Revista eletrônica ∙ nº 9 ∙ Brasília/DF ∙ 31 ago 2016
Parece futebol Nossas pequenas liberdades Como é a vida
Foto: Bmbyars – pixabay.com
As derradeiras horas, final
A Turquia entre o desejo europeu e a fé muçulmana
Revista eletrônica Nº 9 ∙ 31 ago 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Murillo de Aragão Ronaldo Conde Aguiar Walter Sotomayor Wilian Fernades Pereira EDITORES Arno Vogel Benício Schmidt Carlos Alves Muller Fabiano Cardoso
4 A Turquia procura novos amigos
7 Nossas pequenas liberdades
8 As Derradeiras Horas
13 Parece futebol
DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck
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PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)
Como é a Vida
VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br
17 Encaixotando Brasília
EDITORIAL N
este número do Manto Diáfano trazemos texto do jornalista Walter Sotomayor que nos explica, de modo didático, algumas das nuances do sistema político turco e como este país tenta exercer papel e presença política na Europa e no Oriente Médio, sendo um Estado que está no limiar entre dois mundos. Walter Sotomayor coloca que o atual governo turco não é bom, nem mal, apenas político e que tenta, a seu modo, talvez, fazer a turquia “great again”. Murillo de Aragão analisa, de forma precisa, o que é a liberdade em nosso sistema político-social e qual seu preço, seus custos e o esforço que devemos ter para realmente merecê-la. Finalmente trazemos a última das três partes das derradeiras horas de Getúlio Vargas antes do tiro fatal, na narrativa emocionante e bela de Ronaldo Conde Aguiar. Fechando o mês de agosto, do cachorro louco, tentaremos iniciar análises acerca do futebol brasileiro, neste caso específico, uma introdução em relação à tática que tanto nos faz falta. Trazemos a colaboração de Wilan Fernandes Pereira, escritor, filósofo, professor com trecho de seu livro Self-Portraitor. Poético, militante dos sentimentos, da vida, da terra e das palavras. Um belo texto, sem dúvida. Fechamos o mês com mais um capítulo da novela de Arnaldo Barbosa Brandão que, junto a Gaúcho, tenta se adaptar à vida na prisão militar sem muros no meio da floresta amazônica. Boa leitura.
o manto diáfano
nº 9 ∙ Brasília/DF ∙ 31 ago 2016
A Turquia procura novos amigos Walter Sotomayor – jornalista
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recente golpe de estado na Turquia e a reação do governo de Recep Tayyip Erdogan estão provocando mudanças no arco de alianças com a formação de um novo eixo que pretende limitar a ação política e militar dos Estados Unidos e da Europa na região. A informação de que o governo turco dispunha de informações sobre os preparativos do golpe confirmariam a existência de uma estratégia governamental destinada a expurgar as Forças Armadas e também a banir da sociedade turca todos os defensores do estado laico, seja no judiciário ou no sistema educacional. O expurgo é indício forte de que a Turquia estaria deixando de ser o estado laico instaurado com a criação da República, no fim da Primeira Guerra Mundial, e abraçaria novamente o Islam como orientação religiosa e até como base do sistema jurídico. As características dessa islamização têm a ver com a chegada de Recep Tayyip Erdogan ao poder, em 2003, e certamente com a preponderância que a religião passou a ter em todos os países que abraçaram, oficialmente ou não, a religião muçulmana. Erdogan parece convencido da impossibilidade política e cultural de seu país ser aceito como membro pleno da União Europeia. A Turquia, que já forma parte da união aduaneira da União Europeia há 20 anos, em 2005 fez um pedido formal, que agora é negado oficialmente. Se já havia na Europa uma crescente islamofobia, a Turquia é vista como um risco sob o pretexto da possível adoção da pena de morte ou do desrespeito aos direitos humanos. Tudo isso parece querer esconder um forte preconceito, muito além de qualquer outro motivo. Esse
preconceito é reconhecido pela cientista política Gemma Aubarell, que trabalha na Fundació Anna Lindh per al Diàleg de Cultures (ALF). Trata-se de uma instituição da Catalunha que procura construir justamente pontes nesse grande abismo cultural que separa a Europa dos seus vizinhos do Mediterrâneo. A discussão sobre o imaginário europeu a respeito da Turquia é assunto central de Thierry Hentsch1, que se concentra num ponto mais preciso do que o clássico O Orientalismo, de Eduard Said. Mas o franco-turco SemihVaner2 é ainda mais explícito quando sustenta que o Império Otomano, primeiro, e a Turquia depois, carregam “uma identidade negativa”, se referindo ao processo histórico no sentido da longa duração atribuído por Ferdinand Braudel. A Turquia foi e continua sendo enxergada como o inimigo pelos europeus. Na Turquia atual volta a se manifestar também um sentimento antiocidental que marcou a história do país. O raciocínio parece motivado por uma questão simples: se a Turquia não pode se manter como bastião em defesa do Ocidente e se um século de adoção da cultura e dos padrões europeus não foram suficientes para obter a aceitação nesse clube de “países civilizados” não teria mais sentido persistir nesse intento, nem teria mais sentido participar da aliança militar do Ocidente, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN. Então, se os ocidentais não aceitam a Turquia, a não ser para obter vantagens pontuais, como na Guerra Fria, não teria sentido insistir e buscar alternativas que coincidam mais com seus próprios interesses, religião e cultura. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial a Turquia significou para o Ocidente
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HENTSCH, Thierry. L’Orient imaginaire. La vision politique occidentale de L’est Méditerranéen. Paris: Minuit, 1998.
2
VANER, Semih. Turquia, la grandeza de la soledad. IN: AUBARELL Gemma (org). Las políticas mediterráneas, nuevos escenarios de cooperación. Barcelona: Institut Catala de la Mediterranea/Icaria/Antracyt. 1999, p. 217.
