O Manto Diáfano nº 7 - 10 de agosto de 2016

Page 1

Revista eletrônica ∙ nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Manual do Homicida Maldito Sertão As Derradeiras Horas Sonhos Perdidos no Sistema Penal

Corrida governamental da crise, o judiciário no poder?


4 Manual do homicida: a eterna luta entre o ocidente e o oriente

6 Revista eletrônica Nº 7 ∙ 10 ago 2016 ∙ Brasília/DF

Crítica da presidência pura

VERBENA EDITORA

10

CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Carlos Muller João Mingorance Marcio Benjamim Maurício Andrés Ribeiro Murillo de Aragão Paulo Timm Ronaldo Conde Aguiar EDITORES Arno Vogel Benício Schmidt Carlos Alves Muller Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

A governabilidade e a judicialização da política

12 O incrível e triste fado da supertele luso-brasileira

15 As Derradeiras Horas

20 Das mulheres gestantes, novas mães e sonhos perdidos no sistema penal inconstitucional: uma relação antinômica à Lei 13.257/16 (Lei da primeira infância)

24 VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

Casa de fazenda

27 A folha rasgada

30 Encaixotando Brasília


EDITORIAL N

esta sétima edição do Manto Diáfano, ao mesmo tempo em que tentamos assistir às glórias atléticas mundiais e as agruras finais do processo de impedimento presidencial no Brasil, aliados à derrocada mais do que prevista do futebol masculino tupiniquim (o feminino vai bem, obrigado, mas, como sempre, é o primo pobre), trazemos uma Delegação de escribas digna de aplausos. Arnaldo Barbosa Brandão dribla duas culturas distintas que se chocam e caem, como os adversários de Garrincha, e arremata com um tiro certeiro na análise cinematográfica sobre o homicídio ocidental e do porquê o oriente, graças a Lawrence da Arábia, jamais confiará no ocidente. Paulo Timm, economista e ávido leitor, enfrenta as quase setecentas páginas do volume I dos Diários da Presidência, de FHC, e, com um ippon certeiro, avança na crítica e análise à obra reflexiva do ex-presidente. Benicio Schmidt, como um técnico boxeur, mostra a nós, meros pugilistas amadores, as nuanças do jogo de pernas político e como, mesmo que percamos, possamos entender as regras e voltarmos mais bem preparados para o próximo round. Carlos Muller traz a segunda parte da história do fracasso da Oi, nesta maratona descabida de erros de gestão, organização e desperdício monetário. Como estamos no mês de agosto, esta sétima edição iniciará uma jornada das derradeiras horas de Getúlio Vargas, em três fases, contadas por Ronaldo Conde Aguiar, que relata de forma magistral os últimos momentos de um presidente que, como um atleta do salto, cai em acrobacias na água e afunda para depois entrar para a história. João Mingorance, advogado, relata as consequências nefastas da inútil política de repressão às drogas para mães no sistema carcerário. Na parte literária, Arnaldo Barbosa Brandão retorna para um segundo tempo com mais um capítulo da novela Encaixotando Brasília. Murillo de Aragão traz um conto sobre a folha de um livro que o persegue incansavelmente e Marcio Benjamim atravessa a linha de chegada com um conto de seu livro Maldito Sertão, lançado em 2012 pela editora Jovens Escribas, onde reescreve as histórias ou lendas do sertão. Na cerimônia de encerramento, trazemos uma resenha dos três volumes da obra ecológica de Maurício Andrés Ribeiro, isto sim, uma verdadeira aula de consciência ambiental. Boa leitura e bons jogos.


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Manual do homicida: a eterna luta entre o ocidente e o oriente Arnaldo Barbosa Brandão – Escritor

C

omeçamos cedo, ao alvorecer da civilização Caim matou Abel. Bem que Moisés (filho de Abraão) ainda tentou um último recurso e inventou os Dezesseis Mandamentos (adaptados para Dez por Santo Agostinho). Moisés, como todo judeu, era muito prolixo (e inteligente), depois botou lá como se fosse uma ordem: NÃO MATARÁS. Não adiantou nada, está no DNA da espécie. O ser humano mata por qualquer razão, pelo poder, por ignorância, inveja, ciúmes, pela pobreza. Vejam o caso do Brasil, são 50 mil homicídios por ano, a bem dizer é uma estimativa, o número deve ser maior porque ninguém tem números exatos. Não se mata apenas outros humanos, matam-se animais, cortam-se árvores, destruímos rios, fazemos o diabo, o ser humano é diabólico. O problema é que este mesmo ser humano produz coisas grandiosas, além disso, ele mesmo pode ser extremamente bondoso e solidário com outros homens. Não vê o homem que saltou no poço das ariranhas para pegar um menino, cuja família jamais foi procurar o salvador para agradecer?! O ser humano pode ser muito ingrato. Pensem bem: 50 mil homicídios por ano. Aí me aparece a TV Globo com esta história de que um louco atropelou centenas no Sul da França, dizem que morreram mais de oitenta. Esses caras do Estado Islâmico têm uma visão trágica do mundo. Eles sabem que o Sul da França é o sonho de consumo da classe média mundial. Como um dia prometi falar de filmes, tentarei cumprir, falando sobre o filme que, na minha opinião, é o maior clássico do cinema, e ele trata de quê? Da luta no Oriente Médio que deflagrou a situação que está aí até hoje. O filme começa com um palito de fósforo aceso, aí ele corta para o crepúsculo, e quem é visto ao longe como uma pequena mancha vermelha na imensidão do deserto? Omar Sharif montado num camelo. A mancha vai crescendo, crescendo, crescendo, crescendo até que há um tiro que repercu-

te continuamente no deserto. Isto é só o início. É uma história fantástica. A impressão que tenho é que esse tiro ecoa até hoje, porque foi ali no princípio do século XX, quando os árabes venceram os turcos, (com a ajuda dos ingleses e do Lawrence, que atuava na frente de combate), que poderia ter sido decidido, de modo mais favorável, o destino de todos aqueles países (Egito, Líbia, Iraque, Arábia Saudita, Iêmen, Síria etc.). Como o Lawrence já desconfiava, os ingleses deram pra trás e, de certo modo, traíram os árabes. Daí pra frente nunca mais os árabes confiaram no Ocidente, se é que algum dia confiaram, e essa desconfiança se tornou mais grave depois que se fundou o Estado de Israel como pátria dos judeus. Foi no deserto da Jordânia que o David Lean decidiu filmar a fantástica história do T.E. Lawrence, também conhecido como “Lawrence da Arábia”. A história foi contada no livro de memórias escrito por ele no início do século XX. Ele perdeu os originais e reescreveu todo o texto de cerca de 600 páginas. Imagino as dificuldades que o David Lean enfrentou, dirigindo atores como Peter O’Toole e Anthony Quinn e o maior deles todos, o Alec Guiness. Pra vocês terem ideia da importância do filme para a história do cinema, o Spielberg se aliou ao Martim Scorsese para recuperar a duração e o brilho original do filme que foi feito em 70 mm. O Spielberg calculou que se fosse feito hoje, o filme custaria algo como 300 milhões de dólares, e olha que ele pode não ser uma grande diretor, mas entende do assunto. O David Lean filmou de olho no livro do Lawrence, assim como filmou o Doutor Jivago lendo o livro do Pasternak, assim como o Copolla filmou o Apocalipse Now com o livro do Conrad no bolso, é um livro pequeno, mas, segundo Borges, “é a história mais fantástica que alguém podia imaginar”. Eu diria que a tomada do Golfo de Akaba pelos árabes com a participação direta do Lawrence é a história mais fantástica que alguém poderia ter vivido. E o cara ser 4


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Foto: www.pixabay.com

mais interessante é que Maomé é considerado um ser humano especial, mas um ser humano e não um deus, como acontece com Jesus. O T.E. Lawrence era muito culto e vivia na Inglaterra, falava correntemente o Árabe e era um admirador da “cultura” (talvez não precise de aspas) árabe. Por conta desse perfil ele foi convocado pelo exército Inglês para atuar junto aos árabes, no filme há a cena impressionante quando ele se encontra com o Rei Faissal (interpretado pelo Alec Guiness) numa tenda armada no deserto. Ocorre que os altos oficiais ingleses não conheciam o árabe, ele então conversa com o Faissal e ambos estabelecem imediatamente certa relação de confiança, o que favoreceu sua aceitação, sem falar que ele passou a se vestir como um árabe. Depois ele volta para a Inglaterra e acaba por morrer num acidente de motocicleta, dizem que foi suicídio. Ele não é famoso. Famoso é James Dean (cultuado até hoje), que morreu jovem metendo a motocicleta (ou foi um automóvel?) numa árvore, mas pra isso são feitos os atores, cantores, músicos, jogadores, corredores. E para isso são feitas as árvores. Já escritores, tirando o Camus, não me lembro de um que tenha morrido em acidente. ■

capaz de escrever a história nos seus mínimos detalhes, incluindo o que ele pensava, aí já é demais. Bem, vocês todos sabem, e se não sabem deveriam saber, que o problema com os árabes era reuni-los sob uma mesma bandeira, primeiro porque começaram como tribos, segundo porque viviam em grande parte numa região enorme e desértica e com grande escassez de recursos. E terceiro, porque vivendo em tribos autônomas, guerreavam entre si desde tempos imemoriais, embora haja um mistério nisso tudo: como conseguiram na prática falar uma única língua e ter um único Deus? Aí é que aparece o Maomé, um homem semianalfabeto que trabalhava como mercador e que se casou com uma viúva muito rica. Isto está parecendo uma história de mil e uma noites, mas acho que foi assim mesmo. Maomé, então, percebe que o problema dos árabes era serem dispersos e desunidos, cada tribo era uma nação. É claro que isso ocorreu com outros povos, mas com os árabes demorou muito tempo, porque Maomé viveu entre 570 e 632 D.C. Nestas alturas havia o Império Persa e o Império Romano. Maomé seria o sétimo profeta, depois de Moisés, Abraão, Isaac, Davi, Ismael e Jesus, e o 5


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Crítica da presidência pura Os Diários de Fernando Henrique Cardoso na Presidência VOLUME I Paulo Timm – economista

“Política não se faz apenas afirmando o que é certo e o que é errado, mas articulando as forças capazes de provocar modificações” (p. 55).

