlântico, onde a relação entre a iniciativa pública e a privada se configura de maneira diferente, o que se anuncia é o “conflito entre gerações”2, e sempre há os importadores de ideias que consideram os mesmos argumentos aplicáveis à Europa. Segundo seus teóricos, esse conflito será uma consequência inevitável do envelhecimento demográfico. Os maduros e idosos estão ganhando poder político e econômico. São os que têm poupança, a moradia quitada, os direitos de antiguidade no trabalho, são os que controlam os sindicatos e o Estado e, além disso, o fazem por interesse próprio. Em troca, os jovens são pobres, são explorados, não têm trabalhos estáveis nem bem pagos e, ainda, as ajudas que o Estado lhes proporciona são ridículas ao lado das que proporciona aos velhos. E os jovens, não se deve perder de vista, são os que devem formar lares, fazer carreira profissional, levantar o país e lhe dar filhos. Não está longe, portanto, o dia da rebelião dos jovens arruinados contra os maduros e velhos “exploradores”. ▶

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

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www.pequi.org.br


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Segundo os teóricos do conflito que se avizinha, chegou-se a esta situação de injustiça porque o Estado de Bem-Estar é um dinossauro sem agilidade, que não se adaptou aos novos tempos. Os velhos eram os pobres no passado, e os jovens aceitaram um pacto implícito pelo qual viriam a sustentá-los em suas necessidades básicas. Porém, ao final, tornaram-se donos de tudo, e não têm nenhuma intenção de renunciar a seus privilégios. Ao aumentar sua proporção, aumenta também seu peso eleitoral. Uma vez no governo, que partido se atreve a tomar medidas para repartir melhor as ajudas, ou seja, para dar menos aos velhos e mais aos jovens? É evidente que, também neste caso, os visionários do conflito enfeitem seus argumentos com uma boa dose de dados demográficos. É possível situar nessa mesma linha os temores sobre o futuro da justiça “horizontal”, quer dizer, entre os próprios adultos ocupados atuais, segundo tenham filhos ou não. Uns e outros pagam suas contribuições à seguridade social, de modo que, no futuro, terão direito às mesmas pensões. Mas os que têm filhos fazem um esforço dobrado porque possuem os gastos de sua criança também e, em troca, quando esses filhos forem os contribuintes, quando se tornarem adultos, pagarão indistintamente as pensões de seus pais aposentados e as dos aposentados que não tiveram filhos. É justo que os que não tiveram filhos e pouparam todos os respectivos gastos se aproveitem depois do trabalho e dos impostos que pagam os filhos dos outros? Devem contribuir as mesmas quantidades durante a vida ativa quem não têm o gasto a mais por manter uma família? Não estaremos ocasionando, com o atual sistema, que as pessoas se saiam beneficiadas por não ter filhos, pondo assim em perigo a continuidade do sistema de pensões e, inclusive, do sistema social? De fato, não falta quem veja no envelhecimento demográfico, combinado com a pressão arrecadatória própria das pensões de sistemas de partilha, a explicação da queda brusca da natalidade. Ao fim e ao cabo, os recursos que as famílias manejam são limitados. Se uma parte importante desses recursos não fosse destinada a impostos para cobrir a dependência da terceira idade, é possível que as famílias se propusessem utilizá-los para custear a criação do primeiro filho ou de mais um, além dos que já têm. As desgraças que o amadurecimento das populações provocaram entre os jovens parecem não ter

fim. Até a possibilidade de se casar e formar uma família se complicou enormemente por esse motivo. Para formar um casal estável é necessário dispor de casa própria, e é bem sabido que o preço da moradia na Espanha é muito alto, especialmente nas grandes capitais, que é onde vive a maior parte da população jovem. Mas os maduros também são culpados de que os jovens não encontrem moradia? Parece que sim, pela simples razão de que não abandonam a sua própria. A realidade crua é que uma parte considerável do mercado de moradias de segunda mão se abastece dos óbitos de seus atuais ocupantes. Ainda mais, no passado era muito frequente que a moradia não chegasse sequer a se ofertar nesse mercado, porque passava às mãos dos jovens como parte de sua herança. Tudo isso mudou com o amadurecimento das populações. Se um filho deve esperar que seus pais morram para poder dispor de uma moradia e formar sua própria família, é melhor que se arme de paciência. E se não aguarda, mas decide competir no mercado com outros compradores, deverá enfrentar a escassez da oferta imobiliária, acentuada pelo mesmo fato. A elevada esperança de vida dos maduros, e sua obstinação cada vez maior em continuar vivendo em seu próprio lar em vez de trasladarem-se para uma residência coletiva ou para a casa de algum filho, fazem com que a oferta de moradias de segunda mão seja muito menor do que poderia ser. Diante de tantos agravos e injustiças, o estranho é que já não tenhamos assistido a uma rebelião juvenil ainda mais alardeada que a de Maio de 1968. Até aos propagandistas do conflito entre gerações não resta alternativa a não ser admitir que os jovens atuais tornam-se pouco receptivos a chamadas à revolução. Encontramo-nos, mais uma vez, ante um discurso que parte de descrições supostamente rigorosas do que está ocorrendo, utiliza argumentações logicamente aceitáveis e enfrenta depois a crua realidade de que suas predições não devem se cumprir. ■ 1

Salido Banús, J. L. & Ibars Álvaro, J. (1999), “Sistema de pensiones. Situación actual y previsiones de futuro”, incluído em: Ricardo Moragas Moragas, El reto de la dependencia al envejecer, Barcelona, Herder, pp. 147-163.

2 Jones, J. R. (1988), “Viellissement et équité entre générations: le cas des États-Unis”, apresentada no Colloque international sur le vieillissement démographique: tendances, enjeux et stratégies, Paris, 4 e 5 de outubro. (Trecho retirado de PÉREZ DÍAZ, Julio. O Amadurecimento das Massas: envelhecimento, mudanças demográficas e eficiência reprodutiva. Verbena Editora: Brasília. 2014, pp. 83-88.)

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Sem uma nova cultura, reforma política não se completa Marco Aurélio Nogueira – Cientista Político

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á duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos defender a ideia de que as regras do jogo, as instituições, os sistemas políticos precisam ser modificados, de modo a responder melhor às circunstâncias e às exigências da sociedade, essa entidade sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos defender a ideia de que o modo como se faz política precisa ser alterado. Em boa medida, essas duas maneiras caminham juntas, alimentando-se entre si. Ou não caminham, sem deixar de se alimentarem reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga entre nós, prega que condutas e valores (elementos de cultura) são fortemente influenciados e condicionados pelo caráter das instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. As instituições contam, têm peso, modelam o modo como são feitas as coisas. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta. Sistemas concebidos para gerar incentivos para que as distintas concepções políticas se façam representar – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que, necessariamente, todas as concepções estejam representadas, caso os mais fortes ajam de forma predatória e monopolizem ou corrompam as disputas eleitorais. O voto distrital majoritário e, sobretudo o distrital uninominal, por sua vez, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove certo tipo de inflexão localista, desestimulando a discussão política

Foto: Pixabay.com

geral (nacional), mas não garante que os partidos não possam apresentar candidatos ideológicos e terminem por convidar os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles procura criar dificuldades para que ela se reproduza e se expanda. Mas a corrupção pode crescer sem parar, e de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força no modo como se faz política ou se administra a coisa pública. Se olharmos para a política brasileira atual, para o sistema, vemo-lo de pernas para o ar, ofegante, desorientado. Nada parece funcionar bem nele, ainda que ele se mantenha e se reproduza há décadas. Deve-se tomar cuidado quando se fala que nossas instituições políticas vão bem, correspondem ao que delas se espera. Há partidos em número excessivo, constituídos como projetos pessoais vazios de intenções substantivas, graças a uma legislação que tudo permite. Os prepotentes, os arrogantes, os medíocres, os indiferentes aos cidadãos que deveriam representar ainda 11