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uma vantagem estratégica como parte da política de contenção da União Soviética, da mesma forma que o Irã, do Xá Reza Pahlevi, fora até 1979. Durante a Guerra Fria os Estados Unidos lançavam da base turca de Incirlik seus aviões U2 para espionar a União Soviética, até que um desses aparelhos, pilotado pelo capitão Francis Gary Powers, foi derrubado por mísseis lançados da base russa de Ecatiremburgo. Hoje a base tem importância central para qualquer ação militar ocidental no Iraque, no Irã ou na Síria. Robert D. Kaplan, um dos mais lidos analistas de relações internacionais, além de ver em Erdogan um líder político que “ferve de ambição”, uma característica identificada apenas em outro líder, Vladimir Putin, adverte que a situação da Turquia, entre Oriente e Ocidente é fonte de muitas vulnerabilidades, mas também de muitos benefícios, o que faz com que o líder turco cometa excessos, ainda que esses excessos tenham uma lógica histórica e geográfica3. Ao longo do século XIX, uma era marcada pela política dos equilíbrios de poder entre as grandes potências, a Turquia, isto é, o Império Otomano, foi uma peça chave uma vez que controlava os estreitos de Bósforo e Dardanelos, parte de uma vital comunicação do antigo Império Russo com o resto do mundo. A preservação dessa via aberta permitia tanto a exportação do trigo quanto a importação de produtos para esse império durante o longo período de inverno que inabilitava os portos do Báltico e de outros mais ao norte. A Turquia fazia parte desse equilíbrio. Essa situação foi modificada pela decisão do Império Alemão de se tornar potência hegemônica na Europa contra a vontade da França, da Inglaterra e da Rússia. O Império Otomano, em franca decadência, tornou-se aliado de Berlim ao aceitar a ajuda alemã para reorganizar suas forças armadas e assim receber armamento moderno. Na realidade, a Turquia se tornara refém de uma potência estrangeira que foi assumindo aos poucos o controle de suas Forças Armadas, como relata Henry Morgenthau no livro4 sobre sua missão de pouco mais de dois anos como embaixador dos Estados Unidos em Constantinopla (hoje Istambul).
Como privilegiado observador de um país neutro em um conflito em que os interesses de seu país ainda eram tênues naquela região, Morgenthau viu o avanço do poder do Império Alemão sobre o Império Austro-Húngaro, a Sérvia, a Bulgária e a Romênia. A Turquia era importante porque, fechando os estreitos que dão acesso ao Mar de Mármara e ao Mar Negro, a Rússia podia ser asfixiada. Com isso a Alemanha pretendia expandir seus domínios desde o Mar do Norte até o Golfo Pérsico. O fracasso militar da Alemanha foi também um desastre para a Turquia, o que não impediu um genocídio de armênios, o foco do relato de Morgenthau. O escritor turco Omar Pamuk, Nobel de Literatura de 2006, além de retratar um país de encontro ao choque de culturas, põe o dedo na ferida ao denunciar o genocídio de armênios e a perseguição de curdos, um tabu em seu país. Por isso, Pamuk é alvo do fundamentalismo turco. Após a Primeira Guerra Mundial, Kemal Ataturk, um oficial do exército turco, lutou contra as forças de ocupação das potências vencedoras, declarou a independência e instituiu uma República no lugar do antigo império. Uma das suas mais importantes reformas foi a extinção do califado, a forma monárquica de governo que, na teoria, era uma dinastia formada por descendentes do profeta Maomé mas, na prática, havia se tornado um símbolo do país, sem poder efetivo, em um país governado por políticos profissionais. O estado laico de Ataturk foi o mais importante legado de seus 18 anos de governo. A recente tentativa de golpe militar foi interpretada agora como a tentativa das Forças Armadas de fazer cumprir a Constituição, isto é, como uma luta para conter o avanço silencioso do processo de islamização do país. A Constituição vigente, herança de um processo de ocidentalização comandado por Ataturk, estava em perigo. A ocidentalização teria sido o caminho encontrado por Ataturk para dar uma feição nova a seu país que impedisse a manipulação de que fora vítima. Morgenthau revela um curioso detalhe das relações entre as potências europeias e a Turquia, conhecidas pelo nome de Capitulações. ▶
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KAPLAN, Robert D. & BHALLA, Reva. Turkey’s Geographical Ambition. IN: Global Analysis of Stratfor. (may, 2013).
4
MORGENTHAU, Henry. A história do embaixador Morgenthau. Um depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010 (1918).
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Ao longo dos séculos foram firmados tratados que, na prática, desconheciam algumas instituições turcas como, por exemplo, a justiça. Se um estrangeiro fosse julgado por algum delito cometido em território turco, teria direito a um juiz de seu país de origem. Desse modo, ingleses, franceses ou alemães possuíam seu próprio sistema de justiça funcionando na Turquia, da mesma forma que um sistema educacional próprio para estrangeiros. A presença estrangeira funcionava como um enclave colonialista, nem mais nem menos, embora o país não fosse colônia. Disposto a transformar seu país, Ataturk, um fervoroso admirador do Iluminismo, contratou o educador estadunidense John Dewey para levar adiante uma reforma educacional que pretendia reduzir os índices de alfabetização, chegando a trocar os caracteres árabes da escrita turca por um novo alfabeto próprio baseado nos caracteres latinos. A reforma avançou também com a secularização da sociedade paralelamente à adoção de padrões europeus na forma de vestir. Durante o governo de Ataturk a Turquia perdeu a cidade de Mossul para os ingleses que ocupavam o Iraque. A cidade ao norte do Iraque e sudoeste da Turquia é próxima também da fronteira com a Síria, palco nos dias atuais de combates entre diversos exércitos de países da região e de bombardeios dos Estados Unidos, França e Rússia. A região tradicionalmente foi uma fronteira cultural e religiosa e, portanto, também uma fronteira política, onde disputam espaço curdos, turcos, armênios e árabes. Além da questão religiosa, a Turquia herdou problemas derivados de sua diversa composição étnica e, se os armênios disputavam direitos, os curdos, uma nação de maioria muçulmana com 30 milhões de habitantes sem território, reivindicam também um espaço próprio, espremido entre a Turquia, o Iraque, a Síria e o Irã. A condição de fronteira civilizatória é simbolizada por esse ícone da capital Constantinopla/Istambul, que é a Basílica de Santa Sofia, por quase dez séculos igreja cristã e por outros cinco séculos mesquita, até que, em 1931, foi secularizada e convertida em museu. A construção nacional turca teve também como vítima a comunidade cristã formada por armênios.
