O Manto Diáfano nº 8 - 20 de agosto de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 8 ∙ Brasília/DF ∙ 20 ago 2016

A Cidade Extraviada As Derradeiras Horas, parte 2 Carta para Alberto

Foto: Bmbyars – pixabay.com

Um pouco fora de foco

A Reconstrução do Sistema Político


4 A reconstrução do sistema político? Revista eletrônica Nº 8 ∙ 20 ago 2016 ∙ Brasília/DF

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VERBENA EDITORA

Lacan e a antifilosofia

CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Conrado Pimentel Eloisa Rosa Ivan Quagio Ivanisa Teitelroit Martins Lia Zanotta Machado Pedro Stoeckli Pires Ronaldo Conde Aguiar EDITORES Arno Vogel Benício Schmidt Carlos Alves Muller Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

9 Os Jogos Olímpicos fogo + vento = O Caldeirão

15 Rio de Janeiro: do legado olímpico à cidade extraviada

17 As Derradeiras Horas

22 Para Alberto Sobre a flor e a chuva

24 Um pouco fora de foco

26 Encaixotando Brasília


EDITORIAL N

este número, começamos por trazer a análise sóbria e contundente de nosso editor-chefe, Benicio Schmidt, dos rumos da situação política brasileira. O fim (ou não de Eduardo Cunha; a derrocada final de Dilma Rousseff e a finalização do impeachment (?); uma provável novas eleições presidenciais convocadas pelo STF… Enfim, análise e perguntas que, fatalmente, não se esgotarão nestas palavras de Benicio Schmidt. Lia Zanotta Machado apresenta, com afinco e precisão, o texto da psicanalista Evanisa Martins sobre as elocubrações antifilosóficas lacanianas acerca da verdade e do real. O trecho do livro “De Olhos Abertos, a história da nova China: da morte de Mao à crise econômica, de Ivan Quagio, apresenta as características da olimpíada realizada em Pequim e de todos os problemas esperados ou não por aqueles que viveram os jogos, desde o ponto de vista das diversas etnias residentes na China quanto de jornalistas e turistas presentes aos Jogos. Conrado Pimentel faz duras críticas aos Jogos Olímpicos realizados, neste momento, na capital Fluminense e todos os problemas relacionados às obras e ao falso legado desta olimpíada. Trazemos, como prometido, a segunda parte das horas finais de Getúlio Vargas antes do fatídico dia que mudou a história do país, narradas por Ronaldo Conde Aguiar em seu livro “Vitória na Derrota, a morte de Getúlio Vargas: quem levou Getúlio ao suicídio?” Temos o prazer de trazer neste número novo texto de Eloisa Rosa. Desta vez, a poeta prosista escreve uma carta sentimental delicada e, ao mesmo tempo, ridícula, como todas as cartas de amor, pois não o seriam se não fossem cartas de amor. Pedro Stoeckli Pires nos brinda com um conto de encontro entre duas gerações que tentam se conhecer, se respeitar e se entender. Fechamos o número, como de costume, com mais um episódio da novela de Arnaldo Barbosa Brandão e os percalços na prisão militar no fim do mundo. Boa leitura!


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A reconstrução do sistema político? Benicio Schmidt – Cientista Político e Editor

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stamos às vésperas de grandes desfechos. A cassação do deputado Eduardo Cunha (PMDB/ RJ) e o impeachment da Presidente Dilma Rousseff parecem iminentes. Entre agosto e o início de setembro o quadro político-institucional estará consolidado, com novos ou os atuais mandatários interinos. Logo após, neste conturbado 2016, haverá eleições municipais (prefeitos e vereadores), que terão importância fundamental no redesenho do poder no país. Dos 5.568 municípios, entre 15% e 20% (835 e 1.113) deverão ser comandados por partidos de esquerda, a partir do PT, PDT, PCdoB e PSOL. Pode-se calcular que essa margem deverá ficar sob o comando de partidos médios e pequenos. A maior fatia (60% a 70%) deverá permanecer na órbita dos grandes partidos – PMDB, PSDB, PSD, DEM, PSB – que deverão rumar na direção de 2018 com uma base política bem arrumada. Serão eleições atípicas na recente história política brasileira: vetadas doações de pessoas jurídicas, curtíssimo período de campanha, gasto com publicidade limitados pelas variáveis demográficas etc. Tentativa de evitar-se o Caixa Dois e a formação de cartéis para lavagem de dinheiro por meio de campanhas. Na verdade, hipóteses a serem conferidas e confirmadas; com provavelmente falta de êxito e massivas “impugnações” de candidaturas vitoriosas, por parte dos derrotados, e que levarão a longos períodos de impasses, com os Tribunais Regionais Eleitorais e o próprio Tribunal Superior Eleitoral, agora sob a presidência do Ministro Gilmar Mendes (STF), tendo que se manifestar, permitindo adiamento de posses e promovendo – certamente – vazios de poder, impasses na gestão municipal. Dada a crise de reputação que abala o sistema político-representativo, e especialmente o PT, os dirigentes comandados por Lula apostam que a Região Nordeste (27% do eleitorado nacional), berço do ainda resistente coronelismo e patrimonialismo clássicos, além de concentrar grandes maiorias nas classes

sociais de baixa renda (D e E), venha a ser a base de decolagem de um “Novo PT”, mais próximo às suas origens e desprezando alianças como as que têm feito com o PMDB, agora hegemônico no plano federal. Uma hipótese operacional, a ser testada, como base de uma estratégia de renovação partidária. Além destes eventos, resta, sem data programada para incidir no cenário, a espada sobre a cabeça de todos os partidos, por meio dos encaminhamentos de inquéritos e pormenorizadas investigações sobre as campanhas presidenciais de 2010 e 2014, vencidas pela dupla Dilma/Temer. Verbas aparentemente manipuladas por meio de gráficas e empresas de publicidade, dificilmente comprováveis como existentes, estão sendo detalhadas em inquéritos remetidos pelo TSE ao STF, para as devidas decisões e encaminhamentos. Este movimento tem carga explosiva, podendo mesmo anular o último pleito presidencial e, sendo encaminhado após a posse da Ministra Carmem Lúcia (STF) pode, por falta de tempo hábil, ter validade a partir de janeiro de 2017. Haveria uma nova eleição (indireta), realizada no âmbito do Congresso Nacional, com efeitos até 2018. Não se afaste esta possibilidade, dadas as turbulências causadas pela interação entre Polícia Federal, Ministério Público, TSE e STF! No âmbito da política econômica, na verdade, o país está praticamente paralisado. O COPOM acaba de renovar a vigência da mais alta taxa de juros do mundo (14,25% a.a.). Os aumentos ao funcionalismo, já pré-concertados pelo Governo Dilma, a renegociação das dívidas de estados e municípios, o aumento dos limites de endividamento público geral, e outras medidas, têm criado um ambiente contraditório com a política anunciada de “limites dos gastos e investimentos pelo teto da inflação do ano anterior”, tal como prescrito em recente documento básico do Fundo Monetário Internacional (FMI), servindo de orientação a todos os participantes do sistema financeiro internacional. ▶ 4


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Não há originalidade, criatividade, pois é documento redigido em Washington, simbolicamente retomando estratégias monetaristas das décadas de 1970 e 1980, por parte do FMI. Outras medidas na área econômica, iniciativas anunciadas com alarde pelos Ministros Eliseu Padilha e Henrique Meirelles, como renovação de concessões aeroportuárias, venda de ativos federais, fechamento de empresas estatais e abertura de novas frentes de expansão da atividade econômica, simplesmente não têm se realizado, nem decolado. Além dos prazos naturais de maturação, nem mesmo os programas já estabelecidos na administração Dilma têm sido retomados com vigor e eficácia. As razões vêm da incerteza político-institucional, da instabilidade do mercado de capitais, do fechamento de empresas em escala histórica desconhecida pelos brasileiros, do aumento do desemprego e também da insatisfatória gestão federal. Os governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, mesmo sob diversas tempestades (nove ataques à moeda nacional durante os oito anos de FHC), foram estuários e repositórios de demandas de inúmeros movimentos sociais – produtos da redemocratização havida desde 1985 e reforçada pela Constituição Federal de 1988 – e por isso criaram um ambiente muito favorável à participação direta de organizações formais (sindicatos, centrais sindicais, ONGs) e informais (movimentos de opinião pontuais e focalizados), por fora e além dos muros do Congresso Nacional. Com isso, houve a renovação – de fato – da democracia política brasileira, sendo criados novos mecanismos de negociação entre o Estado e os interesses populares. É interessante notar que as mudanças havidas no Brasil, desde 1985, não foram originais, mas sim universais no âmbito de quase todos os regimes políticos, mesmo os de corte mais autoritário como os emergentes do “Socialismo Real”, liderados pela ex-União Soviética. E, em um longo período em perspectiva histórica, não haverá regresso que não seja carregado em grande coerção institucional. O Governo Temer, a partir de uma concepção da Teoria Pura do Direito (Kelsen), combinada com conceitos econômicos ultraortodoxos de equilíbrio fiscal, compra um enorme conflito com estas transformações democráticas já em longo trajeto e carregando experiências criativas. A resultante já se anuncia dramática e cheia de impasses! ■ 5


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Manto Diáfano inova neste número apresentando reflexões sobre o pensamento psicanalítico lacaniano com um brilhante texto da psicanalista carioca Ivanisa Teitelroit Martins. O texto de Ivanisa se refere ao dispositivo lacaniano do “passe”. Afinal, do que se trata o referido dispositivo do “Passe”, assim nomeado por Lacan, e assim referido no texto de Ivanisa? Para os relativamente iniciados com a teoria ou para aqueles que partilham da experiência de estar ou ter estado em análise, trata-se de tocar a “pergunta que não se quer calar” de um analisando: quando e como se dá o fim da análise... Para os não iniciados, o dispositivo do passe foi concebido por Lacan como um lugar de aprendizagem sobre o que é o final da análise e, especialmente, o que permite saber sobre a transmissibilidade da psicanálise para a formação do psicanalista. Como

se dá a passagem de analisando a analista? Como pode haver uma elaboração coletiva das respostas singulares à questão de como ocorreu cada passagem singular à posição de analista? Lacan propõe que seja apresentada a “prova do Passe” para que o analisando que deseje ser analista, o faça, mas que deve ser voluntária. Ivanisa aponta a preeminência do ato na teoria lacaniana. “Há saber no real,” mas para dizer qualquer “verdade”, há sempre interpretação. A transmissibilidade se dá pelo ato de análise e pelo ato do passe. Para Ivanisa, a filosofia é o que não se transmite. Leiam e acompanhem o texto para saber como o passe é antifilosofia, e como a filosofia é somente o detrito (resto) do passe. Lia Zanotta Machado – Antropóloga