D

iários, que eu saiba, nunca constituem uma leitura muito prazerosa. São muito extensos, repetitivos, cansam o leitor. Exceção, talvez, aos Diários de Viagens. Há, por certo, momentos nos Diários de FHC dignos de deleite. Raros. O melhor, ao falar de sua emoção a uma ida à Amazônia (p. 716). E há a página 687, marcante, que não reproduzirei, deixando-os à curiosidade. O resto, quase 900 páginas, é diário de bordo, mesmo. Ainda assim, acho os Diários uma leitura indispensável a estudantes de Ciências Política, História e Comunicação Social, para não falar dos políticos em geral, pois é um testemunho sem entrelinhas de um dos Presidentes mais importantes da História Republicana do Brasil. Linguagem franca e direta, sempre muito civilizada, revelando a disciplina rigorosa do acadêmico. Todavia, FHC é implacável com jornalistas. E reclama dos cientistas políticos pela falta de análises de processos. Nada fala contra os sociólogos, seus colegas, mas não por corporativismo. É que naquela época – e ainda hoje – não se percebia a presença forte destes profissionais nos círculos de Governo, Mídia ou Opinião Pública. Exceção, talvez, a Luciano Martins e Vilmar Faria, muito próximos, para não falar de Ruth Cardoso, que volta e meia lhe proporcionava um momento de fuga dos

Fernando Henrique Cardoso – Diários da Presidência 1995-1996. (São Paulo: Cia. Das Letras, 2015). compromissos para uma reflexão acadêmica sobre legitimidade do Governo. Deveriam, aliás, ter sacudido mais as sólidas convicções do Presidente. Nem precisava de violência, bastaria ajudá-lo a abrir os olhos um pouco mais. Quanto aos jornalistas, porém, vale um parágrafo. FHC não os ataca diretamente, enquanto profissionais. Prefere reclamar da imprensa em geral. Mas não perdoa, sequer, o grande nome do

6


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

jornalismo político, Carlos Castelo Branco, já falecido à época, tratando-o como um tipo nada mais do que folclórico:

globalização sem exclusão, como no encontro com R. Ruggiero, em 1996 (p. 743). Tampouco mergulhou FHC de cabeça na máxima do “Fim da História” que acompanhou a década de 1990. Ele acreditava, sim, na globalização como um umbral inédito e inevitável da expansão do capitalismo, mas sabia-o dominado pela financeirização, com os riscos que isso representava. Chega a ser profética sua visão nesta passagem, num encontro com Joseph Safra (07 de agosto de 1997), principalmente se comparada à afirmação de Lula, já no auge da Crise de 2008, interpretando-a como “marolinha” (p. 683). E uma curiosidade, também, na tentativa de situar FHC na corrente neoliberal que, mesmo fortemente repudiada por ele, acabaria envolvendo-o: A questão do Estado. Sua visão estratégica, apesar da promoção da privatização, não era de perseguir um Estado Mínimo, nem de acreditar que o Brasil tivesse um excesso de Estado, mas, sim, de burocracia e poder corporativo em suas várias agências e corpos funcionais, os quais tinham que ser limitados. Deixa isso claro em vários momentos, registrando:

“O Castelinho poderia, hoje, escrever coisas bem interessantes, ao estilo dele, se bem que acho que ele não iria gostar; o Castelo também era um homem desse meio, do jantar à noite para ouvir intriga, e a política era o desfilar de um sem-fim de conversas, pequenas intrigas, como ele próprio retrata no livro sobre o Jânio (Quadros). O Brasil mudou bastante e para melhor.” (p. 883). Mas, enfim, como abordar um diário de bordo? Primeiro, situando-o no seu tempo. Anos 1990, década crucial, uma verdadeira dobradiça da modernidade rumo ao terceiro milênio. O mundo entrava na era da Terceira Revolução Industrial – eletrônica – dando os primeiros passos no rumo da interconectividade total da reconstituída aldeia. Do ponto de vista político, um ano antes, em 1989, caíra o Muro de Berlim, abrindo passo para a desagregação do bloco soviético liderado pela URSS, consumada em 1991. Era o fim da Guerra Fria. Isso não apenas fortaleceu os Estados Unidos como potência, mas como fonte de inspiração ideológica no mundo inteiro sob a batuta de Margareth Thatcher (UK) e Ronald Reagan (USA). O ideário socialista estava em baixa e a globalização, como única alternativa para o aprofundamento da modernização, passava a ser a senha mágica desta Nova Era. Tudo isso contribuiu para a uma certa convergência ideológica do reformismo europeu, que alimentara o Estado de Bem-Estar no continente, com o liberalismo, em nome do que se chamou de Terceira Via, à qual aderem Partidos, movimentos e lideranças da América Latina: o peronismo com Menem, na Argentina, e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) –, liderado, justamente, por Fernando Henrique Cardoso. Ainda assim, FHC tem uma visão possibilista da globalização, fruto de sua formação na Sociologia da USP, que não descuidava das leituras tanto de Marx e Durkheim, como, principalmente, de Max Weber. Em várias passagens dos Diários ele deixa isso claro, evidenciando a necessidade de se construir uma

“O desaparelhamento do Estado brasileiro é patético”. (p. 111) Agora, vamos aos Diários. A primeira impressão que me ocorre é a de que Fernando Henrique Cardoso pode ter até pensado em ser Papa, na juventude, mas dificilmente pensou que chegaria a Presidente da República. Ele deixa evidente que não gosta do cotidiano da Política, que ele chama de “pequena”, coalhada de interesses vulgares e intrigas intestinais. Chega, inclusive, em alguns momentos, ao que vejo como revelação mais crua e negativa de sua postura política frente ao Congresso. Aqui a importância da página 867. Outro ponto a destacar: a crença de FHC de que o Brasil havia mudado, para melhor. Ao longo de todas as anotações, ele reafirma esta quase obsessão, embora sempre pontilhada pelos contratempos e evidências em contrário. Há momentos, inclusive, que parece que ele, exausto, vai reconhecer isso, mas, depois, volta à miragem. Onde estaria, se está, o erro de FHC? Na incompreensão, talvez, de que ele fora muito mais o

7


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

multiplica por 160 vai dar 30 bilhões de reais, que é o que se gasta com Previdência Social. Então, são ideias um pouco vagas, que não vão longe.” (p. 800)

resultado das condições de possibilidade ditadas pelas circunstâncias do que a consequência direta de grandes mudanças no país e no sistema político. Ele foi aquilo que denominamos “o cara certo na hora certa”. Havia uma transição em curso, acelerada pela Constituição de 1988, com nítido desgaste das lideranças conservadoras oriundas do período militar. Elas tiveram a sabedoria de escolhê-lo para barrar o avanço da esquerda naquele momento. Até seu próprio Partido, o PSDB, tinha que ser permanentemente ajustado ao papel idealizado por FHC, para não cair no clientelismo, dada a tendência inevitável a se igualar aos demais aliados. Ah...! Se fosse realmente isso...! Esta “positividade” do ex-Presidente, que se vê – e ao seu Partido – como um grande avanço na Política, guiou-se, no início do Governo, para uma certa ingenuidade sobre o real funcionamento da administração no Brasil. Ao indicar o Ministério, respira, meio aliviado, por exemplo:

O que era isso? Nada mais, nada menos do que o embrião do Bolsa Família, instituído por Lula em 2003 e distribuído até hoje a cerca de 40 milhões de famílias e um instrumento decisivo na legitimação de sua plataforma social. FHC recebeu o Senador Eduardo Suplicy como uma obrigação formal, não deu qualquer importância à ideia considerada “um pouco vaga”, relegou-a ao esquecimento e só graças aos Diários temos a oportunidade de sabê-la ao seu alcance. Não que seu Governo fosse omisso às políticas sociais. Pelo contrário, houve até avanço, mesmo no campo das transferências. Mas nunca com a audácia necessária para se transformar em fato político decisivo. Pior, FHC faz mal as contas, como se fosse o caso de distribuir a “bolsa” de 20 dólares, a 160 milhões de brasileiros, chegando a um montante anual equivalente ao gasto com a já claudicante Previdência Social. Ora, não era para tanto. Bastava alavancar o programa com 10 milhões de brasileiros carentes, elevando-o, como fez Lula, gradualmente, com os indicados 20 dólares, na medida das disponibilidades orçamentárias. Tivesse tido mais coragem e audácia com a adoção de uma política social ativa, FHC teria, certamente, não apenas consolidado uma base social mais ampla para seu Partido, como queriam, aliás, alguns aliados do Movimento Sindical distantes da CUT/PT, como ter-se-ia reconciliado melhor com sua consciência, sempre mais à esquerda, do que suas ações. Não por acaso, por exemplo, se regozija do afago que lhe faz Fidel Castro, com cujo isolamento dá contas de preocupação ao longo de várias páginas dos Diários (p. 274). De qualquer forma, ressalte-se, como virtude pessoal de FHC, sua extrema sensibilidade para a avaliação psicológica das pessoas. Não tenho dúvida de que o melhor retrato, neste sentido, até pela frequência da convivência sobre assuntos complicados, é a que faz do Ex-Presidente José Sarney: ambíguo, pouco confiável, hábil até. Mas lhe concede uma qualidade: “intelectual como eu...”. Isso deve ter contribuído para aliviar as mágoas diante das

“O Clóvis coordena a ação administrativa, o Serra coordena os resultados, e o Malan coordena o fluxo financeiro.” (p. 49) Ora, as coisas não funcionam assim e ele próprio vai se dando conta com o passar do tempo, até porque FHC vai, também, mudando de opinião sobre muitas questões (pp. 279-280). Esta supervalorização do “Brasil Mudou” – por FHC – teve consequências dramáticas, não apenas para seu Governo, como para a aspiração do PSDB de comandar o país por duas décadas. Veja-se este registro: “Agora, no fim da tarde, recebi o Philip Von Parijs com o Eduardo Suplicy. É o autor da Teoria sobre Renda Mínima. (Convidei várias pessoas para discutir o assunto. (...) O principal para ele é que os programas têm que ser universais. Não se deve fazer grupos-alvo, porque não resolve. Eduardo estava muito animado porque no Alaska fizeram uma distribuição de renda mínima, acho de mil e poucos dólares, para cada pessoa. No Brasil, se fizermos de 20 dólares por mês para cada pessoa, será 240 por ano, 8


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Como balanço final, pois, dos Diários – volume I, fica a impressão do bom registro de um Presidente diligente, atento aos assuntos internacionais e hábil na condução da política como exercício de agregação de forças para a obtenção de consensos, além de um excelente observador de pessoas. Se deu certo como Sociólogo, me imagino como se sairia como Psicólogo... Se algum defeito o Diário recolhe é do excesso de confiança do autor, fato acentuado pela sua própria condição de profundo conhecedor da sociedade brasileira. Mas excedeu-se no otimismo quanto às mudanças do Brasil. Apostou demais, tanto no cenário positivo da globalização, como nas transformações da política nacional. Hoje, tenho certeza que atuaria com mais cuidado. Àquela altura, porém, apesar do pretenso distanciamento com que tratava seu objeto, não só de análise, mas de intervenção, dobrou-se ao messianismo. Sua gestão enfrentou os contratempos da Pax Americana sobre a economia global, a qual acarretou diversos sobressaltos na esfera cambial; no plano interno, porém, salvo uma ou outra pressão maior do MST e de uns poucos arrufos em suas aparições públicas, o país se regozijava pelo acesso à asinha de frango. A grande queixa de FHC nos Diários, aliás, não é contra a Oposição, contra o PT ou até mesmo os movimentos sociais. É a verdadeira lamúria contra a imprensa, principalmente a Folha de São Paulo, sempre identificada como um traço do passado, alimentando intrigas, inventando situações críticas. Não obstante isso tudo, os anos 1995/96 lhe deram a sensação, registrada no Diário, de que tudo estava indo muito bem, o que corrobora pelos comentários alvissareiros sobre os índices de aprovação do Governo em Pesquisas de Opinião e pelo apoio do Congresso. Foi isso, aliás, que o reanimou, a contragosto, segundo ele, à Emenda da reeleição. Acha-se bem, num país que crê renovado e não encontra ninguém à altura da continuidade da obra. De resto, como frisa a letra da imortal melodia de Casablanca:

pouco favoráveis avaliações que lhe faz. Em sentido contrário, registro a extrema boa vontade de FHC com o Ministro Paulo Renato, o que mais lhe frequentava, aparentemente, junto à família e que é o mais bem tratado. Sempre registra o entusiasmo de Paulo Renato, enfeita-lhe a presença, reiterando exaustivamente que se está saindo muito bem à testa do Ministério da Educação, fala bem das reformas encaminhadas, mas jamais as explica. Tudo no ar. Pura subjetividade. Uma pena, pois FHC poderia ter deixado um legado muito maior, como professor, na Educação. Preocupou-se muito mais, ao longo do Governo, com a Economia, um assunto que pouco dominava e isso constata várias vezes – “Não compreendi bem....” Diante de José Serra, porém, registra uma amizade concertada, com o cuidado, sempre, de evitar mal entendidos, na percepção clara das melindrosas sutilezas do Senador. Trata-o bem e o reconhece como um tocador, gosta dele como aquele amigo que permanece amigo “apesar” de conhecê-lo. Muito diferente da relação que tem com Pedro Malan, em quem tem absoluta confiança, mas se mostra irritado, às vezes, com sua reticência. Explica-se: São parecidos... Com outros, sem nomear, porque lhe traria problemas, como Serjão e Bresser Pereira, se exaspera, diante da incapacidade de medirem suas palavras e aí, vaticina, sem citar nomes: “É cansativo, as pessoas não mudam. Já disse isso mais de uma vez: certas pessoas não foram socializadas para a grande cena política, para o grande jogo de poder, e estão metidas nele.” (p. 833) A grande descoberta de FHC, nessa leitura dos personagens que o cercam na Presidência, foi quanto a Ciro Gomes. Vale registrar, pela precisão: “Acho que o Ciro está tão complicado, do ponto de vista pessoal que não vai poder fazer grandes coisas. (...) Ele é uma personalidade complicada, é precipitado, afirmativo, inteligente, tem coragem, mas é um pouco oportunista nas posições e não vai fundo nas questões.” (p. 679)

“the fundamental things apply as time goes by”…■

9


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

A governabilidade e a judicialização da política Benício Schmidt – Cientista político e editor

N

a política, sabemos, não há vácuos. Um dos poderes sendo debilitado, por qualquer razão, dá lugar ao aumento da presença de outro ou de outros poderes constituídos. Esta é vida real de qualquer sistema político representativo, como ocorre hoje no sistema político democrático brasileiro. A crise econômica internacional, sendo arrastada desde 2008, com crescente financeirização das relações entre mercados e produtores, reforça o poder dos bancos, especialmente pela existência dos chamados derivativos financeiros (títulos sobre títulos de dívidas assumidas por consumidores e pelos Estados). Houve quebradeira, bancarrota bancária, tanto nos Estados Unidos como na Europa e na Ásia, com exceção da China. A exceção chinesa se dá por conta das peculiaridades de seu sistema financeiro, muito centralizado pelo Estado e pelas empresas por ele controladas, com forte participação decisória de quadros militares fiéis ao regime vigente. As consequências da crise sobre a China somente agora começam a cobrar seus tributos, pela desaceleração de sua economia nacional, basicamente provocada por relaxamento nas regras de planejamento central e audaciosos investimentos em programas de urbanização massiva, com a construção de enormes cidades, ainda não ocupadas, por exemplo. Mas a quebradeira bancária não afetou decisivamente a sobrevivência do capitalismo dominado pelo circuito financeiro. O sistema se recompõe pela ativa presença do Estado, seja pela baixa taxa de juros do sistema, seja pela injeção de liquidez com emissão de moeda; ambos os movimentos favorecidos pela soberania de moedas fortes como o dólar norte-americano. As forças hegemônicas do sistema internacional contam ainda com forte predomínio da inovação tecnológica nos processos produtivos de mercadorias que vão ao mercado mundial. Isto implica em aumentar a obsolescência de bens e processos, favo-

recendo as iniciativas de “modernização da produção”, que geralmente vêm acompanhadas de fortes ondas de desemprego estrutural, realinhamento das forças produtivas e concentração de empresas. Hoje, como ontem, o que se presencia é o fraco desempenho de partidos políticos, na sua atuação parlamentar, diante destes dilemas que afetam a sociedade internacional, em todos os quadrantes. Medidas de saneamento da crítica situação geralmente são propostas por forças externas aos corpos legislativos. Com o agravamento destas conjunturas de fortes mudanças, geralmente causando desemprego, desnacionalização da produção, desindustrialização avassaladora, endividamento das classes trabalhadoras e concentração ainda maior do capital instalado, fica cada vez mais difícil esperar soluções no âmbito do Poder Legislativo. Há algum mistério nesta paralisação, neste comedimento, nesta ausência de decisões que deveriam ser tomadas pelo Poder Legislativo que é constituído por representantes de todo o povo? Não! O processo decisório, a partir de posicionamentos legislativos formais e derivados da ativa vida parlamentar, tem sido assumido pelo Executivo e pelo Judiciário. Isto é real, no Brasil e no mundo, de modo geral. A burocracia, a duração de debates intermináveis, as contradições dos interesses representados por deputados e senadores – em geral – são as principais razões desta situação de impasse. Teórica e praticamente, talvez seja possível levantar a hipótese de que a tradicional divisão entre os três poderes não tem tido a capacidade de gerir os Estados contemporâneos, pela complexidade e rapidez exigida pela globalização e suas consequências. Obviamente, torna-se cada vez mais visível que os representantes eleitos pelo povo não possuem capacidade de enfrentar estratégias críticas como as que vivemos atualmente, e temos também vivido no passado. Não há demônios a exorcizar, como, por exemplo, acusar o Judiciário de usurpar competências do Le10


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

gislativo, nesta quadra histórica. Muitas vezes, como na Inglaterra de Margaret Thatcher, a Suprema Não há demônios a exorcizar, como, por exemplo, Corte Britânica impediu que o acusar o Judiciário de usurpar competências do governo liberal avançasse, ainda Legislativo, nesta quadra histórica. Muitas vezes, mais, na destruição dos direitos sociais dos trabalhadores afetacomo na Inglaterra de Margaret Thatcher, a Suprema dos pela privatização e desnacioCorte Britânica impediu que o governo liberal nalização do parque produtivo. avançasse, ainda mais, na destruição dos direitos Nos Estados Unidos, especialmente nos anos 1960, não fosse a sociais dos trabalhadores afetados pela privatização e Suprema Corte liderada pelo Juiz desnacionalização do parque produtivo. Warren, com ajuda efetiva do Poder Executivo, não haveria normas de forçosa integração racial nas escolas, nas instituições públicas em geral e nos social, o Judiciário entra e sempre entrará em cena modos de convivência social que excluíam a popula- para decidir, supostamente, em favor da maioria ção negra dos mais simples direitos. No Brasil, ainda desprotegida das circunstâncias. Urge um debate responsável sobre a chamada recentemente, depois de quase vinte anos de impasses legislativos sobre a matéria, o STF determinou a pos- Judicialização da Política, pois os procedimentos judiciais geralmente são pontuais e não permitem sibilidade do aborto em casos de anencefalia. Nestes casos de verdadeira substituição dos po- considerações estruturais sobre a constituição da deres constitucionais pelas Cortes Supremas, quan- crise. Somente a efetiva participação dos movimentos sociais e das entidades sindicais poderá afetar o tas mortes, acidentes e tragédias foram evitados? Cada caso é uma oportunidade de reflexão sobre desequilíbrio entre os Poderes da República. Dada as responsabilidades dos representantes populares e a ausência de decisões que considerem as garande seus partidos. Também é o caso de invocar a ne- tias ao trabalho e à vida, permanentemente, não há cessária presença ativa das corporações empresarias como evitar que as medidas sejam depositadas nas e dos sindicatos dos trabalhadores no âmbito dos responsabilidades do Poder Judiciário. Isto enfradebates e de formulações alternativas que permitam quece o princípio da representação política dos cidadãos pelo voto, especialmente dos trabalhadores, encaminhamentos socialmente defensáveis. Um caso particular diz respeito à constitucio- que sempre são os primeiros a ser atingidos pelas nalmente consagrada “função social da empresa”, medidas de ajuste econômico; como, aliás, tem sido tal como ocorre no Brasil. Quais os limites da res- o caso do seguro-desemprego no Brasil, tal como ponsabilidade social das empresas, diante das agru- decidido unilateralmente pelo Poder Executivo com ras dos ciclos econômicos? Na verdade, a questão respaldo de um Poder Legislativo submisso e semenvolve, hoje, matérias absolutamente obscuras e pre na expectativa das “próximas eleições”. Este caso não-gerenciáveis, sejam pelo Legislativo, sejam pelo possibilita uma efetiva judicialização da questão, Executivo. Assim, em situações extremas de conflito uma vez que direitos sociais são afetados? ■

http://www.allabroad.org/ 11


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

O incrível e triste fado da supertele luso-brasileira Parte 2 – da entrada dos portugueses da Portugal Telecom ao pedido de recuperação judicial Carlos Muller – Jornalista

P

ara recompensar a fidelidade dos eventuais leitores, vamos começar por onde terminou a primeira parte dessa história, incluída no Nº 5 de O Manto Diáfano. Ao longo de 2007 e 2008 foi se tornando evidente que o mundo caminhava a passos firmes para o que seria a maior crise econômica desde 1929. O evento mais dramático a indicar que a situação era gravíssima ocorreu no dia 15 de setembro de 2008, quando o banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers faliu. Nos meses seguintes, a situação continuaria a se agravar, com o PIB de muitos países recuando significativamente. As medidas anticíclicas adotadas pelo governo fizeram que o Brasil mantivesse o crescimento econômico em 2008 (teria uma retração de apenas 0,1% no ano seguinte e apresentou uma expansão de 7,5% em 2010). Tais políticas viriam a gerar uma série de distorções que estariam por trás da crise econômica e política de 2015/16. Este era o cenário no momento da compra da BrT pela Oi. Apesar de as contas nacionais brasileiras indicarem desempenho positivo, a situação e as perspectivas estavam longe de ser tranquilizadoras. Ainda assim, no dia 17 de outubro de 2008, pouco mais de um mês após a quebra do Lehman Brothers, a Oi divulgou comunicado no qual afirmava que “dará sequência ao plano de aquisição do controle da Brasil Telecom”. Como relatado na Parte 1, a BrT foi finalmente comprada pela Oi por um preço muito superior – grosso modo o dobro de seu valor de mercado no fechamento do negócio – com dinheiro emprestado, num mercado em estagnação. Isso levaria a um aumento do seu endividamento, inclusive porque, posteriormente, foi constatado que as finanças da comprada embutiam dívidas desconhecidas de alguns bilhões de reais que deveriam ser assumidas pela compradora.

Sufocada em dívidas, em 2010, a Oi buscava uma saída para seus problemas, mais uma vez recorrendo ao expediente de pedalar mais rápido, no caso, de obter mais capital ou novos sócios. Os controladores, as empresas pelas quais os grupos La Fonte e Andrade Gutierrez participavam da holding da Oi, também estavam endividados e não tinham condições de aportar capital. A solução veio por intermédio de uma tortuosa negociação com a Portugal Telecom, a ex-estatal portuguesa que desde a privatização brasileira estava presente nas sucessoras da Telebras. Em 2010, a Portugal Telecom dividia em partes iguais com a espanhola Telefónica (controladora da antiga Telesp), a Brasilcel, holding que detinha 60% das ações da Vivo, então a principal operadora brasileira de telefonia celular (57.7 milhões de acessos ou 30,14% do mercado, em setembro de 2010, segundo a Anatel). Os espanhóis estavam determinados a serem os únicos donos da empresa. A primeira proposta de compra da parte do sócio foi feita em 2007, por € 3 bilhões. A segunda, em 2010, foi inviabilizada pela intervenção do governo português, então chefiado pelo socialista José Sócrates (hoje às voltas com a Justiça por negócios pouco republicanos que ajudou a viabilizar), e finalmente concretizada em 28 de julho do mesmo ano, ao preço de € 7,5 bilhões.