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Hoje a Armênia, um pequeno país de três milhões de habitantes, situado ao leste do território turco, tem uma disputa territorial com o Azerbaijão, em cujo território foi proclamada a República de Nagorno Karabaj, uma espécie de ilha no meio do território azerbaijano com população armênia. Na disputa, Turquia apoia o Azerbaijão, Rússia apoia a Armênia. O conflito sírio avivou as perspectivas dos curdos que haviam conquistado um espaço nas montanhas do norte do Iraque. A guerrilha curda, braço armado do PPK, o partido curdo apoiado por Moscou, recebeu armas e reconhecimento dos Estados Unidos para lutar contra o Exército islâmico, no noroeste da Síria, perto de seu reduto da cidade de Kobane, situada justamente na linha fronteiriça que separa territórios sírio e turco. Em maio de 2015, forças curdas do YPG (sigla em curdo das Unidades de Proteção Popular) que têm nas suas fileiras, além de curdos, árabes, turcos, sírios e ocidentais, expulsaram o Exército Islâmico de Kobane. Erdogan combateu os curdos desde que chegou ao poder, mas agora, ao se aproximar de Putin, os ventos podem soprar a favor dos curdos. Há muitas mudanças à vista na política externa da Turquia que podem ter sido aceleradas nas últimas semanas e, apesar das diferenças, Erdogan parece mais próximo de Putin e do Irã dos aiatolás, do que dos países ocidentais. As agências de notícias russas destacam essa virada turca que leva Erdogan a estabelecer boas relações com inimigos tradicionais. Há outras mudanças, como a aproximação de russos e iranianos, que dá à aviação russa melhores condições para bombardear posições do Exército Islâmico na Síria. Samuel Huntington5 sustentava que, com o fim da guerra fria, e a influência das grandes potências, os países tenderiam a se reagrupar com base em afinidades religiosas e culturais, o que levaria a esperar um alinhamento de países muçulmanos, em separado de cristãos ortodoxos, por exemplo. Entretanto, os movimentos da Turquia nos mostram uma aliança entre um cristão ortodoxo com um muçulmano sunita e outro xiita. Os três parecem preocupados com o crescimento do radicalismo do Exército Islâmico, que os Estados Unidos ora apoiou ora combateu. ■
HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva. 1996.
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Nossas pequenas liberdades Murillo de Aragão – Cientista Político
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Seremos mais violentos porque deixamos de ser livres ou seremos menos livres porque passamos a ser mais violentos? É o dilema “Tostines”. Em troca da mera existência, abre-se mão das liberdades. Inclusive, a mais elementar delas, conforme Descartes: a liberdade de escolha. Uma visão otimista nos guia para o pensamento confortador de que a liberdade, como produto de lutas iniciadas há milhares de anos, continuará a se consolidar como valor. Uma visão menos otimista nos leva a um outro sítio. Aquele onde a liberdade, como busca de um ideal, justificará inúmeros cerceamentos e limitações, jogando o exercício pleno da liberdade a uma mera expressão de intimidades. A ponto de ser cada vez mais atual o dito de que o preço da liberdade é a eterna vigilância, pensamento contido em diversas citações de autores ilustres: John Philpot Curran (Irlanda), Andrew Jackson, Thomas Jefferson, Wendell Phillips e, provavelmente, muitos outros. Nas intimidades poderemos ser politicamente incorretos, xenófobos ou homofóbicos, até mesmo racistas? Ou será que o que nos restará das liberdades é o exercício secreto de nossas cretinices, já que o mundo nos obrigará a sermos escravos do politicamente correto? Qual será a medida futura das liberdades? Serão elas delimitadas pelo interesse de quem manda ou de quem é mandado? ■
s vetores de nosso cerceamento estão no fortalecimento do Estado e na “desinstitucionalização” da violência. São fatores aparentemente divorciados, mas que se relacionam em detrimento das liberdades individuais. O fortalecimento do Estado gerou subprodutos cristalizados em leis e regramentos que tendem a influir diretamente no comportamento humano. Mesmo em situação de não violência, o Estado produz regras de caráter geral que implicam com as pequenas liberdades dos indivíduos. A situação é pior em países latinos, onde o que importa é o que é permitido, e não o que não é proibido. Como se a liberdade, para existir, tivesse que ser permitida por lei e não pudesse ser concretizada pelo simples fato de ser cidadão. Para piorar, cria-se o axioma “Tostines”: é mais fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é mais fresquinho? Ao lado do fortalecimento do poder regulatório do Estado cria-se, como uma espécie de reação, uma cultura de violência. Seja ela da criminalidade banal. Seja ela externada pelo terrorismo. Seja ela gerada pelo uso das drogas. Seja ela decorrente do culto ao uso das armas ou à ação em gangues. A desinstitucionalização da violência seria o transbordamento do comportamento criminoso para o cotidiano. Agravado pelo acelerado crescimento das cidades.
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As Derradeiras Horas PARTE 3 24 de agosto de 1954 – 6 horas da manhã Sozinho no quarto, Getúlio simplesmente aguardava o momento – enquanto o torpor que antecede o sono ia dominando o seu corpo e os seus reflexos. Não desejava, nem podia, dormir, mas apenas repousar, limpar o corpo da fadiga. Queria estar perfeitamente lúcido, consciente, senhor dos seus sentimentos e atos, como sempre estivera na vida e na política. Lúcido e só – soberano diante de uma decisão. Preparava-se, apenas. Os pensamentos iam e vinham, confusamente, misturando imagens, vultos e recordações, uma espécie de caleidoscópio que projetava, em rápidos flashs, a sua trajetória política e pessoal. Sentia-se em paz, uma paz feita de resignação, tristeza e solidão. O balanço que fazia de si era apático, talvez frio e rigoroso, um balanço amargurado demais para quem decidira, sem medo, executar um gesto – seu gesto – que significaria mais que um triunfo, uma libertação. Desde o início da fase mais aguda da crise político-militar, quando membros da sua Guarda Pessoal, num episódio ainda nebuloso, mataram o major Rubem Florentino Vaz e feriram o pé do jornalista Carlos Lacerda, ele tinha a certeza de que, cedo ou tarde, atingiria a linha demarcatória entre o tudo e o nada. Vivera episódios complexos e difíceis na vida, amargara derrotas e saboreara vitórias, fora amado e odiado, querido e temido, mas a tudo suportara com certa dose de predestinação e enfado. Agora, não, era diferente. Agora experimentava um sentimento novo e indefinível, um misto de ânsia e serenidade, que só homens como ele, que haviam atingido o estágio que ele chegara, eram realmente capazes de sentir. E compreender. ▶
Vitória na Derrota: a Morte de Getúlio Vargas Ronaldo Conde Aguiar Verbena Editora 2014 2ª edição.
