O Manto Diáfano nº 6 - 30 de julho de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 6 ∙ Brasília/DF ∙ 30 jul 2016

Michelle salvou a festa Urbanismo claudicante de Brasília Oprimido e opressor no humor

CRÔNICAS DE ESTADO


4 Michelle Obama salvou a festa!

6 O que Weber tem a ver com a “Escola sem Partido”?

Revista eletrônica Nº 6 ∙ 30 jul 2016 ∙ Brasília/DF

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VERBENA EDITORA

Cristianismo e alinhamentos étnicos

CONSELHO EDITORIAL: Ronaldo Conde Aguiar Henrique Carlos de Oliveira de Castro Arnaldo Barbosa Brandão

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COLABORADORES Lia Zanotta Machado Renan Springer de Freitas Carlos Ugo Santander Claudio Naranjo Rodrigo Augusto Lima de Medeiros Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Bruna Campello Jorge Francisconi EDITORES Benício Schmidt Fabiano Cardoso Arno Vogel Walter Mota DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

Paradigma e Paradoxo na Esplanada e Arredores

10 As eleições no Peru

14 A “teoria de Nasrudín da neurose”

19 Crônica de um Estado nanico: lição de cidadania ou lição de realidade?

21 O Nono Mandamento

23 Opressor e Oprimido no Humor

24 Encaixotando Brasília


EDITORIAL E

m tempos de mudança é preciso não ter pressa para não errar na medida e nem ser tão vagaroso a ponto de perder o bonde. Por isso o ponto certo é difícil de se acertar. Michelle Obama acertou. Enquanto todos se preocupam com a ascensão de Trump e o que isso pode causar em nível mundial, Michelle Obama vem com um discurso estupendo e defende a candidatura de Hillay Clinton. E isto dias depois da suspeita de plágio por Melania Trump de discurso proferido por Michelle há alguns anos.

No vizinho sul-americano, Peru, Pedro Pablo Kuczynski, rebatizado de PPK, teve que se reinventar politicamente para poder vencer uma adversária que, como maior trunfo, tem no currículo ser filha do ex-presidente Alberto Fujimori. Mesmo ele sendo, na teoria, uns dos mais bem preparados para se tornar presidente. Enquanto isso, no Brasil, a poucos dias dos Jogos Olímpicos, ainda nos surpreendemos com a ineficácia de nosso Estado. Uma ineficácia que, na raiz, vem do pressuposto que o Estado, na figura de um servidor, por exemplo, acha que está a fazer um favor à população. Ou em que estamos a ver a possibilidade real de retrocesso incalculável na Educação com o Projeto Escola sem Partido e do esfacelamento laico do Estado. Inclusive em matéria humorística estamos saindo dos eixos. Há um bom tempo temos visto matérias sobre erros cometidos por humoristas em piadas que nada têm de engraçadas. Este assunto segue vivo em recente caso viralizado nas redes sociais. É preciso discutir temas espinhosos com calma e reflexão, mas, novamente, como nos filmes de suspense, ação ou terror, não correr apressadamente a ponto de se perder ou tropeçar, nem caminhar tranquilamente a ponto de ser pego pelo vilão. Esperamos que com mais este Manto Diáfano possamos contribuir para achar o meio termo entre a corrida e a caminhada. Boa leitura!

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Michelle Obama salvou a festa! Benício Schmidt – Cientista Político e Editor

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a convenção do Partido Democrata dos EUA, em 25 de A política é um teatro em movimento. julho de 2016, na Filadélfia, Michelle Obama salvou a festa. Com o país dilaRepresentações de projetos de poder necessitam de cerado pelo recrudescimento do racisemoção contagiante, antes de qualquer coisa. A mo e da violência letal, com a ameaça operação real e objetiva do poder necessita de outros do destrambelhado Donald Trump, incapaz de passar por um teste psicocomponentes: capacidade de fazer alianças, escolher técnico básico, Madame Obama pega as mínimas prioridades que não podem ser perdidas um fio de cabelo fino e sutil do discurou abandonadas, habilidade em manter a opinião so liberal (“the children and the future”) e salva o que pode da festiva, mas algo pública interessada e participante. modorrenta reunião, onde tudo já está decidido, como sempre convém ao sistema partidário oligárquico norte-americano, com maestria e sem pestanejar, sem se Nesse passo inaugural, para encaminhar a candiemocionar, além do publicamente aceitável. datura de Hillary Clinton, Michelle Obama fez um Em compensação, postes vergaram, bandeiras discurso belo e manteve a contundência necessária, ficaram paralisadas no ar, a plateia multiétnica sem mencionar adversários políticos nem racistas não resistiu às lágrimas e à invocação “dos escravos renitentes e defensores de políticas regressivas e deque construíram The White House, onde habitamos satualizadas em uma etapa histórica marcada pela com duas filhas negras” fechou com glória e altivez lógica da emancipação individual e coletiva porque um discurso possível e sedutor. Como na primei- é culta, informada e isso lhe dá segurança. ra posse e com um inacreditável discurso, Barack Carrega consigo a disciplina que uma boa univerObama fez o coração americano balançar e reno- sidade fornece e forja (Harvard University, Direito, var as esperanças de uma nação em pleno desenro- 1985-88); além da longa militância sobre os direitos lar do crash financeiro. civis e sociais de populações pobres e sofrendo os A política é um teatro em movimento. Represen- déficits de bem-estar conhecidos. Não precisa gritações de projetos de poder necessitam de emoção tar, não precisa invocar o senso comum de sempre contagiante, antes de qualquer coisa. A operação da política. Não necessita ser repetitiva, não precisa real e objetiva do poder necessita de outros com- imitar personagens como Richard Nixon que, a cada ponentes: capacidade de fazer alianças, escolher as frase, precisava repetir “(…) let me make something mínimas prioridades que não podem ser perdidas clear”. Seu repertório está ancorado e procede de ou abandonadas, habilidade em manter a opinião uma cultura política Liberal, onde o conceito de pública interessada e participante. Aí, o eleito ne- dedicação ao serviço público assume ares de dedicessita não somente de seus dotes e princípios, mas cação moral e religiosa. O público não se confunde dos outros, dos pares que comandam o sistema re- com o privado; mas vale fazer a aproximação, quanpresentativo, dos choques dos grupos de interesse do menciona, por exemplo, a experiência de suas e dos movimentos sociais em permanente atuação. duas jovens filhas, como a filha dos Clinton, vivendo Nada mais complexo, nada mais desafiador. a adolescência na Casa Branca. ▶ 4


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Amparada pelos princípios liberais, tanto os clássicos como os elaborados por ícones como John Rawls que, em A Theory of Justice (1971), focalizou a justiça distributiva e tentou reconciliar as demandas competitivas dos valores de liberdade e igualdade. Seu intento foi mostrar que as noções de liberdade e igualdade podiam ser integradas em uma nova unidade chamada justiça imparcial, onde o conflito é ilusório, em uma ordem civil democrática. Para isso, o que deve prevalecer como valor social é a oportunidade. Aí está a janela oferecida pela educação, no âmbito de uma sociedade de classes diferenciadas, como nos Estados Unidos.

são e as discriminações letais. Mas tem o dever de acenar com os caminhos à disposição para arranjos criativos e que mantenham a coesão social da nação como criação do espírito, mais do que as imposições geográficas. Daí a importância de aproveitar-se do significado das batalhas enfrentadas por quem está sendo apoiada (Hillary Clinton): a defesa da educação como oportunidade, a defesa de mecanismos de proteção e incentivo à capacidade dos jovens, a defesa de um sistema de saúde infantil de qualidade. O discurso foi, também, um ato de reconciliação pública com a candidata Clinton. Michelle destaca a resistência de Hillary, derrotada em convenção anterior por Barack, sua tenacidade como Secretária de Estado e Senadora. Não fez as malas O discurso foi, também, um ato de reconciliação e abandonou o campo de batalha. pública com a candidata Clinton. Michelle Sua carreira pode ser um exemplo destaca a resistência de Hillary, derrotada em para as próprias filhas, que terão em Hillary a primeira mulher presidenconvenção anterior por Barack, sua tenacidade te dos Estados Unidos. como Secretária de Estado e Senadora. Não fez as Como alusão a situações sememalas e abandonou o campo de batalha. lhantes e possíveis, destaque-se a importância de poder mencionar as filhas, a importância de viver na Casa Branca e as consequências disso para Claro, por isso mesmo, Michelle Obama e sua base suas formações e identidades. Como é importante e ideológica admitem os desvios e perversões, pois a crucial destacar a educação como processo de unidoutrina presume lógicas de sentido finalístico, mas versalização à ascensão social, desde a Sunday School, assume a possibilidade humana do erro, do “pecado”, de longa tradição, em um país conflagrado e cada vez do crime. “The Human Condition, after all”. mais concentrado em sua riqueza e poder. São símMas é um discurso possível apenas no âmbito bolos de um liberalismo que está a ser fortemente indessa Cultura Política. Façam o teste e me digam: fluenciado pelas polêmicas sobre os fundamentos da em qual outro leito poderia repousar essa peroração sociedade norte-americana, como bem sublinhou a invocadora da vontade para votar em alguém, em campanha e o surpreendente efeito das análises e banum programa e contra um desvairado? deiras do independente Senador Bernie Sanders, nesA primeira reação, especialmente da esquerda ta longa campanha eleitoral, próxima ao desenlace. intelectual, brasileira e internacional, não deixa de Na América Latina, depois dos vazios lacunares ser surpreendente. Michelle estaria confirmando a em discursos de Tancredo Neves e Ulysses Guimaconcepção de “Dinastias Presidenciais”; pois depois rães, para não mencionar os Populistas Acumuladode Bush vem outro Bush, depois de Clinton vem ou- res e Novos Oligarcas, nos restam poucos recursos tra Clinton, depois de Barack, quem sabe Michele, temáticos para empolgar a opinião pública, a não outro ser Obama?! ser pelo ódio e por comportamentos sinistros e Raciocínio simplista e simplificador, apesar das nauseabundos, escatológicos e desesperados; além, aparentes sagacidades. Mesmo que isso venha a claro, de reservar aos filhos dos políticos à sucessão ocorrer, não se pode desprezar o conteúdo e a arqui- das Capitanias Político-Territoriais ou o manto que tetura do discurso de Michelle. Um sucesso sobre o encobre suas posteriores e secretas “atividades emfio da navalha... E que navalha! presariais”. Muito bem sucedidas, aliás! A defesa de valores pétreos da ordem social e poAve, Michelle! Ou, repetindo Barack: “Incredible lítica não despreza os conflitos, a violência, a exclu- speech by an incredible woman”. ■ 5


