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Proposta de iniciação científica a partir da abordagem CTSA: esquemas de pensamento e modos de agir Lenita Leite de Oliveira Fernandes; Denise de Medeiros Frias; Edgar Miranda; Eva Nascimento Bernardino; Angélica Gomes da Silva; Vanessa de Souza Rosado Drago; Vanessa dos Anjos de Oliveira
from TEIA DE SABERES NAS QUESTÕES AMBIENTAIS: da educação científica e filosófica à educação ambiental
PROPOSTA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA A PARTIR DA ABORDAGEM CTSA: esquemas de pensamento e modos de agir
Lenita Leite de Oliveira Fernandes Denise de Medeiros Frias Edgar Miranda Eva Nascimento Bernardino Angélica Gomes da Silva Vanessa de Souza Rosado Drago Vanessa dos Anjos de Oliveira
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Introdução
O despertar ambiental (1960) pautou na agenda da sociedade do século XXI o debate sobre o colapso do meio ambiente, ao evidenciar a ação antrópica na produção de mudanças ambientais em escala planetária. Os problemas ocasionados pela contaminação e o consumo predatório dos recursos e bens naturais exigiram da sociedade uma nova forma de pensar e de se relacionar com a natureza, na medida que a própria existência humana passou a ser ameaçada. Fez-se urgente a construção de uma consciência ampla e crítica da problemática ambiental, reconhecendo o papel das práticas sociais (individuais e coletivas) e seus atravessamentos políticos, econômicos e culturais na constituição das questões socioambientais, mobilizando esforços para solucionálas e combater injustiças e desigualdades. Nesse contexto, e considerando a influência e a mediatização da Ciência e a Tecnologia na vida em sociedade, os estudos ciência, tecnologia e sociedade (CTS) passaram a defender a discussão a respeito do papel da Ciência e da Tecnologia (C&T) na produção da emergência ambiental, que, na qualidade de instituições sociais, são constrangidas pela influência do modelo econômico desenvolvimentista. Destarte, motivadas por denuncias ambientais (CARSON,
1962/1969) e experiências bem-sucedidas de participação cidadã (SOLOMON, 1993), esse movimento vê a necessidade de formação da população para tomada de decisão em sociedade sobre assuntos relacionados a C&T. Nessa linha de pensamento, porém tentando evitar “um tratamento particularmente insuficiente das questões ambientais” (VILCHES; PÉREZ; PRAIA, 2011, p. 180), foi realizada a inclusão da letra A de ambiente, conformando o acrônimo CTSA. Em sua particularidade, a abordagem CTSA procura ressaltar as implicações socioambientais da ingerência científico-tecnológica na sociedade, de forma que os cidadãos, apoderados dos mecanismos democráticos de participação e tomada de decisão, possam conduzir e pressionar mudanças na situação ambiental. De forma geral, as discussões acumuladas e o lastro teórico desenvolvido sobre CTS/A encontrou eco na educação científica voltada para formação para cidadania (SANTOS, 2011), sobretudo, enquanto abordagem curricular. A educação científica, na perspectiva CTSA, teria a cidadania e a responsabilidade socioambiental como alguns dos seus horizontes de ação, promovendo a partir da discussão dos aspectos positivos e negativos da Ciência e da Tecnologia para o ambiente, capacidades discursivas e intelectuais para tomada de decisão coletiva, entendida como forma de controle social das questões ambientais. A incidência desse movimento na educação figura na promoção, pelo ensino de ciências, de uma visão mais realista da C&T, tentando desmistificar sua representação salvacionista, ao articular uma percepção que as tem como práticas sociais e como território de contradições e disputas de interesses, refutando sua pretensa neutralidade. Isso implica em uma ruptura com o ensino baseado exclusivamente na memorização de nomenclaturas e de sistemas classificatórios, colocando como desafio a reorientação de toda uma organização do currículo e do ensino, repensando a