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Não sentia ódio. A oposição atacara o que ele tinha de melhor e mais nobre. Atacara sua família e amigos. Ofendera os seus entes queridos. Negara-lhe a defesa. Mas, fazendo um balanço frio, não sentia ódio por ninguém, nem pelos seus mais intransigentes inimigos. Fizera, ele próprio, muitas coisas erradas, principalmente na época do Estado Novo. Certo, a conjuntura impusera muitos dos seus atos, mas isto não o redimia perante ele mesmo. Vivera sempre em meio aos seus fantasmas – sofrera, orgulhara-se, sentira momentos de grande felicidade e recompensa, sentira tristeza, tédio, angústia, medo. Imagens iam e vinham à sua mente, às vezes imprecisas, às vezes nítidas, algumas traziam lembranças dolorosas, sofridas. Olga Benário. Um dia, a história o iria julgar, dando a última palavra sobre o episódio. Não seria absolvido – sabia. No fundo, não pedia nem mesmo desejava isso, afinal, apesar de ter sido autorizado pelo Supremo Tribunal Federal, tinha sido o responsável pela deportação da mulher de Luís Carlos Prestes para a Alemanha nazista. Queria, apenas, que todos julgassem as circunstâncias da sua decisão – e entendessem que ele fora enganado pelo major Felinto Müller, que lhe havia mentido acerca da gravidez de Olga. Nada mais. Nada mais. Nada mais queria – ou podia desejar. Percebeu, então, que um vulto entrara no quarto e, discretamente, caminhava em direção ao seu leito. Com dificuldade, reconheceu a figura do irmão Benjamin, o Bêjo, que assustado vem lhe dizer que, segundo fora informado por dois oficiais da Casa Militar, seria convocado para depor no IPM do Galeão. Queria um conselho. Getúlio fitou o irmão e sussurrou: “Se querem o teu depoimento, que venham aqui no Palácio”. E acrescentou: “Lá, tu não vais”. Benjamin trazia ainda outra notícia, esta, sem dúvida, mais dolorosa. Zenóbio, que ficara encarregado de confabular com os oficiais sublevados sobre o pedido de licença, trouxera de volta a notícia de que o afastamento de Getúlio seria aceito – desde que fosse definitivo. A licença temporária era, segundo os golpistas, uma hipótese inaceitável. O cerco, portanto, estava fechado. Mesmo sem demonstrar surpresa, o presidente fez um breve silêncio, cerrou os olhos e indagou, quase sem voz: “Isto significa que estou deposto?” Emocionado, Benjamin segurou as mãos de Getúlio, que permaneciam cruzadas sobre o peito: “Não sei. Sei apenas que é o fim”. Getúlio, então, encerrou
a conversa: “Estou cansado, muito cansado. Quero ficar sozinho. Preciso descansar um pouco”. Benjamin levantou-se, mirou longamente o irmão que parecia dormir e, em silêncio, afastou-se. Getúlio não chegou a dormir imediatamente. Agora era Alzira que entrava no quarto. Trazia-lhe outras informações: a Vila Militar permanecia fiel ao governo e estava disposta a desfechar o contragolpe. Alzira pede-lhe que faça Zenóbio ordenar imediatamente a ação militar contra os golpistas. Getúlio encarou a filha – tão jovem, tão bela, tão decidida. Ela precisava saber: “Não adianta, rapariguinha. O Zenóbio será o ministro do novo governo. Foi convidado e aceitou”. Alzira levantou-se, assombrada com o que ouvira: “Por que não me disse antes?” Ele ainda pensou em dizer “não adiantava”, mas preferiu mudar de assunto. “Deixe-me dormir, minha filha. Estou exausto”. Alzira percebeu que era inútil insistir. Havia tristeza e resignação na voz do pai. Longe dali, já no Ministério da Guerra, Zenóbio da Costa reuniu-se com generais. Num dado momento, após Zenóbio falar sobre a solução da licença, o general Fiúza de Castro quis saber: “Mas, depois dessa licença, o presidente volta ou não volta?” Zenóbio foi taxativo: “Não. Não volta. É claro que não volta”. Na reunião, estava presente o general Morais Âncora, amigo e leal a Getúlio, que estranhou o comportamento de Zenóbio da Costa. Âncora foi ao Catete e contou tudo ao general Caiado de Castro, que informou Benjamin Vargas do ocorrido.
24 de agosto de 1954 – 8 horas e trinta minutos da manhã Abriu os olhos e ficou por instantes olhando o teto, cuja pintura estava desbotada e manchada por infiltrações. O sono fora curto, mas denso, povoado de imagens confusas e deformadas, quase assustadoras. Ergueu-se com algum esforço e caminhou pelo quarto. Saiu e atravessou, sem pressa, o enorme corredor vazio. No gabinete do terceiro andar, apanhou uma das cópias da carta que assinara minutos antes da reunião ministerial. Guardou-a no bolso do pijama. Dera uma cópia a Jango, com a recomendação clara de que só a abrisse caso algo lhe acontecesse. Uma segunda cópia ficara guardada no cofre. Aproximou-se da janela e, por uma fresta, viu o movimento
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24 de agosto de 1954 – A partir das 10 horas da manhã
da rua: um bonde, automóveis, homens e mulheres caminhando pela calçada. Um grupo – do outro lado da rua, diante de um botequim de esquina – parecia estar discutindo. Certamente especulavam sobre a sorte do país e o futuro do presidente. O que estariam pensando de tudo isso? Ao retornar, cruzou com o mordomo, que o cumprimentou em voz baixa. Fechou-se outra vez no quarto. Bateram à porta: era o barbeiro do Palácio, que perguntou se ele ia precisar dos seus serviços. O presidente disse que não – e dispensou o funcionário com um gesto discreto. Novamente sozinho, empunhou o revólver com segurança. Sentou-se na cama, de lado. Por um instante, pensou na mulher, dona Darci, em Alzira e nos demais filhos, nos amigos. Lembrou-se das grandes comemorações cívicas em que discursava para um povo entusiasmado, confiante e generoso – e sentiu um gosto estranho na garganta, uma espécie de saudade, uma dor indefinida, feita de resignação, fadiga e amargura. Sem medo e sem hesitação, firmou o cano da arma contra o próprio peito. Fechou os olhos e prendeu a respiração. O coração batia-lhe com força, como um animal encurralado prestes a ser ferido de morte. Apertou o gatilho.
