BROTAS - UM SEGREDO (AINDA) ESCONDIDO

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VIAGENS AO VIRAR DA ESQUINA

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BROTAS - UM SEGREDO (AINDA) ESCONDIDO

Há locais que nos envolvem. Têm um sortilégio especial.

Por terem paisagens magníficas, gentes genuínas ou histórias incríveis. Despertamnos os sentidos e a imaginação. Têm algo de especial que podemos nem saber o que é...ou, utilizando uma expressão de Alexandre O’Neill, será “uma coisa em forma de assim”!

O facto é que a eles regressamos sempre. Foi o caso. Regressei a Brotas.

Aqui passei pela primeira vez (de moto) há 4 anos. Desconhecia completamente a história desta terra.

E porque o semáforo demorava a acender o verde, segui pela parte nova da pequena vila.

A minha recordação é uma foto em que vemos o depósito de água com o nome da terra.

Sim...tem um semáforo que nos faz esperar antes de entrarmos na sua zona histórica, aquela que é percorrida pela Estrada Nacional 2 que até aqui nos trouxe e daqui nos leva.

A via é estreita e de circulação alternada, espremida pelo casario antigo.

Estamos no quilómetro 488 da mais longa estrada, a 11 de Mora (a norte) e a pouco mais de Montemor-o-Novo (a sul).

Hoje sei que a espera faz todo o sentido: as coisas boas devem ser saboreadas lentamente. Deixemos as pressas para outros afazeres.

Da segunda vez, em Maio de 2019, já sabia ao que vinha. Então, na crónica dessa viagem, chamei a Brotas “o segredo escondido do Alentejo” . Nessa altura, sempre que mencionava o meu destino, me perguntavam: “o quê? onde fica?”.

De tal forma assim é, que Saramago na sua “Viagem a Portugal”, no capítulo “A grande e ardente terra de Alentejo” , na parte que designou “onde as Águias pousam” , nada mais encontrou para dizer do que:

“Brotas aparece numa encosta, subindo em estreitas ruas de casas brancas. A estrada é obrigada a apertar-se entre os cunhais irregulares e as frontarias dispostas em linha quebrada Há aqui um santuário construído em estilo que tanto conserva do gótico como aproveita do barroco, lição popular aprendida por mestre de obras que não curaria muito de rigores” .

Pela forma ficou, sem cuidar do conteúdo. Não lhe terá surgido a curiosidade de apurar a razão daquele santuário ali ter sido edificado, mesmo que pouco rigoroso na arquitectura? Ou talvez o escritor não tenha sentido a sede suficiente para se saciar na fonte pela qual passou ao percorrer a tal estrada apertada. Já lá estava, pois foi construída em 1699 por oferenda dos Mordomos de Elvas.

Mais tarde, com a publicação na Andar de Moto de Dezembro de 2019 espero ter dado mais um pequeno contributo para a descoberta de Brotas.

Agora voltei. Vim rever amigos que tiveram a gentileza de me convidar para participar na promoção deste segredo que se deseja cada vez mais mal guardado.

Vale a pena, por isso, recordar a história que faz a história de Brotas.

Nasce de uma lenda - são tantas num território como o de Portugal onde se cruzaram civilizações desde há milénios - que é também o retrato desta zona. Não nos fala de mouras encantadas como a de Almira em Alcácer do Sal, ou de amores proíbidos como a do Rei Wamba em Vila Velha de Ródão.

Fala-nos de sobrevivência e de luta contra a desdita, um espelho do que tantas vezes sucede no Alentejo. Ora celeiro, ora abandono...

BROTAS

Importa começar por explicar que Brotas era, à data dos factos (a lenda torna-se factual se nela acreditarmos) um lugarejo insignificante que pertencia aos domínios de Vila das Águias. Situamo-nos mais ou menos por alturas em que a Ínclita Geração se cruzava de armas com os mouros do norte de África - de Ceuta em 1415 a Tânger em 1471.