forma de tratamento dos temas, os modos de agir, de ensinar, aprender e a construção e administração de materiais em sala de aula. Destaca-se como um “primeiro obstáculo para a implementação da Educação CTSA na escola”, […] “a transposição de objetivos e expectativas” desse “movimento social para a sala de aula” (RICARDO, 2007, s/p.). Isso porque, persistem barreiras à sua operacionalização, tais como a (i) força da organização curricular tradicional, de caráter fragmentado, engessado e focado nos produtos da ciência, dificultando a incorporação de aspectos sociológicos, históricos e políticos que dão a tônica às discussões CTSA; (ii) a necessidade de adequação das estratégias e recursos metodológicos e pedagógicos aos contextos específicos e;
a (iii) oposição entre o conteúdo em ciências e o conteúdo CTSA, que impede enxergar a possibilidade de contextualização e ressignificação de conteúdos tradicionais a partir de temáticas socioambientais. Todavia, considerando a capacidade de atuação docente na escola por meio de processos criativos diversos, reconhecemos a possibilidade de ressignificação curricular, repensando-o de modo a superar suas limitações, pois entendemos o currículo como território em disputa, como uma construção sociocultural da escola, suscetível à ressignificações. Com base nesse pressuposto, analisamos o processo de recontextualização curricular durante a construção de uma ação em Ciências de abordagem CTSA, no âmbito de um projeto de iniciação científica de alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Discutimos as potencialidades das estratégias e artefatos mobilizados/elaborados pelos atores envolvidos para promoção de uma visão ampla e complexa das questões socioambientais relacionados à mineração e à produção de energia, tendo a representação dos assuntos trabalhados como mecanismo interpretativo e as estratégias didáticas como artefatos que materializam a proposta em sala de aula. A pesquisa é apresentada ao longo do texto, no qual discutimos, inicialmente, possíveis de contribuição da abordagem curricular CTSA para promoção de uma consciência ambiental crítica. Após, explicitamos o contexto de construção da proposta de ação pedagógica, descrevendo o escopo do projeto de iniciação científica. Nossas perspectivas interpretativas e procedimentos analíticos são discutidos em sequência, para, em seguida relatarmos os resultados principais e realizarmos nossas considerações finais.
Como destacamos, os problemas socioambientais e os aspectos políticos de uma sociedade cada vez mais científica e tecnológica passaram a criar demandas formativas para o Ensino de Ciências, abrindo espaço para o desenvolvimento de novos quadros epistêmico-teórico-metodológicos que transcendessem o ensino baseado apenas na transmissão do conhecimento de conteúdos científicos (SANTOS, 2007). Nesse pensamento, a abordagem CTSA tem disputado espaço nos currículos, na tentativa de desenvolver uma ação crítica do ensino de ciências, utilizando os conhecimentos científicos e tecnológicos como instrumento
de leitura, interpretação, análise e resolução de problemas socioambientais. Ricardo (2007, s/p.), discutindo o status de referência de saberes de cada uma das instituições representadas na sigla, sugere que “os saberes da ciência e da tecnologia seriam referências dos saberes escolares e a sociedade e o ambiente assumiriam o papel de cenário de aprendizagem”. Essas seriam as bases que poderiam promover a capacidade de tomada de decisão responsável. No caso, “Teríamos a formação de cidadãos críticos e capazes de tomarem decisões responsáveis quanto ao desenvolvimento científico e tecnológico atual, e, instrumentalizados para interferir nessa realidade” (BARBOSA; BAZZO, 2014, p. 364). No entanto, no âmbito escolar, para se atingir esse horizonte demandase outra ênfase curricular, focando em temas socioambientais significativos para os estudantes, problematizando suas dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais. Essa