A supertele luso-brasileira No mesmo dia de sua saída da Vivo, a Portugal Telecom anunciava que utilizaria a receita da venda de suas ações na Vivo para comprar uma participação na Oi. O negócio não contribuiria em nada para aliviar a situação financeira da “supertele verde 12


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

e amarela” porque, como resume a reportagem da revista Exame sobre o pedido de recuperação judicial da Oi:

Ao “pé do altar”, uma das “nubentes”, a Oi, ficou sabendo que parte do dote da outra, a Portugal Telecom, fora entregue a um amante falido. Numa operação que ainda está sub judice em Portugal, a Por“A Portugal Telecom (...) pagou mais de 8 bi- tugal Telecom aplicara, sem informar ao mercado, € lhões de reais para comprar ações e nenhum 897 milhões em títulos da insolvente Rioforte, uma centavo foi parar no caixa da Oi ou destina- holding não financeira do Grupo Espírito Santo. A do para pagar dívidas. A Portugal Telecom união esteve para ser desfeita, com uma troca, em comprou participações indiretas de controle cima da hora, da Portugal Telecom pela Tim, contronos veículos que eram de Andrade e Jereissati lada pelos italianos. (os reais controladores da Oi), entregando diO arranjo emergencial não prosperou e, apesar nheiro a esses acionistas e também aos fundos do escândalo, a fusão foi mantida, mas com uma rede pensão Petros, Funcef e Previ. Os valores dução da participação da Portugal Telecom na nova pagos à Andrade e Jereissati foram seis vezes empresa. Ainda assim, a parte portuguesa envolvia superiores aos entregues aos fundos. Ao final, suas participações em empresas de telecomunicaa Portugal Telecom ficou com 22% da Oi e voz ções em ex-colônias lusitanas na África e na Ásia, de comando.” negócios ainda mais obscuros e de pouca liquidez devido aos parceiros locais, como a Unitel, de Angola, controlada pela multimilionária Isabel dos Santos, não circunstancialmente filha de Eduardo dos Como se sabe, as afinidades entre brasileiros e Santos, presidente angolano desde 1979. portugueses não desapareceram em quase dois Como se sabe, as afinidades entre braséculos de separação política. As biografias da Oi sileiros e portugueses não desapareceram em quase dois séculos de separação e da Portugal Telecom são uma prova lamentável política. As biografias da Oi e da Portude que dos dois lados do Atlântico os negócios gal Telecom são uma prova lamentável de podem ser tão fraternalmente marotos. que dos dois lados do Atlântico os negócios podem ser tão fraternalmente marotos. A Portugal Telecom também nasceu de um processo de privatização, realizaO presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que de- do, em etapas, a partir do final da década de 1980. fendera o apoio do governo à fusão da Oi com a BrT Chegou a ser a terceira maior empresa portuguesa, para que, desse modo, fosse criada uma supertele também manteve uma promiscuidade perniciosa verde e amarela, não se deu por achado. Em entre- em relação ao dinheiro público com governos de vista no mesmo dia, conforme o site TIInside, “ga- vários matizes ideológicos. Durante toda a sua acirantiu que a venda de parte do controle da Oi para a dentada existência foi controlada por acionistas e Portugal Telecom não afeta os planos governamen- administrada por executivos espertos – alguns dos tais de manter a concessionária como uma ‘empresa quais alternada, ou simultaneamente, também da nacional’. ’A Oi continuará sendo brasileira da Sil- Oi. Sobre-endividada e incapaz de fazer os invesva’”, afirmou. timentos necessários, também foi obrigada a pagar Sem dinheiro novo, a Oi não conseguia fazer os dividendos acima do razoável. investimentos tão necessários no setor, perdia mercado e valor de mercado, aumentava seu endividamento e, mesmo assim, pagava dividendos elevados, conforme exigência dos principais acionistas brasileiros e portugueses. Mais uma vez, a solução visUm dos empresários que sangraram a Portugal Telumbrada foi pedalar. Dessa vez, a ideia foi fundir a lecom é Nuno Vasconcelos, dono do Grupo Ongoing, Oi e a Portugal Telecom numa supertele luso-brasi- uma companhia com holdings e ramos financeiros em leira, anunciada em 02 de outubro de 2013. Portugal, no Brasil e em paraísos fiscais. Ele chegou

Ongoing

13


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

a ter uma participação de 10% na Portugal Telecom, obtida com empréstimos (inclusive junto ao Banco Espírito Santo) garantidos por ações da própria Tele, e outros malabarismos financeiros. Para expandir seus negócios recorreu a meios que parecem saídos de novela policial de qualidade duvidosa: tráfico de influência, contratação de arapongas, ligações maçônicas... e a fortuna materna. Em meio a uma disputa negocial, Vasconcelos teria afirmado que “Se não foi uma ditadura que nos impediu de fazer negócios, nada nos inibe”. Afirmação curiosa, uma vez que a fortuna da mãe Isabel, que ele manipulou de maneira temerária, tem origem na Sociedade Nacional de Sabões (sic), grupo industrial integrante da base econômica da ditadura salazarista, da qual obteve privilégios comerciais nas então colônias. Nuno Vasconcelos, entretanto, é conhecido no Brasil por outros motivos. Além de atuar no ramo das telecomunicações beneficiando-se de suas relações com autoridades dos dois lados do oceano (entre os quais os José Sócrates e Dirceu), pretendeu fazer da Ongoing um grupo de mídia internacional. Deste lado do Atlântico, por meio da Ejesa, fundou o jornal Brasil Econômico e comprou, no Rio de Janeiro, O Dia, Meia Hora e Campeão. A exigência constitucional de que meios de comunicação pertençam em pelo menos 70% a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos não foi problema para ele. Casualmente, sua então esposa, Alexandra (Xandinha) é brasileira e, por pura coincidência, a diretora de marketing e responsável pelas relações institucionais da Ejesa era Evanise Santos, então companheira de José Dirceu.

dia em que pediu a recuperação judicial valia R$ 800 milhões. Já as empresas dos ex-controladores Andrade Gutierrez e Jereissati (a “telegang”, como foram chamadas no tempo da privatização da Telebras), não terão muito a perder. Foram saindo “de fininho” e, dependendo da fonte, possuiriam atualmente menos de 5% do capital da Oi cada um. Em meio ao conflito entre seus acionistas, a Oi tem até 29 de agosto para apresentar nova proposta aos credores. Enquanto isso, a Anatel e setores do governo estudam mudanças regulatórias e outras medidas para aliviar a dívida da Oi. Com dinheiro e patrimônio público, naturalmente. A fusão entre a Oi e a Portugal Telecom não chegou a ser consumada tal como planejado. A Portugal Telecom realizou uma reestruturação, passando a ser composta por duas holdings: a PT Portugal, vendida em junho de 2014 ao grupo europeu Altice (que tem entre seus principais acionistas o português Armando Pereira) e a PT SGPS (rebatizada de Pharol em maio de 2015), que ficou com a dívida da Rioforte e com 27,5% da Oi. Em outras palavras, não sobrou muita coisa da parte lusa da supertele. A situação da Ongoing não é melhor. Suas ações na Portugal Telecom (e indiretamente na Oi) foram entregues aos bancos credores em razão do não pagamento de empréstimos. Suas empresas de mídia foram vendidas ou murcharam, como os jornais em Portugal e no Brasil, que deixaram de circular ou estão à míngua. Suas dívidas são superiores a € 1,3 bilhão (incluindo prosaicos € 72 a uma florista), sem receitas que permitam sonhar com sua quitação. Isso levou a Ongoing Strategy Investments, uma de suas principais holdings, a entrar com um “Processo Especial de Revitalização”, a versão portuguesa da recuperação judicial brasileira. Nuno Vasconcellos colocou à venda algumas propriedades, mas não está à beira da miséria. Além de uma fortuna (em comum com a ex-esposa) avaliada em € 370 milhões, apresenta-se como credor de € 10 milhões de uma de suas empresas, a Insight Strategic Investments. Se, como diz a música, “dinheiro na mão é vendaval”, o que aconteceu com os principais envolvidos neste relato é a tempestade perfeita. Talvez tudo não passe mesmo de um fado, aquele cuja primeira estrofe diz “Deixaste em testamento/Tristezas dum inverno/Murmúrios de um lamento/As chamas do inferno”. Ou aquele outro que termina dizendo “Fecha tudo bem fechado/Que não entre a claridade/Eu hoje fico trancado/P’rá não ver a realidade”. ■

O fado Seis anos depois da entrada da Portugal Telecom na Oi, Brasil e Portugal vivem graves crises econômicas e vários dos governantes envolvidos no sonho da supertele luso-brasileira foram, estão ou poderão vir a ser presos. No dia 20 de junho último, com dívidas de R$ 65 bilhões (que poderão ser ainda maiores) a Oi, incapaz de chegar a um acordo com os credores, mesmo oferecendo 70% de suas ações em troca da renegociação da dívida, entrou com um pedido de recuperação judicial ao juiz da 7ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, concedida nove dias depois. A empresa que em 2012 chegou a ter um valor de mercado de R$ 21,3 bilhões, no 14


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

As Derradeiras Horas PARTE 1 “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Getúlio Vargas, Carta-Testamento. Vitória na Derrota: a Morte de Getúlio Vargas

A

crise político-militar em que o Brasil mergulhara atingiu, no dia 5 de agosto, níveis intoleráveis: elementos supostamente da Guarda Pessoal atentaram contra a vida de Carlos Lacerda. No episódio, morreu baleado o major-aviador Rubem Florentino Vaz, que, naquela noite, dava proteção ao jornalista. O atentado chocou o país. Ao ser informado do ocorrido, Getúlio teria dito: “Essa bala não era dirigida a Lacerda, mas a mim”. Getúlio estava certo: o atentado tinha como objetivo principal precipitar o golpe que o derrubaria. No hospital, onde foi atendido, Lacerda culpou diretamente o presidente pelo ocorrido. “Perante Deus”, armou em artigo publicado na Tribuna da Imprensa, “acuso um só homem como responsável por esse crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá audácia para atos como o desta noite. Este homem chama-se Getúlio Vargas. Ele é o responsável intelectual por esse crime. (…) O governo de Getúlio é, além de imoral, ilegal. É um governo de banditismo e de loucura”. (TRIBUNA DA IMPRENSA, 5 de agosto de 1954). Procurado pela imprensa, o brigadeiro Eduardo Gomes fez uma declaração; “Para honra da nação, confiamos que este crime não ficará impune!”. ▶