Informado do suicídio de Getúlio, e tendo conhecimento do teor da Carta-Testamento, o povo, em todo o país, saiu às ruas, enfurecido e disposto assumir a sua história. Como nenhum partido político ou liderança popular soube ou teve condições de orientá-lo para os seus objetivos, tudo se desfez em lamentações, ranger de dentes e quebra-quebras inconsequentes. Até o Partido Comunista, obedecendo a sua política de pêndulo em face das circunstâncias de momento, adotara durante a crise uma posição antigetulista, defendendo, como fazia a direita mais raivosa, a simples deposição do presidente. Diante, porém, da nova realidade, e assombrado com a reação espontânea do povo brasileiro, o PCB fez, em menos de 24h, um novo movimento tático, agora em sentido contrário. Por meio de autocrítica tardia e pouco convincente, o PCB passou então a denunciar o “imperialismo norte-americano” como responsável pelo sacrifício de Getúlio, apontando os políticos da UDN como “agentes furiosos dos monopólios de Wall Street”. O povo, contudo, não se deixou enganar por tamanho oportunismo: ignorou o novo discurso do PCB e seguiu sua própria intuição, empastelando a sede do jornal comunista Imprensa Popular.1 É claro que a fúria popular não se limitou apenas à depredação do jornal do PCB. Dirigiu-se principalmente contra todos os órgãos da imprensa que se opunham a Getúlio e contra as empresas norte-americanas, na linha das denúncias da Carta-Testamento. Dessa maneira, as sedes dos jornais O Globo, Tribuna da Imprensa e Diário de Notícias foram atacadas, assim como a estação da Rádio Globo, que saiu do ar. Caminhões de entrega de jornais foram incendiados. O ataque à embaixada dos Estados
*** O estampido ecoou pelo Palácio. Parentes e ajudantes surgiram de todas as partes, assustados e confusos. Movidos mais pelo instinto que por ordem de alguém, correram para o aposento do presidente. A cena jamais seria esquecida: mal deitado na cama, a perna esquerda pendente do leito, Getúlio agonizava. Na mesinha de cabeceira, à vista de todos, estava a Carta-Testamento – que, transmitida meia hora depois pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, provocaria no povo uma explosão de dor e vingança.
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A edição do dia 24 de agosto do jornal Imprensa Popular trazia uma entrevista de Luís Carlos Prestes, que afirmava: “É necessário pôr abaixo o governo de Vargas e substituí-lo por um governo democrático de libertação nacional, que liberte o país do jugo imperialista”. Segundo Moisés Vinhas, “os comunistas cujo jornal Imprensa Popular pedia, em manchete, a cabeça de Getúlio foram obrigados a operar um giro de 180 graus da noite para o dia e acompanhar as massas”. (VINHAS, Moisés. O partidão – a luta por um partido de massas: 1922-1974. São Paulo, Hucitec, 1982). Comentário no mesmo sentido é feito por Leôncio Basbaum: “O PCB, reunido em um Congresso em algum lugar do estado do Rio (…) aprovava o programa e mandava lutar pela derrubada de Getúlio, fazendo o jogo da UDN! (…) Assim, confirmava-se o que eu temia: o PCB se afastava cada vez mais dos interesses do povo. Era agora uma organização que, de erro em erro, se isolara das massas”. (BASBAUM, Leôncio. Uma vida em seis tempos. São Paulo, Alfa-Ômega, 1976).
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Unidos e ao prédio da Standard Oil transformou-se numa verdadeira batalha: empunhando paus e pedras – e aos gritos de “viva Getúlio!” – grupos de populares enfrentaram soldados armados, saindo duas pessoas machucadas do entrevero. Os edifícios da Light & Power e da Companhia Telefônica também foram atacados, registrando-se casos de pessoas feridas e mortas. Em São Paulo, milhares de operários entraram em greve de protesto e promoveram manifestações de rua no centro da cidade. Uma multidão, calculada em mais de 20 mil pessoas, enfrentou a polícia diante do prédio dos Diários Associados, cujos veículos de comunicação – jornais e emissoras de rádio e televisão – vinham assumindo posição hostil a Getúlio. O mesmo aconteceu em Porto Alegre, Belém, Belo Horizonte e Recife. Na capital gaúcha, populares puseram fogo nos jornais Estado do Rio Grande do Sul e Diário de Notícias, destruindo, ademais, uma agência de um banco norte-americano e o consulado dos Estados Unidos. Em Porto Alegre, ocorreram verdadeiras batalhas campais entre trabalhadores e policiais. Em todo o país, e não apenas nas capitais dos estados, ocorreram distúrbios, verdadeiras revoltas populares, havendo notícias de que eles teriam provocado um número ainda incerto de feridos e, pelo menos, 10 mortos. Enquanto isso, no Palácio do Catete, tinha início o desfile do povo diante do cadáver do presidente. Eram milhares de pessoas, formando filas que entravam pelas ruas Silveira Martins, Ferreira Viana, Correia Dutra, Buarque de Macedo, todas adjacentes ao Catete. À noite, as filas alcançaram o largo da Glória e a rua Marquês de Abrantes, a uns dois quilômetros do Palácio. Eram milhares de pessoas que esperavam horas pelo breve momento do adeus a Getúlio.
http://www.allabroad.org/ 11
Junto ao esquife, cenas comoventes de dor e lágrimas se repetiam, tristemente, pela noite e madrugada adentro. Um homem de origem humilde ajoelhou-se diante do ataúde e gritou: “Doutor Getúlio! Doutor Getúlio! Me leva com o senhor!” Uma mulher vestida de preto abraçou-se ao ataúde e, aos prantos, soluçou: “O que será de mim sem o senhor, doutor Getúlio?! O que será de mim?!” Pessoas beijavam o esquife. Crises nervosas. Choros convulsivos. Desmaios. Desespero. Naquele mesmo instante, no Palácio Laranjeiras, em cerimônia rápida e vazia, distante e a salvo da comoção popular, o vice-presidente Café Filho assumia o cargo de presidente da República.