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O que Weber tem a ver com a “Escola sem Partido”? Lia Zanotta Machado – Antropóloga

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movimento escola sem partido é indutor de dois Projetos Leram pouco Weber. E inverteram seu de Lei em tramitação. O intento político é alterar a Lei de Diretrizes e Bapensamento. Se é verdade que Weber foi crítico ses da Educação: um na Câmara dos de professores universitários que se baseavam Deputados Federais (PL 867 de 2015) somente nas convicções e não no conhecimento e outro no Senado (PLS 193 de 2016). O teor é o mesmo. Proíbe no sistema disciplinar, o foi também quanto a professores educacional escolar a “educação mosalvadores religiosos proféticos. ral” que não esteja “de acordo com as convicções dos pais dos alunos” e, em decorrência, proíbe a referência à “teoria ou ideologia de gênero”, a “imiscuição na Leram pouco Weber. E inverteram seu pensaopção sexual” e a “promoção de convicções políticas mento. Se é verdade que Weber foi crítico de prodo professor”. fessores universitários que se baseavam somente Na justificativa do projeto, o Movimento Escola nas convicções e não no conhecimento disciplinar, sem Partido, entende que “a moral é em regra insepa- o foi também quanto a professores salvadores rerável da religião”; e que, desse modo, um “estado que ligiosos proféticos. Weber foi o pensador alemão se define como laico” (...) “ não pode usar o sistema que, em sua época, tanto nomeou o “desencantade ensino para promover uma determinada morali- mento do mundo” a partir do crescimento do pendade”. Entendem que, como “cabe aos pais decidir o samento da ciência e da racionalidade como do que seus filhos devem aprender em matéria de mo- declínio das religiões. ral”, “nem o governo, nem a escola, nem os professoA quem não é capaz de virilmente suportar res têm o direito de usar a sala de aula para tratar de esse destino de nossa época (desencantamenconteúdos morais que não tenham sido previamente to do mundo), só cabe dar o conselho seguinaprovados pelos pais dos alunos”. te: volta em silêncio (...) aos braços abertos Curioso que a apresentação do site da Escola sem (...) das velhas igrejas. (...) De uma ou outra Partido faça uso da figura de Weber (1864/1920). maneira, quem retorna será inevitavelmente compelido a fazer o “sacrifício do intelecto”. Em uma sala de aula, a palavra é do professor, (...) Aprendamos a lição! Nada se fez até agora e os estudantes estão condenados ao silêncio. com base apenas no fervor e na espera (…). (...) É imperdoável a um professor valer-se (WEBER, 1967:50-52). dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, Foi ele quem afirmou e defendeu a articulação em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, profunda entre conhecimento científico e moralidaatravés da transmissão de conhecimento e de de. E negou o aprisionamento da moralidade à reliexperiência cientifica. (WEBER, 1967:39-40). gião. Afirmou em ciência como vocação: 6


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Os cientistas podem e devem mostrar que tal ou qual posição adotada deriva, logicamente, e com toda a certeza, quanto ao último significado de tal ou qual visão última e básica do mundo. (...) Dessa forma, o cientista pode esclarecer que determinada posição deriva de uma concepção e não de outra concepção. (...) Se estivermos, portanto, enquanto cientistas, à altura da tarefa que nos incumbe (o que evidentemente é preciso aqui pressupor) poderemos compelir uma pessoa a dar-se conta do sentido último de seus próprios atos ou, quando menos, ajudá-la em tal sentido. Parece-me que esse resultado não é desprezível, mesmo no que diz respeito à vida pessoal. Se um professor alcança esse resultado, inclino-me a dizer que ele se põe a serviço de potências “morais”, ou seja, a serviço do dever de levar a brotarem, nas almas alheias, a clareza e o sentido de responsabilidade. (WEBER, 1967: 46). Longe estamos das alegações do Movimento Escola sem Partido, que a educação moral deve estar interditada e que a educação escolar deve se restringir a “instrução de habilidades” (devemos nos perguntar o que seria?), que a ciência nada tem a ver com o ensino da responsabilidade individual e que a educação sexual somente deve ser feita pela família. A gravidade das proibições da educação sexual e moral (e da colocação em suspeição do ensino da política) levariam o sistema escolar, ao contrário do que diz o Movimento Escola sem Partido, a uma imposição moral única, isto é, a uma partidarização única: aquela em torno dos valores de longa duração de uma tradição familiar brasileira, ora já modificada pelo reconhecimento dos direitos sociais. Essa tradição inscrita nos antigos códigos civis e penais restringiu os direitos das mulheres, da diversidade sexual, da pluralidade de valores políticos e do enfrentamento a todas às formas de discriminação, tal como proposto pela Constituição de 1988. O Senado convida a votar contra ou a favor do PLS com uma enquete em sua página da internet.

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

Meu voto é contra. Referência Bibliográfica

WEBER, Max. Ciência e Política. Duas Vocações, Cultrix, 1967.

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www.pequi.org.br


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Cristianismo e alinhamentos étnicos Renan Springer de Freitas – Cientista Político – UFMG

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crença de que o Cristianismo foi a religião (como, aliás, ele próprio o era, ou supunha ser) poque tornou diferenças étnicas irrelevantes deria herdar a fé redentora de Cristo. Isso trazia um ao substituir, por meio do trabalho missionário do problema: quem não era judeu não era descendente apóstolo Paulo, os “laços de sangue” valorizados pelo de Abraão. Como tornar a fé acessível a esse gentio, Judaísmo por uma fraternidade universal baseada ou não-descendente? A resposta era: por intermédio na “fé em Cristo” se manteve inabalada no interior do batismo. O batismo fazia de um gentio um desdo pensamento cristão até muito recentemente. Uma boa síntese dessa crença está na afirmação do teólogo protestante Albert Ritschl, Na medida em que os cristãos são, eles em 1875, de que “o reino de Deus próprios, o resultado de um alinhamento consiste daqueles que acreditam em Cristo, na medida em que traétnico estabelecido pela oferta de um ancestral tam uns aos outros com amor, sem comum para aqueles que ainda não dispunham considerar diferenças de sexo, pode um, não é de todo surpreendente que o sição social, ou raça, criando, dessa forma, uma comunhão baseada na Cristianismo tenha, ele próprio, nas mais atitude moral (...)”1 variadas circunstâncias históricas, estabelecido Ninguém em nossos dias conalinhamentos étnicos conectando a fé ao funde “irmão de sangue” com “irmão de fé”. Damos como certo que sangue de uma forma como nenhuma outra “sangue” é algo que se herda e “fé” é religião mundial o fez. algo que se adquire. Entretanto, por mais óbvia que se nos afigure, a distinção entre “herdar” e “adquirir” não fazia muito sentido no mundo mediterrâneo do cendente (espiritual) de Abraão, assegurando-lhe, apóstolo Paulo. Nesse mundo a fé não era, como mo- com isso, o direito à herança do patriarca, outrora dernamente tendemos a pensar, uma crença abstrata restrito aos descendentes carnais. Pelo batismo se a ser internalizada, ou uma disposição mental a ser estabelecia, então, uma nova linhagem; uma nova adquirida, mas um traço de caráter que se herda de “raça abraâmica” ao lado da já então existente. A algum ancestral. No mundo de Paulo se acreditava já existente, isto é, os judeus, era constituída pelos que os traços de caráter eram atributos hereditários. descendentes carnais; a que veio a existir, isto é, os Herda-se do pai a honestidade ou a desonestidade, cristãos, era constituída pelos descendentes “espirido mesmo modo que se herda o nariz grande ou pe- tuais”. O fato de agora não estarmos mais diante de queno, ou uma casa ou um jumento. Um raciocínio descendentes carnais, mas, apenas, “espirituais”, não semelhante valia para a fé. A única diferença é que, altera o fato de permanecermos diante de uma raça, no caso da fé, havia um ancestral particularmente uma nova raça, a “raça cristã”, porque, no mundo de talhado para legá-la: o patriarca Abraão. Para Pau- Paulo, a “carne” e o “espírito” não eram vistos como lo, somente um verdadeiro descendente de Abraão antitéticos. O próprio “espírito” (o pneuma) era visto 8