reorientação assentaria a estrutura para promoção de uma educação crítica, descortinando a ideia da ciência como um conjunto de verdades, rompendo com o ensino fundamentado na reprodução estática de conceitos científicos. Ao contrário permitiria aos sujeitos lerem o mundo e os problemas socioambientais associando-os a sua vida, a comunidade, a economia, a política e a cultura (LORENZETTI; DELIZOICOV, 2001). Ancorados nessas considerações, destacamos três eixos integrados de atuação da abordagem CTSA que contribuiriam com a construção complexa e crítica da realidade ambiental, a saber (i) natureza da ciência; (ii) construção do conhecimento científico; e (iii) formação para cidadania (MIRANDA, et al., 2018). i. Natureza da Ciência – como destacado um dos pontos centrais de tratamento dessa abordagem consiste no papel que Ciência e da Tecnologia para conformação dos problemas e mazelas socioambientais. Colocando em evidência a representação dessas instituições como sendo social, política e economicamente neutras; ii. Construção do conhecimento científico – o ponto de inflexão estabelecido pela História da ciência a partir da obra de Thomas Kuhn (1962/1994) e da Sociologia da Ciência, com estudos como de Bruno Latour (1979/1997) sobre a constituição do conhecimento científico, reclama a desmistificação da C&T como um empreendimento linear e de caráter exclusivamente individual, defendendo a noção de uma construção coletiva, sujeita a rupturas e orientada pelas comunidades; iii. Formação para cidadania – por fim, procura-se a descentralização das decisões envolvendo questões socioambientais, abrindo a possibilidade
de os cidadãos tomarem decisões públicas, antes formuladas por uma tecnocracia. Para isso, exige-se a formação de cidadãos críticos, reflexivos, participativos e capazes de argumentação e proposição de resolução de problemas cientificamente fundamentadas. Essas dimensões serviram de parâmetros para sugestão de tema e construção da proposta de sequência didática, a qual apresentamos a seguir, assim como seu contexto de produção.
Contexto de elaboração da ação pedagógica: projeto de iniciação científica mirim
A ação pedagógica foi concebida no âmbito da iniciativa de ensino e pesquisa “Iniciação Científica Mirim” desenvolvida pelo “Núcleo Interdisciplinar de Ciência, Ambiente, Sociedade e Educação – NICASE que envolve vários grupos de pesquisa em Ensino de Ciências e Educação Ambiental do Colégio Pedro II (CPII). O programa tem como objetivos principais (i) Compreender os processos de Alfabetização Científica nos anos iniciais do Ensino Fundamental; (ii) Estimular processos de desenvolvimento do espírito científico e as diferentes potencialidades dos alunos; (iii) Investigar práticas científicas inovadoras no Ensino de Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental; (iv) Propor novas abordagens e materiais didático-pedagógicos para a Educação Científica e; (v) Analisar práticas que estimulem o debate científico crítico e de aptidões e conhecimentos com vistas ao exercício da cidadania dos alunos. O projeto é desenvolvido nos cinco campi I em diferentes modalidades que incluem clubes de ciência e monitoria discente. Nos campi Realengo I (há 5 anos) e Engenho Novo I (há 2 anos), se dá no formato de um clube de ciências (Clube de Ciências Investigação e Descoberta do Mundo) que é organizado e administrado por docentes integrantes do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação e Sociedade – GEPES/CPII. O clube, na qualidade de espaço educativo em Ciências, utiliza experimentos científicos como forma de mediação entre teoria e prática. Os encontros ocorrem quinzenalmente no contraturno escolar e atendem alunos na faixa etária de 10 à 12 anos, matrículados no quarto e quinto anos, os quais são selecionados pelos professores, conforme o interesse em ciências e a disponibilidade em frequentar o projeto, já que este é extracurricular e não obrigatório.