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mantêm seus postos, quase inabaláveis. Alguns primam pela desfaçatez, outros se agarram quase fanaticamente aos pedaços de poder a que tiveram acesso, como se fossem eternos e não pudessem desaparecer. O sistema funciona de forma estável, mas não produz efeitos virtuosos – acima de tudo, não produz consensos e consentimentos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Por isso, o problema político que temos de resolver nessa fase crítica da vida nacional não é de natureza tipicamente sistêmica. Não tem a ver com regras e sistemas, ainda que regras e sistemas devam ser revistos e atualizados. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade qualquer de parlamentarismo, por exemplo, que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital puro ou misto, e despertarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas. Reformas dessa natureza precisam ser feitas e certamente ajudarão, mas terão apenas como produzir efeitos reais num prazo mais ou menos longo: o prazo necessário para que entrem na corrente sanguínea da sociedade civil, do Estado e da política. E quando isso acontecer (se acontecer) poderemos nos encontrar mais ou menos no mesmo lugar em que estamos, se por acaso a sociedade não tiver conseguido se reformar a si própria em termos éticos e políticos. Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento e atrito em que se vive hoje, não apenas no Brasil. Esse nível atingiu patamar tão elevado que se tornou difícil imaginar como é que o país encontrará eixo e rumo. Ele está elevado tanto no âmbito do antagonismo político mais imediato quanto no âmbito social mais amplo. Na sociedade civil, sempre vista e tratada como o eixo “positivo” e coração ético do Estado, o desentendimento assentou praça, a exibição de força tornou-se regra, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que todos falem o tempo todo. Aí dorme o problema principal, pois sem um ativismo democrático que construa pontes

e as empregue para viabilizar uma pressão que prepare um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado. É impressionante, mas parece que ninguém se dá conta de que a democracia está perdendo qualidade não apenas porque o sistema político enfartou, mas porque os cidadãos democráticos não são capazes de se articular entre si e estão se devorando uns aos outros. A esquerda moderada e a centro-esquerda assistem à sua inoperância e a esquerda “pura”, mais radicalizada, é prisioneira de seus próprios fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Ambas estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade duramente conquistada ao longo da democratização do país. Sem a superação desse quadro será difícil acontecer algo novo, até porque faltam lideranças, partidos, dirigentes e militantes com particular descortino político. Estamos nos tornando uma nação de muita política e de pouquíssima política: de políticos ausentes e cidadãos indignados, que não sabem dialogar, não conseguem definir quem são os “inimigos principais”, os aliados e os adversários, não têm qualquer plano de voo, sem que ninguém apareça para fazer o mínimo requerido pela democracia: mediação. Sem energia mediadora, sem disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento e negociação, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política que pouca coisa acontecerá. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, o modo de operar, os valores) ou é melhor deixar tudo como está que teremos menos trabalho. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes em regras e sistemas, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos técnicos, culturais e políticos. Isso para não lembrar que toda operação política, de reforma ou de manutenção, está ligada a coisas que acontecem no terreno da correlação de forças. Avanços substantivos estão associados ao modo como as relações sociais se reproduzem, ou seja, ao modo como dominantes e dominados, governantes e governados, se relacionam entre si e disputam os espaços, bem como ao modo como a economia está organizada. Em que medida a política e o sistema político podem responder por tais avanços é algo sempre em aberto. ■ 12


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O paradoxo da democracia Rodrigo Stumpf González – Cientista Político

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retirar um governo impopular e colocar em prática um programa de governo que não teria a mínima chance de ser escolhido em eleições diretas. Não chega de exemplos? Alguns mais: o primeiro ministro japonês está prestes a ter a maioria necessária para mudar a constituição pacifista do pós-guerra e esquentar ainda mais as cálidas relações no Mar da China. Na Colômbia, um histórico acordo de paz pondo fim a uma guerra civil e desarmando a principal guerrilha do país pode ser colocado em risco por um plebiscito em razão da pouca empatia da população com a imagem do presidente. Na Turquia a população saiu às ruas para evitar um golpe militar contra o governo eleito, que é o mesmo que persegue jornalistas e opositores. É óbvio que estas situações não devem se constituir em argumento para desprezar a democracia. Seguindo Churchill, podemos admitir que a democracia é a pior forma de governo, com exceção das demais que foram tentadas. O problema é que o ideal de democracia foi construído em torno de uma humanidade racional e capaz de dialogar. Nos dias

o período recente estamos vivendo o paradoxo de que alguns dos principais problemas políticos do mundo são oriundos de democracias e não da ação de regimes autoritários ou organizações terroristas. Ainda que possa se dar o devido crédito ao ISIS, ao governo saudita, ou aos ditadores egípcios, ou do Sudão por parte dos males do mundo, parte das situações de crise e de risco de conflito atuais têm sido criadas pelo exercício da democracia. A saída dos britânicos da União Europeia, votada por plebiscito, não apenas coloca em cheque o projeto de integração europeu como reabre velhas feridas, como as da Irlanda do Norte. Na Áustria a extrema direita está a um punhado de votos da Presidência, em eleições que devem se repetir em outubro. Nos Estados Unidos, em breve, podemos lembrar George W. Bush como um presidente ruim, com parte da responsabilidade pela Guerra do Iraque e pela crise de 2008, mas não mais o pior presidente republicano de todos os tempos. No Brasil os mecanismos institucionais foram usados para

Foto: via Visual Hunt

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de hoje a Ágora não é mais um espaço de debate, mas de batalha campal (que o digam os gregos na sua praça Syntagma). Talvez seja romantismo pensar que eleições podem voltar a ser a escolha entre ideias e propostas racionais. Mas não é impossível que se tornem discussões com um grau menor de comoção, nas quais os argumentos não precisam ter qualquer relação com a realidade (os 350 milhões de libras supostamente gastos pelo Reino Unido com a União Europeia, informação falsa utilizada pelos defensores do Brexit, como Boris Johnson, ou o muro para separar os Estados Unidos do México, a ser pago pelo mexicanos, segundo Donald Trump). Nem todas as notícias em torno da democracia são ruins. Nos últimos anos, mudanças importantes iniciaram em algumas grandes cidades do mundo. Londres elegeu um muçulmano da esquerda moderada. Paris, Roma, Madrid e Barcelona elegeram prefeitas com propostas de transformação (e não apenas porque são mulheres. Margaret Thatcher não me deixa mentir, assim como Hillary Clinton ou Theresa May não representam exatamente a mudança). Pode-se concluir que não há paradoxo que problemas atuais sejam criados pela democracia, mas um erro de avaliação. A luta contra o autoritarismo em décadas passadas fez com que as imperfeições do regime democrático fossem esquecidas e se acreditasse que ele fosse capaz de soluções mágicas. Mas ao final, uma democracia é tão boa como as pessoas que a constroem no contexto de justiça ou injustiça da sociedade em que vivem. A maior facilidade de acesso à informação não criou uma população bem informada. As redes sociais tendem a reforçar as concepções de correntes de opinião, mais do que esclarecer dúvidas. A liberdade de participação não fomentou uma cidadania ativa, com a sobrevivência das mesmas elites por décadas. O crescimento econômico e as novas tecnologias não erradicaram nem a fome nem a desigualdade. Para que exista uma melhoria no funcionamento das instituições seria preciso que o cidadão estivesse interessado na sinceridade e na informação fidedigna, e desenvolvesse a capacidade de interpretar a cacofonia de fontes de que dispõe, para fazer escolhas entre propostas realmente diferentes entre si. Não é impossível, mas é uma tarefa que pode exigir mais de uma geração. Ainda que, no atual contexto, evitar um retrocesso já seria um grande avanço. ■

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Conjuntura Nacional e Internacional Benício Schmidt – Cientista Político

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s finalistas na disputa pela presidência da Câmara Federal (Rodrigo Maia e Rogério Rosso) são apoiadores do Governo Temer. Rodrigo Maia teve votos e ostensivo apoio de alguns deputados que votaram contra o impeachment da Presidente Dilma. Ou seja, na Câmara Federal o jogo está encerrado e a decisão final sobre a instauração do Governo Temer, legal e politicamente, passa ao controle total do Senado Federal. Isso libera os deputados para a participação nas eleições municipais deste ano, seja como candidatos (20% o serão), seja como cabos eleitorais de prefeitos e vereadores que servirão de bases para as eleições de 2018, quando os demais mandatos deverão ser renovados. O alto grau de renovação da Câmara Federal nas últimas eleições (2014) funciona como sinal de alerta aos atuais representantes parlamentares. Quem não garantir fortes bases locais de sustentação para o futuro terá vida curta!