Lacan e a antifilosofia O ato analítico Ivanisa Teitelroit Martins – Psicanalista

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montagem antifilosófica de Lacan, que é parte constitutiva do dispositivo, resulta em três enunciados negativos: não há verdade do real; não há saber do real; não há saber da verdade; como diz Lacan, as operações da filosofia são todas dependentes, qualquer que seja a orientação filosófica considerada ou tese segundo a qual é possível ter um saber da verdade do real. A maneira como se descobre a função do real no saber é suspensa no ato analítico. Os psicanalistas sentem horror, em sustentar e suportar o ato analítico, tal sua gravidade ou teor de gravame (dívida simbólica). O que importa realmente para Lacan é ficar frente a frente ou fazer face ao ato analítico. Pode-se afirmar que a finalidade do conjunto de seu ensino foi a de dar aos analistas uma chance de fazer

face ao seu ato. Esse conjunto de atividades inclui toda a construção teórica, toda a sutileza da análise, toda a revisão conceitual, toda a topologia, toda a teoria de instância analítica, tudo que se pode dizer do ato mesmo e tudo isto tem uma função: dar chance, dar um pouco mais de chance, de se fazer face ao ato. A função do real no saber não pode ser descoberta por um saber deste saber, é preciso que seja a partir do ato que se descubra. Esse ato não é atestado a não ser como um dispositivo de saber na experiência do corte. É preciso que se estabeleça um dispositivo de saber transmissível para que o ato seja atestado, compreendendo que é do ato que depende que se descubra a função do real. Como todo saber integralmente transmissível é matema, pode-se

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dizer que, na antifilosofia lacaniana, tudo foi suspenso, em última instância, face à correlação enigmática enA pergunta institucional de Lacan é de como tre ato e matema. inocular novamente o desejo de saber, como Dessa forma se remonta de modo voltar a colocar o analista em uma posição antifilosófico o terceto verdade, saber, real para se excluir a tentação analisante como sujeito suposto do saber. hermenêutica e dar aos analistas uma pequena chance de fazer face ao seu ato. O que é o passe como uma forma mais além da psicanálise? Lacan nega O desejo do analista se orienta pelo desejo de que se trate de um mais além da psicanálise, apesar atravessar a aparência, seu retorno e, por fim, levar do passe ser um suplemento da experiência analí- à queda desse índice subjetivo que chamamos sigtica. Ao adotar a interlocução entre psicanálise e nificante mestre ou identificação. A pergunta insciência, Lacan se entusiasmou em elaborar de forma titucional de Lacan é de como inocular novamente simétrica o começo e o final da cura analítica. o desejo de saber, como voltar a colocar o analista Ninguém ainda havia pensado em estabelecer em uma posição analisante como sujeito suposto do uma correlação entre a entrada e o final. Os analis- saber. A escola é a força capaz de voltar a colocar o tas, de um modo geral, estavam mais voltados para analista em uma posição analisante em relação ao o estudo da instituição da transferência e até pensa- sujeito suposto do saber, de voltar a colocá-lo na reram ser possível estabelecer um padrão, a partir de lação com a ignorância. Para Lacan o contorno desuma transferência inicial, da entrada em análise, da sa escola se caracteriza por uma insatisfação; é muitransferência como é estabelecida na borda do pro- to mais uma escola que quer saber, em uma posição cesso que, ao final da análise, era concebida como histérica para vir a operar. uma dispersão e, em Freud, era concebida como Em O Caminho do Psicanalista, seminário de uma condensação (rochedo da castração) como um Éric Laurent de 10 de março de 1999, está em debaobstáculo à conclusão. Lacan, pelo contrário, pro- te o aspecto do espaço lógico e do espaço vazio e o pôs uma fórmula de enquadre que permitiria defi- aspecto do mais um. Laurent entende que o psicanir pela lógica o que é um sujeito analisado. nalista deve aprofundar o lugar do mais um, espeNo entanto, a partir de sua “Proposição de 9 de cialmente na perspectiva do Seminário 5 de Lacan: outubro sobre o psicanalista da Escola” ele se viu As Formações do Inconsciente, que destaca um luencorajado a desenvolver a ideia de que os analis- gar que é êxtimo ao sistema da língua, que está fora tas não estavam à altura da análise e que, inclusive, deste e, contudo, dentro. Um lugar que autoriza nonão concordavam com a descoberta freudiana. La- vos sentidos que se produzem cada vez que o efeito can, então, apontava que mesmo entre os analistas do chiste inscreve um uso inédito ou uma maneira há uma negação do que se revelou na experiência nova de falar. analítica enquanto analisantes. E conclui que aquilo Lacan mostra que não se tem que distribuir a que é recusado no simbólico (...) reaparece no real. questão do sentido e do fora do sentido como o esPara ser causa de desejo do analisante, durante tatuto da subjetividade moderna do ser e do nada, algum tempo, o ideal do analista consistiu em se mas sim a partir da oposição entre o efeito de sigfechar em seu próprio inconsciente, que se oculta- nificação e o lugar do gozo. Há inscrição e marca de ria por trás de uma unidade chamada ortodoxa: o algo que é primário e que excede todas as significaque resultou na prática da contratransferência que ções em jogo. O passe é um dispositivo que consiste convida o analista a tomar como ideal a si mesmo em verificar se houve análise e se há analista. Não enquanto sujeito do inconsciente. Já para Lacan, a podemos dizer que se há analista, houve análise. posição do analista é inversa e complementária à Como a Escola pode saber se houve análise de fato? posição analisante, o que difere da prática da con- Esta questão se sustenta na ideia de transmissibilitratransferência. Essa diferença é mínima mas per- dade. Há alguém que vai contar a um outro o que se turbadora quando posta em prática. passou em uma cura analítica e aquele que escutou

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vai contar a um terceiro. E sem entrar nos detalhes técnicos, percebe-se o princípio: alguém reconta a um outro o que passou e algum outro o reconta a um terceiro e este diz que é isto, que houve análise. Para verificar uma transmissibilidade é preciso passar por duas etapas de transmissão. Os três tempos são sempre os tempos da verificação científica, são os tempos que atestam a transmissibilidade. Em se tratando da ciência, pode-se admitir que há uma figura de transmissibilidade integral, verificada, por exemplo, pelas diferentes etapas de publicação de um artigo diante de um comitê editorial de uma revista científica que se preocupa em não publicar artigos que não tenham impacto significante sobre a comunidade científica. O passe, por outro lado, é uma confirmação empírica do caráter arquicientífico da concepção lacaniana do ato. Somente houve análise se houve um ato analítico, uma vez que em todo pensamento do tipo antifilosófico se identifica a soberania do

ato em última instância. O ato analítico é atestado como saber e não como verdade, porque é o saber que tangencia a falta de sentido. O passe organiza a ausência, uma vez que no curso das transmissões sucessivas o protagonista inicial desaparece. O julgamento – se é que se pode falar em julgamento – é feito na ausência do interessado, na ausência daquele que passa o passe. O analista não está na posição de um acusado. É mais... um voluntário! Mas até que ponto ele é um voluntário? Estar ausente é quase uma metáfora cênica daquilo que está em questão: a ausência de sentido, o ab-sentido, ou em outras palavras a ausência de sexo, o ab-sexo. É por isto que seria preciso julgar na ausência de alguém que esteve no acontecimento desta ausência. E a filosofia, o que tem a ver com o passe? Por que demos a esta palestra o título Lacan e a antifilosofia? Porque a filosofia é aquilo que não se passa. Podemos dizer que o detrito de um passe, este sim, e somente este deva ser inteiramente filosófico. ■

Foto: Gioia Fabbri – unsplash.com

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Os Jogos Olímpicos fogo + vento = O Caldeirão

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evantar a autoestima do país que já havia sofrido tanto em 2008 era uma das maiores preocupações do governo. As más notícias dos eventos recentes foram quase totalmente retiradas dos noticiários, dando espaço para os assuntos relacionados às Olimpíadas. A coincidência de que os algarismos das datas das três maiores notícias do ano somavam oito (nevasca em 25/1, protestos no Tibete em 14/3 e terremoto em Sichuan em 12/5) fez surgir uma onda de superstição que, em 2008, o número oito não era um número de sorte. Ironicamente o governo, que tentava controlar ao máximo a crença nos maus agouros de 2008, se confrontava com uma decisão feita há anos que não poderia modificar: a própria data de início dos Jogos Olímpicos havia sido escolhida baseada na superstição de que o número oito, cuja pronúncia (ba) rimava com prosperar, traria sorte (ou dinheiro). Pequim recebia milhares de jornalistas do mundo inteiro para, no dia oito do mês oito de 2008, abrir a cortina do espetáculo que vinha ensaiando há sete anos. Aos jornalistas foi prometido acesso ilimitado à qualquer parte da China e liberdade total para entrevistas com qualquer cidadão desde que ele próprio a autorizasse. Um serviço especial de agendamento de entrevistas com o pessoal do comitê olímpico chinês foi colocado à disposição da mídia estrangeira dentro do prédio central onde a imprensa se instalava para trabalhar durante os Jogos. Era a prova de que a promessa de liberdade de imprensa seria cumprida. Pequim havia se preparado para mostrar seu esplendor. Milhares de voluntários foram instruídos a sorrir o tempo todo. Não deveriam mostrar sinais de cansaço nem aborrecimento perante algum pedido mais inconveniente. Os pobres da cidade foram convidados a se retirar do salão antes da festa começar. Entre eles estavam os braços que construíram as magníficas obras do estádio do Ninho do Pássaro, feito com mais de 42 mil toneladas de aço para mais

Olhos Abertos. A História da Nova China: da morte de Mao à crise econômica. Ivan Quagio Editora Francis/Verbena São Paulo/Brasília. 2009.