25 de agosto de 1954 – Durante toda a manhã Eram 9h quando o esquife foi colocado sobre uma carreta, que transportaria o cadáver de Getúlio até o aeroporto Santos Dumont, onde um avião comercial o levaria para São Borja. A família Vargas recusara a oferta de um avião da FAB, pedindo também dispensa das honras militares que, segundo as regras protocolares, deveriam ser prestadas ao ex-presidente. Formou-se, então, um impressionante cortejo, que se alongava por toda a praia do Flamengo e da Glória. Os “vivas a Getúlio” se misturavam aos versos do hino nacional, cantados de forma confusa e em desespero por um coro de milhares de vozes, que ainda rezavam e choravam convulsivamente. Sobre o asfalto da avenida Beira-Mar, populares jogavam flores para cobrir o caminho por onde o esquife de Getúlio ia passar. Quando o cortejo já se aproximava do aeroporto, houve o encontro temido e indesejado: o povo viu-se, de repente, frente a frente com os soldados
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26 de agosto de 1954 – 9 horas da manhã
da Aeronáutica, que avançaram para conter a multidão e conduzir o caixão à aeronave. Explodiu, então, a revolta. Os populares passaram a gritar “assassinos! assassinos!” – e, enfurecidos, passaram a jogar pedras na soldadesca, que, em pânico, recuou em debandada, abrigando-se na Base Aérea. A multidão, contudo, não parou: investiu contra as instalações da Aeronáutica. Súbito, os soldados abriram fogo, ferindo e matando para impedir que o povo levasse o esquife ao avião. Mas o povo resistiu. Rompeu os cordões de isolamento, invadindo a pista do aeroporto. O espetáculo do avião correndo pela pista e da massa popular compactamente agitando lenços brancos ficou registrado como o mais belo, emocionante e pungente entre tantos que ocorreram naquele dia. Foi o último e o mais triste adeus do povo a Getúlio. O avião decolou suavemente, ganhou altura, sobrevoou em curva a Baía de Guanabara e, em poucos minutos, era apenas um ponto prateado no azul. O povo ainda permaneceu por algum tempo no local, mirando o horizonte vazio, sentindo-se inerme, desamparado e só.
Sob um intenso frio e uma chuva miúda que castigava São Borja desde a véspera, o féretro dirigiu-se ao cemitério local. À direita do portão principal, a apenas algumas centenas de metros da casa onde Getúlio nascera, o primeiro túmulo indicava o seu destino final: Jazigo da família Vargas. Coube a Jango proferir o primeiro discurso. Fez, então, uma comovida leitura da Carta-Testamento, vaticinando que a libertação do povo brasileiro seria alcançada mediante a resolução dos problemas ali apontados. Depois, falou Tancredo Neves, que denunciou a campanha contra Getúlio e testemunhou a sua honradez, probidade e capacidade de tudo esquecer em nome dos destinos do povo brasileiro. Por fim, Osvaldo Aranha, que, exausto pela noite não dormida, disse palavras que provocaram lágrimas nos presentes: “Saímos juntos daqui há vinte e tantos anos; íamos levados todos pelo teu sonho e teu ideal. (…) Todos tínhamos um sonho só: era integrar o Brasil em si mesmo, era fazer com que o Brasil não fosse de poucos, mas de todos; era fazer com que o Brasil não pertencesse às classes dominantes, aos potentados. (…) Tu entreabriste, para o Brasil, a consciência das coisas, a realidade dos problemas, a perspectiva dos nossos destinos. Ao primeiro relance, viste que a grande maioria dos brasileiros estava à margem e a outra estava a serviço das explorações estrangeiras”.
25 de agosto de 1954 – Tarde Com o Palácio do Catete protegido por blindados e soldados armados, que tinham ordens expressas de evitar manifestações e de dispersar aglomerações nas redondezas, o presidente Café Filho instalou o seu governo, dando posse conjunta ao novo ministério. O general Zenóbio foi confirmado no Ministério da Guerra – cargo do qual foi exonerado dois dias depois, por ordem expressa do Estado-Maior do Exército.
Envolto na bandeira nacional, ao som de lágrimas e soluços, que se misturavam ao ruído da chuva na terra vermelha, o caixão baixou lentamente ao túmulo. ■
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Parece futebol Fabiano Cardoso
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Brasil não é para principiantes, como diria Jobim, o maestro, não o ministro. Nem por isso estrangeiros incautos deixaram de vir aqui e fazer estragos. Os últimos foram os alemães, que se disfarçaram de flamenguistas e, num ato de extrema maldade, se aproveitaram de nossa arrogância e falta de conhecimento tático e aplicaram o maior chocolate da história em nossa selecinha. Sim, arrogância. Já perceberam que no futebol (e talvez em tudo o mais), nunca perdemos por um erro tático, uma jogada mal ensaiada ou um erro coletivo? A derrota sempre veio, invariavelmente, por um erro individual, ou porque fomos roubados: Barbosa não defendeu o chute de Ghiggia; a seleção peruana vendeu-se à Argentina; a era Dunga; a água batizada; os tremores de Ronaldo; a apatia do Quarteto Fantástico (sic); a meia de Roberto Carlos; o “apagão” do 7x1. Segundo se conta, foi Charles Miller, em SP, e Oscar Cox, no RJ, quem introduziram o “esporte bretão” no país. Em nenhum texto, crônica ou livro de história se resume algo sobre a tática, sobre como esse dois professores doutores da bola explicaram as regras e o funcionamento ou dinâmica do jogo. Basicamente era algo como: chegou vindo da Inglaterra com a novidade esportiva e introduziu o esporte entre um grupo de amigos. O mesmo se dá na formação dos clubes de futebol no Brasil: graças à ousadia de uns amigos que cursavam a faculdade de (aqui se pode inserir medicina ou direito), fundou-se o Athletic Club (estado da federação ou bairro ou cidade). Até hoje há quem não saiba algumas das regras do futebol. E são apenas 17, e que explicam desde o local onde o jogo se dá (O Campo de Jogo, regra nº 1) até em como se dá a reposição da bola no Campo de Jogo (O Tiro de Canto, regra nº 17). Portanto, não é de se espantar a falta de conhecimento tático tanto de jogadores como de treinadores e dirigentes. Aliás, a falta de conhecimento (neste caso o administrativo) dos dirigentes merece uma sova a parte. Mas voltando ao que interessa. É bem possível que, desde o 4-4-2, inventado (segundo alguns) pe-
los ingleses na década de 1970 e muito bem utilizado pela seleção brasileira na Copa do México 70 (acho eu que pela tradição de laterais que atacavam e defendiam), o Brasil nunca mais conseguiu criar nada de novo no futebol. Já os europeus, talvez pela falta de jogadores habilidosos como os sulamericanos, se especializaram em utilizar a tática de jogo para compensar a falta desses jogadores habilidosos e produtos de exportação dos países abaixo dos Estados Unidos da América. Algo, aliás, muito natural em um jogo dito coletivo (o uso da tática e não a exportação de pé de obra). Por aqui cansamos de ouvir expressões como: a Alemanha joga algo parecido com futebol. Historicamente desdenhamos de uma seleção que era temida taticamente em toda Europa e, por pura arrogância, não percebemos o Panzer (panzerkampfwagen) se aproximando. Aqueles que jogavam algo parecido ao futebol aplicaram, pelo menos, duas goleadas 13