tado. Como os deputados recusaram refazer a votação no conselho, o processo de cassação de Cunha agora vai ao plenário da Casa, e deve ser analisado após a volta do recesso parlamentar, em agosto. Muda a correlação de forças partidárias, com enfraquecimento do PT incluído. As alianças locais sofrerão uma nova configuração, sendo formadas em novas bases, tendo antes a necessidade de acordos para duas votações anteriores às eleições municipais: a cassação de Cunha e o impeachment de Dilma Roussef. São dois eventos que terão resultados, muito provavelmente, favoráveis ao Governo Temer, agora interino. É um governo controlado por parlamentares, seus principais ministros, aptos aos jogos do Congresso Nacional; além de ser um grupo dirigente marcadamente do PMDB e seu núcleo duro, surgido após a redemocratização e agora consolidado, sob o comando de Michel Temer, como muito bem ilustram os dois volumes da recente obra de Fernando Henrique Cardoso (Diários da Presidência). Após a eleição de Maia (DEM-RJ), a relação do governo com o CongresO primeiro item da pauta é o impeachment da so passa a ser cooperativa e negociada, não competitiva, como foi no presidente. Além disso, com a muito provável governo da presidente Dilma Rousaída de Eduardo Cunha da vida política, com sseff. Há diferenças marcantes, dessua cassação, o presidente do Senado, também trava a pauta e estabelece os limites do possível a ser negociado. Também muito implicado nas investigações da Lava redefine-se um novo eixo na coalizão Jato, vai para a berlinda. governista (PMDB, PSDB, DEM, PSB, PP e PPS). Estes comandarão a pauta, mesmo em um plenário exNa manhã seguinte, o Deputado Eduardo Cunha tremamente fragmentado, com a representação de 28 sofreu nova derrota, na Comissão de Constituição partidos políticos. Protagonismo dos grandes, hoje e Justiça, que rejeitou (48 x 14 votos) o parecer do praticamente todos médios. Eles assumirão a lidedeputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF) sobre o re- rança na coordenação da agenda parlamentar e das curso de Cunha (PMDB-RJ). O texto recomendava articulações políticas. a anulação da votação do Conselho de Ética, que foi Pacificado o ambiente na Câmara dos Deputados, favorável à cassação do mandato do deputado afas- o Senado passa a ter o comando das operações. ▶ 15


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O primeiro item da pauta é o impeachment da presidente. Além disso, com a muito provável saída de Não foi um jogo entre a “direita “ e Eduardo Cunha da vida política, a “esquerda”; bem como não foi um com sua cassação, o presidente do Senado, também muito implicado confronto “Dilma” versus “Anti-Dilma”. nas investigações da Lava Jato, vai Foi mais um movimento de resgate da para a berlinda. Renan Calheiros tem normalidade no Legislativo... uma atitude política muito distinta da de Cunha. Sem ser agressivo, Renan Calheiros é um conciliador com metas agressivas. Papel raro, fruto de combinações instituição estava enormemente desgastada, espeentre traços de personalidade e engenharia política. cialmente diante da opinião pública; de acordo com Mas após o provável impeachment, Calheiros estará várias pesquisas de opinião correntes. exposto a muitos ataques originados no Judiciário. Estabelecidas as condições de funcionamento do Resultará enfraquecido politicamente. Parlamento, resta focar nas decisões que afetam a população, trabalhadores de modo mais dramático. A contribuição sindical volta à pauta, com fortes posições dentro do governo, a ela desfavoráveis. Filiado ou não a um sindicato, todo trabalhador brasileiro tem, pela lei atual, a obrigação de contribuir com um dia de trabalho anualmente. O PL 870/15, do deputado federal catarinense Rogério Peninha (PMDB), propõe que a contribuição passe a ser espontânea. “É incompatível com a liberdade sindical, que consta de nossa Constituição Federal. Como pode um trabalhador ser obrigado a contribuir para o sustento de uma militância que ele não concorda? Contribuições obrigatórias são, na verdade, um imposto. E o Foto: Senado Federal via Visual hunt / CC BY Brasil, um dos países com a maior carga tributária do A eleição do Presidente da Câmara Federal, no mundo, precisa se livrar de tributos como este”, afirbojo de um governo interino e em meio às reorien- ma Peninha. A contribuição é prevista na CLT (Consolidação tações pesadas na política econômica e nos parâdas Leis do Trabalho) nos artigos 578 e 579. metros da gestão pública (administração direta e empresas estatais), tem um peso muito grande e deArt. 578 - As contribuições devidas aos Sincisivo para o desenvolvimento da conjuntura. Não dicatos pelos que participem das categorias foi um jogo entre a “direita “ e a “esquerda”; bem econômicas ou profissionais ou das profissões como não foi um confronto “Dilma” versus “Antiliberais representadas pelas referidas entida-Dilma”. Foi mais um movimento de resgate da nordes serão, sob a denominação do “imposto malidade no Legislativo, perdida com a ascensão de sindical”, pagas, recolhidas e aplicadas na forEduardo Cunha e com a audácia do Novo Centrão ma estabelecida neste Capítulo. suprapartidário, que desgastou muito o prestígio da Art. 579 - A contribuição sindical é devida por Câmara Federal. Rogério Rosso (PSD/DF), de certa todos aqueles que participarem de uma deterforma, se posicionou como herdeiro desta posição. minada categoria econômica ou profissional, Rodrigo Maia, sabiamente, conseguiu um apoio ou de uma profissão liberal, em favor do sintransversal, inclusive de Lula, mas não do PT como dicato representativo da mesma categoria ou bloco, para o resgate das velhas formas de negociar profissão ou, inexistindo este, na conformidadentro da Câmara Federal. Um alinhamento tradide do disposto no art. 591. ▶ cional, em épocas de crise, onde e quando a própria 16


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vigilância mundial contra o terrorismo. Nada mais atual do que o pronunciamento do Papa Bento XVI, hoje aposentado no Vaticano, quando ainda em 2011 fez pronunciamentos relacionando a própria sobrevivência da democracia com a convivência efetiva das confissões religiosas, a partir do respeito aos dogmas de qualquer delas entre si. Os descontentamentos e as rebeldias – muitas com caráter assassino – têm motivações baseadas nas condições socioeconômicas, sem dúvidas. Mas também em dimensões teológicas, com as mesmas projeções sobre a existência social e política de diversos povos, Estados e confissões civilizacionais. Ao contrário do majoritariamente estabelecido por teorias do desenvolvimento político, o reconhecimento de diferentes códigos de ordenamento jurídico é uma questão complexa e de difícil solução. E essa resistência à coalescência, a partir de doutrinas antípodas e irredutíveis tem sido a fonte de conflitos que não se resolverão sem grandes mobilizações por parte dos interessados e militantes, em particular. Em um mundo em crescente armamentismo e desafios à globalização emergente na última década, como ilustra o BREXIT, recentemente, todas as equações possíveis em esferas estritamente nacionais dependerão, cada vez mais, de encaminhamentos e redefinições na Ordem Internacional. Desafios cada vez mais complexos e abrangentes. ■

A contribuição sindical obrigatória foi criada na década de 1940 no governo de Getúlio Vargas. Coube aos deputados constituintes aprovarem a plena liberdade sindical quanto à filiação. No entanto, a contribuição continuou obrigatória. “A contribuição sindical é um instrumento arcaico e extremamente danoso, que já deveria ter sido banido de nosso ordenamento jurídico com a promulgação da Constituição Federal de 1988”. Para o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen, “o sistema de contribuição obrigatória de imposto sindical só serve para alimentar sindicatos fantasmas e para que alguns dirigentes se perpetuem no poder. As entidades não prestam o serviço que se espera”. O projeto tramita em regime prioritário na Comissão de Trabalho da Câmara. Além disso, o governo planeja anunciar, ainda em julho, um corte de despesas de R$ 20 bilhões. O que certamente incluirá os chamados “gastos sociais” . Os trabalhadores e suas organizações devem estar atentos e informados, pois a próxima reunião do COPOM certamente não trará grandes mudanças na Taxa SELIC, que continuará entre as mais altas do mundo! A esse quadro adicionem-se os eventos disruptivos da ordem internacional (França e Turquia), que imediatamente provocam recrudescimentos na

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O incrível e triste fado da supertele luso-brasileira Parte 1 – da privatização da Telebrás ao desembarque da Portugal Telecom Carlos Muller – Jornalista

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Oi, que no final de junho entrou com processo de recuperação judicial, e sua maior acionista, a Pharol, sucessora da Portugal Telecom (PT), são irmãs gêmeas; não univitelinas, mas gêmeas. Filhas da privatização marota com o capitalismo de compadrio. Não por acaso estão em situações semelhantes: tecnicamente falidas. Vários dos empresários e altos funcionários dos dois países que intervieram na evolução de ambas estão sob processo, alguns dos quais já estiveram, estão ou têm boas possibilidades de virem a ser presos; muito dinheiro público foi pelo ladrão (às vezes literalmente). Alguns ganharam muito dinheiro, principalmente os que, dispondo de informações e contatos adequados, entraram e saíram do negócio na hora certa. Muitos perderam bastante, os que inversamente não tinham informações e contatos no nível propício, ou estavam obrigados a ficar com o mico, como bancos públicos e fundos de pensão de empresas estatais. O dinheiro público e as prerrogativas estatais estiveram constantemente a serviço de projetos políticos e de uma iniciativa privada predadora, enquanto a população pagava caro por serviços de má qualidade.