Águias foi sede de concelho de 1520 até 1834. Mas depois entrou em decadência ao ponto de hoje apenas restar uma torre. Que ainda não conheço, já agora. Temos sempre que deixar um motivo para voltar, não é? E essa decadência correspondeu, em sentido inverso, ao crescimento da importância de Brotas - a sede eclesiástica do concelho passou de Águias para Brotas em 1535. Já lá iremos...

Outro aspecto relevante é a morfologia da paisagem. Apesar de rodeado pela planície alentejana (que não é assim tão plana como a pintam) nesta zona temos uma ondulação mais pronunciada. A altitude não é significativa, mas apresenta declives acentuados com vales cavados e taludes quase verticais.

Aqui perto passa o Rio Divor. E este entendimento do acidentado do terreno é importante para percebermos algumas coisas que adiante se contam.

Importa referir que sempre nos iremos referir à zona antiga de Brotas: a dita “aldeia velha”.

Porque a “aldeia nova” fica no cimo do monte, a olhar de frente o Santuário.

Em Brotas, na sua zona histórica, encontramos hoje um Santuário mariano, dos mais antigos do País pois a ermida original já cá existia em 1424.

Este santuário é composto pela Igreja e pelo conjunto de edificado que o ladeia. O edifício, que em estilo mistura o gótico reminiscente da sua origem com toques de barroco posteriores, está entalado entre taludes que apenas reservam espaço para a rua -a Rua da Igreja, pois claro! - que até lá nos leva e um casario de ambos lados, tipicamente branco (pontuado a azul) como é tradição no Alentejo mas com uma característica particular: ao invés de casas térreas, todas elas têm um piso superior devido precisamente à estreiteza do local e à exiguidade do espaço.

Um anfiteatro natural e agreste que seria chamado de Brotas da Barroca. Dizem que seria tão húmido e quase inabitável que as ribanceiras que o ladeiam se chamariam, Inferno, Inferninho e Purgatório... Mais esclarecedor é difícil!

Reza a lenda que este foi o local onde se deu o Milagre de Brotas.

O MILAGRE DE BROTAS

Nos principios dos anos de 1400, um pobre homem por aqui pastoreava a sua vaca.

Este animal era o seu bem mais precioso porque assegurava o sustento do pastor e da sua família. A dada altura o animal aproximou-se do barranco e não conseguiu evitar a queda. Rebolou por ali abaixo e atrás dele, correu aflito o desgraçado homem.

Quando chegou ao final do declive, encontrou a vaca com uma pata partida. Não teria salvação possível. Os ferimentos levariam à sua morte para lhe poupar o sofrimento. E a vida já miserável do pobre pastor acabar-se-ia! Face a tal desdita, prostrou-se em pranto...

É então que uma visão aparece aos olhos do pastor. Nossa Senhora, face ao desespero e aflição do infeliz, diz-lhe que lhe vai salvar o animal. Mas ele terá que ir chamar os seus vizinhos e todos deverão, naquele mesmo lugar, construir um lugar de devoção.

Quando o pastor regressou, acompanhado dos seu vizinhos, já a vaca pastava tranquilamente como se nada se tivesse passado.

À Santa faltava o braço direito, pois dele tinha renascido a pata do animal E, daquela que fraturada tinha sido a causa de tudo, surgiu feita em osso, uma imagem da Virgem.

Foi assim que ali nasceu a devoção a Nossa Senhora, a partir daqui chamada de Brotas e que em todas as representações se apresenta sem o braço direito.

A IGREJA DE NOSSA SENHORA DE BROTAS

Edifício peculiar e bonito, bem cuidado, com interior rico em azulejaria e repleto de memórias e imagens deste culto secular.

Segundo se sabe, a ermida inicial já existia em 1424. Ao longo dos séculos e à medida do crescimento do culto e da devoção, a igreja foi sendo sucessivamente ampliada transformando-se no que hoje conhecemos.

As obras decorreram ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, e conferiram ao conjunto a sua estrutura atual. Daí a diversidade estilística desse dilatado período temporal – o monumento integra elementos góticos, barrocos e neoclássicos.