Ronaldo Conde Aguiar Verbena Editora

15


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

No dia seguinte, uma versão do atentado corria – e era repetida em todos os jornais, rádios e discursos dos políticos de oposição. O atentado fora perpetrado por pistoleiros contratados por Gregório Fortunato, o chefe da Guarda Pessoal. De início, falou-se que Lacerda fora vítima de uma emboscada, os tiros vindo de vários pontos – “uma artilharia infernal”. Depois, passou a predominar a versão propriamente de um atentado, ou seja, da ação de um só pistoleiro, que disparou contra Lacerda e contra o major Vaz. O nome de Lutero Vargas surgiu também como provável mandante do crime. Segundo Carlos Lacerda, Gregório não teria intelecto suficiente para imaginar e planejar o atentado. Getúlio sabia, por experiência própria, que nenhuma crise política suporta um cadáver, mormente se esse cadáver usa uma farda, é jovem, tem esposa e filhos pequenos. Em 1930, um cadáver civil ajudara a eclosão da revolução que o pôs, pela primeira vez, na presidência, durante 15 anos. Getúlio ainda determinou a Tancredo Neves, ministro da Justiça, que não medisse esforços no sentido de apurar as responsabilidades. Tancredo divulgou, em seguida, um comunicado reproduzindo as instruções que recebera do presidente. Designou o promotor público João Batista Cordeiro Guerra e o coronel-aviador João Adil de Oliveira para acompanhar o inquérito, a cargo da polícia civil. No dia 8 de agosto, Getúlio dissolveu a sua Guarda Pessoal, composta de 83 homens. Todas as providências cabíveis foram tomadas por Tancredo Neves, mas a oposição estava mesmo disposta a afastar Getúlio da presidência. Lacerda mantinha-se implacável:

golpe, é preciso que a nação esteja preparada para dar o contragolpe antes que ele faça correr mais sangue de brasileiros”. (TRIBUNA DA IMPRENSA, 9 de agosto de 1954). No dia 9 de agosto, o deputado Afonso Arinos subiu à tribuna da Câmara e definiu o ponto de vista da UDN sobre o atentado. Arinos foi duro ao jogar sobre o governo a responsabilidade do crime. Previu o desdobramento da crise e o envolvimento inevitável das forças armadas. Defendeu, apoiando pedido do deputado Aliomar Baleeiro, a deposição de Getúlio. “É uma situação de inexplicável complexidade, de indiscutível gravidade, a que o senhor presidente da República deveria prestar atenção, não ouvindo aqueles que, por sentimentos de boa formação, de lealdade pessoal, os mais nobres, ou por outros sentimentos que me escuso de definir, os menos nobres, lhe recomendam não obedeça à voz da razão, não ouvindo a nós, que S. Exa sempre suspeita de estarmos procurando afastá-lo da posição que conquistou com grande vitória sobre nós. (…) Afastar-se, licenciar-se, renunciar, são coisas que ocorrem nos países democráticos, que têm ocorrido muitas vezes e muitas vezes têm sido remédio para a solução dos problemas políticos sem remédio”. A cada dia, a crise avançava, enrodilhando Getúlio num seriado sem fim de ofensas e acusações. No dia 10 de agosto, numa reunião do Clube da Aeronáutica, com a presença do brigadeiro Eduardo Gomes, vários oficiais da FAB exigiram a deposição de Getúlio. Na ocasião, Eduardo Gomes foi aclamado “chefe incontestável da Aeronáutica”, numa afronta ostensiva ao ministro Nero Moura.

“O senhor Getúlio Vargas não é mais a autoridade legítima desde o momento que se descobriu que gente sua é autora do atentado da rua Tonelero. (…) O senhor Ge- túlio Vargas não entregará o mandante do crime. Pois se não entregou para ser julgado o criminoso quando os crimes eram apenas o de peculato, prevaricação, falso testemunho, pecados veniais dessa oligarquia, muito menos o fará agora, quando não só a pena é maior, como envolve o seu inevitável desmoronamento moral e político. (…) Se o senhor Getúlio Vargas, levado pelos próprios crimes da sua gente, tentar aproveitar-se destas horas aparentemente confusas para armar os elementos do seu

“No mesmo dia, realizou-se uma reunião secreta de altas patentes militares na qual ficou decidido que Eduardo Gomes, o general Juarez Távora (comandante da Escola Superior de Guerra), o almirante Renato Guilhobel, ministro da Marinha, o general Álvaro Fiúza de Castro, chefe do Estado-Maior do Exército, e o brigadeiro Ivan Carpenter Ferreira, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, se reuniriam com o general Zenóbio da Costa e lhe pediriam que retirasse seu apoio ao presidente 16


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

e insistisse na sua renúncia. No dia 11, Zenóbio recusou a proposta. No mesmo dia, em seguida à missa em memória do major Vaz, verificaram-se manifestações de hostilidade ao governo no centro do Rio de Janeiro. Os comandos militares continuavam se reunindo”. (BOJUNGA, Cláudio. JK: o artista do impossível. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 245).

As injúrias que me lançam, as pedras que me atiram, a objurgatória, a mentira e a calúnia não conseguirão abater o meu ânimo, perturbar a minha serenidade, nem me afastar dos princípios de amor e humildade cristã por que norteio a minha vida e que me fazem esquecer os agravos e perdoar as injustiças. Por outro lado, não terei condescendência para aqueles que se fazem agentes do crime ou instrumentos da corrupção. (…) No governo, represento o princípio da legalidade constitucional, que me cabe preservar e defender. Dela não me separarei e advirto aos eternos fomentadores da provocação e da desordem que saberei resistir a todas e quaisquer tentativas de perturbação da paz e da tranquilidade públicas”. (VARGAS, Getúlio. O governo trabalhista do Brasil. São Paulo, José Olympio, p. 508, v. 4).

Getúlio tinha, no dia 12 de agosto, um compromisso em Belo Horizonte: participar, como convidado do governador Juscelino Kubitschek, da inauguração da Usina da Mannesmann. Assessores e amigos do presidente temiam que durante a ausência de Getúlio da capital federal ocorresse um levante militar. Os riscos eram imensos: admitiu-se, inclusive, a hipótese de um atentado contra o presidente. Todos estavam certos, mas Getúlio não aceitou quaisquer ponderações a respeito e decidiu que, a despeito de tudo, iria a Belo Horizonte. As fotos da ocasião mostram Getúlio de óculos escuros e chapéu, jaquetão folgado e fisionomia grave e abatida. O discurso de Juscelino foi digno e solidário: manifestou, com clareza, o seu apreço por Getúlio, a quem fez elogios. O discurso do presidente foi uma resposta dura aos seus adversários – e indicava a sua disposição de resistir (e não a de renunciar):

Preso, no dia 13 de agosto, por soldados da Aeronáutica, o pistoleiro Alcino João do Nascimento confessou – segundo ele, sob tortura –, que matou o major Vaz e feriu Lacerda a mando de Climério Euribes. Disse, ainda, que José Antonio Soares, sócio e compadre de Climério, atuara como intermediário entre os dois. Alcino informou que ouvira de Soares a informação de que Lutero Vargas teria sido o mandante do atentado contra Lacerda. O depoimento de Alcino, portanto, confirmava parte da versão que, desde o atentado, circulava, e que mais tarde ficaria sendo a versão oficial dos acontecimentos: tudo tivera origem, única e exclusivamente, na Guarda Pessoal de Getúlio, chefiada por Gregório Fortunato, a partir de uma ordem expressa do filho do presidente. É certo que Lutero Vargas não havia encomendado a ninguém tal espécie de serviço. O mesmo se

“As minhas preocupações com o bem público não me deixam fugir ao dever, onde quer que tenha de ser cumprido. E eu o cumprirei até o fim. (…) Espalhando o germe da discórdia, procurando subverter a força e o prestígio da autoridade, falseando os fatos e fantasiando as intenções, há um propósito de gerar a confusão pela mentira, para levar o país à desordem, ao caos e à anarquia. (…)

www.verbenaeditora.com.br 17


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

pode dizer em relação ao general Mendes de Morais, ao deputado Danton Coelho, ao empresário Euvaldo Lodi e a Benjamin Vargas, todos citados por Gregório Fortunato como mandantes ou instigadores da eliminação física de Carlos Lacerda, e incluídos no relatório final do Inquérito Policial Militar que investigou o crime. Tempos depois, o próprio Gregório admitiu que citara esses nomes para complicar as apurações.

O vice-presidente Café Filho, que até o momento permanecera em silêncio, procurou o ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, e depois o próprio Getúlio, para sugerir, como solução para a crise, que ambos, presidente e vice-presidente, renunciassem. O governo seria entregue a Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, que convocaria o Congresso para eleger um novo presidente em 30 dias. Getúlio ouviu tudo em silêncio: declarou apenas, encerrando a conversa, que não era um criminoso, logo não tinha nenhum motivo para renunciar. Não satisfeito com a resposta de Getúlio, e desejando, de fato, pressioná-lo, Café Filho resolveu falar no Senado:

“Gregório foi preso a 15 de agosto de 1954, um domingo. Levado para a Ilha das Cobras, QG dos Fuzileiros Navais, submeteram-se a exames de coração, pois a partir daí enfrentaria uma série de torturas, inclusive em cabines de voos simulados”. (LOUZEIRO, José. O anjo da fidelidade: a história sincera de Gregório Fortunato na era Vargas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2000, p. 386. Nota do Autor: As mesmas denúncias de tortura foram feitas por Alcindo João do Nascimento).

“Como presidente desta Casa, não posso nem quero mantê-la desinformada de uma atitude que acabo de tomar, envolvendo a responsabilidade do meu mandato, perante vós e o povo brasileiro. (…) Tomei a iniciativa de procurar o excelentíssimo doutor Getúlio Vargas. Fui levar-lhe não só as impressões colhidas em contato com os chefes militares e os líderes políticos de maior responsabilidade, mas propor-lhe também uma fórmula concreta, que me pareceu capaz de abrir margem a uma solução alta e impessoal, em que, acima de quaisquer sentimentos pessoais ou partidários, se colocassem os sagrados interesses nacionais. Essa fórmula consiste na renúncia simultânea do presidente e do vice-presidente, de modo a permitir, de acordo com a Constituição, a eleição de um novo presidente, dentro de 30 dias, para o término do período presidencial. (…) Sua Excelência, depois de ouvir-me, disse que precisava pensar e prometeu-me uma decisão, que ontem me foi transmitida de modo negativo”. (CAFÉ FILHO, João. Discurso no Senado. In: SILVA, Hélio. 1954 – Um tiro no coração. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 256-257).

Impressionado com o rumo dos acontecimentos e com a quantidade de nomes que eram citados como cúmplices, mandantes e facilitadores do atentado, Afonso Arinos sobe mais uma vez à tribuna e declara, em discurso tão inflamado como patético, que ao presidente nada mais cabia que renunciar: “Será mentira o sangue que rolou na sarjeta da rua Tonelero? (…) Será mentira tudo isso? Estaremos nós vivendo num meio de realidades ou de sonhos? Ou será ele o grande mentiroso, ou será ele o grande enganado, ou será ele o pai supremo da fantasmagoria e da falsidade?”. Ao ser preso no dia 15, Gregório Fortunato ficou incomunicável. No dia seguinte, o ministro da Aeronáutica, Nero Moura, pediu demissão, dizendo-se incapaz de controlar a revolta que grassava entre os oficiais da arma. Foi substituído pelo brigadeiro Epaminondas dos Santos, amigo pessoal de Getúlio. No dia 17, Gustavo Capanema, líder da maioria, leal ao presidente, levanta a voz na Câmara dos Deputados para defender a família de Getúlio, atacada e vilipendiada pela oposição. Numa época em que inúmeros políticos preferiam se calar, Capanema declarou, enfrentando os golpistas, que a exigência de renúncia não era um reclamo do povo, mas, sim, de um partido político, a UDN, cujos líderes instigavam as Forças Armadas à derrubada, pela força, do presidente.