Norte, Nordeste e Sudeste (exceto São Paulo, vendida separadamente à espanhola Telefónica). A marca “Oi” surgiu como braço de telefonia celular do grupo, em 2001, e substituiu a “Telemar” em 2007. Um editorial recente de O Estado de S.Paulo, ao comentar o pedido de “recuperação judicial da Oi – a maior da história brasileira, com uma dívida total de R$ 65,4 bilhões –, lembrou que “Sem dinheiro para honrar o compromisso, o grupo apelou para os cofres públicos, associando-se aos fundos de pensão de estatais Previ, Petros e Funcef e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)”. As divergências entre os sócios eram tamanhas e os métodos utilizados tão baixos que, ainda conforme o Estadão, “numa conversa gravada ilegalmente, o então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, qualificou a Telemar de ‘telegangue’ e de ‘rataiada’”.1 ▶

Nascimento na privatização da Telebrás A Oi nasceu Tele Norte-Leste na privatização como um azarão bem apadrinhado – politicamente, pelo governo que fez de tudo para que um dos vencedores do processo fosse “brasileiro” e, financeiramente, por estatais, empresas controladas por estatais, fundos de pensão e pelo BNDES. A Tele Norte-Leste, que logo se tornaria Telemar, era composta pelas antigas teles dos 16 estados das regiões 19


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de 1998 vieram a público em maio do ano seguinte quando a Folha de S.Paulo3 divulgou trechos de gravações registradas ilegalmente entre os principais envolvidos na privatização, a começar pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o ministro das Comunicações, Mendonça de Barros, e os principais dirigentes da área econômica. Se o grampo fosse legal e ao caso se aplicasse os rigores de uma Lava Jato, não seriam poucas as autoridades sob processo ou prisão. Mas os tempos eram outros e os nomes dos envolvidos diferentes, naturalmente... O acordo resolvia os conflitos entre os acionistas da BrT com a saída do Citibank, de Daniel Dantas e seu Opportunity. Tornavam-se controladores Carlos Jereissati, do Grupo LaFonte, e Sérgio Andrade, da empreiteira Andrade Gutierrez. Como não possuíam, ou não se dispunham a empregar todo o capital necessário, eles aplicaram principalmente recursos obtidos por meio de empréstimos de R$ 2,57 bilhões do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e de R$ 4,3 bilhões do Banco do Brasil (R$ 6,9 bilhões ao todo). Os fundos de pensão abriam mão de parte de suas participações para dar espaço ao BNDES, que subscreveu R$ 1,24 bilhão em ações preferenciais resgatáveis da Telemar Participações, que comprou as ações dos sócios que deixariam o negócio. Além disso, o braço de participações do BNDES, a BNDESPar, comprou ações da AG Telecom (da Andrade Gutierrez) e da La Fonte Telecom, no valor de R$ 1,33 bilhão, o que significa que financiou indiretamente o capital aplicado por elas na compra da BrT. Lula e o PT também mudaram nesse meio tempo. Em 1998 denunciavam o “governo entreguista” e pediam o impeachment de FHC. Dez anos depois, os mesmos expedientes (inclusive os fundos de pensão e os bancos estatais) eram usados para viabilizar uma “supertele verde e amarela”, cuja razão de ser não era clara, posto que até pouco antes o discurso oficial era o de fortalecimento da concorrência e da regulação estatal, de forma a impedir que as concessionárias obtivessem lucros abusivos, e a melhorar a qualidade e ampliar os serviços. Nas gravações de 1998 ficava claro que FHC havia concordado que os “operadores” do governo fossem até o “limite a irresponsabilidade” e autorizado que usassem seu nome nas negociações. Na compra da BrT pela Oi, Lula adotou a prática de Mendonça com um discurso contrário ao que sustentara até

Os envolvidos e suas participações na empresa mudaram ao longo do tempo, mas não o ambiente conflitivo. Dias antes do pedido de recuperação judicial, o jornalista Samuel Possebon, da revista e do site especializado Teletime, comentou: “a história de nenhuma outra empresa de telecomunicações atuante no Brasil chega nem perto do grau de turbulência e drama vividos pela Oi”2. Também na privatização nasceu a Tele Centro-Sul, logo rebatizada como Brasil Telecom (BrT), com as ex-estatais das regiões Centro Oeste e Sul. No leilão de privatização o consórcio vencedor era controlado por Telecom Italia, Algar, Opportunity e Splice. A composição foi mudando em meio a um conflito semelhante ao que caracterizava a Telemar/Oi. A Telecom Italia, que chegou a ter 30%, sairia atirando ao entrar no negócio de telefonia celular com a TIM. As maiores disputas se davam dentro da empresa que, numa reestruturação acionária, a Solpart – por sua vez controlada por seis fundos de pensão, pelo Opportunity, do notório Daniel Dantas, e seus fundos de investimentos, que inicialmente limitavam-se a administrar recursos do Citibank – se tornou controladora da BrT. As disputas não eram meras divergências. A relação entre os sócios na Solpart e na BrT era de guerra, envolvendo espionagem, uma infinidade de ações judiciais e evidências de delitos que desembocariam na famosa “Operação Satiagraha”, da Polícia Federal.

A “supertele verde e amarela” Desde o início de 2008 circulavam informações sobre uma negociação entre as duas teles – compra ou fusão –, embora isso fosse ilegal. Ainda assim, em 25 de abril do mesmo ano, foi anunciado um acordo pelo qual a Oi compraria a Brasil Telecom por R$ 5,86 bilhões, mais as despesas elevadas decorrentes da obrigação legal de comprar as participações dos acionistas minoritários interessados em vendê-las (tag along) e de R$ 315 milhões para a extinção de ações judiciais entre sócios da BrT. O total do negócio, segundo as estimativas, ultrapassaria R$ 12 bilhões. Para levantar o dinheiro necessário, a Oi fez um aumento de capital e vendeu títulos de dívida ao BNDES e ao Banco do Brasil. Como ocorrera na privatização e na formação do consórcio que controlaria a Telemar, por trás da compra da BrT pela Oi, mais uma vez, esteve o Palácio do Planalto. Parte dos detalhes “pouco republicanos”