Foram assim edificadas a capela-mor, as capelas laterais, a nave da igreja, o coro-alto, a sacristia e a fachada principal, com a sua torre sineira e o invulgar altar exterior, destinado à celebração de missas ao ar livre quando o vasto número de fiéis reunidos no santuário tornava insuficiente o espaço interior da igreja.

Assinale-se a importância dos vários conjuntos de azulejos, de diversos períodos (séc. XVI–XVIII), que cobrem de forma extensiva praticamente todas as superfícies do interior do templo

AS CASAS DE CONFRARIA OU DE ROMARIA

O culto a Nossa Senhora de Brotas foi crescendo, não só aqui mas também nas redondezas.

E espalhou-se mais além, à medida que devotos procuravam outras paragens. Assim sucedeu nas terras mais próximas, como Mora, Cabeção ou Lavre, ou outras mais longínquas, como Setúbal ou Palmela.

Nestas localidades, os devotos de Nossa Senhora de Brotas organizavam-se em confrarias de devotos para fazerem romagens a Brotas e celebrarem o seu culto.

As deslocações eram, na época, demoradas e as estadias também. Para poderem ficar alojados, as confrarias foram construindo, junto à Igreja, casas destinadas a essa finalidade.

São casas pequenas porque como as romagens não aconteciam na mesma altura, cada confraria ocupava a sua e as outras quando ali permanecia E as restantes faziam o mesmo.

Chamavam-lhes Casas de Confraria ou Casas de Romaria e bordejam a Rua da Igreja, algumas ostentando lápides das respectivas confrarias.

Com a epopeia dos Descobrimentos do século XV e seguintes que originou a diáspora portuguesa, naturalmente o culto também foi levado para paragens mais longínquas. Na Índia por exemplo (inclusivamente existe uma imagem proveniente da Índia no Santuário), ou no Brasil.

A devoção e os seus testemunhos continuaram até hoje.

Dois factos – milagres, para os crentes – revelam a protecção que acreditam existir relativamente a Brotas: nos dois conflitos armados onde homens daqui se fizeram militares durante o Séc. XX – 1ª Grande Guerra e Guerra do Ultramar – nenhum por lá ficou.

Todos regressaram a salvo e apenas no primeiro conflito um regressou ligeiramente ferido.

E este milagre é motivo também para a sua referência e homenagem em pleno Santuário de Nossa Senhora de Brotas.

Agradecimento pelo regresso de todos os combatentes

RECUPERAR O PATRIMÓNIO, A CULTURA E A TRADIÇÃO

Actualmente, as Casas de Romaria são um Turismo de Aldeia.

Podemos desta forma desfrutar delas e, com o conforto dos dias de hoje mas com a rusticidade que é típica da construção e da vivência alentejana, saborear o espírito de outras épocas, desta lenda que faz a história de Brotas. E naturalmente respirar a calma e a tranquilidade destas paragens

O CULTO DE
MUNDO
NOSSA SENHORA DE BROTAS NO
Imagem proveniente da India

A recuperação das Casas de Romarias deve-se ao trabalho, perseverança e coragem da Maria e do Pedro Mendonça (são necessárias doses elevadas destas qualidades para conseguir desenvolver esta obra, numa pequenina terreola quase perdida no Alentejo).

É uma obra notável de recuperação do património, sem nunca perder a essência das raízes alentejanas nem da tradição do culto de Nossa Senhora de Brotas.

É naturalmente à Maria e ao Pedro que agradeço terem-se lembrado de mim e, mais uma vez, acolherem-me não como visitante mas como amigo.

A ARTE DA CERÂMICA EM BROTAS

Sendo uma terra pequenina, em que o fundamental já está descrito, merece referência também o trabalho artístico em cerâmica de Célia Matos.

Não sendo natural de Brotas, esta foi a terra que a adoptou já lá vão mais de duas décadas e a Célia retribui com a sua simpatia, pois claro, mas principalmente com o seu trabalho em barro e azulejo.