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como uma entidade material.2 Por mais paradoxal que pareça, ele fazia parte do corpo. Um herdeiro “espiritual” era, também, nesse sentido, um herdeiro de sangue e tinha, por essa razão, os mesmos direitos que um herdeiro carnal. Na medida em que os cristãos são, eles próprios, o resultado de um alinhamento étnico estabelecido pela oferta de um ancestral comum para aqueles que ainda não dispunham de um, não é de todo surpreendente que o Cristianismo tenha, ele próprio, nas mais variadas circunstâncias históricas, estabelecido alinhamentos étnicos conectando a fé ao sangue de uma forma como nenhuma outra religião mundial o fez. Com efeito, foi o Cristianismo católico que estabeleceu, pela primeira vez, alinhamentos étnicos na Espanha medieval. Como ensina o historiador Leon Poliakov. Depois que os visigodos invadiram a Espanha, o Arcebispo Isidoro de Sevilha se encarregou de emparentar os iberos invadidos e os visigodos invasores. Ele o fez tornando os iberos descendentes de Tubal e os visigodos descendentes de Magog, ambos filhos de Jafé. Nosso bom arcebispo não deixava de conceder a superioridade à raça dos visigodos, mas, por meio dos “laços de sangue” agora estabelecidos, os conquistados puderam ser promovidos à dignidade de seus “primos”.3 De forma semelhante, foi com a Reforma Protestante que se ofereceu aos alemães, pela primeira vez, um ancestral bíblico comum: Asquenaz, filho de Gômer, filho de Jafé, filho de Noé.4 E, justamente na França racionalista do séc. XVII, na qual as “genealogias circunstanciadas” eram uma coisa do passado, “a nação e a humanidade se encontravam dissociadas”, e os teólogos e filósofos contentavam-se em “saudar com uma barretada, de passagem, Jafé, o antepassado comum da Europa”5. Havia ainda congregações católicas que conservavam o interesse por genealogias bíblicas,

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pois era por meio delas que julgavam ser possível mostrar aos franceses seu “verdadeiro berço”. Assim, por volta do ano de 1700, o beneditino bretão Dom Pezron recorreu aos capítulos IX e X do Gênesis e aos escritos dos Padres da Igreja e de Flávio Josefo para mostrar aos franceses que eles eram, na verdade, gauleses, uma vez que descendiam todos de Gômer, filho de Jafé.6 Na verdade, o fato de o Cristianismo ter promovido alinhamentos étnicos, e conferido a genealogias bíblicas uma assombrosa relevância social (a ponto de exumar corpos de conversos para queimá-los)7, só é surpreendente na medida em que se pressupõe que o trabalho missionário do apóstolo Paulo tinha por objetivo abolir barreiras étnicas e imprimir no Cristianismo a marca indelével do universalismo. Se o Cristianismo pode mesmo, em nossos dias, ostentar essa marca, isso nada tem a ver com o trabalho missionário de Paulo. Curiosamente, enquanto os próprios teólogos cristãos têm crescentemente rejeitado a ideia de que as missões Paulinas pretendiam tornar diferenças étnicas irrelevantes, muitos sociólogos respeitáveis continuam subscrevendo essa ideia teológica de forma acrítica, na esteira do pensamento seminal de Max Weber. ■ 1 A. Ritschl, Instruction in the Christian Religion (1875). 2

Veja-se Caroline J. Hodge, If son, then heirs. A study of kinship and ethnicity in the letters of Paul, Nova York: Oxford University Press, 2007, pp. 74-76.

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L. Poliakov, O Mito Ariano, São Paulo: Perspectiva [1971], 1974, p. 68.

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Esta genealogia está em Gênesis 10:1-3.

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L. Poliakov, op. cit., p. 15.

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Idem. ibid.

7 Cabe registrar que, em 1448, antes mesmo da implementação dos chamados “estatutos da pureza de sangue”, nos três autos-de-fé ocorridos em Toledo, mais de cem corpos de conversos foram exumados e queimados. Em um único dia, em 25 de Maio de 1490, foram exumados e queimados os corpos de mais de quatrocentos conversos. Veja-se J. Friedman, “Jewish Conversion, the Spanish Pure Blood Laws and Reformation: A Revisionist View of Racial and Religious Anti-Semitism”, Sixteenth Century Journal, 18(1): 3-30, 1987.


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As eleições no Peru Carlos Ugo Santander – Cientista Político – UFG

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s domínios – dizia Maquiavel – são adquiridos pelas armas próprias ou pelas alheias, pela virtude ou pela fortuna. Pedro Pablo Kuczynski (PPK) preferiu ser impetuoso a ser cauteloso, já possuía a virtude, mas na eleição de 2016 apostou pela fortuna e ganhou a eleição presidencial no Peru no segundo turno em 5 de Junho de 2016. O presidente eleito não é um desconhecido da política peruana, estudou em Oxford e Princeton. Ocupou o cargo de diretor do Banco Central de Reserva do Peru no governo militar dos anos 1970 e foi obrigado a migrar para trabalhar no Banco Mundial. Tornou-se ministro de Energia e Mineração nos anos 1980, e consta no seu curriculum que foi diretor da Toyota no Japão, presidente do First Boston Internacional e diretor de várias empresas transnacionais. Em 2000 foi ministro de Economia e Primeiro Ministro do Governo de Alejandro Toledo, entre 2001 e 2006. Em 2011, disputou pela primeira vez a Presidência do Peru. Saltou para a cena política em episódio bizarro de um evento, quando uma mulher pobre da região de Callao pegou em suas partes íntimas; momento que foi registrado pela mídia e que o colocou como candidato visível na disputa nacional. Nessa eleição ficou em terceiro lugar, perdeu por menos de um milhão de votos para Keiko Fujimori, quem, por sua vez, perdeu no segundo turno para o atual Presidente Ollanta Humala. Quando conheci PPK em 2013, me disse que rejeitou a Presidência do BID para ser candidato pela segunda vez à presidência da República. Aos 78 anos, numa viagem que fizemos para a cidade de Ayacucho, situada nas montanhas, mostrou uma disposição física notável, pouco comum entre aqueles de sua idade que realmente desejam fazer política. Em 2015, PPK apresentou um novo partido, dado que os poucos parlamentares que ele conseguiu eleger, o abandonaram. O novo partido teve a denominação com as letras do seu próprio nome: PPK, significando “Peruanos Pelo Kambio”. A estratégia procurava afirmar seu nome mas, na verdade, evi-

denciava um contexto onde os partidos geralmente se expressam apenas pelas suas lideranças e não em formatos institucionais. No Peru, a campanha eleitoral começa informalmente com quase 8 meses de antecedência ao ato eleitoral e, nesse período, as pesquisas colocavam PPK no segundo lugar, com 19%, enquanto Keiko se afirmava com quase 40%. Mesmo assim, a campanha eleitoral foi judicializada, o ex-Presidente Toledo foi notifiado por corrupção; pouco tempo depois foi a vez do ex-Presidente Alan García, acusado pelas assinaturas do indulto a vários narcotraficantes. Os dois terminaram encurralados e sem chances pela crescente rejeição da opinião pública peruana. Depois foi a vez da esposa do Presidente e Primeira Dama, Nadine Heredia, sobre suas agendas pessoais, onde apareciam apontamentos dela sobre aportes de patrocinadores não declarados na campanha eleitoral do marido, gerando uma situação tal que o Partido governista não apresentou candidato nesta eleição. Keiko Fujimori, sem controles e nem fiscalização, desenvolveu uma estratégia clientelista, posicionando-se nos segmentos mais pobres do país e apoiando-se no apelo à “eficiência”, que imprimiu o governo autoritário do pai nos anos 1990. No mês de dezembro de 2015, próximo à validação das candidaturas, César Acuña, dono de conhecidas universidades e ex-governador de La Libertad (com 7% de eleitores) ganhou uma ligeira vantagem de PPK, mas na metade de dezembro um terceiro candidato disparou nas preferências – Júlio Guzmán – que ultrapassou César Acuña e PPK de forma surpreendente. A estratégia de comunicação de PPK era basicamente um script tradicional com pouco impacto e tentava abranger os segmentos da periferia da capital com uma atuação teatral. Foi criticado por concentrar seus esforços na capital (a mesma que representa 38% do total dos eleitores). Em fevereiro, a Junta Nacional de Eleições, em um ato sem precedentes nos processos eleitorais 10


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na América Latina, afastou César Acuña e Júlio Guzmán. O primeiro, que já era questionado por questões éticas – pois o candidato plagiou sua tese doutoral –, mas terminou afastado por um ato de compra de votos; já Júlio Guzmán, por questões éticas relativas à democracia interna. O processo foi criticado mas não questionado no seu fundamento. A reacomodação de votos se fez de forma pragmática, dado que os candidatos não tinham densidade eleitoral. PPK foi beneficiado, porém um percentual de eleitores migrou para Alfredo Barnechea, vinculado a um velho partido populista, aproximando-se assim de PPK, bem como a candidata da esquerda Verónika Mendoza. Nesse contexto a única candidata assegurada para o segundo turno era Keiko Fujimori e a pergunta era, quem passaria a disputar o segundo turno com Keiko Fujimori? Finalmente, em 10 de abril de 2016, Keiko obteve 39,8%, PPK 21,01%, a candidata de esquerda Verónika Mendoza ficou próxima, com 18,7%, Barnechea, que despontou em um certo momento, teve uma queda e obteve 6,9%, o ex-Presidente García obteve 5,8 e o ex-presidente Alejandro Toledo 1,3%. No segundo turno PPK somou alguns partidos contra o fujimorismo. Na reta final a esquerda, sem qualquer negociação, apoiou abertamente o candidato liberal para que Keiko não ganhasse a eleição, seguindo o argumento de que o Narco-Estado seria uma ameaça para a democracia. O candidato afastado, César Acuña, assim como Júlio Guzmán, também se somaram na campanha contra Keiko Fujimori. A mídia era a favor de PPK, mas os indecisos, bastante numerosos, não se definiam. A estratégia de PPK teve efeito quando os intimidou com uma mensagem em clara disputa com seus próprios valores. Fez referência ao ex-presidente, Alberto Fuji-