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de noventa mil espectadores, e o moderno Cubo d´Água, o mais impressionante centro aquático do mundo. Poucos dias antes do dia oito as estações rodoviárias e ferroviárias de Pequim ficaram completamente lotadas de trabalhadores forçados a voltar para casa. Seus alojamentos foram trancados e não havia condições nem permissão para permanecer na cidade. Poderiam voltar depois de um mês, mas não receberiam nenhuma compensação pelo mês não trabalhado. Parte desses trabalhadores eram funcionários das fábricas da periferia de Pequim, que interromperam suas atividades, também por ordem do governo, na tentativa de cumprir uma outra promessa de campanha, a de reduzir a poluição do ar. Mas não houve rancor por parte dos dirigentes das empresas: seus prejuízos seriam compensados em dinheiro, e eles não precisariam se mudar para lugar algum. Outra medida visando reduzir a poluição foi a adoção do rodízio de carros baseado no último número de suas placas, carros pares num dia, carros ímpares no outro. Os turistas e jornalistas estrangeiros se depararam com uma Pequim cheia de flores e sorrisos. O slogan “Pequim lhe dá as boas-vindas” (Beijing huanying nin) era repetido milhares de vezes em todas as partes do país por chineses de todas as idades, que em sua maioria estavam realmente felizes às vésperas do maior evento que a China já havia realizado. Os organizadores sugeriam à população não cuspir nas ruas, não cortarem filas e evitar perguntar a idade e o salário a desconhecidos, perguntas quebra-gelo habituais aos chineses, mas indiscretas em muitas culturas. Os jovens de classe média das cidades eram os maiores entusiastas dos jogos. A camisa escrita “Eu amo a China” em suas diversas versões piratas foi um tremendo sucesso. A demonstração de patriotismo não estava apenas relacionada aos jogos, mas também para mostrar aos estrangeiros que, por mais que eles criticassem as políticas do país, eles ainda apoiavam incondicionalmente seu governo. Somente os chineses sabiam ao certo onde seriam vendidos um novo lote de ingressos, enfileirando-se numa formação desorganizada que invariavelmente terminava em briga. Antes dos jogos começarem todos os ingressos de todos os eventos estavam esgotados. Retardatários e estrangeiros só achavam ingressos na mão de cambistas, por um preço bem mais alto.

Jornais dedicavam metade de suas páginas às preparações dos eventos e a televisão mostrava repetidamente as imagens e histórias dos grandes heróis olímpicos chineses de Atenas. Mas nenhum atleta recebeu tamanha atenção quanto o corredor dos 110 metros com barreiras, Liu Xiang, que fora o primeiro medalhista chinês na história do atletismo olímpico. Liu Xiang era o garoto-propaganda de uma dezena de produtos e um dos atletas mais extrovertidos. Yao Ming havia fracassado em ser o melhor jogador de basquete do mundo, ou mesmo ganhar um título qualquer. A saltadora Guo Jingjing, também popular, não fora a primeira chinesa a se destacar nos saltos ornamentais. Liu Xiang representava a superação dos limites do povo chinês, a força do homem amarelo perante qualquer adversidade. Era, sem dúvida, a medalha de ouro mais desejada. Liu Xiang era presumivelmente a pessoa mais conhecida do país. A nação estava em festa, parecendo, de repente, ter esquecido a tal superstição do número oito. O serviço especial de agendamento de entrevistas para jornalistas estrangeiros começou a ter problemas tão logo surgiram os primeiros formulários de requerimento. Esses formulários exigiam o detalhamento das perguntas a serem feitas, para evitar que se levantassem questões políticas. Por mais esportiva que fosse o teor das perguntas para os atletas, poucas entrevistas eram concedidas. Liu Xiang não poderia falar, nem Guo Jingjing, nem Yao Ming, nenhum atleta da delegação chinesa. Estavam em concentração, se dizia com um sorriso nervoso. Somente apareciam na CCTV, a rede de televisão estatal chinesa. O grande comandante da festa era o Partido Comunista Chinês (PCC), habituado com a cultura burocrática de carimbos, protocolos e requerimentos. A cultura jornalística da maioria dos países visitantes, ao contrário, estava habituada à flexibilidade, ainda mais em um evento em que a todo minuto surgiam notícias novas. Nos dias que antecederam aos Jogos, o choque de dinâmicas estava evidente. Estava proibido imagens ao vivo de Tiananmen (a Praça da Paz Celestial), pedidos de autorização para filmar em monumentos históricos deveriam ser feitos com quinze dias de antecedência (depois de protestos dos jornalistas isso foi reduzido para dois dias), departamentos diferentes não reconheciam a autorização uns dos outros. Uma equipe de

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jornalistas chegou a ir à distante província de Gansu, a 1200 quilômetros de Pequim, para descobrir que sua autorização para filmar em certos locais não possuía validade. Outra equipe, munida de inúmeros documentos e autorizações, teve sua gravação de cima da muralha da China interrompida bruscamente por policiais locais que tinham instruções para não deixar ninguém filmar. Quanto mais distante de Pequim, menos valia a prometida liberdade de imprensa. Nas províncias de Yunnan e Xinjiang, por exemplo, não havia pessoal treinado para receber aqueles que mostrariam o país para o mundo. Mas foram justamente essas duas regiões os focos da atenção jornalistica às vésperas do dia oito. No dia vinte e um de julho duas bombas explodiram em dois ônibus num intervalo de uma hora em Kunming, na província de Yunnan, a 2000 quilômetros de Pequim, deixando três mortos e catorze feridos. No primeiro anúncio oficial do governo especulava-se que houvera um ataque terrorista. Em poucos dias as notícias mudaram de tom, afirmando que não fora um ataque terrorista. Jornalistas locais foram desencorajados a cobrir o evento, enquanto estrangeiros buscavam alguma declaração em vão. No dia três de agosto, um outro atentado em outra província distante voltou a chamar a atenção para o sensível problema da causa separatista em Xinjiang. O atentado em si fora executado com recursos mínimos: um taxista e um verdureiro da etnia uigur jogaram um caminhão de lixo por cima de dezenas de policiais que corriam em formação, matando dezesseis deles e evidenciando que o pouco pão e todo o circo montado não havia atenuado o rancor dos uighures. A cidade do atentado, Kashgar, era uma das poucas grandes cidades de Xinjiang em que a proporção de uigures ainda era maior que a de chineses han. Por decreto, a cidade seguia o horário oficial de Pequim, mas na prática todo uigur seguia um horário local duas horas mais cedo. Acordavam, rezavam, comiam, trabalhavam e dormiam de acordo com esse horário. Era apenas uma das muitas evidências de que em Kashgar, perto da fronteira com o Afeganistão, a ordem chinesa ainda não havia se legitimado. 1

Um número considerável de jornalistas em Pequim, sedento por notícias, desembarcou em Kashgar no mesmo dia do atentado. A polícia local não estava preparada para dar qualquer informação, tratando a imprensa estrangeira como costumava tratar a população local. Todas as equipes jornalísticas foram vigiadas, algumas ameaçadas e ao menos uma espancada. Policiais à paisana estavam por toda a cidade, perguntando aos jornalistas o que eles queriam, quem eram, e quais eram suas intenções. Guias locais eram obrigados a serem acompanhados por motoristas chineses, que a cada parada se afastavam do grupo para dar informações por telefone a algum superior. Os uigures locais estavam tensos e acovardados, mas entendiam a oportunidade que tinham de expressar seu rancor, e o faziam em frases curtas e soltas. Alguns motoristas de táxi uigures chegavam a recusar o pagamento da corrida, pois segundo eles, os jornalistas estrangeiros os estavam ajudando. A missão do Partido Comunista era complicada: promover um clima de descontração e espírito olímpico ao mesmo tempo em que dava prioridade máxima para a segurança. A obsessão com o controle de todas as esferas envolvidas limitava desde o que se podia vestir até o modo de torcer. O público era desencorajado de usar camisetas que contivessem palavras em qualquer língua, o que podia ser um protesto não facilmente identificável pela segurança. Para a torcida chinesa o grito de guerra resumia-se a “Zhongguo jiayou” (Força China, ou Vamos lá China, literalmente “põe óleo”), que de tanto ser repetido foi memorizado por quase todos os estrangeiros que estavam presentes.1 Limitados também eram os espaços reservados para protestos, três parques distantes da vila olímpica. Os grupos que pretendessem manifestar-se deveriam preencher uma requisição com nomes dos organizadores, número de participantes e slogans a serem utilizados. A desconfiança de muitos sobre as reais intenções de tal medida se mostrou correta. Ao final dos jogos, quando estava claro que nenhum protesto fora autorizado, o governo, por meio dos jornais declarou que 77 formulários foram entregues; 74 casos resolvidos pelas autoridades competentes, 2 formulários estavam preenchidos

Ao contrário do que disseram alguns repórteres, o grito de “Zhonguo Jiayou” não é o único modo de torcer na China. Em um campeonato de futebol chinês a torcida é muito mais criativa. O termo xiongqi (coragem, ou vamos encarar), por exemplo, criado pelos torcedores do time de futebol de Sichuan, acabou por se tornar uma expressão de encorajamento que passou a ser usada em diversos contextos, e até virou um slogan na reconstrução das áreas afetadas pelo terremoto em Sichuan.