Os temas do clube relacionam-se ao currículo do 5º ano e são trabalhados de forma a aprofundá-los e discuti-los criticamente e de modo contextualizado. A seleção dos assuntos, os modos de ação, os experimentos, atividades didáticas, entre outros aspectos, configura-se como uma construção coletiva e multidisciplinar, envolvendo professores (pedagogos e licenciandos), pesquisadores das áreas de referência das ciências naturais, pesquisadores em educação e alunos de graduação em Ciências Biológicas. Esse coletivo compõe uma parceria interinstitucional entre o Colégio Pedro II, o Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, o Departamento de Ecologia do Instituto de Biologia-UFRJ, o Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense-UFF e o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa - ULisboa. Essa formação social é entendida como uma “comunidade de práticas” – CdP (WENGER, 2010; 2016), que consiste na formação de um grupo que partilham preocupações ou conjunto de questões em uma área comum, que, em interação contínua, aprofundam seus conhecimentos e expertises (WENGER et al. 2002). Esse “sistema social de aprendizagem” permite a mobilização dos diferentes conhecimentos de seus integrantes para criação de ambientes de aprendizagem, com o aprimoramento profissional e desenvolvimento de projetos de pesquisa, extensão e inovação. De acordo com Martinelli (2014, p. 5), […] Fazem parte da prática atuações conjuntas, mediante a interação, a produção de artefatos, que são a própria criação dos produtos de conhecimento”. Nessa constituição, o clube de ciências torna-se um espaço heterogêneo e interativo de subjetividades que se constroem na coletividade. Esse potencial é mobilizado na elaboração de propostas de trabalho que articulam abordagens críticas de ensino, tais como a CTSA. No caso em tela, foi desenvolvida uma sequência didática contextualizada a partir do “Crime ambiental” de Brumadinho, colocando em evidência a produção mineral e de energia em sua relação com o consumismo social. A seleção dessa temática considerou sua urgência social, determinada pelo (a) impacto altamente agressivo da atividade mineradora no meio ambiente, (b) a vulnerabilidade socioambiental associada ao modelo de armazenamento dos rejeitos de minério adotado no país e sua (c) relação com a produção de bens de consumo e de energia. A sequência didática foi construída ao longo de vários encontros da comunidade de práticas, nos quais foram sendo discutidas as questões envolvidas no rompimento da barragem de Brumadinho e os aspectos ambientais, políticos,
econômicos e sociais relacionados, os quais balizaram o planejamento das discussões, a sequência de práticas e os materiais didáticos.
Fundamentos teóricos dos processos analíticos
O processo de análise fundamentou-se na noção de currículo como uma construção sociocultural sujeita à influência de diversos grupos de interesse, caracterizando-o como uma “área contestada”, como uma “arena política” (GOODSON, 1995; MOREIRA; SILVA, 2013, p. 28). Isso implica entendê-lo como um artefato de constituição híbrida decorrente da influência política de diferentes contextos, estruturas sociais e grupos de interesse (LOPES; MACEDO, 2011ab). Nessa compreensão são consideradas as contingências locais e as tradições culturais no processo de organização do conhecimento a ser ensinado pela escola, a exemplo da atuação dos grupos disciplinares para influenciar o currículo escolar (LOPES, 2004). Nessa perspectiva, é reconhecida a capacidade de agência dos sujeitos na formulação das propostas, nas quais tentam criar e imprimir sentidos e significados em torno dos elementos curriculares. Essa dinâmica considera a possibilidade dos professores de (re)criarem as demandas (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2012), já que a distância entre as recomendações curriculares e a prática escolar é um espaço em