mori, que ainda se encontra preso, com mensagens de que “filho de ladrão é também um ladrão”, ou “se não votavam por ele, estavam votando pela delinquência” ou “com uma vitória de Keiko haveria o perigo de instalar o Narco-Estado”. A campanha contra o fujimorismo não foi uma novidade, o que surpreendeu foi a falta de reflexos de Keiko Fujimori. Desse modo, um percentual importante de indecisos inclinaram-se a votar por PPK. Após uma longa disputa, PPK ganhou por 50,12% frente a 49,88% dos votos válidos. Talvez a eleição mais apertada da história dos processos eleitorais peruanos até hoje registrada. O Peru nunca elegeu alguém com tantas virtudes para governar. Alberto Fujimori derrotou o Nobel da literatura Mario Vargas Llosa, em 1990, e derrotou, em 1995, Javier Perez de Cuellar, que fora Secretário Geral das Nações Unidas. A política não necessariamente escolhe os melhores para governar. Mas desta vez houve algo de sensatez, escolher entre alguém que tinha como único mérito ser a filha de Alberto Fujimori e alguém que possui um curriculum extraordinário. A fortuna conseguiu que se combinassem finalmente estas duas situações. Agora a grande equação é a governabilidade: o Congresso no Peru é unicameral. Dos 130 parlamentares PPK elegeu apenas 19 e Keiko Fujimori 73, possuindo, portanto, a maioria. A Frente Ampla, de Verónika Mendoza, elegeu 20, mas declarou que será oposição a PPK. O partido de César Acuña elegeu 9 congressistas, o Apra, de Alan García, elegeu 5 e o partido de Barnechea também elegeu a 5 parlamentares. O fujimorismo é disciplinado e PPK precisará ir muito além de Maquiavel para conseguir levar adiante a política geral governista nos 5 anos de governo, que se iniciou em 28 de julho e que, curiosamente, é a data do aniversário de Alberto Fujimori. ■

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Paradigma e Paradoxo na Esplanada e Arredores Jorge Francisconi – Arquiteto e Urbanista

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Três Poderes integravam a escala monumental e os quadrantes a escala bucólica, para “fins de semana lacustres e campestres.” Nas décadas seguintes, o terrapleno foi ocupado por prédios do governo federal e saturou. A solução foi construir prédios no cerrado para abrigar atividades administrativas vindas do Rio de Janeiro e outras que surgiam. Mas, ainda que a urbanização avançasse de forma acelerada, o Plano Piloto permanecia sem plano regulador e sem código de urbanismo que preservassem as normas definidas por Lucio Costa. A crescente deterioração e as ameaças que pesavam sobre Brasília levaram Aloísio Magalhães a criar, em 1981, o “grupo de trabalho para preservação do patrimônio histórico e cultural de Brasília.” Com a mesma preocupação, o GDF contratou Lucio Costa para um “check-up” de seu projeto (1984). O resultado está em “Brasília 57-85 – do plano-piloto ao Plano Piloto”. Surpreso com a cidade que encontra, Lucio faz avaliações e propostas que tangenciam o futuro de seu plano original. Sobre a expansão da escala monumental nos três quadrantes, prefere citar prédios construídos, manter o paradigma de quadrantes na escala bucólica e não propor novas ocupações. Como fez para o sudoeste e noroeste. Na conclusão, Lucio aponta para a importância de que,

ucio Costa desenhou o plano-piloto antes mesmo das obras começarem (1957). Inspirado por “fabulosas fotografias da China do começo do século (aproximadamente 1904),” Lucio colocou as atividades nobres e inerentes à Capital Nacional sobre terrapleno em meio ao cerrado. Em croquis definiu paradigma que ainda é adotado pelo IPHAN e GDF: “construir no terrapleno e manter o cerrado como cerrado.” O que resultaria nos quadrantes leste, sul e norte do terrapleno serem riscados, apenas, por avenida ligando o Palácio do Planalto ao do Alvorada. O Plano Piloto da Novacap, que alterou o plano-piloto de Lucio e é o mapa oficial do Plano Piloto, adota o paradigma como fundamento urbanístico. E ainda que a urbanização tenha ultrapassado o terrapleno e avançado nos três quadrantes, a força do paradigma é tão grande que o IPHAN acaba de aprovar a Resolução 166/2016, que insiste em preservar os quadrantes como área da escala bucólica e limitar a escala monumental ao terrapleno. Lucio criou a teoria das escalas urbanas (1961) para definir a escala humana do urbanismo do plano-piloto de 1957. A teoria estabeleceu os preceitos da escala monumental, residencial, gregária e bucólica, e que a Esplanada dos Ministérios e Praça dos

Figura 1 – Croqui 1 de Lucio Costa Foto: Sem créditos. Qualquer violação de direito autoral desta imagem, por favor, nos informem para que possamos dar os créditos corretos

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“na complementação, preservação, adensamento ou expansão de Brasília,” sejam “adotados os mesmos procedimentos de sua postura original.” E recomenda: “fazer prevalecer o senso comum, fugindo das teorizações acadêmicas e protelatórias, e de improvisação irresponsável.” O “check-up” gerou produtos importantes: o decreto “Brasília Revisitada” e a inclusão de Brasília como Patrimônio Cultural Mundial pela UNESCO (1987) por conta de suas “características arquitetônicas e urbanísticas.” Nos anos seguintes, a demanda por áreas para funções da escala monumental cresceu de tal forma que a Portaria do IPHAN (1992) concedeu aos arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer permissão para propor edificações em áreas non aedificandi da escala bucólica. Neste “canetaço”, o IPHAN colocou o paradigma de Lucio na UTI – onde até hoje permanece, e criou um paradoxo. A permissão para que Lucio e Oscar projetassem o urbanismo e arquitetura em áreas bucólicas desfez o paradigma de Lucio de que o cerrado se manteria cerrado; quando permite a urbanização dos quadrantes cria o paradoxo de permitir prédios em áreas non aedificandi – onde é proibido construir. O impacto da Portaria foi imediato. O coerente Lucio Costa ficou fiel ao paradigma: não fez projeto urbanístico e o traçado viário que lá está não tem qualidade urbanística. Por outro lado, inúmeros projetos de Oscar foram aprovados para funções da escala monumental. Como os Anexos de Ministérios e Supremos Tribunais, todos contratados sem licitação e qualificados de inevitáveis por Maria Elisa Costa (1997). Hoje, a ocupação dos quadrantes está sendo consolidada, mas o projeto de Lucio Costa para combater quiosques na Esplanada é ignorado. E estou certo que Aloísio Magalhães não assinaria a Portaria

166/2016 do IPHAN se vivo estivesse. Quando presidiu o IPHAN, ou foi Diretor de Cultura do MEC, Aloísio criou o conceito e a política de Patrimônio Imaterial e defendeu que “A tarefa de Preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro, em vez de ser uma tarefa de cuidar do passado, é essencialmente uma tarefa de refletir o futuro”. A Portaria 166/2016 é exatamente o contrário do que pensava e fazia Aloísio. Todo desafio consiste em planejar o futuro de cidade-capital dinâmica, simbólica e única no cenário mundial. Em lugar disso, IPHAN e GDF ignoram a realidade presente, nada propõem para o futuro e mantêm paradigmas vencidos pela realidade. O perímetro das escalas precisa ser revisto, o urbanismo de Lucio, consolidado. A 166/2016 condena a “civitas brasileira” ao mesquinho e triste destino de jamais ser representativa da Nação Brasileira. Como é Washington, com seu Mall entre o Capitólio e o Rio Potomac; ou Paris, com o Grande Eixo da França entre o Louvre e La Défense. Cada um a retratar a história, os valores e a cultura dos EUA e da França, respectivamente. Sem planos urbanísticos que definam o futuro, a cidade continuará nas mãos de quem ousar. O bom urbanismo foi abandonado pelo IPHAN e GDF, a escala monumental e a qualidade de vida estão em decadência. A Portaria 166/2016 é algo que consolida a cidade atual e não promove o planejamento urbano e preservação de patrimônio. A Portaria 166/2016 não tem propostas concretas para consolidar a civitas nacional que Lucio Costa inventou e JK sonhava um dia ver consolidada. A Portaria 166/2016 repete normas que facilitam a ocupação desordenada do Plano Piloto, as invasões junto à Vila Planalto e os interesses pontuais, comerciais e outros menos transparentes. A 166/2016 fará a alegria dos autores do PDOT que a comunidade rejeitou há pouco tempo. ■

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A “teoria de Nasrudín da neurose”1 Claudio Naranjo