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exibiu uma faixa onde se lia “Free Tibet”. A ousadia do ato só era superada por sua inteligência. A polícia não sabia como fazer para tirá-lo de um lugar tão alto, o que garantiu ao manifestante mais de uma hora de atenção pública. Conforme os dias passavam a China disparava no quadro de medalhas. Em uma semana já se esperava que, pela primeira vez na história, os chineses passassem os Estados Unidos e ficassem em primeiro lugar. A coerente estratégia da propaganda partidária, em vez de enaltecer as glórias dos seus atletas preferia dar um tom de amizade entre os povos em suas notícias, desestimulando sentimentos exacerbados de patriotismo dos jovens, que demonstraram recentemente princípios de xenofobia, principalmente contra os japoneses. Para os que conseguiram comprar ingressos, tudo era festa. Desde os modernos estádios que os deixavam tão orgulhosos até as dançarinas de biquíni do vôlei de praia, algo inédito no país. Eram tantas medalhas por dia que ninguém sabia ao certo quantos ouros a China já havia ganho. A decepção com a decisão de Liu Xiang de não competir por conta de uma contusão, e a pífia performance do basquete, foram compensadas por surpresas em outras modalidades. No geral todos ficaram satisfeitíssimos com o desempenho chinês, mesmo que à boca pequena se comentava que o governo gastava demais na preparação de atletas, dinheiro que poderia ser reinvestido em escolas e hospitais. A característica da distribuição das 51 medalhas de ouro entre os esportes também alimentou o estereótipo amplamente difundido de que a etnia amarela era melhor em esportes técnicos mas não era boa em esportes de agilidade. Nacionalmente o até então desconhecido Xi Jinping, um dos responsáveis pela organização dos jogos e o provável futuro presidente da China, tornou-se mais popular. Mesmo com toda a sua impecável organização o evento falhou em uma de suas metas, mostrar ao mundo que a China era um país aberto que não tinha o que esconder. Politicamente, os jogos fizeram que os demais países temessem ainda mais a ascensão chinesa, um país que não media esforços para mascarar os seus excessos e manipular a opinião pública. Poucas semanas depois iniciaram-se os jogos paraolímpicos, que mantiveram a mesma estrutura e igualmente impressionaram todos os que participaram.

incorretamente e um único pedido foi negado. Na realidade, quem tinha coragem para candidatar-se a líder de manifestação ou era preso ou era coagido a desistir. Como por exemplo no caso de Ji Sizun, que foi preso por entregar uma requisição para protestar contra a corrupção governamental. Ou no caso das duas velhinhas requerentes que foram ameaçadas de envio ao campo de trabalhos forçados se continuassem tentando aprovar sua petição para denunciar a baixa compensação que receberam quando foram desalojadas de suas casas. No dia da abertura dos jogos o clima estava tenso em Pequim, afinal foram sete anos de espera para o grande momento da abertura. Todas as lojas nas proximidades do Ninho do Pássaro fecharam suas portas e o trânsito da região foi interrompido. Milhões de chineses assistiriam pela televisão o espetáculo prometido por Zhang Yimou, o diretor de filmes mais famoso do país e o responsável pelas cerimônias de abertura e encerramento dos jogos. A abertura esteve a altura das expectativas, com toda a grandiosidade que o governo desejava transmitir ao mundo. Apesar de sua beleza, causou um certo desconforto alguns fatos que que vieram a público dias mais tarde. Uma menina dublou outra na apresentação de uma das músicas temas porque julgava-se que a verdadeira dona da voz não fosse tão bonitinha quanto a protagonista dublada. Soube-se também que na queima de fogos a transmissão, supostamente ao vivo, da televisão utilizou-se de imagens pré-gravadas. Menos comentado mas mais importante era o fato de que o show estava a ser, praticamente, encenado pelo exército. O hasteamento da bandeira nacional foi feito com rigor militar. Soldados estavam entre mais da metade de todos os catorze mil figurantes. Foram eles que bateram nos tambores de abertura e cercaram os atletas em um cordão humano enquanto as delegações dos países desfilavam. Todos esses importantes detalhes não ofuscaram o brilho nem da abertura nem dos jogos. A expectativa da população de organizar um evento internacional com nível internacional estava a ser cumprida. Os poucos protestos organizados por estrangeiros contra a política no Tibete não tiveram apoio popular e foram imediatamente interrompidos pela polícia. Um desses manifestos se destacou entre os outros quando um estrangeiro, às 6 da manhã, escalou um poste a poucos metros do Ninho e

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Em especial as paraolimpíadas ajudaram o país a discutir o tabu da deficiência física e mental. Desde séculos os portadores de deficiência eram considerados um peso para a família, não menos por causa da campanha comunista dos anos 1950 que os classificava de “inúteis”, os proibia de casar entre si e obrigava o aborto de fetos que tendessem a nascer com problemas. A herança dessa campanha se manteve, desde então, como observado durante os Jogos Asiáticos de 1990, quando o governo pediu aos cidadãos de Pequim que deixassem em casa os portadores de deficiência para não causar má impressão aos visitantes. No novo século o preconceito ainda era forte. Somando 83 milhões de pessoas, normalmente os deficientes físicos não eram admitidos nas universidades, que os reprovavam no exame médico, e raramente obtinham um emprego. A vergonha que traziam para a família forçava-os a ficar em casa, tornando-os invisíveis na sociedade. Mesmo durante a preparação para as paraolimpíadas as pinceladas de preconceito podiam ser notadas. No primeiro manual redigido para os voluntários dos jogos, no início de 2008, explicava-se que portadores de deficiência tendiam a ser teimosos, controladores e introvertidos. Comentadores cínicos afirmavam que a expectativa de melhora na área durante as paraolimpíadas seria tão frustrada quanto a esperança que ativistas dos direitos humanos tinham do país se tornar mais aberto a críticas após as olimpíadas. O erro da comparação, no entanto, estava no fato de que o governo tinha real interesse em promover a integração dos portadores de deficiência na sociedade. Apesar das pequenas falhas cometidas na preparação, Pequim estava preparada e disposta a receber os 4200 atletas paraolímpicos. O grande garoto-propaganda dos jogos era o, até então quase desconhecido, Deng Pufang, o filho de Deng Xiaoping que ficara paralítico após ser jogado para fora da janela pela guarda vermelha durante a Revolução Cultural. Melhoramentos como rampa de acesso e corrimãos foram instalados em todos os principais pontos turísticos. Uma frota de táxi especial garantia acesso fácil para cadeirantes. A exposição dos atletas dia e noite na televisão e nos jornais forçou a população a confrontar suas antigas ideias, até que a aversão inicial se tornasse banal. De repente, nas maiores cidades da China, surgiram milhares de portadores de deficiência pelas ruas, menos envergonhados de suas condições. ▶

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

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Algumas das táticas usadas durante as olimpíadas para embelezar a cidade foram reutilizadas, como ausência forçada de mendigos e rodízio de carros. Outras eram novas, como a distribuição de ingressos grátis para escolas e comunidades a fim de deixar estádios e ginásios sempre cheios. De qualquer modo, ao final, foi um grande espetáculo e, sem dúvida, a maior produção para jogos paraolímpicos da história. De todos os eventos espetaculares do ano de 2008, a paraolimpíada foi o que obteve maior sucesso. As paraolimpíadas dividiram a atenção com outra notícia, o escândalo dos leites contaminados. Um ano após o governo ter investido mais de US$ 1 bilhão em seu programa de controle de qualidade dos alimentos, veio a tona que o leite vendido por vinte e duas empresas de produtos lácteos continham melanina em sua fórmula, o mesmo químico tóxico adicionado às rações para animais domésticos em 2007. O produto fora misturado ao leite para que ele aparentasse ter mais valor nutritivo durante a inspeção. Mais de cinquenta mil crianças ficaram doentes e ao menos seis morreram. A versão oficial era de que apenas em setembro o problema com os leites fora detectado, que se provou mentira assim que jornalistas afirmaram saber de casos de bebês doentes desde julho, os quais foram proibidos de serem investigados em razão do risco de estragarem a festa Olímpica. Até mesmo o governo da província de Gansu havia, em julho, alertado o Ministério da

Saúde sobre a incidência de bebês com pedras no rim, uma doença rara em crianças. Foram postos em prática os mesmos procedimentos de controle de dano à reputação do Partido Comunista Chinês que foram usados desde que o governo Hu-Wen assumiu. Wen Jiabao apareceu na televisão em conversa com mães de bebês doentes lamentado-se profundamente pelo incidente. Uma comissão intradepartamental analisava o caso e suas descobertas de novas fábricas irregulares eram noticiadas a cada dia, por duas semanas. Culparam inúmeros líderes locais corruptos, prenderam cerca de 22 envolvidos e acusaram as empresas de leite de irresponsáveis. Mais de 700 mil toneladas de leite foram tiradas das prateleiras dos supermercados. Sobre o fato de haverem banido a investigação prévia do caso, nada foi dito. Corrupção de líderes locais também foi o veredito das tragédias de setembro que se amontoavam conforme a memória das Olimpíadas ficava para trás. Em Dongfeng, na província de Hunan, 37 pessoas morreram em uma explosão de uma mina de carvão. Em Xiangfen, na província de Shanxi, 250 moradores morreram soterrados após o desmoronamento de um barranco aonde existia um aterro ilegal de resíduos de minério de ferro líquido. Em Shenzhen um incêncio em uma boate clandestina matou 43 pessoas. Todos os casos envolveram subornos de oficiais para que suas atividades não fossem interrompidas. ■

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Rio de Janeiro: do legado olímpico à cidade extraviada O Rio de Janeiro que se perdeu no caminho para o legado Conrado Pimentel – Cientista Social

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discurso oficial, desde a apresentação da candidatura para a realização dos jogos, passando pelo processo das obras de infraestrutura até a clemência do prefeito, Eduardo Paes, por “paciência” para a população, se torna inócuo quando observado os porquês de tantas obras de mobilidade urbana. O projeto de Cidade Maravilhosa, criado em 1906 pelo Presidente Afonso Pena, com o objetivo de mostrar para o mundo, em forma de vitrine, o quão desenvolvidos éramos, foi concretizado, até certo ponto, pelo que poderíamos considerar como os megaeventos do início do século passado – como a Exposição Nacional em 1908 (comemoração dos 100 anos da Abertura dos Portos às Nações Amigas) e o Centenário da independência em 1922, quando houve grande fluxo de turistas e investimentos em infraestrutura: em suma, as primeiras grandes intervenções urbanísticas que a então capital federal teve. Isso soa familiar, não? O Prefeito Eduardo Paes foi o responsável por preparar a cidade para os Jogos Olímpicos (e a Copa do Mundo), assim como Carlos Sampaio (19181922), responsável pela preparação para a comemoração do 1º Centenário da Independência do Brasil. O mote do legado olímpico, a “revolução no transporte público”, sustentado pelo prefeito Eduardo Paes, é significativo, especialmente na cidade