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então. Não se limitou a colocar governo, bancos estatais e fundos de pensão a serviço de um negócio priExiste o grupo de países que atropelam e o vado. A legislação em vigor à época dos que são atropelados. O Brasil precisa vedava a compra de uma tele operadora de telefonia fixa por outra. Por decidir em qual dos lados quer estar. decreto, Lula aprovou, dias depois de participar de um jantar em comemoração aos 60 anos da Andrade Gutierrez (maior contribuinte para sua campanha à reeleição, em 2006), um novo e con- viva, jamais poderia ser classificado como alguém trovertido Plano Geral de Outorgas elaborado pela “hostil aos negócios”. Durante o ano de 2008 ele puAnatel (a agência reguladora do setor), um decreto blicou uma série de editoriais comentando aspeccom nome e CNPJ dos favorecidos nas entrelinhas, tos que considerava injustificáveis nas negociações, pois não se aplicava às demais teles. mesmo para um especialista como ele.4 Alguns críticos avaliaram que o Brasil camiUm ponto que Glasberg questionava era a justinhava para substituir o monopólio estatal por um ficativa do negócio, ao afirmar que o “argumento de privado. As poderosas concorrentes, Telefónica e que se está criando uma grande empresa nacional, Claro, queixaram-se sem pudor de concorrência que servirá de contrapeso aos dois gigantes internadesleal. Para o presidente da Oi, Luiz Eduardo Fal- cionais que atuam no Brasil – Telefónica e Telmex/ co, o futuro seria outro. Em 29 de maio de 2008, América Móvil” –, estava assegurado apenas por ele apresentou a estratégia de internacionalização “um mero acordo de acionistas... Mas acordo de da “supertele” nacional: investimentos de R$ 30 bi- acionistas muda-se a qualquer hora... E pior, cabe lhões no exterior em cinco anos; uma base de 110 aos fundos e ao BNDES financiarem a operação e milhões de clientes (em telefonia fixa, telefonia ce- os acionistas, em uma engenharia maluca em que lular, banda larga e televisão por assinatura), dos o negócio só será bom para o BNDES se a megatele quais 30 milhões em outros países. Essa posição der certo. E quem garante?”. de “global player” daria vantagens competitivas Outra crítica apontava para a já mencionada muque chegariam aos consumidores: “Todo ganho de dança no modelo de telecomunicações. “Agora, o produtividade é repassado ao consumidor em tari- modelo está sendo montado em uma discussão fechafas menores”, disse em entrevista, segundo o jornal da, em função de interesses imediatos de sócios que Valor Econômico. E tripudiou: “Existe o grupo de querem vender suas participações, sócios que querem países que atropelam e o dos que são atropelados. ampliar suas participações, além do Opportunity.” O Brasil precisa decidir em qual dos lados quer Ele também questionava o uso de recursos públiestar”. Na ocasião, obviamente ele pretendia que, cos para resolver problemas privados com evidêncom a Oi, o Brasil estaria entre os primeiros. O que cias de que se tratava de uma fraude beneficiando o aconteceu foi algo diferente. O endividamento da fraudador. Um beneficiado era alvo de crítica direta. empresa dobrou para R$ 28 bilhões; os custos das ações judiciais que não foram pactuados aumenta“E no meio desse megaprojeto, para o qual ram ainda mais; a expansão internacional ficou no serão alocados recursos superiores a R$ 12 planejamento, enquanto o passivo de multas com a bilhões sem que se conheça ainda o plano de complacente Anatel, disparou, assim como as queinegócios, emerge uma informação que não xas administrativas e judiciais dos consumidores. provoca nenhum impacto entre os denominados formadores de opinião de nosso curioso País: o Opportunity, de Daniel Dantas, receAspectos injustificáveis berá um total de US$ 1,1 bilhão. (...) As acuOs problemas não ficavam por aí. O veterano sações que pesaram contra o Opportunity (na jornalista Rubens Glasberg, presidente da Converge Justiça do Brasil e de outros países) por frauComunicações, editora das revistas Teletime e Telade, desvio de recursos, enriquecimento ilícito,

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espionagem, corrupção serão esquecidas em troca de um acordo que viabilize uma grande empresa nacional. Os prejuízos totais, ao longo dos sete anos de administração ‘opportunista’ só na BrT eram estimados pelos fundos de pensão e pelo Citi, que defenestraram Dantas em 2005, em valores acima de US$ 1 bilhão, podendo chegar a até US$ 2 bilhões.”

que tendia a perder terreno para a celular, Tudo isso comprometeria seu futuro. O processo de digestão da BrT pela Oi apenas seria oficialmente concluído dois anos depois, em 2010, com a aprovação do negócio por órgãos de regulação como Anatel, Cade e CVM. Nessa época, como notou a jornalista Suely Caldas, “o governo capta dinheiro no mercado pagando juros de 10,75%, empresta ao BNDES, que repassa para empresas amigas cobrando 6% de juros. A diferença é bancada pelo Tesouro com receita de tributos.”5. Esses empréstimos, que se tornaram conhecidos como “Bolsa Empresário” envolviam mais recursos que o “Bolsa Família”, um dos pratos fortes do discurso governista.

As críticas de Glasberg não mudariam os rumos da negociação, mas lhe renderiam um processo, movido por Dantas, que só terminaria em 2014, com sua absolvição pelo Supremo Tribunal Federal. Um editorial era especialmente antecipador do que viria a ocorrer: questionava o acordo em função da mudança na conjuntura econômica internacional:

Rumo à “supertele luso-brasileira”

“O acordo foi fechado no dia 25 de abril deste ano quando o Ibovespa estava em 65.185 pontos. De lá para cá, houve o crash das bolsas e as empresas de capital aberto, como as operadoras de telecomunicações, tiveram suas ações negociadas no mercado por valores em média 50% abaixo daqueles praticados na época em que se fechou o acordo da BrOi, e podem cair ainda mais”.

Quanto à Oi, o desequilíbrio se tornava evidente e, como frequentemente ocorre com ciclistas, a reação instintiva foi pedalar mais rápido. Já não bastava ser a “supertele verde e amarela” o negócio era ser a “supertele luso-brasileira”, mais uma solução engendrada com a participação do Palácio do Planalto, como se verá na segunda parte deste texto, fadada à insolvência. ■

A observação tinha dois pontos importantes. A negociação estava sendo realizada por um valor superior ao de mercado no momento de sua conclusão. Apesar de uma cláusula do contrato prever uma pesada multa rescisória, poderia ser vantajoso desfazer o acordo ou renegociá-lo. O outro ponto era que a recessão que se vislumbrava reduziria as expectativas de receita da nova empresa, ainda mais que a nova empresa era dominante na telefonia fixa,

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1

Ver Editorial de O Estado de S.Paulo, coluna “Opinião”, de 22 de junho de 2016, intitulado “Lições do naufrágio da Oi”.

2

POSSEBON, Daniel. A Oi e os interesses dos controladores. Site Teletime – Convergecom. 13 de junho de 2016.

3

RODRIGUES, Fernando & LOBATO, Elvira. FHC tomou partido de consórcio no leilão das teles, revelam fitas. Site Folha Online, coluna Círculo Folha, Editoria Brasil, pp.1-5. [s/d].

4

POSSEBON, Samuel. A tragédia da Oi nos editoriais da TELETIME. Site Teletime – Convergecom. 20 de junho de 2016.

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CALDAS, Suely. O limite da irresponsabilidade. Coluna “Opinião”, editoria “Economia & Negócios” de O Estado de S.Paulo, de 25 de julho de 2010.


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nº 5 ∙ Brasília/DF ∙ 20 jul 2016

Mulheres também do Riso Bruna Campello – atriz, apresentadora do Canal Mulheres do Riso no Youtube

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a Idade Média, considerava-se que a capacidade de rir não apenas distinguia o homem dos animais, como também o afastava de Deus. Sempre imbuído de uma anarquia ímpar, o riso reflete o que não pode ser pensado, a razão não pertence a esse lugar. Como assim uma mulher vai perder a razão? No código civil de 1943 considerava-se a mulher parcialmente incapaz, assim como os índios e os loucos. Isso não tem nem um século. Segundo Michel Foucault: “Não há poder sem liberdade e sem potencial de revolta.” A luta é diária para a mulherada e, acredite, é possível utilizar humor como um veículo de transformação. Ninguém se esquece do que ri, é sensorial, é empírico. O acesso a esse esclarecimento artístico pode designar reflexões positivas e um entendimento maior do universo feminino, ampliando o diálogo com o objetivo do reconhecimento e do respeito com a mulher, influenciando até no combate à violência. As mulheres contemporâneas estão atentas às relações de poder que se estruturam nas mais diversas dinâmicas sociais. Hoje, a consciência da opressão sexista reflete nas lutas a favor dos direitos da mulher, nas relações de gênero trazendo, também, uma problematização mais ampla a respeito do mercado de trabalho. Isso também se reflete no humor. Você se permite rir de uma mulher como de um homem? Ou será que ela te precisaria provar um pouco mais que um homem? Toda piada tem um alvo e, por muito tempo, a mulher foi um deles, no lugar de espectadora, sendo a vítima e tendo como seu carrasco o humorista do gênero masculino. Hoje, ela – agora sem parênteses de gênero – sobe em um palco italiano, onde se localiza acima da plateia, ou num bar, ambiente culturalmente frequentado por

homens, pega o microfone e faz piadas para que todos riam e depositem nela um poder de propiciar momentos de felicidade, graça e reflexão. Nesse momento, uma piada pode plantar uma semente crítica e revolucionária por ela mesma. Mas diante desse panorama, se paralisarmos aquela cena, como numa foto, a crítica já existe, apenas pelo fato de uma mulher estar contando a piada, pela inversão do paradigma da história da mulher no humor e na sociedade como um todo. Era só o que me faltava... agora mulher vai querer me fazer rir também? Vai. Mesmo que os religiosos ainda digam que isso pode afastar ela de Deus, que se ela estivesse em casa ou na igreja estaria mais segura. É a repetição de um discurso da idade média, mas tenha certeza de que ela poderá te levar ao êxtase, sem que você consiga concluir a razão. Elas iluminarão seus recantos mais obscuros, tudo pelo riso. ■