A renúncia de Getúlio tornou-se ideia fixa da oposição. No dia 22 de agosto, os brigadeiros lotados no Rio de Janeiro fizeram uma reunião no Clube da Aeronáutica e, mais uma vez, disseram sim à proposta de Eduardo Gomes de exigir a renúncia do presidente. Resolveram, então, solicitar ao marechal Mascarenhas de Morais que fosse transmitir

18


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

a Getúlio a exigência. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas aceitou a incumbência – e à noite conversou com o presidente. — Não pode ser, marechal. Não devo nem posso concordar com isso – disse Getúlio, a voz firme. — É a melhor solução para a crise, presidente. — Querem me escorraçar daqui como se eu fosse um criminoso. Não pratiquei nenhum crime. – Fez uma pausa e acrescentou: – Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho razões para temer a morte. Na tarde do dia 23, começou a circular a informação de que alguns generais, estacionados no Rio (entre os quais estavam Canrobert Pereira da Costa, Juarez Távora, Álvaro Fiúza de Castro, Alcides Etchegoyen, Peri Constant Beviláqua, Humberto Alencar Castelo Branco, José Machado Lopes e Henrique Dufles Teixeira Lott), teriam preparado um manifesto, endossando a posição dos brigadeiros. Pouco antes da meia-noite, Zenóbio da Costa chegou ao Catete – e foi imediatamente recebido por Getúlio. O ministro da Guerra foi solene: só um pequeno número de generais era favorável à permanência de Getúlio. — E o manifesto dos generais? – perguntou o presidente, encarando o seu ministro da Guerra. Zenóbio retirou da pasta uma folha de papel, passando-a ao presidente, que leu: “Os abaixo-assinados, oficiais-generais do Exército, conscientes dos seus deveres e responsabilidades perante a nação, (…) e solidarizando-se com o pensamento de seus camaradas da Aeronáutica e da Marinha, declaram julgar (…) como melhor caminho para tranquilizar o povo e manter unidas as forças armadas a renúncia do atual presidente da República, processando-se sua substituição de acordo com os preceitos constitucionais”. (Manifesto dos Generais. In: SILVA, Hélio, 1954 – Um tiro no coração. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 345-346). Getúlio, mais uma vez, descartou a hipótese da renúncia ou da licença, mas aceitou discutir o assunto na reunião de ministros que convocara para aquela madrugada. ■ Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

19


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Das mulheres gestantes, novas mães e sonhos perdidos no sistema penal inconstitucional: uma relação antinômica à Lei 13.257/16 (Lei da primeira infância) João Mingorance – Advogado, membro da REFORMA (Rede Jurídica pela a Reforma da Política de Drogas)

N

ão há como compreender a insistência na verdade simbólica, ilusória, de que o direito penal cumpre com as suas finalidades declaradas. Um sem-número de promessas feitas a mim mesmo e a terceiros – que, acredito, não feriram bem jurídico alheio, em respeito ao princípio da alteridade – mas que mal cheguei a realizá-las. O direito penal me recorda aqueles pensamentos que nos sabotam, facilmente. Daqueles pensamentos que se tem plena convicção de que estão longe de ser verdade, contudo, o torpor da ideia doentia quase sempre se mostra superior a qualquer problema consequente à prática daquele pensar e que, se realmente pensado com cautela e informação honesta, possivelmente não o faríamos. É pior do que voltar à casa após ter praticado determinado exercício físico em busca de emagrecer e abrir a geladeira com o objetivo de encontrar alguma droga lícita, cujo uso abusivo seria capaz de causar inúmeras doenças que estão por alimentar demais interesses econômicos relacionados à indústria farmacêutica e centros de estética. Não quero aqui problematizar o açúcar, nem as indústrias, tampouco um sistema político-econômico que dinamiza toda uma série de desigualdades que impedem o aperfeiçoamento do Estado Constitucional e Democrático de Direito, mas sim centralizar os olhos a um problema diário, pragmático, que diz respeito à uma política equivocada e inconstitucional sobre a questão das drogas e da forma como o Estado Constitucional e Democrático de Direito Tupiniquim tem buscado oferecer a suas mulheres, em especial, às mulheres presas que se encontram gestantes, e/

ou que sejam mães, cujos filhos se encontrem no estágio da primeira infância – período de idade de crianças entre 0 (zero) e 6 (seis) anos. Pois bem. Há um problema notório, diário e responsável pelo processo de superencarceramento da população jovem, negra e pobre brasileira. É o problema da “Guerra às Drogas” – ou, a bem da verdade, trata-se de uma política responsável por proibir algumas condutas relacionadas ao contato com algumas drogas, inexistindo critério científico que justifique, a partir dos mais recentes estudos sobre a seara das drogas, razão pela qual uma determinada substância seja lícita e outra não. A questão é mais complexa do que isso e diz respeito a uma imensa carga histórica e cultural motivadora do modo como as coisas se encontram e como atualmente estão. Não se imaginaria, por exemplo, que os fatos políticos ocorridos em 1892, período em que se organizaram os saberes e práticas do Partido Proibicionista, numa Convenção organizada em Cincinnati, Ohio, teriam relação com os óbices morais e hermenêuticos que hoje impossibilitam a aplicação imediata de direitos de ordem fundamental, consagrados no texto constitucional e em matéria infraconstitucional. Nesse sentido, o advento da Lei 13.257/16, Lei da Primeira Infância, diz respeito a um novo colorido ao ordenamento jurídico brasileiro – que se mostra incapaz, por razões pragmáticas, de colorir com políticas constitucionais a realidade inconstitucional, seja por ação e omissão do Estado, que se faz presente na vida daqueles compreendidos como vulneráveis em direitos, mas protagonistas de deveres. ▶ 20


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Assim, a prática das agências de controle penal tem nos mostrado, com toda sua eficiência desorganizada, que o crime que mais prende pessoas diz respeito ao tráfico de drogas – crime responsável por encarcerar, cada vez mais, jovens mulheres que não tiveram seus direitos sociais garantidos pelo poder público, sob o mito de se buscar ressocializar pessoas que não tiveram condições de serem socializadas. Trabalhando com dados nunca antes obtidos, o INFOPEN MULHERES – estudo promovido pelo Departamento Penitenciário Nacional em conjunto com o Ministério da Justiça (2014) – traduz em números o sucesso da política proibicionista-belicista sobre a questão das drogas, de sorte que indica um crescimento de 567% da população feminina presa no período de 2000 até 2014, índice superior à taxa de aprisionamento geral da população carcerária que, no mesmo período, foi de 119%. Nessa esteira, a porcentagem de mulheres presas em razão da atual política de drogas diz respeito a 68%. Ademais, o INFOPEN MULHERES concluiu que a atual taxa de aprisionamento de mulheres – o estudo leva por base a quantidade de mulheres presas para cada 100 mil habitantes – nos coloca em sétimo lugar no ranking mundial de mulheres presas, de modo que a cada 100 mil mulheres teríamos uma média de 18,5 mulheres encarceradas. Talvez, muito provavelmente, esse índice seja maior. Não obstante os incipientes avanços em matéria internacional sobre direitos das mulheres, vide a I Conferência Mundial sobre a Mulher (Cidade do México, 1975) até a elaboração das “Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas privativas de liberdade para mulheres infratoras”, documento também conhecido como “Regras de Bangkok”, o sistema patriarcal e machista diz respeito ao verdadeiro problema das mulheres que são custodiadas pelo o Estado. As estruturas penitenciárias exclusivamente femininas no Brasil são poucas. Ao todo, somente 7% das prisões são destinadas às mulheres. As mulheres que contam com menos sorte se encontram em penitenciárias “mistas”, cujo índice diz respeito a 17% dos presídios brasileiros. Não há como creditar o princípio da ressocialização em meio às colônias penais em que as mulheres são condenadas a cumprirem pena privativa de liberdade. Basta ver com os olhos do corpo o estado de coisas inconstitucional dos presídios brasileiros. ▶

Foto: nrloliveira via Visualhunt / CC BY-NC-SA

Há um problema notório, diário e responsável pelo processo de superencarceramento da população jovem, negra e pobre brasileira. É o problema da “Guerra às Drogas” – ou, a bem da verdade, trata-se de uma política responsável por proibir algumas condutas relacionadas ao contato com algumas drogas, inexistindo critério científico que justifique, a partir dos mais recentes estudos sobre a seara das drogas, razão pela qual uma determinada substância seja lícita e outra não.

21


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

O descompasso entre os objetivos das legislações brasileiras é notório. A inteligência da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84) se mostra incompatível à recente Lei da Primeira Infância (Lei 13.25/16) no que diz respeito aos direitos das mulheres, homens e das crianças sob a ótica do Estado Democrático de Direito. A Lei da Primeira infância traz uma série de garantias e ações que devem ser protagonizadas pelo poder público, de modo a garantir o interesse superior da criança, bem como sua condição de sujeito de direitos e de cidadã (art. 4º, I, da Lei 12.257/16). Ademais, também se asseguram, na teoria, políticas e programas relacionados à maternidade, garantindo-se a todas as gestantes, sem distinção, orientação e formação sobre aleitamento materno, alimentação complementar saudável, crescimento e desenvolvimento infantil integral, prevenção de acidentes e educação sem o uso de castigos físicos, cujo objetivo se foca em estimular os vínculos afetivos e convívio familiar da criança da primeira infância. Ademais, curiosamente, a Lei da Primeira Infância reforça a evidente tese de que nenhuma criança deverá ser submetida a castigos físicos – e a lei indica, em rol exemplificativo, quais seriam os castigos físicos que se quer evitar. Tal previsão legislativa se encontra em meio ao art. 18-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), e consistindo em sofrimento físico, lesão de qualquer natureza, seja física ou mental, tratamento cruel ou degradante que seja capaz de causar humilhação, ameaças ou atos que simplesmente as ridicularize. O que dizer das imensas filas que se formam em dias de visitação de mães e pais presos, sob sol constante e viagens que desafiam qualquer bem-

-estar de um atleta maratonista? A lei diz que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, mas sempre passa. Isso faz os magistrados dormirem de cabeça limpa, funcionando como um “prozac” hermenêutico no momento em que se faz a sentença penal condenatória. Dessa forma, compreender que a Lei da Primeira Infância se mostra elementar no sentido de valorizar a práxis social e compreender que o futuro de uma nação se faz com o mínimo existencial de direitos relacionados às crianças, respeitando-se o princípio da igualdade que possui sede constitucional e que também se encontra na referida lei, imperiosa se faz a crítica em relação aos limites legislativos impostos pela Lei de Execuções Penais, em especial ao art. 83, § 2º, impossibilitando-se quaisquer medidas de atenção e cuidado à criança da primeira infância. Ainda que fosse possível dar fiel cumprimento ao mandamento constitucional que se encontra no art. 5º, L, assegurando-se às presidiárias condições para permanecer com seus filhos no período de amamentação, o art. 83, §2, da Lei de Execuções Penais, além de inconstitucional por estabelecer um período mínimo de 6 (seis) meses de vida no contato da mãe com a criança, tempo insuficiente de vínculo entre mãe e filho, tal disposição legal se faz como uma pedra na engrenagem da máquina que visa dar eficácia material à Lei da Primeira infância. São sonhos perdidos ocasionados por um sistema de aprisionamento inconstitucional – luzes ainda ofuscadas por uma gélida política de drogas, eficaz somente no encarceramento em massa de populações específicas. Mas há alguém a dizer e fazer crer que sonhar ainda é possível, pois ainda, felizmente, não é necessário pagar para sonhar. ■