Foto: Poswiecie – pixabay.com

brasileira onde mais se gasta tempo em transporte no trajeto casa-trabalho. Vejamos o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) que retirou diversas linhas de ônibus do centro da cidade. O sonho dos prefeitos Pereira Passos (1902-1906) e Carlos Sampaio em transformar a cidade na nova “Paris das Américas” ficou mais próximo, enfim: a Avenida Rio Branco se transformou na Boulevard Rio Branco, com um modal que percorre um curto trecho do centro da cidade em uma velocidade que se equipara aos bondes de meados do século passado (15km/h), até o Aeroporto Santos Dumont, no Aterro do Flamengo. O caso da expansão do metrô da cidade não fica para trás no que concerne à racionalidade de um serviço público: a Linha 3 prometida durante as eleições de 2014 para o Governo do Estado, que ligaria São

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tagem investigativa do portal Apública.org2 de “As Quatro Irmãs” –, todas estas obras tiveram como fonte de recursos variando entre o Governo Municipal, BNDES e a iniciativa privada. Surpresas ao constatar que todas estas grandes empreiteiras são foco da Operação Lava Jato? Espero que não. Importante notar que o extravio do legado não é apenas um extravio financeiro, que encheu de dólares os bolsos de deputados, senadores e empresários, sejam eles ligados à concretização da Rio2016 ou não. O extravio é dos interesses da população de grande parte do Estado e, especialmente, da cidade do Rio de Janeiro, que viu seus sonhos de mobilidade urbana adequados e minimamente decentes serem trocados por “uma cidade que pudesse acolher o grande número de turistas, personalidades nacionais e estrangeiras” para “participar dos festejos”3 (à época, a Exposição de 1922). Como visto, tudo como dantes no quartel de Abrantes: desde a necessidade de alimentar nossa mentalidade colonial até o modus operandis da moderna inseparabilidade de interesses públicos e privados, mais conhecidos como Parcerias Público-Privadas, atendendo sempre aos maiores financiadores eleitorais. Nada muito diferente do que hoje, 200 anos depois da comemoração da Abertura dos Portos, ostentamos, a começar pela bucólica e orgulhosa apresentação no início dos Jogos Olímpicos, no Maracanã, e as obras prometidas em forma de legado para a cidade e para a população em geral. A prosperidade gerada pelos Jogos Olímpicos que, por meio do progresso rumaria a uma melhoria da qualidade de vida da população, foi posta à prova para a concretização do megaevento, e é incontornável, foi desperdiçada. Enfim, da Cidade Maravilhosa chegamos à Cidade Olímpica: na ânsia de pegarmos o bonde da modernidade, embarcamos (fomos embarcados?) de vez na era do desprezo pelo interesse público. ■

Gonçalo à Niterói, beneficiando cerca de 1,7 milhão de habitantes da Baixada Fluminense – um serviço intermunicipal com potenciais intermodais, portanto – foi trocada pela Linha 4, ligando a Zona Sul da cidade até a Barra da Tijuca, atendendo cerca de 300 mil pessoas por dia. A preferência por esta linha, contudo, é lógica – é racional –, mas apenas sob os olhos do capital imobiliário. Como é comum na história da urbanização brasileira, o Estado serve a interesses imobiliários (ora ignorando demandas, ora criando ofertas) – oferecendo infraestrutura e transporte público. A Barra da Tijuca, idealmente projetada pelo urbanista Lúcio Costa em 19691 para ser o novo centro da cidade do Rio de Janeiro se transformou, na realidade, não em um novo centro, mas em um enclave dentro da cidade, reforçando as históricas desigualdades socioespaciais. O “dono da Barra da Tijuca”, o bilionário Carlos Carvalho, proprietário de 10 milhões de metros quadrados do bairro e dono da empreiteira Carvalho Hosken, é o beneficiário das obras realizadas pelas maiores empreiteiras do país, que construíram o Complexo Esportivo do Parque Olímpico (comporta 13 modalidades esportivas), e a Vila dos Atletas, onde as delegações internacionais estão acomodadas. Não bastasse o investimento em infraestrutura localizado em um bairro construído especialmente para as maiores faixas de renda da cidade – como diz o próprio empresário – as obras de mobilidades urbana foram generosamente criadas para atender a todo o complexo esportivo e desta grande demanda imobiliária, a saber, a Transcarioca, a Transolímpica e a Transoeste, que ligam, respectivamente, o Aeroporto Internacional do Galeão, na Ilha do Governador, o Complexo Esportivo de Deodoro (com 5 modalidades olímpicas) e o bairro de Santa Cruz até a Barra da Tijuca. Lideradas pela Odebrecht, com a Camargo Corrêa, OAS e Queiroz Galvão – apelidadas pela repor1

Projeto realizado durante o governo de Negrão de Lima (1965-1971), prefeito da Cidade no período da Ditadura Militar. Implementou o Plano Doxiadis para a criação de um novo “distrito central de negócios” CBD (Central Business District), realizando obras na área de Sepetiba e Santa Cruz. “Plano Piloto para a urbanização da baixada compreendida entre Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá.” Lucio Costa, 1969. Disponível no sítio da internet vitruvius. Revista Arquitextos, nº 116, ano 10. Jan. 2010.

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BELISSÁRIO, Adriano. Um Jogo Para Poucos. Pública: Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Sítio da internet. 30 junho 2014.

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ABREU, Maurício de Almeida. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Instituto Pereira Passos: Rio de Janeiro. 1987, 4ª Ed. p. 76.

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As Derradeiras Horas PARTE 2 24 de agosto de 1954 – 3 horas da madrugada

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entado na extremidade da longa mesa, a fisionomia cansada, mas serena, o presidente explicou em voz baixa os motivos pelos quais convocara aquela reunião. Desejava ouvir de cada um dos seus colaboradores a opinião sobre o momento político. Depois – e nesse ponto a sua voz ficou mais baixa e rouca, embora ainda firme e calma –, repetiu como quem esconde uma intenção, “eu decidirei o que fazer”. De pé, em volta da mesa, diversas pessoas, entre as quais os filhos Alzira, Lutero e Maneco, o irmão Benjamin, o general Caiado de Castro, Lourival Fontes, Ernani e Augusto do Amaral Peixoto, o deputado Danton Coelho, a tudo assistiam – tensos, nervosos, atentos. Um a um, os ministros puseram-se a falar, dividindo-se entre os que nada tinham a dizer, limitando-se a declarar solidariedade ao presidente na decisão que ele viesse a tomar, os poucos que pregavam a firme resistência ao golpe em marcha e aqueles que, aberta ou veladamente, sugeriam a licença ou a renúncia, como forma de afastar o país da conflagração iminente. A verdade é que, naquela sala, os possíveis desdobramentos da resistência foram desenhados em cores vivas e dramáticas. Os espaços de manobra, nos quais o governo pudesse buscar uma solução política ou negociada da crise, foram traçados em linhas finas e tênues, como algo impossível – e, no fundo, indesejado por muitos. Aquela reunião cumpriu um papel específico, embora não intencional, na trama contra Getúlio, contribuindo decisivamente para o seu trágico desfecho. ▶

Vitória na Derrota: a Morte de Getúlio Vargas Ronaldo Conde Aguiar Verbena Editora 2014 2ª edição.

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“Silencioso e atento, o presidente examinava com olhar astuto a fisionomia e a postura de cada um de seus ministros em torno daquela mesa, como se quisesse adivinhar suas intenções mais secretas. Já sabia da ausência do ministro do Exterior, Vicente Rao, impedido de comparecer por motivos de saúde. Conhecia muito bem a todos, o que lhe permitia saber de antemão a resposta que cada um daria naquela dramática reunião”. (FITTIPALDI, Hernani. História do piloto e ajudante de ordens de Getúlio Vargas. Brasília, Edição do Autor: Fórum TV Mais, 2007, p. 320. N. do A.: Hernani Fittipaldi esteve presente à reunião ministerial da madrugada de 24 de agosto de 1954).

gundo o brigadeiro Epaminondas dos Santos, que falou em seguida, estava unanimemente contra o governo. E resumiu, com voz apagada: “A situação na Aeronáutica está incontrolável”. Getúlio ouviu a tudo em silêncio, os olhos semicerrados, o lábio inferior meio pendido, como a demonstrar indiferença, resignação – ou desprezo. O fim estava se aproximando, ele sentia. Como sabia que aquela reunião ministerial estava, na realidade, se transformando numa formalidade apenas. Getúlio soubera, pouco antes de iniciá-la, que Zenóbio – que ali estava fazendo nervosas anotações num bloco de papel – já fora convidado para ser o ministro da Guerra do governo que sucederia ao seu, fosse ele consequência da sua deposição, da sua renúncia ou da sua morte. Getúlio não sentia sequer ânimo para condenar ou censurar o comportamento de Zenóbio. Afinal, ninguém mais do que ele conhecia o poder, as vísceras do poder, o fascínio que o poder exercia sobre os homens e a capacidade que o poder tinha de mudar e transformar ideias, o caráter e os princípios de cada um. Todavia, não se renderia nem se deixaria humilhar por ninguém. Bem verdade que não desejava provocar inúteis banhos de sangue para tentar salvar o pouco que restava do seu governo e de si mesmo. Tinha 71 anos, sentia-se velho e cansado, descrente dos homens e sem alento para lutar por algo que – e aquela reunião era prova disso –, não tinha mais razão para acreditar ou desejar. Já pensara, lucidamente, no que fazer – sem medo, pânico ou desespero. Lembrava-se do rosto triste e preocupado de Jango quando lhe entregara, em envelope fechado, uma cópia da carta que, horas mais tarde, provocaria dor e pranto no povo brasileiro. “Toma, Jango”, dissera, quase sem emoção. “Guarda contigo para ler em casa. Mas só abra o envelope se me acontecer alguma coisa. Vai hoje para o Rio Grande. Depois de mim, eles vão cair sobre ti”. Tancredo Neves falou em seguida. Ao contrário da imagem de moderado e conciliador que viria fixar na vida política brasileira, Tancredo manifestou-se enfaticamente pela resistência, concitando os ministros militares a darem uma demonstração de força e autoridade à tropa e à sociedade. Declarou-se, por fim, disposto inclusive a morrer em defesa do governo e da legalidade constitucional. Assim, o ministro da Justiça mostrou-se corajosamente leal