Foto: Pixabay.com

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A morte em São Paulo1 Jacob Klintowitz – Crítico de Arte

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a madruga do dia 3 de julho de 2016, morreu o pintor Ivald Granato que foi meu fraterno amigo durante os últimos 49 anos. Talvez seja uma boa hora de dizer que a arte e o artista podem ser sagrados. Ivald Granato foi um artista que se impregnou e, sofregamente, sorveu o néctar da criação até o derradeiro momento. Há coisas que só podem ser expressas, se bem expressas, como nos disse Thomas Mann. Por dois motivos é justo citá-lo, primeiro porque o título deste texto é derivado da comovente novela de Mann, “A morte em Veneza”. E, o segundo, é que Granato fez cada obra e cada intervenção, a cada vez, com imenso domínio expressivo e sempre como se fosse o clímax da sua vida. Eu também pensei num outro título para este texto, um que resumisse o percurso deste artista tão inovador e nem sempre percebido na sua totalidade no seu amado Brasil. Trata-se de um epigrama do velho mestre vienense Karl Kraus:

Transformar, alterar, refazer para, ao final, ser igual a si mesmo. Transformar para refazer e obter a forma essencial, original, igual a si mesmo e desta vez, à sua própria natureza paradigmática. No seu percurso, o artista Ivald Granato teve decidida participação social, seja na organização de eventos coletivos, performances, curadoria de exposições temáticas, criação de obras gráficas. O seu processo criativo teve este intercâmbio permanente com o exterior, com outras personalidades criativas, com os assuntos culturais, com os eventos temporários, com os artistas e técnicos de suporte e parceria criativa como os mestres impressores, fotógrafos, editores de imagem. Granato se alimentou deste intercurso e, por sua vez, alimentou o circuito. Poucos artistas brasileiros foram tão dotados para esta experiência coletiva da arte para todos e como inclusão do que Ivald Granato. O poeta Guillaume Apollinaire, de tanta importância no entendimento e iluminação da arte contemporânea, o defensor do cubismo, no seu belíssimo livro “Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée”, ilustrado por Raoul Dufy, tem um poema que define bem este ser de comunicação permanente, que era também o seu próprio caso.

“Procura-se deserto apropriado para uma miragem.”

Je souhaite dans ma Maison: Une femme ayant sa raison, Um chat passant parmi les livres, Des amis em toute saison Sans lesquels je ne peux pas vivre.

Ivald Granato foi um transformador, um artista alquimista, de acordo com a lenda sobre a alquimia como transmutação da matéria, um homem que altera a natureza das coisas agindo sobre elas para encontrar a sua substância essencial e torná-las diferentes e, na verdade, torná-las idênticas a si mesmo, mas com uma aparência outra. Ele transmuta a matéria para torná-la igual a si mesmo. Sobre a capa da alteração permanente, ele refaz a herança cultural e anímica para, finalmente, após ferver infinitamente no seu athanor, a ter em si mesmo, a essência da mesma verdade, mas sob a aparência da atualidade.

Na minha tradução livre: Eu quero na minha casa: Uma mulher com a sua sabedoria, Um gato passando entre os livros, Os amigos em todos os momentos Sem os quais eu não posso viver.

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Os amigos, em todos os momentos, sem os quais eu não posso viver: Ivald Granato. Trata-se de um artista símbolo da vanguarda brasileira, um dos criadores da performance no país e atuante na criação de eventos simbólicos como a mostra paralela “Mitos Vadios”, feita de performances, obras perecíveis, discursos, instalações, declarações, cenas teatrais, em contraposição ao tema da Bienal “Mitos e Magia”.

oposição em forma de acréscimo, um comentário bem humorado ao título e brincar com as palavras. Granato é um artista que aparentou desprezo pela palavra e pelo discurso verbal e, foi comum, expressar-se de maneira onomatopeica, como se fosse personagem de história em quadrinhos. O que eu já apelidei de “idioma granatês”. E, no entanto, ele amou o jogo de palavras. Talvez, na verdade, o que incomodava o artista, fosse a palavra utilizada artificialmente, sem o seu peso etimológico, com snobismo, como uma máscara, esconderijo da superficialidade e da cultura de aparências. Ivald Granato é o aparentemente anárquico Também podemos aceitar que mestre da história da arte. E pode ser Oscar Wilde tem razão quando nos diz “Aos olhos de quem leu a Histódito dele, numa paráfrase do que Virginia ria, a desobediência é a virtude oriWoolf escreveu sobre Katherine Mansfield, ginal do homem. A desobediência que Ivald Granato é um pintor. Um pintor permitiu o progresso – a desobediência e a rebelião”. nato. Tudo o que sente, ouve ou vê não é Granato foi pintor, gravador, perfragmentado nem descartado; pertence ao formático, escultor. Como alguns conjunto de sua escritura, de sua arte. outros artistas no mundo inteiro, Ivald Granato organizou mostras de arte, promoveu atividades coletivas, intercâmbios internacionais e, à sua Aqui, em minha opinião, o artista não se con- maneira, gerou energia e reflexão no meio cultural. trapunha ao tema ou à ideia da existência da mi- Artista de natureza expressionista, a sua obra é dotologia e sua importância na estruturação da arte e tada de grande dinamismo e de um marcado desenem à convicção de que os mitos possam pertencer nho de alta intensidade. à estrutura psíquica permanente do ser humano e A aparência costuma ser a máscara que oculta o ser estruturante da sua psique. E nem mesmo ele se real. E, paradoxalmente, no oculto pode estar a reopunha à discussão da magia, tomada neste contex- velação. O que se oculta indicia a realidade. to como uma recorrência à arte totêmica e também Ivald Granato é o aparentemente anárquico mesao xamanismo. Talvez Ivald Granato também não tre da história da arte. E pode ser dito dele, numa negasse a Bienal Internacional de São Paulo. Eu acho paráfrase do que Virginia Woolf escreveu sobre Kaque Granato, mais uma vez, queria simplesmente therine Mansfield, que Ivald Granato é um pintor. chamar a atenção para o ato cotidiano da criação ar- Um pintor nato. Tudo o que sente, ouve ou vê não é tística, para a existência de um trabalho diário e no fragmentado nem descartado; pertence ao conjunto qual o talento é alicerçado no duro exercício. de sua escritura, de sua arte. Há, igualmente, a empatia de Granato com os Todo artista nato, para continuarmos com a exartistas, em geral, o seu inconformismo tribal com pressão de Virginia Woolf, tem convicção absoluta aqueles que estão marginalizados de eventos, certa- de sua linguagem, pois ela é a expressão máxima e, mes, espaços públicos, museus e do circuito da arte. talvez, a expressão total do seu ser. É uma verdade Muito de suas ações públicas têm como substrato o absoluta que nada pode mudar, independente de ser seu impulso pela integração das partes. aceita e acolhida, ou não, pelo universo social. Acredito que Granato não perderia a sua ideia, Vocação é destino. Mesmo que vocação signifia própria piada do título, “Mitos Vadios”, por nada que “chamamento”, e nada possa ser mais contundeste mundo. E, como uma constante que observei dente que a sua raiz latina, hoje nos meios de coneste artista, ele simplesmente gostou de fazer uma municação a preferência é por “talento”, mais fraco, 25