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assemos agora ao tema do vazio numa dimensão menos metafísica do que quando faPerseguimos certas coisas, pois cremos que vão lamos de meditação ou de budispreencher o vazio, e como estamos querendo mo. Refiro-me ao que às vezes se preenchê-lo com tamanho afã, com isto ou chama “vazio existencial”, isto é, à experiência do vazio. Não se trata aquilo, saímos de nós mesmos, assim como aquele desse vazio em que se vai enconque, num deserto, se desvia do roteiro correto, trar a resposta para todas as coisas, caminhando na direção de alguma miragem. essa zona indescritível da consciência, vazia quando a olhamos a partir daqui, mas que, em última análise, revelar-se-á como o coração luminoso da realidade. E, no entanto, pode-se até agora, descuidei de um assunto muito importante dizer que este vazio, mais acessível e menos miste- para a compreensão do legado sufi. E recomendorioso, é como uma zona de passagem para aquele lhes a leitura da homenagem que Gurdjieff lhe faz, vazio que as tradições espirituais identificam com no início de seu livro autobiográfico Encontros com Homens Notáveis. Ali, como também em seu nossa realidade mais profunda. Antes de convidá-los a um exame fenomenoló- volumoso livro anterior, All and Everything, referegico deste vazio, conhecido por quase todo mundo, se a este sábio e divertido mestre dos Sufis como Nasr quero discorrer sobre um tema intimamente rela- Eddin, mas prefiro usar o nome Nasrudín como o cionado com ele, e que, para entender-nos, daremos faz Idries Shah, nos três volumes dedicados às suas o nome de ilusões. Quer dizer: todas as ideias que anedotas, geralmente chistes com um significado sutil, somente inteligível para quem alcançou certa temos acerca do que vai preencher nosso vazio. Perseguimos certas coisas, pois cremos que vão profundidade na compreensão da vida. Falo da teoria de Nasrudín para atribuí-la a alpreencher o vazio, e como estamos querendo preenchê-lo com tamanho afã, com isto ou aquilo, sa- guém, já que não quis atribuí-la a mim mesmo. Mas ímos de nós mesmos, assim como aquele que, num também procede dizer que não conheço outro que deserto, se desvia do roteiro correto, caminhando a tenha formulado. Apenas evitei atribuí-la a mim na direção de alguma miragem. Em outras palavras: porque me pareceu algo que “os sábios que estiveperseguindo ilusões, afastamo-nos de nossa realida- ram no mundo” sempre souberam de forma implícita, embora não lhes tenha ocorrido falar sobre de, alienamo-nos mais do que nunca. Costumo chamar esta visão das coisas – que ago- isto. Em outras palavras: os que têm olhos para ver, ra lhes ofereço como ponto de apoio a um exame não podem deixar de estar de acordo – nem tanto introspectivo – com o nome de “Teoria de Nasrudín comigo, mas com a própria realidade – de que as da neurose”, para contrastá-la implicitamente com a coisas são assim. Às vezes topamos com alusões a esta visão das teoria de Freud. Vejo, porém, que nem todos aqui conhecem coisas, como na segunda parte de O Idiota, por exemNasrudín. Se ainda não lhes falei deste personagem plo, onde Dostoiévski escreve que, se alguém se sente 14


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insignificante, busca preencher-se com algo de fora. Mas o vazio existencial pode ser interpretado de tal Há quem não saiba onde Nasrudín busca a forma que já traz implícita alguma chave? Segundo um chiste muito famoso ele a ilusão, como ocorre praticamente procurava debaixo de um poste de luz, na praça em todos nós de maneira tácita. Lacan, por exemplo, fala muito da falta, do mercado. Um amigo começa a ajudá-lo, de constituindo esta, inclusive, em um modo que ambos passam um bom tempo de dos conceitos centrais de sua versão quatro antes que ocorra ao amigo perguntar-lhe: da psicanálise. Conhecem esta ideia? Ninguém daqui fala o lacanês? Es“Tem certeza que a perdeste aqui?”; Nasrudín tranho, porque hoje em dia fala-se responde com toda naturalidade: “Não, eu a perdi muito o lacanês em Barcelona – um em casa”. “Mas então por que estamos procurando lacanês importado da Argentina. Como Lacan queria resgatar aqui?” – perguntou o amigo – “Porque aqui tem Freud, interpretava a falta como remais luz”, responde o clown magistral. sultado da castração. Supunha que é uma falta de pênis, sendo esta intrínseca à mulher desde o nascimento – pois supunha também, Em uma linguagem menos poética e mais cientícomo Freud, que todas as mulheres sentem literalmente inveja do pênis. Creio que Freud exagerou na fica podemos dizer que o que está à mão – porque generalização, a partir de algumas observações fei- não é senão o que no fundo somos – é a experiência tas em mulheres de caráter invejoso, interessou-se de ser. Embora falar do ser seja também como falar desmesuradamente pela inveja do pênis, ao invés de do céu, uma aproximação – e a linguagem budista, compreendê-la unicamente como um aspecto da in- como comentava, sequer utiliza a palavra ‘ser’, na veja ao homem. Freud queria, naturalmente, insistir sua insistência em descartar todo e qualquer conceina sua teoria sexual da neurose, e é fácil compreen- to que se refira à realidade profunda da consciência. der que era um pouco fanático em sua mania teori- Digamos, aproximativamente, que a chave da vida e zante, por mais que fosse um gênio e uma das gran- a chave da satisfação com nossa vida é o ser. Por isso atribuo a Nasrudín minha interpretação des forças transformadoras na história do ocidente. De minha parte, creio ser muito mais aceitável fa- favorita da psicopatologia – apresentada por meio lar da castração num sentido metafórico e não literal. das reflexões sobre a psicodinâmica existencial em E me parece natural pensar que, tanto a sensação de Caráter e Neurose – Uma Visão Integradora2 pois ter sido castrado quanto a falta nascem da inibição de Nasrudín busca a chave, e já sabemos onde. Há quem não saiba onde Nasrudín busca a chanossos desejos no contexto de nossa cultura e de nossa educação. Em outros termos, algo nos falta sim- ve? Segundo um chiste muito famoso ele a procurava plesmente porque não estamos vivendo nossa vida, debaixo de um poste de luz, na praça do mercado. não estamos sendo quem verdadeiramente somos, Um amigo começa a ajudá-lo, de modo que ambos passam um bom tempo de quatro antes que ocorra nem estamos realizando nossas potencialidades. Mas convém ter em mente também outra perspec- ao amigo perguntar-lhe: “Tem certeza que a perdeste tiva a respeito de nosso sentimento carencial, aquela aqui?”; Nasrudín responde com toda naturalidade: a nos dizer que nosso esquecimento de nós mesmos “Não, eu a perdi em casa”. “Mas então por que estanão é mais que isso: uma alienação ou inconsciên- mos procurando aqui?” – perguntou o amigo – “Porcia de algo onipresente. É a perspectiva do budismo, que aqui tem mais luz”, responde o clown magistral. Estamos buscando a chave não onde a perdemos que nos recorda sermos budas sem sabê-lo; ou a do cristianismo, que nos fala do Cristo interior, desco- verdadeiramente, mas sim onde tem mais luz. Esnhecido por nós, dizendo-nos que qualquer um pode tamos buscando o ser num lugar equivocado. Nós chegar ao céu no momento da morte. O céu está at o buscamos onde nos disseram que se encontra, ou talvez onde nos movemos com mais clareza. ▶ hand, como se diz em inglês: ao alcance da mão. 15


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É um grandíssimo paradoxo da vida este de não se poder saltar a busca, e que somente depois dela ter-se esgotado pode-se saber que o buscado é a si mesmo. Não adianta nada dizer “busca dentro de ti mesmo” enquanto não se tenha esgotado a busca no país das miragens e das ilusões. Mas pode-se acelerar o percurso deste labirinto de miragens com certa compreensão que permita dar-se conta de que as ilusões são ilusões, e de que não há melhor bússola senão este ponto zero que é a experiência do vazio. No centro vazio de nós mesmos, onde buscamos infrutiferamente nosso ser, está a chave, mas, como Nasrudín, buscamos a consciência de ser em algum lugar equivocado. Existem aqueles, por exemplo, que a buscam pelo conhecimento. Esse foi o meu caso, pois na minha juventude buscava “a verdade” sem compreender a diferença abissal entre a verdade do Ser – isto é, do que por si mesmo é verdadeiro – e a verdade científica, que consiste num acordo entre proposições e fatos e se orienta para o conhecimento das coisas. Assim, em algum momento da vida eu buscava a pedra filosofal mediante a ciência, e isto me levou à escola de medicina – na suposição de que graças ao conhecimento da biologia (e de-

Mas a chave está em casa, isto é: no fundo de nós mesmos, e no fundo obscuro da consciência. E o importante é não buscá-la mal. Acaso não se disse: “Não busques fora de ti mesmo?”. Quando estou em Vitória costumo alojar-me num andar de frente para um parque onde existe um monumento que não representa nada: dele pendem apenas, presas a uma pedra sobre a base, umas correntes que não acorrentam ninguém, sugerindo que quem, alguma vez esteve acorrentado por elas conseguiu libertar-se e foi embora. E numa placa está escrito: “Busca dentro de ti mesmo”. Esta é uma mensagem onipresente e, seguramente, cada cultura tem sua versão do conto do pássaro azul que, após ser procurado pelo mundo inteiro, foi encontrado pelo herói do conto no seu próprio jardim. Recordo que, numa ocasião, ao encerrar uma oficina que realizávamos conjuntamente no México, Alejandro Jodorowsky convidou-me para concluir o encontro com algum conselho aos participantes, e minhas palavras foram: “É preciso buscar, buscar e buscar, encarniçadamente, para poder chegar a dar-se conta de que se tem de voltar para casa e encontrar o que não era necessário ser buscado”.