Os ministros militares falaram primeiro, quebrando a velha praxe de dar a palavra inicial ao titular da pasta da Justiça – no caso, Tancredo Neves –, a quem cabia a responsabilidade pela coordenação política do governo. A inversão era, em si, um indício da gravidade da situação. Mas, naquela altura, o depoimento dos ministros militares era visto por todos como essencial ao delineamento do alcance e das perspectivas da crise. Todos os presentes, pessoas curtidas nos bastidores e tramas do poder, concordavam que dos quartéis dependiam não só os rumos dos acontecimentos como o próprio destino do governo – e do seu chefe. E o deles, naturalmente. As palavras iniciais do general Zenóbio da Costa não constituíram nenhuma novidade. Começou afirmando o que todos já sabiam: a situação era extremamente grave. E procurou dramatizar o seu comentário citando números: dos 80 generais que serviam no Rio de Janeiro, 37 – “praticamente a metade, senhor presidente”, acentuou – já haviam assinado, “como o senhor mesmo sabe”, um manifesto de solidariedade aos brigadeiros. Por fim, Zenóbio ainda acrescentou que a resistência armada seria, em tese, possível, mas isso – fez questão de destacar – iria “provocar derramamento de sangue – de muito sangue”. E emendou, como quem lava as mãos: “A decisão, senhor presidente, é exclusivamente sua”. A intervenção do almirante Renato Guilhobel foi ambígua: informou que a Marinha não pensava em levantar-se nem em depor o presidente, mas “já se manifestara solidária com a Aeronáutica” que, se-

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ao chefe e amigo, em primeiro lugar, e à ordem democrática, em segundo. Depois da reunião ministerial, após desvencilhar-se das pessoas que desejavam cumprimentá-lo ou apenas dirigir-lhe algumas palavras protocolares, Getúlio viu-se frente a frente com Tancredo Neves. Os dois se olharam por alguns segundos, cúmplices e tristes. Num gesto inesperado e comovente, o presidente procurou algo no bolso interno do paletó. Tirou de lá uma velha caneta dourada, modelo antigo – e a ofereceu ao auxiliar: “Toma. É uma recordação destes dias”. Horas mais tarde, Tancredo entenderia o significado do gesto de Getúlio: com aquela caneta, o presidente assinara a carta-testamento. Os demais ministros civis foram dúbios ou vagos nos seus apartes, com exceção de José Américo de Almeida e Osvaldo Aranha. O primeiro tomou posição francamente oposta à de Tancredo: exortou o presidente a que “afugentasse com um grande gesto os espectros que nos rondam, sombrios e ameaçadores”, defendendo expressamente “a renúncia que deveria ser acompanhada de um manifesto à nação, expondo os seus motivos”. Osvaldo Aranha desenvolveu um raciocínio mais sintético que analítico, embora com uma insinuação no final. “Há”, iniciou, “três soluções possíveis. A primeira seria a resistência pessoal, ao preço da própria vida e à qual me declaro desde logo solidário. A segunda seria um balanço das forças fiéis ao governo para rechaçar militarmente qualquer tentativa contra a Constituição. E, finalmente, restaria a solução da renúncia, mas esta seria uma decisão de foro íntimo e em cuja apreciação não me cabe entrar”. Getúlio mirou longamente os dois auxiliares, sem revelar qualquer reação diante do que escutara. José Américo e Osvaldo Aranha eram os mais antigos naquela sala, estavam com ele desde 1930, enfrentaram com ele outras e tantas tempestades políticas. José Américo falou em espectros que nos rondam e grande gesto; Osvaldo Aranha, em preço da própria vida e foro íntimo. Ele conhecia bem aqueles dois homens, como agiam e como pensavam – e sabia que aquelas palavras não eram simples retórica, mas expressavam um estado de espírito, uma espécie de senha, um toque de recolher. Getúlio sabia que a ideia – mais: o ato – de sua renúncia significaria muito para a maioria dos presentes, que não só ficariam livres da hipótese

(indesejada) de resistência, que os alarmava, como teriam ainda uma chance real de sobrevida política, à qual se agarrariam todos, à espera de que a conjuntura virasse passado e história. Súbito, Alzira Vargas – que desde o início dava provas de impaciência com os rumos da reunião –, quebrou o protocolo e interrompeu: “Desculpe-me, papai, mas eu não posso ouvir tudo isso calada”. E, adiantando-se, interpelou bruscamente o ministro da Guerra: “General Zenóbio, o senhor bem sabe que essa conspiração é uma conspiração de gabinete. Os generais que assinaram o manifesto contra o governo não têm comando, não têm tropa. O senhor sabe tão bem quanto eu que na Vila Militar nada mudou. A Vila Militar permanece fiel ao governo e à ordem constitucional. E sem a Vila, pode alguém dar um golpe nesse país, me responda?” O tom das palavras de Alzira era agressivo e desafiador, mas a pergunta encerrava uma verdade que, devidamente testada, poderia talvez desequilibrar a correlação de forças – e alterar o ritmo e o desfecho da crise. Tomado de surpresa, Zenóbio empalideceu, tentou aparteá-la, mas Alzira não lhe deu tempo, dirigindo-se agora aos ministros Guilhobel e Epaminondas. “Os senhores não podem aceitar passivamente a indisciplina dos seus subordinados. Os senhores devem fazer cumprir a Constituição. Esta é a responsabilidade dos senhores”. Agastado, quase sem voz, Epaminondas ainda arriscou: “Basta apenas mandar prender o Juarez Távora e o Eduardo Gomes”. Zenóbio, percebendo que o comentário o atingia frontalmente, reagiu, feroz: “E você, por que você mesmo não os prende?” Uma sombra cobriu o rosto de Epaminondas, que respondeu, quase num soluço: “Eu não tenho mais tropa”. Irada, Alzira caminhou até a extremidade da mesa, apoiou o braço no espaldar da cadeira do pai e fez um dramático apelo à resistência, sendo imediatamente apoiada por Maneco Vargas, Danton Coelho e pelo general Caiado de Castro. “Os golpistas fazem mais barulho do que inspiram um perigo real”. Fez uma curta pausa e insistiu: “Devemos resistir”. Olhou firmemente para os ministros militares. E desafiou: “Os senhores não podem se omitir nessa hora”, repetiu, gaga de ódio. A intromissão repentina e atrevida da filha do presidente bagunçara o cerimonial da reunião. Os ministros começaram a falar ao mesmo tempo e a

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se tratar informalmente por você e tu, repetindo argumentos novos e velhos – convincentes uns, confusos alguns, esfarrapados outros. Exasperado com os rumos da reunião, Zenóbio levantou-se e, com exagerada solenidade, informou que iria agora mesmo organizar a resistência, pôr as tropas na rua e, a qualquer preço, prender os rebelados. “Mas depois não me venham responsabilizar pelas consequências”, ameaçou, voltando a sentar-se. Diante da cena, o Almirante Guilhobel virou-se para Getúlio e disse, a voz embargada: “Lamento verificar, presidente, que o senhor seja sempre traído por seu ministro da Guerra”. Foi, sem dúvida, um dos mais sensatos comentários feitos na reunião. Mas Getúlio limitou-se apenas a ouvir – e a olhar desalentado para Zenóbio, que tamborilava a mesa com a ponta dos dedos, visivelmente contrariado. Alguém escrevera, certa vez, que Getúlio era distante e frio, pouco dado a intimidades. Seu rosto era indecifrável e estereotipado, o olhar permanentemente opaco, os gestos contidos e reticentes. Mesmo nos raros momentos de descontração, quando fumava os seus famosos charutos ou quando alargava o rosto numa gargalhada. Getúlio jamais expunha os seus sentimentos. Homem curtido nas asperezas da vida, político acostumado a viver sob pressão e tensão, os mais próximos e os mais distantes notavam nele um impressionante controle emocional diante dos piores momentos – e isto, dependendo de quem o dissesse, era o reconhecimento de uma virtude ou o estigma de uma acusação. Deus e demônio, diziam, numa só entidade. Naquela madrugada de agosto, diante do que vira e ouvira, mais uma vez o autodomínio emocional

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da Esfinge foi posto à prova – a derradeira e mais lancinante prova de sua vida. Mais tarde, na manhã seguinte, após o gesto extremo que o empurrou da vida para a história, algumas pessoas que estiveram na reunião recordariam, com lágrimas nos olhos, o silêncio e a aparente serenidade com que Getúlio escutara os ministros e presenciara o bate-boca que se seguira à atrevida intervenção de Alzira. Ninguém, em momento algum da reunião, percebera em Getúlio a mais tênue emoção, o mais discreto sinal de nervosismo, o menor gesto que denotasse a angústia que certamente queimava o seu íntimo. Nunca a imagem da Esfinge foi tão exata. Getúlio decidiu-se pelo suicídio durante aquela reunião, quando percebeu, em definitivo, a dramática extensão do seu abandono político e da sua solidão pessoal. Diante do que viu e, principalmente, ouviu, Getúlio percebeu que a possibilidade da resistência física ao golpe era impossível. E a hipótese de suicídio ganhou contornos mais ou menos claros no seu espírito, a ponto de transformar-se, horas mais tarde, numa decisão e num gesto. Como disse Almir Matos, em agosto, Getúlio ficou só. Quem esfriou os exaltados ânimos da reunião foi o governador Ernani do Amaral Peixoto, marido de Alzira e político leal ao presidente, que sugeriu, com a habilidade de prócer do PSD, a solução intermediária da licença – “por um período prudente e razoável”. Esta meia-saída para a crise, pendente de aceitação pelas forças hostis a Getúlio, recebeu adesões entre os presentes, que logo trataram de decidir quem faria o quê caso a solução fosse adotada. Amaral Peixoto sugeriu que Tancredo Neves, na condição de ministro da Justiça, ficasse encarregado