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na mesma Copa do Mundo e só não fizeram mais gols em uma semi-final em cima da seleção com o maior número de Copas do Mundo porque resolveram, após conversa no vestiário durante o intervalo, que iriam “pegar leve” no segundo tempo. Somente agora alguns estão a descobrir que, na Argentina, historicamente se treina dividindo o campo em quadrados e posicionando os jogadores por estes quadrados para que cada um tome conta do seu e dos que estão próximos. Não é de se espantar que os zagueiros argentinos sempre se destacaram em todos os times que jogaram. Além disso, os argentinos têm um estilo de jogo próprio em que, basicamente, cada jogador pode dar três toques na bola, exceto o camisa dez, o craque do time. Este pode “carregar a bola”. Deu no que deu. É certo que a seleção argentina não possui tantos títulos quanto a do Brasil, mas na Copa Libertadores da América a história é outra. Enquanto há times brasileiros que se vangloriam em ter três títulos continentais, há um time na Argentina que possui sete, outro seis. Além disso há um certo time com cores suecas (este, que já ganhou a Libertadores seis vezes) que, simplesmente, adora ganhar em terras brasileiras. Pois bem, nos dias de hoje, estamos a ver entrevistas com técnicos brasileiros que vão à Europa e voltam com cursos de treinadores. Alguns “especialistas” ainda desdenham e dizem que isto não fará o futebol brasileiro voltar a ganhar. Outros enraivecem-se e dizem que isto europeizará nosso futebol. Mas ninguém se espanta de pensar que pagamos fortunas (alguns dizem que há técnicos que ganham pouco menos de 1 milhão de reais por mês) a profissionais que, sequer, possuem cursos de especialização. Qualquer desempregado sabe que, se não tiver ao menos um curso de suíte office (ou ao menos mentir que tenha), não consegue nem ser chamado para a entrevista. Mas achamos normal, a ponto de não questionar, o fato de um técnico de futebol ganhar algo em torno de 700 mil reais e ter como grande inovação tática uma prancheta com o desenho do campo de futebol e uma caneta hidrocor pra rabiscar. Se quisermos voltar a ter alguma pretensão futebolística no futuro próximo é bom prestarmos mais atenção às táticas empregadas no futebol, deixarmos de ser ranzinzas, abaixarmos a cabeça e sermos mais humildes e, definitivamente, voltarmos a aprender a jogar esse negócio parecido com futebol. ■
A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.
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www.pequi.org.br
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Como é a Vida Wilian Fernades Pereira
(Dedicado a Maya e, portanto, à Matrix) vida é assim: um dia você acorda, e descobre que você é você mesmo. (Isso não é óbvio). E, originalizando-ser, decide: hoje eu vou fazer. Nem pensa (tudo já está pronto, é a verdade; o resto é só a linha do tempo), vai e age sem medir. É quando acordamos calmos e misteriosamente decidimos: hoje eu vou fazer. E faz. Comete o que faz, qualquer que seja a ação. Integra-se e recomeça a agir. E, antes de fazer, pensa em como será o inédito (pensamento inútil, um desperdício), imaginando imaginar o futuro. Inútil. (Se gostar, leia Krishnamurti.) Depois chega a hora, o tempo, o dharma, o instante inédito em que você começa, vive de obrigação, uma hora que, para você, na verdade já tinha chegado. E todos os obrigados desaparecem de sua natureza, tendo-se retificado em mero pragmatismo indiferencial-normótico de ok. Para ser breve. Você que antes dormia, num belo (radiante, frio e muito azul) dia de outono (esta coisa misteriosa de ouvir, do ponto-de-vista do cerrado); acorda, desperta calmo e sereno, de uma meta irresoluta e, no entanto, quase que totalmente tranquila. Quase. E diz para si mesmo: “— Hoje eu vou fazer.” E faz. Tendo então novamente movimentado a veia criativa (como parte holística do cosmos, o sujeito estético), inventa contatos e revelações, musas e outros crimes mais. E nisto a vida te informa da obrigação de vivê-la. Tendo chegado a si mesmo, e ao inédito, com a firme decisão quase-tranquila (num belo dia azul de outono de cerrado). Nisto sucedem-se dias e noites, pernoites, antenoites e, sobretudo (hoje graças a Deus é sexta-feira 13 (de maio, o mês das noivas…))… Oh… Quanto sofrer, esteta de meia-boca.▶
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Self-Portraitor: antologia quase poética. Wilian Fernandes Pereira Edição do autor: Nova Delhi 2010 – pp. 223-225
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Cada qual com o seu qual e por quê. Então segura a onda, segue na matrix e faz o seu goodshow, porque na verdade, showkeeper todo mundo é. O circo de carne e de sangue, o açougue de ratos das profundezas das trevas, dos lixos fétidos do recanto profundo do resto da lavagem (cerebral) do inconsciente coletivo, cotidiano e hodiendo. Civilizados do Inferno. A vida não é sofrer. Viver é mais. Sofrer também é viver, faz parte. Viver é viver. Não há outro substituto ou equivalente. Mas viver também é o “perceber”. Viver o viver, desculpe o olho que me perpassa, mas eu nada entenderia de questões maiúsculas de tamanha profundeza. Portanto retiro-me, tendo publicamente por hoje vomitado de forma escrota o esboço de um pensamento que me passou: — Tudo é tão ligeiro, na vida. Daí a beleza do samsara (tudo flui), a impermanência, o eterno devir, o vir-a-ser; e a perdoável (pois divina) perfeição, sedutora ilusão, de Maya. Quantas vezes este velho terá ainda de voltar a ser criança? Ah, Maya…
Assim é a vida, e assim ela lhe obriga que assim seja: Dane-se a estética: “A Babilônia está em chamas!” – sobem aos céus fechados labaredas de lanternas suspensas, fazendo voar salamandras digitálicas em direção a papéis-celofane, em falsas fogueiras urgentes e aparentemente importantíssimas. Acho que o mundo todo virou a Disney. E eu sigo ainda, todo dia, fazendo meu papel de showkeeper, mas… O que é o show? Que show must go on? E quem não chora, não mama? Qual é a do show? Que show é esse? Qual é o seu negócio? Why don’t you mind your business? Então (pausa, a vida vira pra você e fala, babilônica e em chamas): “— Vái que se f*ck you, seu filho duma…” Eticétera e ainda lá vai. Quando você finalmente descobre que na vida só tem você (você inclui seus amigos e Alguns parentes – Questão Maiúscula, os parentch!!)… Falow… tá ficando “maluco” (e pelo menos um cadinho amargo, neam?)