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XVIII, com um projeto gráfico derivado dos desenhos e esboços de Da Vinci. Seria uma homenagem e um diálogo com três mestres, Da Vinci, Francis Bacon e Ivald Granato. Eu já fazia pequenas anotações (partes soltas na imensidão do papel) sobre o “Baconato” à espera de uma data comemorativa qualquer para mostrar ao Granato e me beneficiar do seu permanente entusiasmo para prosseguir. É o que se segue, anotações em busca do entusiasmo que já não está mais entre nós. Refazer para, ao final, ser igual a si mesmo. Transformar para refazer e obter a forma essencial, original, igual a si mesmo e, desta vez, à sua própria natureza paradigmática. A obra de Ivald Granato o qualifica para esta experimentação de criação conjunta de linguagem. As suas características de estar filiada à história da arte e, ao mesmo tempo, ser capaz da espontaneidade, estão próximas da vivência do fazer coletivo e da sobrevivência da individualidade quando em grupo. O devorador de imagens. A manifestação da arte como sistema de permanente reciclagem das energias. Antropofagia mágica. Comer a linguagem para ter em si as virtudes do objeto e do conceito do outro. O devorador das imagens do mundo. A alteridade e o canibalismo granatino. O que Ivald Granato sempre faz não é incluir todo mundo no seu trabalho e todo o mundo no mundo da arte e a arte em todo o mundo? Ivald Granato é um devorador das imagens do mundo. E o que registra esta câmera idealizada? Ivald Granato domina as técnicas formais do desenho e da gravura. Naturalmente a sua rapidez e intensidade é mais próxima da litografia do que da gravura em metal que, em regra, exige outro tipo de meditação. A gravura em metal é feita, no mais das vezes, por artistas santos, “tibetanos”, filósofos, iluminados. O gesto explosivo de Ivald Granato registra a natureza, flores; figuras humanas, a sua constante em tantos anos; cabeças humanas; a história da arte, por apropriação e intervenções em obras de artistas como Francis Bacon, Pablo Picasso, Andy Warhol, Leonardo Da Vinci, Jasper Johns, Henri Matisse. É bastante claro que o núcleo central da obra de Granato é refazer e experimentar todas as experiências criativas da arte nos séculos XX e XXI. Pode ser dito que este é um princípio geral da arte e que ela é, do ponto de vista histórico e do ponto de

menos preciso e sem o compromisso pessoal que a vocação exige. Ivald Granato foi um artista nato, acreditou de maneira absoluta na sua linguagem que expressou a totalidade do seu ser e teve certeza de que a linguagem forma o ser. O extraordinário escritor G.B. Shaw utilizou este enigma, o da linguagem como formadora do ser, para escrever a sua peça mais famosa, Pigmalião. Nela está dito com absoluta clareza (evidentemente na clara tradução do Millôr Fernandes): “O domínio da linguagem faz mudar a vida...”. Shaw também era um artista nato. Penso que cabe uma observação: na verdade, a principal parte deste relato é feita de minhas observações sobre a atitude pessoal do artista e do seu desempenho. É a marca do meu convívio. E para continuar no mesmo ritmo epigramático, é melhor voltar a citar Oscar Wilde. A escolha deste irlandês genial deve-se, além do brilho das suas frases, ao fato de que era um escritor profundo que fingia ser frívolo. O uso das máscaras como disfarces, ocultamentos e revelações é substrato permanente neste relato. Não apenas o artista e a sua aparência, como o mundo social e as suas máscaras como verdades visíveis que levam ao equívoco. A persistente ilusão racionalista de que a arte é feita de conceitos intelectuais, mesmo que seja desmentido pela prática artística e por centenas de depoimentos de artistas de todos os gêneros, é uma máscara amortecedora e discriminatória. Vejo a ação de Granato como um gesto de solidariedade. Cabe ao homem da nossa época lutar por sermos mais humanos. Oscar Wilde escreveu que o “(...) mistério do amor é maior do que o mistério da morte”.

O texto que não foi entregue ou Anotações em busca de entusiasmo Algumas vezes Granato me mostrou a sua releitura da obra de Francis Bacon. Pinturas de rara qualidade, dotadas de ironia, poesia subjacente e um doce delírio no diálogo imaginário com o mestre. Certo dia combinamos que eu faria um texto para uma grande exposição do “Baconato”. E nunca mais falamos no assunto. Mas eu o tinha vivo em meu espírito. Eu imaginei mais do que o tratado entre nós: um livro de pequeno formato, mas de muitas páginas, papel couché fosco 170 g, uma família de tipos histórica, talvez Bodoni, existente desde o século 26


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vista da linguagem, uma permanente releitura. As rupturas são feitas impregnadas de história pregressa. E é sempre estimulante quando percebemos que as rupturas foram criadas passo a passo e são processos e não exatamente rompimentos. Talvez onde Granato nos diz de maneira mais franca de seu processo criativo seja na série, que, aliás, parece infinita, nunca acaba, intitulada de Baconato. Francis Bacon mais Ivald Granato. O aspecto saboroso, literariamente, é que Bacon, pelo seu lado, também é um devorador de imagens. A começar pelo seu nome, é claro, que é o mesmo nome do filósofo, cientista, e misterioso esotérico Francis Bacon, seu parente distante. Homem de saber enciclopédico, experimentalista, Francis Bacon (1561-1626) é considerado como um dos criadores da ciência moderna. Francis Bacon era um homem tão extraordinário que quando ainda não estava certa a identidade de William Shakespeare, uma forte corrente intelectual acreditou que William Shakespeare era Francis Bacon sob pseudônimo. Para o gênio literário que, segundo Harold Bloom, criou o homem moderno, só Bacon seria suficiente. E Francis Bacon (1909-1992), o mais impactante artista da segunda metade do século XX, que nos revelou, mais uma vez, o peso da matéria humana, sempre se fundamentou na história cultural. Ele, sozinho em seu ateliê, lia em voz alta os poetas, especialmente o grego Ésquilo. Os poetas são “formidáveis” disparadores da arte (estimuladores, ponto de partida para enfrentar a tela branca), nos disse Bacon. A sua pintura era mais “clínica”, do que “Macbeth”, de Shakespeare, afirmou.

Pois bem, além de tudo isto, já por si só um assunto que requereria longo e delicado e delicioso relato, este irlandês de gênio, refez a pintura a partir da pintura de Diego Velázquez, especialmente o “Papa Inocêncio X”. É de Francis Bacon, em livro-entrevista de Franck Maubert, as seguintes afirmações, colhidas quase ao acaso: “...Mas, Velázquez...” “Velázquez ainda assim é diferente. A grande arte acrescenta à vida.” “Sou obcecado por Velázquez.” “Velázquez é o ponto de partida. E, depois, em seguida, deixo-me guiar pelo acaso. Velázquez me serviu e resserviu...” Francis Bacon como um devorador de imagens e um vulcão criativo de imagens. Lava ardente. Bacon como transformador. Alquimista. “Baconato” é um disparador de texto. Acho que dá para escrever um “Jaconato”. 1 Texto originalmente publicado na coluna de Jacob Klintowitz no site Chumbo Gordo e repetido aqui com alterações.

Foto: Coluna de Jacob Klintowitz no site http://www.chumbogordo.com.br/

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Os tempos e a política Murillo de Aragão – Cientista Político

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ivemos uma soma de átimos ou um presente expandido? É um dilema antigo. O presente de Kairos e o presente de Chronos. Quando me falta tempo, acredito no presente denso, profundo e expandido de Chronos. Rezo a ele pedindo que estique meu tempo… Que faça o tempo do outro passar devagar o suficiente para que o meu se encaixe no compromisso pendente. Não que eu tenha dificuldades de lidar com o tempo. Além do mais, considero, como Oscar Wilde, que a pontualidade nos rouba tempo da vida. Quando acontece algo de extraordinário, como o silvo do raio antes da explosão, vejo o presente de Kairos mudando o curso dos acontecimentos. Kairos é o tempo de Deus. Chronos é o tempo medido, cronometrado. Aquele telefonema com a boa ou má notícia. O telegrama (será que ainda existe?) que chega em destino longínquo. Em um átimo, tudo muda. Tal reflexão é apropriada no final do ano, quando, entre outras tolices, estivemos esperando que o mundo se acabasse em um átimo. Acontece, porém, que o mundo se acaba em um presente expandido, uma espécie de demolição diária de nossos recursos naturais. Uma soma de nossos vícios diários que vão solapando no doce silêncio de nossa complacência. Será implacável o rumo de nossa decadência? Uns dizem que sim. Outros dizem que não. O que pode nos salvar? A política. Não é uma resposta fácil, por tudo que ela significa e, principalmente, não significa. A política tem sido o curso sagrado de nossa perdição. Sagrado no sentido de que guardamos respeitável distância dos acontecimentos de nossa política. Como se não quiséssemos nos imiscuir naquilo sórdido que é a política. Porém, ela – a política – segue inexorável, controlando nosso presente expandido. Manipulando os cordéis do tempo. Imperando com seus interesses. Condimentando a realidade com pitadas de satisfação para o povo.