Foto: Guilherme Cecílio via Visual hunt CC BY-NC-SA

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pois da neurofisiologia) poderia encontrar a resposta à minha sede. Mas esta era uma sede que todos, sabendo ou não, buscamos: uma sede de ser. Se uns se equivocam na busca do ser por meio da ciência ou da filosofia, não menos se equivocam aqueles que o buscam pelo amor. É outra “ideia louca” esta de que pelo amor se vai encontrar a evidência vivencial de que se existe. Talvez não pareça tão louca, entretanto: porque nos faltou amor intuímos que nosso mal-estar presente é eco dessa frustração passada e pensamos que, encontrando o amor, encontraremos também o bálsamo que fechará nossa velha ferida. Mas não é assim. O que ocorreu na realidade é que a falta de amor original nos desconectou do ser, e receber amor não basta para que possamos encontrar o ser perdido. A falta de amor nos desconectou de nós mesmos, desviou-nos do caminho, e agora não se trata de preencher a carência amorosa nem de chorar pelo passado para que alguma alma compassiva nos dê isso que tanto nos faltou naquele então – como fazem equivocadamente os depressivos e masoquistas invejosos –, mas sim voltar a nos colocar no caminho. Se o erro do esquizoide (E5) é uma glorificação do conhecimento e o erro dos sofredores, dos sofridos e dos insofríveis (E4) é uma glorificação do amor, o erro do histriônico (E2) costuma ser o de não buscar nem esperar o ser por meio do receber amor, mas sim em dá-lo. “Tenho tanto para dar”, “Necessito que recebam o meu amor”, sente o orgulhoso, e isto acarreta também um pressuposto errôneo sobre a realidade: que nesse ato de amorosa doação vai-se encontrar a chave perdida. Para outros, é o prestígio e o êxito que lhe prometem satisfação. Algo que somente o viver da própria existência não lhes pode dar. Não buscaríamos tanto o êxito e o prestígio se a neurose consistisse simplesmente numa distorção ou numa “vicissitude dos instintos”, como dizia Freud. O certo é que buscamos o amor que nos faltou, e às vezes buscamos o aplauso, sem sequer recordar que o amor era o que em primeiro lugar queríamos conseguir. É assim que o vaidoso (E3) transforma-se num instrumento de produção. “Ama-me pelo que te ofereço” ou “Ama-me pela minha eficiência,” parece estar dizendo implicitamente. Poderíamos dar um giro completo no eneagrama dos caracteres assinalando esta ou aquela ilusão acerca do que permitirá o acesso ao ser. Mas, em vez de nos entretermos com a forma como o perfeccio-

nista pretende preencher seu vazio com atos virtuosos; ou como o luxurioso confunde sua sede de ser com apetites sensoriais e procura a satisfação destes para sentir-se vivo, confio que muito em breve a variedade das ilusões tornar-se-á aparente, quando o grupo compartilhar o resultado de seu autoexame. Creio que agora fica clara a ideia de que vivemos confundidos com relação a um tema fundamental, e que deve chegar um momento em que se descubra a confusão entre o ser e as aparências. A gente descobre a ilusão em virtude da qual crê que isto que se busca – uma sede metafísica, digamos –, pode ser encontrado em coisas tais como a eficiência, o aplauso, o cumprimento do dever ou o prazer. Nos evangelhos relata-se como Jesus oferece a uma boa mulher água para acalmar sua sede, em alusão, naturalmente, a essa outra água que promete satisfazer-nos, mas não o faz. Essa água que não aplaca nossa sede é aquela que cada qual busca em sua miragem favorita. E está claro que as necessidades neuróticas são insaciáveis. Se encontrares a glória que persegues, por exemplo, buscarás em seguida uma glória maior. Assim sucedeu a Napoleão, que foi um orgulhoso social. Ambicionou mais e mais, insaciavelmente, até a catástrofe. Mas existe uma água de outro tipo, que vai aplacar nossa sede, e não é outra senão o Ser: o contato com o fundo de nossa consciência, com a consciência básica ou fundamental que subjaz aos fenômenos mentais específicos. Quero deixá-los com a ideia de que é justamente por meio do buscar, num sentido equivocado e das crenças errôneas acerca de onde se encontrará a satisfação – seja no aplauso ou na comodidade ou no confundir-se com o outro e ser simbioticamente por meio dos demais – que se perpetua a alienação, e que se ficássemos no vazio – isto é, ali onde podemos encontrar-nos cara a cara, não com o ser, mas com sua ausência –, se não tivéssemos tanto horror ao vazio, pouco a pouco este começaria a preencher-se. Se a pessoa torna-se amiga do vazio, começa a crescer dentro dele; ou, dito de outro modo: se pudermos tolerar nossa sede de ser em vez de tentar aplacá-la, por meio dos costumeiros substitutos do Ser, nosso vazio começará a preencher-se pouco a pouco. Esse vazio é como voltar ao ventre, pois se vai produzindo uma gestação precisamente durante os momentos em que não nos encontramos a nós mesmos. Isto é, se o indivíduo permanece ali onde não existe nada – se permanece sem pensamento 17


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nessa quietude – talvez descubra que a tentação de sair seja muito grande, ou que o tédio beire o intolerável. Mas, se o consegue, não obstante a não ação ou a voracidade frustrada o façam sentir que está perdendo tempo, na verdade vai trabalhar pela sua libertação com respeito às ilusões e avançando rumo à consciência profunda, que no começo é como um pequeno embrião que se precisa alimentar antes de se poder alcançar a consciência de si mesmo. No curso da vida ordinária o vazio é muito incômodo, e está muito desprestigiado. Temos que começar a dar-nos conta de que só crescemos tornando-nos amigos dele e suportando-o – não lutando contra ele nem tratando de preenchê-lo com outra coisa –, senão transformando-o no combustível principal da busca. Normalmente estamos preenchendo nossa sede de ser com todo tipo de substitutos sem nos darmos conta. O que nos move a todos – todos os tipos de ego, desde as patologias mais grosseiras às mais sutis – é o mesmo: é o querer preencher esse vazio, mal interpretando nisso nossa busca do Ser. O que move o alcoólatra, o assassino, o arrombador ou o necessitado de afeto é sempre o mesmo, uma mesma sede mal interpretada. Uma única busca nos move a todos; porém é importante que cheguemos a entender seu cerne. Se uma pessoa se eleva acima do nível costumeiro de automatismo em que já está esticando a mão para pegar o próximo cigarro – e assim, sem dar-se conta, acalmar sua oralidade metafísica com uma oralidade física –, se simplesmente toma consciência de sua sede de Ser, o resultado é diferente. Se, simplesmente, se permite sofrer esse momento de vazio interno, a capacidade de vivê-lo e tolerá-lo lhe

Existe um conto sufi sobre quatro companheiros de viagem aos quais restava uma única moeda e que discutiam como iriam gastá-la. Um deles era um árabe e insistia em seu desejo de inab, outro era grego e queria stafil, outro turco, e sua preferência era o uzum, e o outro, um persa, queria angur. Quando estavam ali discutindo, renhidamente, encontraram alguém que lhes disse: “Eu lhes resolvo tudo isto. Se vocês

trará, com o tempo, algo melhor que suas ilusões. Por mais que alguém não tenha acesso ao “recheio supremo”, o centro da própria consciência, resulta que seu anseio se transforme nas coisas que alguém razoavelmente pode fazer para encaminhar-se a esta. Por intermédio de todo tipo de exercícios espirituais, especialmente por meio da meditação, vai transformando seus vícios egoicos numa adição ao caminho, isto é, no interesse em viver um pouco melhor, na motivação de realizar trabalhos na vida comum que vão acelerando a mudança. De modo que, após fortes embates contra seu ego, aquele que tenha entrado nesse limbo de desânimo, no qual um mundo ficou para trás, e ainda não emergiu uma nova vida, pode transformar seu próprio desânimo em caminho e até em veículo. Buscamos o Ser ali, onde segundo nos parece, vamos encontrá-lo, e assim nos distanciamos de onde realmente está; mas se, resistindo à tentação de tais miragens conseguimos permanecer ali onde se sofre a ausência de Ser, isto permite que, pouco a pouco, tenha lugar em nós uma espécie de engorda existencial. O problema consiste em desprender-se da chupeta ôntica – ou simulacro da experiência de ser – para vir a ser de verdade. Em outras palavras, para alcançar a verdadeira vida é preciso atrever-se a perdê-la. ■ (NARANJO, Claudio. Mudar a Educação para Mudar o Mundo: o desafio do milênio. Verbena Editora: Brasília, pp. 255-261). 1 Legendário mestre sufi recordado especialmente na Pérsia e Turquia, a quem se atribuem muitos chistes de significado espiritual sutil. Palestra realizada no terceiro módulo do Programa SAT, em meados dos anos 1990, em Barcelona. 2 NARANJO, Claudio. Carácter y Neurosis. Una visión integradora. Ediciones La Llave – D.H. Vitoria, 1996.

me derem a moeda, compro o que cada um quer”. E, claro, no começo não tiveram muita confiança neste intérprete de seus desejos. Mas, por fim, decidiram dar-lhe a moeda, e o desconhecido comprou-lhes um cacho de uvas. Ficaram felizes: o árabe diz: “Aqui está meu inab!”, o grego está muito contente com seu stafil, o turco com seu uzum, e o persa com seu angur. Porque, como se imaginava, todos queriam uvas, mas cha18 18

mavam-na de diferentes maneiras segundo suas diferentes línguas, e somente o homem de conhecimento – o sufi da história – soube reconhecer a sede metafísica, sede de ser ou sede do divino para além de suas diversas interpretações – essa sede que se traduz de forma diferente nas distintas linguagens psicológicas dos diversos caracteres, das diversas experiências da vida e dos diversos níveis de experiência das pessoas. ■