13/05/2015, às 20h56 ■
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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.
Capítulo 9 de quatrocentos quilômetros e pedir asilo ao Governo da Guiana? Do jeito que são as coisas por lá, mandariam nos fuzilar na hora, sem mais nem menos, só para ficar com as armas e as botas. — Papagaio ou Periquito, que diferença faz. Olha, podemos tentar sair por mar, teve um sujeito, um francês, que fugiu de uma prisão na Guiana e ninguém sabe como chegou na França, o nome me escapa agora, mas é chamado de borboleta em francês, li algo sobre ele, pena não ter trazido o livro dele, ia facilitar. — Você deve ter lido algum romance francês, isso sim, vai ver o cara saiu borboleteando mar adentro até chegar a Paris, depois deu uma volta em torno da Torre Eiffel, tipo Santos Dumont. — Companheiro, tu és muito jovem, não sabe nada, é inculto como uma boceta, age por impulso. Já percebi que estás querendo dizer que nosso pai da aviação era viado. Quando sairmos daqui vou te levar na Livraria Civilização Brasileira do meu amigo Enio da Silveira, o livro está na prateleira, aí tu vais ver. Com o tempo fiquei amigo do Gaúcho, sentávamos juntos na hora do almoço, jantar e café da manhã e passei até a responder seu “buenos
Tentei conversar com os índios, saber mais sobre a região, difícil, não falava a língua deles e depois havia um problema sério, falavam sem parar todos de uma vez, acho que gostavam do som de suas próprias vozes. Não eram como nós que esperamos o outro acabar e respondemos. Não, eles falavam, falavam e falavam, às vezes todos juntos uma confusão danada. A chamada da manhã era a melhor parte do dia, repetindo o próprio nome, como se estivesse reconhecendo a veracidade da situação. “É. Sou eu mesmo e estou aqui, vivo”. Em menos de um mês já tínhamos pintado as casas e consertado as instalações de água e luz. Começamos a construir uma fossa séptica enorme, na tentativa de salvar o Igarapé do Lacerda. O comandante pediu, e alguns de nós interpretamos como uma ordem, da minha parte não tinha queixa dele, diferente do Gaúcho, que o considerava, no mínimo, um reacionário, de vez em quando comentava entre brincalhão e irônico: — Bem que podíamos tomar esta merda qualquer dia, botamos o Papagaio na gaiola e nos declaramos rebelados. — Não é Papagaio, é Periquito. E fazer o quê depois, embrenhar-se na mata por mais
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dias garoto” com outro “buenos dias, tchê”. Até hoje, passados mais de vinte e cinco anos ainda respondo cumprimentos matutinos com um “buenos dias” para espantar o mau humor, e não há como deixar de lembrar do Gaúcho. Dizia ter quarenta anos na época, baixinho, pernas curtas, cabelo avermelhado cortado rente, voz ranheta ea calça sempre abaixo da linha da cintura, querendo cair, mas suspensa de vez em quando em um movimento automático. Certa vez, perguntei-lhe o que mais sentia falta neste fim de mundo: primeiro da mulher, segundo do frio que permitia lagartear de manhã, em terceiro lugar, do chimarrão. — Do meu cavalo não vou sentir tanta falta, por aqui tem uns pangarés, mas vi também um frontino e um gateado muito bonito. Nem sei como o sujeito conseguiu trazer um cavalo até aqui, talvez de barco ou de avião. Bem que tentava substituir sua bebida predileta, produzindo um chá forte de mate queimado, que conseguia às escondidas com o cozinheiro. O frio podia esquecer, estávamos em cima da linha do Equador, o calor era alarmante. Nem sei como fiquei amigo do Gaúcho, éramos tão diferentes, além de que eu detestava o frio, era solteiro, gostava de café e não era chegado a cavalos, preferia gatos com sua costumeira independência. Ele poderia passar horas, como às vezes passava, falando de cavalos. — Você sabe, tchê, que existem mais de cinquenta cores de cavalos?
— Não, nem podia imaginar. — Alazão, Argel, Arminado, Estrelado, Prateado, Quatralvo, Malha… — E como seria este Quatralvo? — Cortei a lista interminável. — Malhado de branco até os joelhos, respondia satisfeito, tinha instinto de professor. Embrenhávamos, outras vezes, por conversas mais abstratas e confusas. Ele tinha uma expressão favorita: “a concha é uma adaptação ao animal que vive nela”. Eu insistia que era o inverso e argumentava que a selva não era um mundo adaptado aos índios, eles é que se adaptaram a ela. Ele contra-argumentava explicando que na selva viviam milhares de animais e “eles é que fizeram da selva, a selva. Sem pessoas ou animais não há selva. Assim como sem o ser humano nãohá terra”. A partir deste mote, íamos nos infiltrando por discussões intermináveis. Uma delas era sobre prisão. Eu insistia que todos ali, incluído o Comandante, estavam tão presos quanto nós, com a diferença que podiam comunicar-se com as famílias ou até trazê-las. Retrucava didaticamente, para que eu pudesse entender, que a liberdade não era um substantivo concreto, mas abstrato, que nossos guardas tinham a perspectiva e a sensação que estavam livres, nós não, isto é o que fazia a diferença. Na dúvida, consultávamos os livros dele (que ocupavam os espaços da mala grande): Kant, Hegel e até Aristóteles, que nunca consegui compreender. ■
Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano
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