Com a Maria Mendonça

Da forma típica e respeitando a cultura e tradição do Alentejo, onde esta arte perdura desde tempos imemoriais.

O seu atelier, colado à igreja, é local de visita obrigatória. Aí podemos testemunhar a arte e o carinho que lhe é dedicado. E, quase de certeza, poderemos apreciar ao vivo, a realização de mais um trabalho que na ocasião esteja a ser feito pela Célia Matos.

Não deixaremos de trazer connosco, ao jeito de recordação, uma peça de artesanato.

Que até pode ser um prato de cerâmica (a colecção é de meia dúzia...) com receitas típicas alentejanas nele gravadas: a açorda, o cação, as migas, o gaspacho, o arroz doce.... Junta-se o útil ao agradável, porque não?

QUE BEM SE COME NO ALENTEJO!

Abri-vos o apetite?

Pois (espero não cometer nenhum sacrilégio ao dizer isto) em Brotas temos outro santuário, mas este devotado à arte de bem comer. E no Alentejo come-se muito bem!

Fui almoçar ao restaurante “O Poço”.

A caminhada até lá não foi sem algum sacrifício (já vos conto mais à frente a razão) mas, como geralmente acontece, foi muitíssimo bem recompensado.

A carta apresenta sabores típicos do Alentejo.

Desculpar-me-ão os amigos de outras zonas de Portugal mas estes pitéus, confeccionados por alentejanos, degustados no Alentejo e acompanhados pelo sotaque quase cantado da região é uma ode aos sentidos. Sou parcial eu sei...mas as raízes falam mais alto.

Não vi o poço (tapado para dar lugar ao espaço de degustação) ...mas deleitei-me com um queijinho de ovelha bem curado, já naquele ponto em que se trinca e o sabor ocupa todo o espaço disponível na nossa boca.

Foi o prelúdio para uma magnífica perdiz de cebolada. E se o acompanhamento original se fazia de umas batatas fritas que estavam mesmo deliciosas.

Não resisti a pedir - por especial favor, uma vez que eram companhia de outra iguaria - que viessem também umas migas de espargos.

Se eu mandasse, qualquer prato no Alentejo deveria ser acompanhado de migas.

E, se porventura não combinasse...então era aquele que estava mal e não o seu acompanhamento.

Da perdiz nada restou e das migas idem. Ambas as iguarias deliciosas.

As batatas fritas? Nem uma sobrou para amostra ....

Sobremesa: Morgado e Barriga de Freira (uma especialidade que já valeu prémio à casa). Merecido prémio sem dúvida.

Aqui a expressão "atirar-me ao poço" ganha um novo e muito diferente sentido.

Um sentido delicioso!

BROTAS - UMA TERRA AO CONTRÁRIO: DE CABEÇA PARA BAIXO

O Santuário fica na parte mais baixa da vila. Para almoçar subimos uma ladeira e uma escadaria de se lhe tirar o chapéu (ou o fôlego!). 106 degraus...

E lá bem no cimo, o restaurante chama-se "O Poço". Casa familiar estabelecida em 1991....nascida de uma ideia em noite de insónia. Abençoada noite mal dormida, essa!

Já viram? Temos uma escadaria. Para o Santuário desce-se. Para o poço...sobe-se! No mínimo é diferente do habitual.

Brotas é uma terra muito especial. Com gente muito especial também.

Aqui, o abraço envolve-nos de tal forma que mesmo quem não é alentejano, passa a ser.

O tempo demora o tempo que tem que demorar, as pessoas são genuinas como deveriam ser e as casas alvas como manda a tradição (e o clima).

CONCLUSÃO

Na rua, ouvimos os pássaros que andam de árvore em árvore e o barulho da água corrente das duas fontes: da que fica no Santuário ou da outra, junto à estrada, que foi oferecida pelos Mordomos de Elvas nos idos de 1699 e cuja água Saramago não saboreou...

Respiramos paz. E na hora da abalada, despedidas feitas, começa a nascer a vontade voltar. Por isso será sempre, até já!

Um grande bem haja a quem em Brotas tão bem me acolhe!

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