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Crônica de um Estado nanico: lição de cidadania ou lição de realidade? Rodrigo Augusto Lima de Medeiros – Antropólogo

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o primeiro semestre de 2016, levei minha filha para tirar sua primeira carteira de identidade, o famoso Registro Geral. Sabíamos que havia fila e que seria necessário chegar ao local com antecedência. Imaginamos que o serviço NA HORA, do Governo do Distrito Federal (GDF), por definição, seria o melhor local para realizar a referida operação1. Inocentes! Nosso primeiro erro foi achar que chegando às 7h da manhã seríamos tranquilamente atendidos. A recepcionista nos falou que não havia mais senha disponível para quem quisesse tirar RG naquele dia. Ela informou que por causa da falta de servidores eles não conseguem atender a todos. As pessoas que seriam atendidas neste dia chegaram às 2h da madrugada. Ela informou que algumas Delegacias de Polícia Civil também fazem RG e nos informou o endereço da mais próxima. Fomos à tal delegacia e nos deparamos com outra fila, em verdade bem menor, mas com o seguinte alerta: “distribuímos 30 senhas por dia”. Havia pessoas no local esperando e fomos nos informar. O atendimento só iniciaria ao meio dia. Conformamo-nos com a situação e achamos que era isso, tudo bem, ficamos na fila. A fila foi crescendo e as pessoas iam se conhecendo e conversando sobre as coisas da vida. Na fila éramos crianças, idosos, desempregados, servidores públicos, professores, comerciantes, empresários, empregados de empresas privadas. A primeira da fila havia chegado às 7h da manhã. Às 10h da manhã, já éramos mais de 30 indivíduos. Mesmo assim, ainda estava chegando gente.

A inversão de valores é evidente. O servidor parece estar prestando um favor ao público e, como quem tivesse prestando um favor, sente-se no direito de desdenhar e tratar as pessoas com soberba.

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Apesar de alertadas do aviso de que apenas 30 senhas seriam distribuídas, algumas pessoas quiseram pagar para ver e esperaram para ser atendidas. A fila se formou embaixo da marquise do prédio da delegacia. Até aí, apesar da incapacidade do Estado brasileiro em oferecer um serviço digno para seus cidadãos e da reclamação geral da nação, tudo bem, porque infelizmente já estamos relativamente acostumados com a precariedade dos serviços. O inusitado ficou para o final. Em torno de 12h15min, uma camionete enorme se aproxima do local e entra no estacionamento privativo. De lá desce um sujeito de aproximadamente 1m 60cm, cabelo liso e grisalho, vestindo camiseta preta da política civil, blêizer, calça jeans e botas de salto (estilo caubói). Com uma voz falha, dirigiu-se à fila e disse: “alguém veio só buscar o RG?”. Uma pessoa se apresentou e entrou na sala de vidro. Os outros continuaram esperando do lado de fora. O tal sujeito era o papiloscopista da delegacia. A arrogância e a falta de trato com as pessoas que estavam na fila ficaram evidentes no atendimento que ele prestava ao distribuir as senhas e ao recolher os documentos que seriam utilizados no atendimento posterior. A inversão de valores é evidente. O servidor parece estar prestando um favor ao público e, como quem tivesse prestando um favor, sente-se no direito de desdenhar e tratar as pessoas com soberba. Alguns se prestavam ao papel de bajulador do tal, a fim de não encontrar má-vontade na sua vez. Desesperador é perceber que aquelas mesmas dinâmicas patrimonialistas, clientelistas e personalistas colonial, imperial e ditatorial sobrevivem em plena vigência da Constituição que se propunha refutar a República Federativa Brasileira. O papiloscopista tem seu feudo e lá se sente senhor. Sujeito de estatura baixa e com um carro que lhe faz sentir grande é a obviedade da materialização de seu ego. Talvez ele seja a crônica viva do Estado brasileiro: nanico em sua estatura como o Estado brasileiro, não consegue oferecer os serviços que a cidadania brasileira demanda; um ego inflado por um carro que externa seu desejo, assim como o Estado brasileiro que se quer grande e não se faz mínimo. Minha filha de 11 anos, que teria na retirada de seu RG um ato de cidadania, aprendeu a lição de que o Hino Nacional que ela tanto recita no colégio e tanto se orgulha não é nada diante da realidade pequena do nosso país. ■ 1

De acordo com o site do GDF, o Na Hora foi instituído pelo Decreto nº 22.125, de 11 de maio de 2001, e “reúne em um único local, representações de órgãos públicos federais e distritais, de forma articulada, para a prestação de serviços públicos aos cidadãos. O Na Hora tem como finalidade facilitar o acesso do cidadão aos serviços públicos, simplificar as obrigações de natureza burocrática, assim como ampliar os canais de comunicação entre o Estado e o Cidadão.

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O Nono Mandamento Arnaldo Brabosa Brandão – Escritor

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proveitei o feriado do meu aniversário pra perder tempo com duas coisas aparentemente desconformes. A biografia do Jacques Lacan, da Elisabeth Roudinesco, e o filme Os Dez Mandamentos (1956), que trata da fuga dos judeus para o Sinai, onde ficaram quarenta anos. Tem gente que desejaria que não voltassem nunca mais, não é meu caso, lembro sempre que os judeus são os guardiões do livro e do dinheiro. Sempre tive paixão pelo Lacan, pelos Dez Mandamentos nem tanto, discordo de alguns, por exemplo: não desejar a mulher do próximo. Todas as vezes que vejo este filme lembro-me dos cultos evangélicos que frequentei, muita música, muita mulher bonita, muita mentira, muito barulho e muito sexo. Conheci o Lacan por causa do Spinoza, isso foi no tempo que eu tentava ler o Benedito em latim, garanto que é mais fácil do que entender Lacan. Como vocês sabem, Lacan era um cara contraditório e confuzento, pra não dizer que era louco. Um cara que se propõe derrubar um edifício erguido por seguidores de Freud e construir outro, só podia ser louco. É mais ou menos como querer derrubar o barraco construído por Marx e seus seguidores e construir um arranha céu em plena Nova Iorque. Lacan ficou muito rico clinicando e passou a comprar as obras de arte indígenas do Lévi-Strauss. Ambos tinham uma profunda cultura artística. Lembro que fui convidado para um jantar nos arredores de Paris em que estavam presentes Lacan, Merleau-Ponty e Lévi-Strauss. Podem imaginar o nível da conversa. O papo começou com a psicanálise, mas à medida que a dosagem de álcool aumentava no sangue, a conversa rolava para outros interesses. Lá pelas tantas a discussão desceu na direção do “incesto”, tema que interessava muito a todos. A questão tinha sido recolocada por Lévi-Strauss em outros termos, que misturavam etnologia e medicina. Esta interpretação do incesto por Lévi-Strauss até hoje me deixa boquiaberto. De início, devido a Marx, ele joga tudo no balde da “economia”. Não sei se vocês se lembram, a coisa toda tinha um vínculo com a proibição por razões econômicas, e depois isto acabou criando uma interpretação, digamos, biológica. Toda a interpretação do “incesto” está no livro “As Estruturas Elementares do Parentesco”, um livro imperdível que, infelizmente, está entre os

que foram para a fogueira quando briguei com minha sexta mulher. Muito tempo depois, quando já havia esquecido do ocorrido, é que fui entender que Lévi-Strauss opunha o que se chama “natureza” ao que se chama “cultura”. O incesto pertence, em parte, à “natureza” e, em parte, à “cultura”. O incesto que encontramos entre famílias urbanas no Brasil e no Mundo é a prevalência da “natureza” sobre a cultura, digamos assim, embora nada seja tão simples e, no caso, tenho sempre a impressão que estou relendo a “Epístola aos Romanos”, do Apóstolo Paulo de Tarso. Os Dez Mandamentos é uma espécie de “Vida de Cristo” da época em que eu era menino e catava uns trocados no bolso de meu pai pra pagar o cinema. Pois é, uma criança nasce numa estrebaria. O resto é história. Muita gente pensa que quem criou a lenda de que os EUA são os bam bam bams do século XX foi a vitória aliada na Segunda Guerra, ou a bomba atômica, ou os foguetes espaciais projetados pelo Von Braun. Não foi nada disso. Foi o cinema, foi Hollywood. Sem Hollywood não haveria sequer os Dez Mandamentos, esses que o Papa Francisco apregoa aos sete ventos tal qual um São Francisco fora de época. Sem Hollywood ninguém saberia como teria sido Moisés, agora todos sabemos: ele era da altura do Charleston Heston e usava uma barba. No filme estão todos lá, desde o Charleston Heston, barbudo, Yul Bryner, careca, John Carradine, pai do David Carradine, que começou fazendo Kung Fu e acabou morrendo enforcado na Tailândia tentando aumentar a intensidade da gozada. Está lá a Anne Baxter, a Debra Paget, o inesquecível Edward G. Robinson, de tantos filmes de gângster. Até o Woody Strode, um dos atores preferidos do John Ford largou as montanhas do deserto mexicano e foi lá ajudar a abrir as águas do Mar Vermelho para que Moisés passasse com os judeus. Se tivéssemos uma fábrica de sonhos como Hollywood, talvez pudéssemos contar para os brasileiros, de modo romântico, como foi a ocupação da Amazônia e do Centro-Oeste e, então, talvez, tivéssemos uma identidade. Muita gente pensa que quem criou a lenda de que os EUA são os bam bam bams do século XX foi a vitória aliada na Segunda Guerra, ou a bomba atômica, ou os foguetes espaciais projetados pelo Von Braun. Pois é, não foi nada disso. Foi o cinema, foi Hollywood. ■ 21


o manto diáfano

nº 6 ∙ Brasília/DF ∙ 30 jul 2016

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Opressor e Oprimido no Humor Bruna Campello – Atriz e Apresentadora do Canal Mulheres do Riso, no Youtube