O que fazer? A realidade é que estamos condenados a ser administrados por aqueles que gostam da política. Deles teremos três opções: o suborno com regalos individuais de clientelismo barato; o bem comum; ou ambos. Tudo junto e misturado. Pior, o discurso político será feito em nome do bem comum para encobrir a farta distribuição de privilégios e isenções. Nada demais no atual estágio da humanidade. Olhando o tempo de Chronos, o tempo medido, vemos que o jogo está somente começando. Ainda estamos na pré-história da política. Vejamos: o Cristianismo se consolidou como religião apenas 400 anos depois de Cristo. O Parlamento, tal qual o conhecemos, é uma invenção recente. Tem pouco menos de 400 anos. A maioria esmagadora dos habitantes da Terra ainda vive tempos de autoritarismo, corrupção, manipulação, falta de liberdade. Este, infelizmente, é o presente expandido de Chronos, que continua a prevalecer. Em que pese o tom sombrio deste texto, não considero inelutável o rumo de nossa decadência. Au contraire. Penso que estamos avançando. Como dizia Lulu Santos, com passos de formiga e sem vontade. Fatos novos podem acelerar ou atrasar o processo. Equívocos podem acontecer. Pessoas erradas podem estar nos lugares certos. Pessoas certas, nos lugares errados. O erro e o equívoco fazem parte do aprendizado. Mas também poderemos ter pessoas certas nas instituições certas. Também teremos pessoas certas aperfeiçoando instituições erradas. Está tudo em aberto. Tudo depende de nós, que estamos nadando nos vários tempos que se apresentam. No limite, tudo depende de nós, o indivíduo. Somos nós, os indivíduos, os portadores do tempo de Deus, o Kairos, que pode mudar tudo em um instante. ■

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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão

Capítulo 5 cava insuportável, então, na entrada da noite, quando a chuva dava uma folga eu enganchava minha rede para os lados das cabanas dos índios, mais pra dentro da floresta, e de lá ficava olhando as folhas do guapuruvu, que se misturavam com as estrelas recém-chegadas. O Gaúcho, não satisfeito em me acordar com o barulho da cavalhada colorida, continuava perguntando pela décima vez a mesma coisa: — E tu, tchê, por que viestes parar aqui, neste fim de mundo? — Aqui aonde? Respondi desorientado, sonhando acordado com cavalos pastando em montanhas, tipo Lorca. — No Oiapoque, ora! — Ah, foi por causa do meu QI excessivamente alto, repliquei galhofando. Estava farto de repetir para o Gaúcho que não queria remoer o passado recente. — Estás brincando comigo tchê, ninguém vai preso por causa de QI alto, talvez o inverso possa dar cadeia, mas enfim, com estes milicos qualquer coisa pode dar prisão. Pensando bem, se viestes parar neste fim de mundo não deve ter sido pelo teu QI. O Gaúcho tinha razão, mas que no começo foi o QI foi, disso me lembro bem: — Você vai pra Clevelândia, no Oiapoque, na Fronteira, não posso dizer mais nada, falou-me baixinho meu amigo Norberto com as

Fronteira O Gaúcho sempre acordava cedo. O sol nem tinha nascido direito e lá vinha ele tangendo a cavalhada colorida, ainda bem, melhor que a corneta tocando alvorada que me acordou ontem. “Alazão, estrelado, prateado, frontino, tordilho, mascarado, manalvo, pinhão, pedrês, façalvo, baio, douradilho... tu sabes que existem mais de cinquenta cores de cavalos?” A voz de cana rachada me despertou do cochilo que tirava no meu lugar preferido, debaixo do ipê amarelo, próximo ao começo da mata, na beira de um riachinho de águas turvas. A maioria dos presos, depois que pegaram intimidade com o lugar, fizeram uma votação (faziam votação pra tudo) e preferiam chamá-lo de Igarapé do Lacerda, a latrina do quartel jogava nele o material em que se transformava a enorme quantidade de macaxeira que comíamos diariamente. De manhã, café com macaxeira, almoço: macaxeira em pó, feijão e linguiça, jantar: macaxeira frita. Nesta época, nem podíamos imaginar que Lacerda se juntaria a Jango e JK, formando uma maçaroca só, deglutida rapidamente pelos milicos. Bastava uma chuva forte e nem parecia aquele fiozinho de água que se via na estiagem, crescia, ficava bravo, arrastava os cacarecos dos caboclos e inundava toda a redondeza, a fedentina fi-

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duas mãos em concha tentando amplificar o som na minha direção. — O quê? Não entendi.
— OI-A-PO-QUE, repetiu, quase sem som.
 Utilizava a escrita labial, falando do corredor para dentro do cubículo gradeado, cujos únicos móveis eram uma cama de madeira lisa sem colchão e uma mezinha com uma Bíblia que nunca abri, menos por interesse do que por rancor, embora não fosse o tipo de literatura que gostasse, exigia imaginação demais, sem falar que poesia em excesso amolece a gente. Balancei a cabeça discretamente agradecendo a informação, mas sem entender por que tão longe. Estes caras são mesmo paranoicos. Melhor, somos todos paranoicos, pensei. Cheios de segredos desnecessários, empurraram-me para dentro da escuridão da madrugada, quando percebi já estava encolhido numa caminhonete parecida com uma ambulância, daí me descarregaram, como se fosse um pacote, no Aeroporto Militar de Brasília. Caí aos pés de um sujeito com cara de bobo e botas de cavalariano, olhei pra cima e pensei: só pode ser gaúcho, e era, mas era também um sujeito surpreendente. O barracão de madeira caiada estava cheio de gente jovem, o único velho era um sujeito de óculos de lentes grossas com cara de bobo e botas de cavalariano. A guarda era a de sempre, os “catarinas” grandalhões, olhos azuis inocentes e disciplina cega, herdada dos migrantes alemães, comandados por um oficial magrelo de óculos ray-ban e dois sargentos. Um deles, o moreno baixo de bigodão eu conhecia da W3, do Mocambo, da porta do Cine Cultura e das “Casas”, que frequentávamos diariamente. O outro era bem novo e ria muito, não sei de que o babaca ria

tanto, aquilo era tão perigoso pra nós quanto pra eles, afinal íamos para os ares num avião destrambelhado, cheio de presos, e muitos deles, como era meu caso, não tinham muita coisa a perder. Os caras da Aeronáutica, como sempre, desligados, viviam nos ares, caladões, e quando falavam era quase em código, influência da conversação que costumavam manter entre pilotos e torres de controle. Para eles era como carregar uma carga qualquer, só se interessavam pelo peso total. Da minha parte não precisavam se preocupar, era magro, e a sacola magérrima, quando me trancafiaram tinha uns oitenta quilos o que parecia razoável para meus um metro e oitenta, emagreci muito nos últimos meses. Braços e pernas afinaram. A cor também mudara, fiquei claro, quase branco, só não perdi o rosado do rosto. O sujeito mais velho, com cara de bobo e botas de cano alto, carregava uma mala bem maior que as demais, muito parecida com as que a classe média leva pra Miami hoje em dia. A do Gaúcho também ia lotada. De quê? Não fazia a menor ideia. Sentamos lado a lado no avião, a mala do cara ia no chão, roçando o tempo todo na minha canela, de vez em quando, conforme as manobras do avião, apoiava-se na minha perna, eu então dava um chega pra lá nela e fazia um muxoxo, ignorado solenemente pelo sujeito de botas de cavalariano. Fiquei imaginando como um sujeito velho daquele (devia ter uns quarenta, mas pra quem tem vinte e três, ter quarenta era a velhice) carregava uma mala tão pesada. Hoje entendo, quanto mais o tempo vai passando, mais coisas se tem pra carregar. Pensei em perguntar-lhe o que tinha na mala para ficar tão pesada, mas não se podia conversar, então deixei pra lá. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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