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Se os militares mantiverem a ordem pública, estou disposto a apresentar o meu pedido de licença. Caso contrário, se os amotinados quiserem chegar até o Catete, aqui encontrarão apenas o meu cadáver”. A palavra cadáver foi pronunciada sem qualquer emoção, sem qualquer tremor na voz, com extrema naturalidade – e talvez por isso mesmo ou, quem sabe, devido ao cansaço que dominava a todos, não tenha causado nenhum susto nos presentes. Estes, a rigor, estavam mais interessados na solução encontrada, que julgavam a melhor – o porto seguro onde atracariam a nau de um governo avariado e prestes a submergir, levando-os a todos para o fundo. Eles não sabiam, porém, que Getúlio já tomara, ali, a sua definitiva e solitária decisão, ao preço do seu sacrifício pessoal. Enquanto os ministros discutiam e trabalhavam na melhor solução, o presidente já decidira pela única saída, que seria a sua derradeira vitória. E faria toda uma nação emudecer de dor e pranto. ■

de redigir um comunicado ao povo brasileiro, explicando os motivos, as condições e o significado da solução encontrada. Estabeleceu-se que o comunicado deveria enaltecer discretamente a decisão de Getúlio, fixando, porém, a sua determinação de que fosse mantida a ordem, respeitados os poderes constituídos e honrados os compromissos assumidos perante a nação pelos comandantes militares. O conteúdo, enfim, estava delineado em linhas gerais, faltando apenas definir o tom preciso do comunicado – e, não menos importante, as palavras que iriam ser usadas, nem tão enfáticas que parecessem um desafio, nem tão suaves que sugerissem uma rendição.1 Um documento, enfim, que expressasse grandeza, embora a licença, na altura dos acontecimentos, fosse uma forma de renúncia. Alguns ministros, mais aliviados, ainda faziam sugestões ao texto quando Getúlio tomou a palavra e, encerrando a reunião, anunciou: “Está bem.

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A nota que anunciava o pedido de licença foi divulgada às 4h45min. do dia 24 de agosto de 1954. O texto era o seguinte: “Deliberou o presidente Vargas, com integral solidariedade dos seus ministros, entrar em licença, passando o governo a seu substituto legal, desde que seja mantida a ordem, respeitados os poderes constituídos e honrados os compromissos solenemente assumidos perante a nação pelos oficiais-generais das nossas forças armadas. Em caso contrário persistiria inabalável no seu propósito de defender suas prerrogativas constitucionais com sacrifício, de sua própria vida”. Esta última frase mostra, com clareza, a disposição de Getúlio de, em caso extremo, resistir a quaisquer tentativas de golpe.

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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Para Alberto Sobre a flor e a chuva Eloisa Rosa – Professora do Departamento de Dança do Instituto Federal Brasília

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ra hora de partir para a terra no lugar dos ancestrais. Um mundaréu de gente esperava ansiosamente a passagem para o mundo dos mortais. Foi-lhe perguntado qual ser teria vontade de se assemelhar, respondeu flor, imediatamente. Eloisa veio com beleza de se admirar. Alberto chegou também a esse portal e era meticuloso como o mais sábio animal. Perguntaram-lhe que elemento gostaria de aparentar, isso foi um pouco antes de Eloisa chegar. Mediu as palavras, as consequências e nem percebeu que o mundaréu de gente que esperava cresceu. Ele disse: Quero conviver com as flores, viajar como o vento e ser sábio como a coruja. Depois de um sorriso, o senhor que lhe fez a pergunta, disse: Você será como a chuva! Aquela flor nasceu de um encantamento. Bela, perfumada e bailava com o vento. Mas, a cada inverno, mudança ou momento, tinha que morrer e renascer num novo surgimento. Para piorar todo esse tormento, ela nasceria com o “dom do esquecimento”. Nasceu amarela, rosa, grande e pequena, mas o renascimento não era o seu problema. Ela esquecia a cada renascer, seria uma maldição assim viver. Ela chorava bem baixinho e o vento a chamava para bailar de mansinho. O vento era o senhor da terra dos mortais, conseguia transformar calor em frescor e não se arrependia jamais. Reconhecia na flor seu puro coração e resolveu ajudar com uma modificação. Fez um redemoinho e aconteceu uma transformação… A flor percebeu caule e raiz, num ipê rosa ela se transformou feliz. Mas o seu tormento do esquecimento não passou com esse movimento. Ela ainda esquecia tudo, inclusive o seu próprio encantamento. Com Alberto a história foi um pouco diferente. Como chuva, entre as flores, ele era emergente. Também pudera, levava frescor a quem espera. Pôde conhecer o céu, a terra e o mar; foi se tornando sábio ao viajar.

O que ele não sabia era que, como chuva, ninguém ia conhecê-lo por inteiro. Somente ele sabia quem era de janeiro a janeiro. Seu universo era amplo e profundo. Cochichava para os passarinhos e assustava com trovões seus ninhos. Alguns tentavam prever seu momento, mas não dava para saber sobre seu movimento. Um dia aconteceu um romance, desses que poucas pessoas têm chance. A chuva encontrou a flor e acho que foi um encontro de amor. A flor sentiu a chuva de olhos fechados; sabe, quando nos molhamos num movimento impensado? No inspirar e expirar ele entrou em suas raízes e a fez se apaixonar. Era um sopro de vida que ela estava a vivenciar. Um dia a chuva foi embora, A flor triste chorou lágrimas de sais. Pediu ao vento que a transformasse sem demora No barco e não no cais. Quis poder viajar com a chuva, Mas o vento lhe disse que, talvez, nunca mais. Com medo de certezas que não pudesse lidar, Perguntou ao vento, nada mais. Silenciou, esperou e, com medo de esquecer, se amedrontou. Resolveu fazer uma mandinga da flor cigana do sertão que visitou. Juntou duas pedrinhas, e ali suas lembranças depositou. Molhou com a água daquela chuva a esperança de não esquecer o que passou. O beijo roubado no pé da cachoeira, o olhar dentro da alma, a barba, as safadezas e o coração. Acho que ela foi uma privilegiada por ter vivido tudo isso, mas essa é a minha opinião. Uma coisa que ela não sabia que sempre se lembraria em toda chuva que caía do rapaz que se ia. E para esse rapaz, ela gostaria de dizer que sente saudades “por” demais. ■

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Um pouco fora de foco Pedro Stoeckli Pires

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inda que Miguel tivesse se preparado praquele momento, ele sabia que seria difícil. Ainda que Miguel pedisse para estar naquela situação, pouca coisa poderia ser feita para torná-la mais natural. E é preciso dizer que Miguel nem se preparou e nem pediu para receber uma hóspede tão jovem. Ana, por sua vez, tampouco poderia prever como seria. Sua intenção não era a de conviver com um idoso. E era isso que Miguel era, mesmo que não gostasse de ser reconhecido como tal. Segundo filho de uma família descendente de portugueses, Miguel gostava de se ver como alguém um tanto fora do padrão. Seu pai, descendente de comerciantes de café de São Paulo, se mudou para o Rio quando Miguel tinha apenas sete anos, para tentar dar uma vida melhor para o que restava de sua família. A mãe de Miguel havia falecido por complicações pulmonares e seu pai se culpava profundamente pelo absentismo durante o tratamento da esposa. “Nunca pensei que ela viria a falecer, achei que era só uma gripe comum”, dizia a quem lhe quisesse escutar, principalmente quando parava no bar da esquina antes de retornar para casa e encontrar seus dois filhos, Miguel, o mais novo, e Ernesto, o primogênito. A verdade é que, em sua assumida e explícita preocupação de criar melhor seus dois filhos, o pai de Miguel sentia o imenso fardo pela perda da esposa, e nunca conseguiu se reaproximar deles. Talvez, por isso, Miguel decidira se mudar para um seminário quando tinha dezessete anos, embora, à época, acreditasse que se tratava de um chamado divino. Foi lá que se acostumou a passar longas horas sozinho e introspectivo, prática que se arraigou em sua personalidade. No seminário também desenvolveu uma forte antipatia por pessoas que comem fazendo muito barulho; dessas que batem os garfos no prato toda vez que levam os talheres até a comida. No refeitório do seminário eram dezenas de estudantes comendo ao mesmo tempo, e todos deviam evitar bater os garfos nos pratos, ou o am-

biente virava uma sinfonia horrorosa. Desde então, se havia uma coisa que Miguel não tolerava era o barulho de um garfo arranhando o prato. Alguns anos mais tarde Miguel compreendeu que a dedicação sacerdotal não era sua vocação, mas já adaptado à vida em uma cidade menor, continuou a viver no interior. Essa situação, somada à discussão que tiveram quando da divisão da pequena herança deixada por seu pai, fez com que Miguel praticamente não falasse mais com seu irmão Ernesto. Mesmo que sua história fosse bem mais curta, Ana já conhecia mais da vida que as outras meninas de sua idade. Não tinha memórias de seu pai, e sua mãe desconversava quando ela perguntava. Gostava muito de Ernesto, que pela idade parecia seu avô, mas o tratava de forma costumaz, então, por ela, não havia problemas em sua mãe querer ficar com alguém que parecesse um vovô. “Por que tem esse escrito em francês aí?” – ela perguntou logo que se sentaram à mesa escolhida por Miguel. “Ah, você sabe que é francês?” – Miguel respondeu tentando ser simpático, mas também sem saber se estava a infantilizar demais sua pequena companhia. “Eu sei que não é inglês, e também não é espanhol. Eu tenho aula de espanhol no colégio”. “Olha, te falar que nunca perguntei desses cartazes ali. Mas o dono aqui é filho de italianos, então seria mais comum se fosse algo da Itália né? O que você vai querer? Quer um leite com chocolate?” Miguel não sabia, mas Ana tinha problemas com leite, não lhe fazia bem e sua mãe lhe explicou que isso acontecia desde que ela era neném. Ela achou melhor nem explicar isso pra Miguel. “Não. Acho que quero um suco.” “Certo...” Miguel pediu, então, o suco de Ana, uma água com gás e uma taça de vinho da casa. Enrolou um cigarro enquanto esperavam. Ele não sabia se era certo fumar na frente de uma criança. Na verdade