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m menos de seis meses tivemos a notícia de um ator e uma facebooker de sucesso na web vaiados em cena. Ambos não conseguiram nem terminar seus números por tamanho fervor da plateia. Os dois casos têm algo em comum: tanto ele, quanto ela uniram-se ao opressor e não ao oprimido. Esse tipo de humor já vem sendo questionado e, por isso, tem ocorrido muitas mudanças nas referências televisivas. O povo não suporta quando a prepotência sobressai à boa piada e isso se reflete na má qualidade do humorista e em um texto reacionário. Sendo assim, vamos por partes. Acredito que, por mais prestígio que alcancemos na vida, estamos sempre evoluindo. Ambos aprenderam que andar na contramão pode ser complicado. Quebrar a quarta parede e falar em nome de um país pode ser um risco. Risco este onde perdedores, bêbados, fracos, pobres e sagazes se sobressaem. Pois bem, humor é pra quem não se importa em perder, em mostrar seus fracassos. O palhaço mora numa ilha perdida entre o sim e o não, entre o posso e o não posso e, nesse entremeio, ele tropeça. Sobretudo ele ama, seu coração é puro. Vou contar um segredo: é difícil pra caramba! O ator e a facebooker erraram no tom, não sustentaram e não reverteram pra si o fracasso. Devo-lhes avisar que seria possível. Não somos e nem nos propusemos a ser reis ou rainhas, quem faz piada é o bobo, se não for não tem graça, é carregado de soberania e isso tem um latente potencial de revolta. O público se revoltou e o público pode; e os senhores também revoltaram-se, nos camarins banhados pelo champanhe da revolta. Os xingaram. Deus, Não Meninos!!! Eles são o nosso “ganha pão”, eles matam a nossa fome, são pra eles os musicais com os quais você capta milhões na iniciativa privada, eles são seus 2 milhões de seguidores preguiçosos. A plateia é o publico, o alvo. E você me vem com seu hu-

mor repleto de trocadilhos e analogias sociais de direita. A graça não está com a burguesia, meninos (shhhh, segredo), nunca esteve. Eles (a burguesia) nos usam, nos pagam e riem das nossas desgraças, as mesmas que eles também têm, mas escondem no canto da boca ou na cara untada de corretivo para ninguém perceber seu sofrimento. A gente desenha a lágrima na cara. Pra se fazer uma piada é necessário desconstruir verdades e preconceitos, e nessa desconstrução você deve se colocar no lugar de quem sofre, aí sim entenderá o outro lado; e não imaginar pela sua ótica, com as suas vivências como tudo se passa do lado de cá. Fazer piada pode custar caro, por mais fácil que pareça. E quanto mais fácil parecer, para quem assiste, mais bem feita ela é. Sabe qual o nome disso? O nome disso é performance. E nós que fazemos piadas, como diz Léo Castro, somos o antidepressivo mais barato que se tem no mercado. Devo avisar que seria possível reverter as duas vaias distribuídas pelo povo aos dois “intencionados a fazer humor”. Mas isso é pra quem tem experiência e sabe que não é fácil fazer piada, sabe que não é fácil e delicioso ser quem somos, ser o bobo. Como bom surfista que ama e respeita o mar. Não é fácil, mas é delicioso. ■

Foto: www.pixabay.com

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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão

Capítulo 6 radias pequenas pintadas de branco, cobertas com telhas de barro escurecidas, em torno de um prédio mais avantajado, com as mesmas características, mas que possuía uma espécie de frontão na entrada, onde se lia, em letras azuis, desproporcionais ao tamanho do prédio: “AQUI DEFENDEMOS AS FRONTEIRAS DO BRASIL”. Em volta da clareira, um muro baixo, mas com largura considerável, para demarcar bem a área estritamente militar, que era fechada à noite por um portão de ferro. O muro também tinha por função proteger os prédios das enchentes provocadas pelo Rio São Jorge, do qual o Igarapé da Bosta (ou do Lacerda, tanto faz), era tributário. Meu lugar preferido, na sombra do Ipê Amarelo, era externo ao muro, havia ainda algumas palhoças espalhadas pelas redondezas, invisíveis do alto. A pista, vista da porta que dava pra cabine do piloto, parecia mais uma picada na mata, mas com o avião no chão, o que víamos era uma estrada curta, esburacada, que começava na mata e terminava no conjunto de casas e, ao longo dela, latas velhas enfileiradas, de onde saíam labaredas tímidas sustentadas por querosene de avião, para facilitar a descida e decolagem do DC3. Ao redor de tudo, a mata fechada, querendo tomar todo e qualquer espaço vago, incluindo umas ten-

Depois da primeira parada do DC3, em Carolina no Maranhão, pressenti que talvez não acontecesse nada grave, mas foi em Belém que fiquei mais tranquilo, com quase certeza de que, se o avião não caísse (o que parecia provável pela idade), íamos chegar ao destino, isto devido às palavras de um tal Coronel Canário – era o nome escrito na blusa amarela – dirigida à tripulação e aos militares que faziam a guarda. — Quero que todos cheguem inteiros ao Oiapoque, sem um arranhão, isto é uma ordem, não uma recomendação, falou com voz pausada, porém enérgica, de quem exige. Nem parecia o sujeito que minutos antes, simpático, puxava conversa informal conosco e fazia piadinhas sem graça: “canário molhado não voa”, referindo-se a chuvarada que nos deixava ensopados no pátio do aeroporto. Quanto mais fazia piadas, mais me deixava preocupado. Nunca confiei em gente muito simpática, risonha, que vive com os dentes no quarador. Com o piso do avião escorregadio de tanto vômito, surdos devido à pressão, e famintos, chegamos à noite em Clevelândia do Norte, lugarejo militar próximo ao Rio Oiapoque. Não era propriamente uma cidade, mais parecia uma vila de interior, composta de vinte a trinta mo-

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tativas de lavouras, que logo se via, não prosperavam, o sol excessivo, as chuvas torrenciais e o solo, não deixavam crescer nada, a não ser a macaxeira e as grandes árvores amazônicas; não entendia como as castanheiras e os guapuruvus conseguiam obter alimentos para sustentar tanta altura. Por incrível que possa parecer, fomos recebidos com certa cortesia pelo comandante e seu auxiliar e até alegria por três ou quatro presos, que estavam lá desde o início de abril. A primeira providência era tomar banho, mesmo porque o fedor que exalávamos era insuportável, sentia-se a distância, muita gente se borrou todo e mijou nas calças durante o voo. O sanitário do avião estava sempre ocupado ou tinha sido fechado de sacanagem e, depois, os “Catarinas” mal permitiam que nos levantássemos do assento. Não é a toa que sempre detestei os “Catarinas”, nada contra os catarinenses, mesmo porque meu amigo Norberto era de Florianópolis. O banheiro tinha apenas três chuveiros e éramos dezoito, então a média era superior a cinco por chuveiro, ninguém queria esperar, e nestas horas a cortesia é a primeira que desaparece de cena. Alguém falou em fila? Não sabe do que está falando, consegui me manter no máximo uns dez segundos debaixo do chuveiro, a bem dizer um cano vertical de onde saía água em profusão, provavelmente do Rio São Jorge ou quem sabe do Igarapé da Bosta. Um dos melhores banhos que já tomei na vida. Depois do jantar, talvez um dos melhores que já comi na vida, e que se resumia em inhame, peixe, farinha e linguiça enlatada. O comandante ordenou que fôssemos para um grande salão, mandou pregar um mapa enorme na parede. Começou solene e cortês, nem parecia que se dirigia aos presos.

— Boa noite Senhores. Sou o coronel Ernesto Canabrava. Bem vindos ao Brasil desconhecido. Isto aqui é uma unidade militar, não é mais uma prisão, sempre discordei desta ideia, acho que deveriam ficar presos próximos de suas famílias, mas sabem como é, somos militares e cumprimos ordens. — E continuou professoral, com uma varinha de bambu na mão, olhando para o mapa: — Nós estamos bem aqui no ponto mais ao Norte do Brasil, logo ali fica o Cabo Orange, e apontou com a varinha para uma bolinha vermelha no mapa. Em volta é a selva fechada, a cidade mais próxima é Caiena, na Guiana Francesa, que fica a mais de quatrocentos quilômetros viajando por dentro da selva. Lá em baixo temos Macapá, impossível chegar lá a pé ou de qualquer outro modo que não de avião, portanto, quem quiser fugir, pode fugir. Não vou procurar fugitivo, a selva vai cuidar dele por mim. Entenderam bem? Berrou a frase final bem alto, para que todos entendessem. Poucos entenderam, a maioria sequer acreditou no que o homem disse, eu mesmo não acreditei, achei que era despiste. Ficou aquele silêncio carregado de tensão e cansaço. Tínhamos acabado de chegar. Mas era fácil perceber: ficaríamos soltos sem grades nem nada, mas tudo indicava que não era possível escapar dali. Em poucas palavras: livres e presos, se é que tal contradição (palavra de uso corrente na época e agora fora de moda) seja possível. — Leiam o regulamento no quadro de avisos, e vamos dormir que já passa das onze, nosso gerador será desligado daqui a pouco. Amanhã às oito todos em forma em frente ao pavilhão — completou o tenente, que mais parecia um adolescente, como a maioria de nós. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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