22


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

RESENHA Ecologizar – Princípios, Métodos e Instrumentos para a ação ecológica A 4ª edição do livro Ecologizar é uma trilogia. São 18 capítulos nos quais se agrupam cerca de 200 textos que refletem sobre a ação ecológica, definem os vários princípios e abordam a questão dos métodos de gestão participativos em várias escalas. O livro conta com prefácios de Pierre Dansereau, professor emérito da universidade de Quebec, em Montreal, e de Pierre Weil, da Unipaz. O primeiro volume trata dos Princípios para a ação. Cinco capítulos abordam o tema a partir das perspectivas da cultura, consciência, ecologia e evolução, valores humanos e economia, realçando a abordagem histórica das questões ecológicas e sua relação com a evolução. O segundo volume relata os Métodos para a ação, em oito capítulos sobre a ação estratégica, gestão colegiada e sobre os temas setoriais da gestão da segurança, do clima, das águas, da cidade e da saúde. Já o último volume trata dos Instrumentos para a ação em cinco capítulos sobre os instrumentos de ordenamento territorial, regulatórios, econômicos, socioculturais e instrumentos educacionais. O livro enfatiza a perspectiva evolucionista da história humana como parte da história da vida que, por sua vez, é parte da história do planeta. Ele oferece subsídios para se formar uma visão integral, sistêmica e ecológica acerca da ecologia. Há um déficit de informação sobre o que é a ecologia e o livro procura organizar e sistematizar conhecimentos voltados para a ecoalfabetização. Da mesma forma ele aborda as questões ligadas à consciência ecológica. O livro coloca em foco a questão ecológica. Defende a necessidade de superarmos a ecoalienação, de nos ecoalfabetizarmos e de conhecermos o que são as ciências ecológicas, fundamentais para orientar a ação. “É um livro com abordagem cultural da ecologia, do ser humano, sua vida e consciência”. O livro se destina ao público em geral, aos gestores públicos e aos gestores ambientais. Proporciona visão panorâmica do contexto e os municia com ferramentas conceituais e operacionais para desenvolverem sua atuação.

O AUTOR Maurício Andrés Ribeiro foi presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil-MG, Secretário do Meio Ambiente de Belo Horizonte, Presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais – FEAM, diretor do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA e vice-presidente da Fundação Cidade da Paz – Brasília. Foi pesquisador visitante do Instituto de Administração de Bangalore, na Índia, e militante de movimentos pacifistas pelo federalismo mundial. Foi professor de Gestão Ambiental Urbana na Universidade Católica de Brasília, na FUMEC-MG e na UNIPAZ-RJ. É assessor na Agência Nacional de Águas. ■

4ª Edição do livro Ecologizar Autor: Maurício Andrés Ribeiro Onde comprar: www.ecologizar.com.br https://www.facebook.com/ecologizar/

ECOLOGIZAR – VOLUME 1 PRINCÍPIOS PARA A AÇÃO 277 p – 2009 – 4ª ed.

ECOLOGIZAR – VOLUME 2 MÉTODOS PARA A AÇÃO 377 p – 2009 – 4ª ed.

ECOLOGIZAR – VOLUME 3 INSTRUMENTOS PARA A AÇÃO 198 p – 2009 – 4ª ed.

23


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Casa de fazenda Quando o brilho dessa lua Clareia todo o sertão A verdade surge nua Em forma de assombração Marcos Loures Márcio Benjamim

A

cadeira de balanço rangia a cada empurrada do velho, a cada alisada na espingarda. Seus dentes também rangiam; iguaizinhos às juntas dos dedos, arrudiando a arma. Rangiam de ódio. Aguardando. Atocaiando. Era sexta-feira. Desde manhãzinha os cachorros tavam era tudo agoniado. O que era mais forte acordou foi estraçalhado em cima de um formigueiro, bem de frente pra casa-grande. Os outros, presos e já meio doidos, puderam fazer nada enquanto os urubus rodavam no céu, pousando de ruma pra devorar o que sobrou daquelas tripas. Coisa de não se crer o pavor nos olhos mortos do bicho. Era mais do que uma perda aquilo. Era uma provocação. A gota d´água no pote. A casa de fazenda, cheia de alpendres e baús de madeira, sem ninguém, parecia maior ainda. As paredes amargavam armadores sem redes. Móveis. Quartos. Todos vazios. Porque o restinho até dos mais fiéis empregados, tinham ido embora. “Essa casa tá maldita, doutor, venha simbora, por caridade. Já morreu gente demais aqui.” O conselho do trabalhador mais antigo latejava nas orelhas já meio surdas do velho. “Já morreu gente demais aqui.” Seis moças. Tudinha morta. O filho único, tomou a estrada. Louco. Sua mulher tinha sido a última; uma senhora, como ele, esbagaçada quando tentou proteger nos seus braços a que sobrou. ▶

Márcio Benjamim é potiguar, advogado, escritor e dramaturgo. Maldito Sertão é o seu primeiro livro, de contos, lançado pela Editora Jovens Escribas em 2012. A segunda edição ampliada foi lançada em 2015, e o livro agora está sendo adaptado para os quadrinhos e o cinema. Este ano lançou o seu primeiro romance, o livro Fome, pela mesma editora. Pelo seu livro de estréia o autor recebeu vários prêmios, inclusive o convite da Universidade de Sorbonne para apresentar seus livros no campus e participar do Salão do Livro de Paris, em março deste ano. No próximo dia 11 de agosto o autor estará presente na Flipipa, Festa Literária de Pipa, para conversar sobre o processo de adaptação do Maldito Sertão para os quadrinhos. Os livros de Márcio Benjamim podem ser adquiridos pelo site: www.jovensescribas.com.br

24


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Tentou sozinha. Porque ele chegou foi tarde demais. Ainda descarregou a munição inteirinha, mas o bicho só fez dar uma olhada pelo rabo do olho e sumir pra dentro da mata, com os pedaços da inocente balançando dentro da boca. O senhor já se viu sozinho, numa casa grande de fazenda, com os restos da sua família esparramados pelo chão de areia? Apois o sangue daquele chão, o sangue daqueles olhos vermelhos, desde então, acompanhavam o velho era todos os dias. Todas as noites. Mortas as meninas, morta a mulher, rondava a casa aquele satanás, uivando alto como um condenado. Chamando quem tinha sobrado. Foi aí que o velho sentiu as juntas doerem. Mas não de idade, de idade não. Sentiu as juntas, o coração; sentiu cada fio de seu cabelo branco, de sua pele enrugada, doer. Doer de ódio. Se era pra ficar vivo, ia ser pra matar. Foi o que jurou, quando enterrou, com as próprias mãos, a mulher e a última filha, junto com as outras cinco moças. Sete cruzes, enfeitadas de laços e fitas, arrumadas em círculo, no fundo do quintal tão grande quanto a casa, juramentaram aquela promessa. Uma promessa sentida demais pra ter sido feita a nosso senhor Jesus Cristo. “Jesus não sabe o que é perder um filho.” – gritou o velho bem alto, no meio do jantar solitário. – “Jesus nunca perdeu uma mulher!” Foi o que bastou pra espantar os empregados. Eles também tinham medo, mas podiam nunca abrir mão da proteção de Deus. Podiam nunca trabalhar numa casa amaldiçoada, onde o patrão tinha botado pra correr o próprio Espírito Santo com tanto sacrilégio. A lapeada do chicote no lombo dos cavalos acordou o velho dos seus pensamentos, levando embora a carroça com os empregados. Dando um adeus de criança, a neta da cozinheira, pequenininha, roía no canto da boca uma chupeta já bem usada, enquanto sumia dentro da poeira. A inveja que o velho sentiu daqueles olhos inocentes era uma moenda, arrochando com a força da saudade o seu coração. Sozinho, apertou com mais força a espingarda, engolindo num suspiro aquele medo de dar tudo errado. E esperou. A noite entrou na fazenda sem pedir licença, invadindo num instante aquela casa tão enorme. Tudo que a pessoa ouvia era o chiado das cigarras e, vez por outra, uma zuadinha de vento nas folhas do juazeiro perto da porteira. Apoiado na espingarda, o velho já não tinha mais a força de antes: sentia como um bacurim deitado em cima do peito. Um punhado de areia soprando em seus olhos cada vez mais pesados. Até que o relógio grande na cozinha badalou meia-noite. E ele deu um pulo, aconchegando a espingarda no peito como quem aninha uma criança. Mas aconteceu foi nada. Deu outro empurrão na cadeira e aguçou os ouvidos. Só ouviu a lua grande, do lado de cima, reluzindo na arma e começou a sentir, devagarinho, a esperança indo embora. Agoniado, sacudiu pra bem longe aquela ideia. ▶

25


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Podia pensar que tava derrotado era de jeito nenhum. Lembra não? da vez que a seca comeu seis meses de plantação? que foi emboscado pelo adversário político? Pois então… Era a voz da mulher passeando pelo vento até o seu juízo. Só que agora não tinha mais mulher, não tinha mais filha; nem Deus tinha mais. Só a espingarda. E se quisesse ficar vivo, tinha que se valer era dela mesmo. Porque era velho, sim senhor, mas ainda acabava com a raça daquele filho do demo. Daquela besta fera. Suspirou pesado. Ainda tinha tempo. Se levantou da cadeira e quis tomar um café. Mas se virou de repente prum uivo desesperado que rasgou o céu daquela noite tão clara. O bicho. Parado em frente à varanda. Apareceu em um piscar de olhos, uma cochilada de nada. Tava certo, finalmente. Era bicho não. Se tava em pé? Um cão ou uma raposa, ainda que fosse, não ia conseguir ficar em pé de jeito nenhum. E o uivo. Quase como uma fala de gente. O velho apontou a espingarda. Num deu tempo nem de piscar os olhos quando o danado correu pra escadaria da varanda, e o velho viu aquele olho vermelho tirando um fino da cara dele, sentiu o cheiro da baba prateada, escorrendo faminta no peito daquela criatura. Agoniado, teve foi vontade de partir pra cima e morrer matando. De rasgar também, morder e sufocar, com mão e dente. Foi tanta raiva que quase não acertou o dedo no gatilho. Quase. Porque a espingarda, tinhosa que só ela, cuspiu no peito do bicho as balas derretidas no tacho de rapadura. Feitas na noite passada, com toda a baixelada da cozinha; do jeitinho que a mulher, em sonho, mandou. Rapazinho de novo, o velho recarregou com firmeza a arma. E disparou de novo. E de novo. Com o peso das balas, o bicho voou de costas e caiu ciscando no chão, dando um uivo gemido. Até que se calou. E novamente, naquela noite de lua, só se ouvia a zuada das cigarras e o chiado das folhas do juazeiro lambendo a cancela do portão. Foi sentindo nas suas pernas o peso todinho da idade que o velho desceu as escadas. Agarrado no terço bento que trazia no pescoço, fez as pazes com Deus. E chegou perto. No que sobrou do galinheiro, o galo cantou. Cada uma das cruzes do quintal, agora vingadas, empurravam-se em sombras pra ver a morte do carrasco. O velho caiu de joelhos, afinal, quando reconheceu no focinho do bicho a cara de seu único filho. Louco. O sétimo, depois das seis meninas. Lobo. ■