aberto, no qual a ação criativa dos docentes pode se expressar. Nesse sentido, a noção de “recontextualização” é importante aqui, pois permite compreender esse processo como a “transferência” de textos/discursos entre contextos, preenchendo espaços vazios de significação a partir da criação/ produção de sentidos, bem como de resistências (BALL, 2011). Dessa forma, admite-se o protagonismo dos docentes na operacionalização das práticas curriculares. No caso, entendemos a elaboração da sequência didática, sob a perspectiva CTSA, como manifestação da capacidade de recontextualização docente, que é analisada tentando-se apreender suas dinâmicas subjetivas e objetivas em meio à construção das propostas de ação. Para isso, utilizamos como dispositivo teórico-analítico as categorias interpretação e tradução. A interpretação é concebida como a leitura e codificação das demandas postas à escola. Para isso, os sujeitos se valem das condições objetivas, da cultura institucional, da tradição escolar, de visões de vida etc., como elementos
interpretativos, por determinarem a forma de pensar e compreender a realidade que estão inseridos. Na presente investigação, destacamos a representações do acontecimento construídas pela comunidade de práticas, ao longo dos encontros, como elemento base de interpretação e orientação do planejamento e seleção de estratégias. Quanto à tradução, consistiria no processo criativo propriamente dito, em que são construídas as estratégias, mecanismos e artefatos são mobilizados/ produzidos para colocar o currículo em ação. A materialização das propostas pode ser expressa em diversos artefatos de natureza diversificada: virtual, textual, discursiva, comportamental, organizacional, entre outros (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2012). No caso, analisamos todo o acervo de estratégias e mecanismos utilizados pela CdP. Para acessar essas informações, analisamos as atas e materiais formulados nos encontros da comunidade de práticas; os planos de trabalho e os artefatos (vídeos, slides, textos e experimentos) elaborados/mobilizados pelos professores para discussão dos temas. Nesses materiais buscamos identificar elementos que nos permitissem construir inferências sobre os modos de pensar e agir da proposta, cujos resultados são apresentados na sequência.
Resultados
A discussão dos dados da avaliação da construção da proposta de ação sob a abordagem CTSA foi organização em duas subseções resultantes da análise dos processos de pensamentos da comunidade de práticas para construção da sequência didática e dos modos de ação das estratégias, mecanismos e artefatos mobilizados para discussão e relação das dimensões sociais envolvidas na questão CTSA trabalhada pelo clube de ciências, a saber: (i) Esquema de pensamento como fundamento interpretativo e (ii) Os modos de agir: estratégias, mecanismos e artefatos de tradução.
Esquema de pensamento como fundamento interpretativo
Para organização das atividades, foi definida a realização de 3 encontros de formação, na modalidade rodas de conversas, com a participação de pesquisadores e especialistas de diferentes áreas como Ecologia, Educação
Ambiental e Didática das Ciências. Estes tinham caráter formativo, no sentido de atualizar a comunidade sobre os aspectos ambientais, econômicos, sociais e políticos envolvidos no assunto. Ainda, foram realizados grupos de trabalho, com o objetivo de materializar em propostas e materiais as discussões e construções dos encontros de formação. Nas interações formativas, outros elementos foram relacionados, ampliando as discussões e o leque de aspectos a serem trabalhados. Esse fato pode ser percebido na análise do mapa conceitual construído ao longo dos encontros, onde é possível identificar a associação de vários elementos à temática, como podemos observar na figura abaixo:
Mapa conceitual elaborado pelo grupo ao longo dos encontros de formação.