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A intervenção de João foi boa para voltar a ter algum clima de conversa entre os dois. Miguel aproveitou para escolherem o que iriam comer. Não que houvesse muitas opções. Era macarrão à bolonhesa ou bife a cavalo. Eram os dois únicos pratos que a cozinheira do bar do João fazia. Ana optou pelo macarrão e Miguel decidiu lhe acompanhar. Enquanto esperavam Miguel pediu para ela lhe contar de como era a sua rotina na capital, o que gostava de fazer. Lhe pareceu que Ana gostou de falar de si, ficou mais aberta e falante. Miguel ouviu sobre a sua aula de natação e sobre sua escola, onde ela tinha até aula de piano, se quisesse. Ela lhe disse que adorava ver filmes, mesmo que em casa. Mas não gostava de novelas, só a que passava mais tarde, que sua mãe não a deixava assistir. Miguel sorriu ao ouvir aquela pequena moça se transformar em um grilo falante. Ana seguiu lhe contando que queria muito ter um cachorro, e que já tinha até um nome para ele. Os pratos chegaram e ela continuou a tagarelar, enquanto Miguel ajeitava os talheres para eles. “Cuidado que pode estar quente tá?” – ele disse. Ana agora parecia mais interessada em falar de seu futuro cachorro e como ela iria cuidar dele. Miguel assistia atentamente, sem desviar o olhar. Levou seu garfo até o prato, e, na tentativa de fincar um pouco da carne, pôs força demais fazendo com que o garfo arranhasse o prato, gerando um ruído estridente. “Ai!” – disse Ana – “odeio barulho de garfo batendo em prato desse jeito!” Miguel sorriu olhando para baixo. Sorriu e pensou que talvez não seria um final de semana tão ruim assim. ■

ele não sabia muito do que era certo ou não quando se tratava de crianças, então decidiu encarar Ana como uma adulta em um corpo diminuto. “Olha Ana, não sei se seu pai te falou...” “O Ernesto não é meu pai.” – Ana o interrompeu. “Tem razão.” Miguel ainda achava difícil acreditar na ligação repentina que recebeu de Ernesto, que lhe pedia para hospedar sua enteada durante o feriado. Ernesto explicou que precisava viajar com sua companheira para resolver um problema na família dela e que não tinha alguém de confiança para cuidar de Ana. Pego assim, de supetão, Miguel aceitou, mas depois ficou pensando se aquilo não era mais uma maneira que seu irmão achou de tentar se aproximar novamente. De qualquer modo, o resultado estava ali, sentada à sua frente, bebericando um suco de laranja. “Não sei se meu irmão te falou, mas essa cidade não tem muita coisa pra fazer, como tem na capital. E a minha casa não tem brinquedos ou computador.” Ana mudou seu semblante, parecendo brava e disse: “Eu não sou criança. Não gosto de brinquedos mais. Quantos anos você acha que eu tenho hein?!” Miguel não sabia. “E eu trouxe meu livro já.” “É de colorir?” – Miguel perguntou, tentando parecer simpático e interessado. Ana respondeu apenas com um olhar, abrindo os olhos e mostrando que ele não estava no caminho certo. Miguel percebeu que a irritou e, desconcertado, baixou seus olhos e começou a mexer em sua taça de vinho, sem bebê-la. Os dois ficaram em silêncio por um tempo, que parecia uma eternidade para Miguel. Ele foi tomado por uma ansiedade crescente, pensando que aquela situação não daria certo. Ele e uma criança. Não sabia nada de crianças, ainda mais sobre uma que achava não ser mais criança. Foi nesse momento que ouviu o clique de uma máquina fotográfica ao seu lado. Meio surpreso, se virou e viu João, o dono daquele bar, sorrindo e segurando uma velha Pentax. “Quem diria hein, Miguel? Que eu te veria acompanhado de uma moça tão bonita assim!” Ana sorriu e gostou do elogio. Ficou olhando para a câmera, que lhe parecia tão antiga quanto aquela gente e aquele lugar. Miguel apresentou Ana a João. Disse que era a enteada de seu irmão e que ela estava lhe visitando por uns dias.

Foto: Gerd Altmann – pixabay.com

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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.

Capítulo 8 programa de auditório chamado “Hoje é dia de rock”, na Praça Mauá. Rimos muito quando eu disse que ia aos sábados ao tal programa. Como o comandante disse, no dia que nos viu olhando as índias com certo interesse: “vejam lá garotos no que estão pensando”. Éramos garotos. Hoje posso dizer que o tenente me ajudou a aguentar aquela malfadada prisão, senão acabaria fazendo como o Pimenta, que com pouco mais de um mês desapareceu na boca da noite, sem uma arma, nem nada, se mandou a pé mesmo, sozinho, sem ajuda. Embrenhou-se na mata, era um mineiro gordinho de rosto redondo, pouco falante. Para fazer o que fez devia estar nos limites; mineiros, no geral, não tomam decisões radicais, espalhafatosas, mas o Pimenta era mineiro do Sertão, vizinho da Bahia, território do Zé Bebelo. O Comandante cumpriu o que prometeu, nem se mexeu. Só comunicou a fuga ao Gaúcho, que era o mais graduado e funcionava como uma espécie de comandante dos presos. Ainda demos uma batida ao redor, podia ter acontecido alguma coisa, acidente. Nada, o homem fugiu. — Vamos ver, se ele conseguir, quem sabe nós faremos o mesmo, disse o Gaúcho esfregando as mãos. ▶

De fato, meu pai tinha mandando uma dezena de desafetos para o subsolo do cemitério de Palmeiras dos Índios, Matinha de Água Branca e até de Garanhuns, no agreste pernambucano, mas que eu me lembre detestava cangaceiros. O comandante exprimiu um sorriso forçado e fomos nos entendendo naquela conversação gracilianesca, de sorrisos contidos e conversa reprimida, substantivada. Quando a conversa esquentou resolvi testá-lo: — Comandante, como veio parar neste fim de mundo? — Razões pessoais, meu filho. Gostava dele, era seco, mas parecia sincero, não teve culpa de estar do lado errado, ou certo, sei lá, naquelas alturas não sabia mais qual o lado certo, e pouco me interessava saber. Gostava mais do ajudante dele, de idade bem próxima a minha e interesses semelhantes, conversávamos muito sobre o Rio de Janeiro, onde ele nascera. Posso dizer que embora estivéssemos de lados opostos, ficamos amigos, amizade diferente da do Gaúcho, temas mais divertidos, distantes de questões políticas e ideológicas e mais próximos de namoros, mulheres, Elvis Presley, Little Richards, Roberto Carlos, Jorge Ben. Chegamos a frequentar, sem nos conhecermos, um

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— Pelo que vi no mapa vai virar almoço de onça, isso se não morrer afogado, pegar malária ou outra doença qualquer —, comentei, pessimista como sempre. Continuamos com nosso jogo de vôlei e futebol de manhã. No vôlei ganhava todas, não tinha ninguém que fosse páreo para meu metro e oitenta, além do quê, ganhara músculos e voltara a meu peso normal. À tarde consertávamos as casas, os móveis, caiávamos o muro e retocávamos as letras azuis. O Gaúcho, na prática, comandava as operações. Quando chegava às letras azuis eu costumava fazer uma piadinha sobre o dístico do frontão, geralmente sobre a aptidão daquele bando de soldados serem capazes de defender alguma fronteira. O Gaúcho retrucava professoral: — É simbólico, como quando a gente faz uma cerca na fazenda, avisando ao vizinho: “daqui para dentro a terra é minha”. — É preciso ver se o vizinho vai respeitar. — Pensei na Segunda Guerra, todos fizeram suas cerquinhas, os alemães vieram com tanques e aviões e passaram por cima de tudo. — Vizinhos sempre se respeitam, disse o Gaúcho. — pensando em fazendeiros. Do alto da escada avistei, perto das palhoças, um grupo de índios trazendo um indivíduo numa rede. Era o Pimenta. O homem ficou magro, magérrimo, em menos de um mês a terçã deixou-o irreconhecível, do rosto redondo sobrou uma cara esquelética assustadora, amarela. Tudo nele ficou amarelo, a pele, os lábios, o branco dos olhos, as unhas, tudo. Quando o vi de perto pensei que já estava morto, mas os índios faziam sinais dizendo que não. Os Juminás viviam numa aldeia ali

perto e encontraram o rapaz uns oitenta quilômetros ao Norte, próximo de um lugar chamado Ponta dos Índios, bem perto do Cabo Orange. O Pimenta ia na direção do mar, devia ter um plano, não sei se nos contaria, era calado, quieto. No momento não conseguia falar nada mesmo, embora tentasse. O Comandante mandou os cozinheiros arranjarem comida, montaram um prataço de quatro andares: o primeiro andar composto de feijão enlatado, o segundo de inhame cozido com linguiça, o terceiro de farinha que derramava pelas bordas e lá no alto como se fosse o atrativo principal, uma banana cozida, gentileza do cozinheiro. Imaginei que aquela comidaria ia acabar de matá-lo, mas não, quando viu a comida ficou mais animado, mas não conseguiu engolir três colheradas, só comeu a banana. — Dê-lhe água, muita água, está desidratado, recomendou o enfermeiro. Deixamos que tentasse comer em paz, depois iríamos ver se dizia algo de útil para uma fuga mais concatenada. O Comandante botou-lhe uma semana atrás das grades e mandou reforçar sua comida. Quando saiu, pouco falava, mesmo diante da insistência do Gaúcho, era como tirar água da pedra. — Diga-me Pimenta, por que foste na direção Norte, rapaz? — Queria chegar ao mar, no Atlântico, respondeu ainda com a voz abalada. — E depois, o que pretendias, tchê? — Não sei, chegando lá eu ia ver. É muito longe, só andava de dia, orientado pelo sol e estrelas, não levei bússola. Ainda bem que os índios apareceram, senão morria de fome e da malária, que me pegou duas semanas depois. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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