26


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

A folha rasgada Murillo de Aragão – Cientista Político

T

Me distraí no café e perdi o trem direto. Fiquei esperando, quase sozinho, um carro da segunda classe. Era o trem parador. Passava por alguns lugares com nomes enigmáticos, como Clapham Junction, que bem parece nome de banda de rock do início dos anos 70. Na monotonia de um trem que parava muito, comecei a ler o livro. Era uma coletânea de short stories com letras grandes e confortáveis de ler. Quase sem risco, imaginei. Mas, a rigor, a escrita, em um inglês antigo, trazia dificuldades para acompanhar o sentido da narrativa. As histórias se sucediam traçando situações hipotéticas com fatos históricos. Havia uma passagem sobre o primeiro voo de Santos Dumont. Outra narrava a oferta inglesa para que o Pará ficasse independente do Brasil. Batalhas da Primeira Guerra Mundial eram contadas. As várias crises políticas inglesas que resultaram na criação do Parlamento, tal qual ele é, foram descritas. Tudo mesclado com a vida cotidiana de pessoas comuns. Não fazia muito sentido. Na verdade, além do inglês antigo, intrigava o fato de que as histórias pareciam maiores que o tamanho do livro. Mas, na falta do que ler, ia eu pelos trilhos do que viria a ser a South West rumo a Bournemouth. ▶

alvez todos pensem que o que escrevo hoje é uma ficção. Nem eu mesmo sei. A certa altura da vida, ficção e realidade se misturam de tal forma que o resultado pode ser absolutamente verdadeiro ou falso. Pouco importa. Tomo como verdade. Certa feita, tendo que tomar um trem para Bournemouth, comprei um livro em um sebo nas cercanias da estação de Waterloo. Era uma viagem curta, mas suficiente para devorar a publicação, que não era extensa. Em se tratando de um livro antigo, verifiquei se estava em perfeitas condições. O papel era áspero, com aquele cheiro inconfundível de livro antigo que causaria alergia nas narinas sensíveis da senhorita Fiebig. Na primeira folha, uma dedicatória: “Para Wilbur, com paixão, Jane”, datada de janeiro de 1936. Assim mesmo, era bem legível. A capa de couro carmim com letras douradas indicava que a publicação era bem mais antiga do que a dedicatória. Procurei em vão a data da impressão. Havia apenas a indicação da editora, que era de Norwich. O livro tinha vida própria. Caiu da estante em minhas mãos quando buscava algo para passar o tempo. Depois de pagar, rumei para a estação, onde busquei um café. Estava muito frio no início de 1980.

Foto: www.pixabay.com

27


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

Certo de que o sono me venceria, continuava a ler imaginando perder a parada e ter de descer em Poole. Quando, sem que eu percebesse, a leitura mudou. O que era uma história alheia à minha vida passou a dialogar comigo. Era mais ou menos assim: a cada parágrafo surgia uma indagação dirigida a mim. Como se o livro quisesse me provocar. E ele sugeria que as respostas estariam adiante. O que você deveria estudar? Onde morar melhor? Como resolver questões de relacionamento com a família? Em quais amigos confiar? Indagava até mesmo se realmente existiam amigos na sua vida… Voltar ou não para o Brasil? As perguntas iam provocando um mal-estar crescente, como se eu tivesse a obrigação de respondê-las e, ao mesmo tempo, o livro indicava que teria as respostas. Adiante. Adiante. E nada. As perguntas vinham em relevo, como se fossem impressas em tipo de papel com espessura diferente. Mas era somente impressão. Ao contato dos dedos, não havia diferença. Até que o livro – em vez de perguntar – afirmou que as respostas estavam nas páginas seguintes. Mais precisamente, na página 143. Rapidamente passei pelas páginas seguintes até que encontrei a página mencionada. Rasgada. Caprichosamente rasgada. Enfurecido, abri a janela e joguei o livro fora. Deu tempo de vê-lo se espatifando em um poste da linha férrea e se desfolhando inteiramente. Dormi. Ainda não tinha passado por Southampton. Na parada anterior a Bournemouth, o fiscal do trem me abordou. Já me preparava para lhe dar o tíquete para ser perfurado quando ele me disse com cara de poucos amigos: “Creio que este livro é seu”. E, para minha surpresa, me devolveu o livro – intacto. Fui buscar a página 143 e, já sem surpresa, descobri que o livro acabava antes. Não havia a tal página. Nem sinal de que houvesse sido destruído pelo impacto com o poste. Em Bournemouth, me livrei do livro em um sebo. Troquei-o por algumas libras, com as quais comprei uma máquina de fotografia usada e uma chuteira de futebol chinesa de péssima qualidade. Que não resistiu à primeira partida do campeonato interescolar. Muitos anos depois, pernoitava em um pequeno hotel em Valparaíso, no Chile. Pouco antes do amanhecer, alguém passou um envelope por debaixo da porta. Pensei que era a conta. Não era. Era a página 143 daquele livro. Sem nada escrito. Apenas a indicação da página. ■

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

28

www.pequi.org.br


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

29


ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão

Capítulo 7 me chamava de garoto. Na hora do café sentamos lado a lado, em volta de uma grande mesa instalada no mesmo salão onde o comandante tentou acabar com a esperança de fuga, normal na cabeça de todo o preso. Trocamos algumas palavras e no meio daquela algaravia o que mais se ouvia era: “de onde veio e por que está aqui”? Ninguém falava muito, alguns nem sabiam por que estavam ali, muitos ainda estavam surdos e pálidos de tanto vomitar e agora é que tomavam conhecimento da fala do comandante, que achei surpreendente, diante das ameaças diárias que recebia em Brasília. Falava cerimonioso, mas dúbio, sem palavras ríspidas, pelo sotaque era do Nordeste, no resto, saía dos padrões: alto e muito magro, maçãs salientes, olhos verdes escuros, cabelo alourado, pele avermelhada. Aí está um exemplar bem evidente do Brasil profundo, pensei, não tanto pelo físico, mas pelo ar triste e andar bamboleante. Todo o conjunto embrulhado no uniforme verde valeu-lhe logo o apelido de Periquito. Deixaram o mapa pregado na parede, desgastado nas bordas, acho que para nos lembrar da ratoeira em que estávamos. Dei uma explorada nele, era aquilo mesmo, Caiena era muito longe e para chegar à Guiana havia um

Dormi sono pesado com a palavra selva na cabeça e nem ouvi os zunidos dos carapanãs em volta da rede de solteiro, incômoda, mas bem melhor do que a cama de madeira de Brasília. Há muito tempo, acho que desde criança, não dormia em rede. Acordei com o ronco do DC3 levando a guarda que nos escoltou, tive um sonho confuso que misturava banho de mar em Copacabana com uma enxurrada que me empurrava contra um paredão de pedras, devia ser pelo gorgolejar do riacho durante a noite. Sonhos, são sonhos, pensei de manhã, ainda no claro-escuro. Hoje, depois que andei lendo uns escritos de Freud, posso imaginar o que meus neurônios estavam me dizendo. Pulei da rede mal-humorado, como sempre, e saí caminhando lentamente em direção ao banheiro coletivo com a escova de dente sem pasta na mão e uma toalha suja e ainda úmida jogada no ombro, uma das cinco peças de uso pessoal que tinha sido possível levar, excluindo a roupa do corpo. Dei de cara com o sujeito de botas, o tal da mala grande, arremessou-me um “buenos dias, garoto!” Nem respondi. Na primeira hora, depois de acordado, mal conseguia falar com alguém, quanto mais dar bom dia a um desconhecido, que ainda por cima

30


obstáculo nada desprezível, o Rio Oiapoque. Macapá estava a uns seiscentos quilômetros, estradas, se existissem, não foram indicadas no mapa, provavelmente não existiam. Do avião não conseguimos observar quase nada, porque as janelas permaneceram bloqueadas com lona, intencionalmente. O que aparecia no mapa, de familiar e mais perto, era o mar, o fazedor de viúvas ficava a escassos cem quilômetros, inviável chegar lá com aquela profusão de rios, igarapés e alagados. E depois, cem quilômetros na selva é muito diferente de estrada. Para completar, tudo em volta era território indígena, os donos eram os Juminás e Galibis que trafegavam entre a Guiana e o Brasil, não reconheciam fronteiras e com toda razão. Lembrei-me do meu pai, que diante de qualquer dificuldade ruminava: “tou fotografado”. As oito da manhã, lá estávamos enfileirados, suando até nas solas dos pés, debaixo do sol acachapante que estranhei muito, depois de passar tantos dias sem vê-lo, agora entendia porque o chamam de astro-rei. Ninguém, a não ser quem fica doente ou preso, faz ideia da falta que faz, mesmo que seja aquela claridade mortiça dos dias nublados. Observava os presos, a maioria na faixa dos vinte e cinco anos, enviados de vários lugares do país, havia seis de Brasília, os mais jovens, achei. O Pará e o Amazonas, ali bem perto, não estavam representados, por ali não havia espaço para isso, disciplina excessivamente rígida, despolitização e distanciamento. O boato era o de que os presos mais perigosos vieram para o Oiapoque. Como? Eu não sou perigoso, pensei. Olhava aqueles homens e não via ninguém com cara de perigoso. O tenente disse o esperado, incluindo uma ameaça: o não cumprimento do regulamento resultava em cadeia com grade, sem poder jo-

gar futebol e trabalhar. Tinham bolado uma tabela interessante: a cada três meses sem ficar atrás das grades, o sujeito tinha direito a um abatimento de dez dias, caso ficasse. Pela tabela percebi que íamos demorar muito no Oiapoque, mas ela dizia algo mais: não criem caso e tudo irá bem, mas aquelas pessoas eram o que se chama de “criadores de caso”. A julgar pelo modo benevolente como éramos tratados e a data de chegada do Comandante, um pouco antes de nós, deduzi que ele ficou do lado errado quando Jango caiu, segundo o Gaúcho, do lado certo. Passávamos os dias trabalhando, jogando futebol ou vôlei, chegamos a organizar algumas partidas dos presos contra o time do comandante, enxertado com alguns índios e uma vez por semana ele convidava um dos presos para almoçar na mesa dele, normalmente composta pelo próprio e o tenente com cara de garoto. Só havia uma condição, era proibido tocar em política. Na minha primeira vez, ele começou com uma pergunta. — De onde você é meu filho? — É uma longa história comandante, respondi. Detestava que me chamassem de meu filho. — De onde você é mesmo? Retirou o “meu filho”. — Do Nordeste, respondi seco. — E o Senhor? — De Alagoas, do Sertão, Mata Grande, conhece? — Meu pai é dali de perto, Palmeiras dos Índios. — Terra de cangaceiros, comentou baixinho para o tenente, como se Mata Grande também não fosse. Segundo meu pai foi um dos poucos lugarejos em que Lampião e seu bando, por mais que tentassem, não conseguiuram entrar. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

31


o manto diáfano

nº 7 ∙ Brasília/DF ∙ 10 ago 2016

32


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.