Os mapas conceituais têm ganhado legitimidade como recursos de acompanhamento e percepção da aprendizagem dos alunos. Consistem em diagramas de significados, que indicam a construção de relações entre conceitos que formam um encadeamento significativo (NOVAK, 1976; MOREIRA, 1997). Partindo de uma representação gráfica, o idealizador do mapa cria várias ligações entre assuntos distintos, mas que tomam parte na constituição de um conhecimento específico. Os temas adscritos nos boxes destacam impactos do rompimento da barragem de Brumadinho, acrescentando aspectos de natureza ecológica, socioeconômica e humana à discussão. As cores e códigos indicam as dimensões dos conceitos compartilhados pela comunidade de práticas. No caso, o código [001], e sua extensão em cor verde, introduzem questões ambientais, como os impactos diretos da atividade de mineração na natureza e efeitos de segunda ordem, como à biomagnificação de elementos tóxicos. Essa discussão, inclui, por sua vez, aspectos relacionados à saúde das populações (código [003], cor amarela), colocada em um estado de vulnerabilidade. Já o código [002], com extensão em vermelho, relaciona elementos de caráter econômico, permitindo a problematização dos interesses e decisões político-econômicas que configuraram a situação. Esses elementos adensam as discussões e possibilitam uma caracterização crítica do acontecimento pelo grupo. Além disso, representam a apropriação de novos saberes e informações pela CdP, por meio de uma construção que relaciona aprendizagens entre si, ou seja, é criada uma conversa entre o novo saber e o que já existia e os dois sofrem modificações (MOREIRA, 1997). Essas aprendizagens constroem uma representação complexa da problemática socioambiental expressa pelos enlaces, pela interligação dos conceitos apresentados, que conferem outros sentidos à problemática, por meio de cadeias lógicas de pensamento. Confirmam essa asserção a qualidade e a quantidade dos conceitos empregados na produção do mapa. Da mesma forma, os links estabelecidos representam a construção de novos saberes, pois essas conexões fazem com que os saberes prévios sofram modificações, sendo ampliados, (re)avaliados, atualizados e/ou reconfigurados. Assim sendo, percebe-se, a partir da forma e dos elementos estruturais do mapa conceitual, a ampliação e complexificação da representação da problemática ambiental abordada, com possível ressignificação dos conteúdos pelos professores, com novos códigos e informações. Essa percepção orientou os grupos de trabalho, parametrizando as escolhas de estratégias, atividades e a elaboração/mobilização de artefatos pela comunidade de práticas.
Os modos de agir: estratégias, mecanismos e artefatos de tradução
A forma de pensar o “Crime ambiental de Brumadinho, como destacamos, pautou o modo de ação e a escolha dos artefatos utilizados para o desenvolvimento das práticas. A forma de abordagem e a escolha dos instrumentos didáticos e a elaboração de artefatos foram orientadas pelas relações ambientais, políticas, sociais e econômicas, estabelecidas nas discussões. Pelo caráter complexo da problemática socioambiental optou-se por abordar a proposta por meio de uma sequência didática (SD), por ser uma forma de organização curricular sistemática que permite o encadeamento dos conceitos e conteúdos a partir de núcleos temáticos e procedimentais (ARAÚJO, 2013), graduando-os e possibilitando os alunos desenvolverem conexões e irem construindo os conhecimentos científicos segundo suas particularidades sócio cognitivas. Além disso, foram utilizados, como instrumentos de mediação dos encontros, a realização de experimentos e a construção de maquetes, tendo como ações complementares a discussão de vídeos, slides e textos. A SD foi organizada em dois blocos relacionados, que abordaram a mineração como uma atividade impulsionada pelo consumo social e industrial, e o papel dos produtos da mineração na produção de energia, seja como fonte energética – como no caso de minérios radioativos (ex. urânio 235) – ou como insumo das tecnologias de transformação da energia.
(i) O primeiro bloco de atividades: mineração e consumo O primeiro bloco pretendia compreender os aspectos envolvidos no rompimento da barragem de Brumadinho e construir uma noção da mineração como uma prática presente e motivada pela sociedade, destacando atravessamentos políticos, econômicos, ambientais e sociais. Na análise dos planos de trabalho destaca-se a tentativa de problematização das “causas do acontecimento”, que, colocadas em evidência, propõe o debate sobre sua classificação: “Desastre” ou “Crime ambiental”? Para isso é sugerido um levantamento de dados apresentados pela mídia e a análise comparativa do tipo de barragem adotada (a montante) com outras formas de armazenamento de resíduos existentes (a jusante e mista), tendo a construção de maquetes e a apresentação de vídeos técnicos da área de engenharia como modelo de estudo.
Esse tipo de atividade, estruturada na análise e resolução de um problema, tem o êxito de mobilizar a atitude ativa dos alunos na construção de uma argumentação fundamentada, estimulando processos cognitivos e uma percepção crítica das escolhas do modelo de barragem, que informa uma opção barata, porém, com a maior probabilidade de acidentes, haja vista a análise dos custos financeiros e dos riscos de rompimentos de cada um dos modelos. No caso, é explicado no material analisado que
“no modelo a montante os alteamentos não dispõem de estrutura para contenção do deslocamento do barramento construído, com maior possibilidade de deslocamento do dique e de liquefação, devido a facilidade de penetrabilidade da água. Já no modelo a jusante, os novos diques dispõem de uma estrutura de contenção mais fixado e que funciona como forma de reforço do dique anterior, sendo menos propício à deslocamento e liquefação”.
Ainda no primeiro bloco, ressalta-se uma proposta de discussão sobre o estímulo à mineração por meio do consumo da sociedade. Após a diferenciação entre mineral e minério, a partir da atribuição de valor ao material, é proposto o desmonte de alguns aparelhos eletrônicos para que suas peças sejam analisadas, com a identificação de possíveis minérios. De um telefone celular, por exemplo, pode-se apontar a bateria que contém lítio. Em um controle remoto, peças com silício, além de cobre, alumínio, ferro ou outro metal. Com as peças, sugerese montar um cartaz em grupo, registrando os nomes dos minérios e suas funcionalidades. Ademais, é indicado o debate sobre a troca constante de celulares, videogames, entre outros equipamentos, como atitudes que estimulam a mineração, chamando a atenção para a responsabilidade nas ações individuais de consumo. Entende-se esse momento como significativo para discussão dos “valores culturais da sociedade de consumo” (LAYRARGUES, 2002), colocando em foco o estilo de produção de bens e de resíduos que impactam a natureza. Essas atividades promovem uma percepção complexa da mineração que, enquanto prática humana, é influenciada por diversos aspectos que passam desde as escolhas individuais a ações políticas com impactos sociais e ambientais severos. Essa abordagem, a partir da problematização, propicia a compreensão da Ciência e da tecnologia permeadas por interesses diversos.
(ii) Segundo bloco de atividades – mineração e energia
No segundo bloco, buscou-se estabelecer relação entre mineração e energia, a partir do fornecimento de elementos utilizados como fontes energéticas e insumos para produção de tecnologias de transformação dos tipos de energia. Nesse propósito foram sugeridas discussões sequenciadas e mediadas por experimentos sobre “o uso de minérios (ex. carvão, petróleo e urânio) para a produção de energia” e seus impactos ambientais e sociais, entendidos a partir das (a) revoluções industriais e tecnológicas; (b) os tipos de energia; (c) o processo de transformação da energia mecânica/cinética em energia elétrica; e as (d) tecnologias necessárias para transformações entre os tipos de energia (nuclear, hidrelétrica, (geo)térmica, eólica e solar). Como exemplo de tradução dessas temáticas, destacamos uma roda de conversa que se propôs a debater com os alunos sobre a conversão da energia, ressaltando a produção de resíduos e rejeitos. No caso, destacou-se os impactos do uso de combustíveis fósseis e a responsabilidade da emissão industrial e social de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Para fomentar a discussão, foi apresentado aos alunos um gif 33 , que idealiza como seria se fosse possível enxergarmos o CO2 que é lançado diariamente nas grandes cidades. No caso, o CO2 é representado numa coloração roxa, sugerindo a ideia da quantidade da substância na atmosfera ao apresentar em sequência o lançamento realizado por um carro, um avião, vários veículos durante um congestionamento, fábricas e por todos esses emissores juntos.
Cena que sugere o lançamento de CO2 em uma cidade grande
33 https://micro.cibermitanios.com.ar/post/105396684000/dióxido-de-carbono
Esse artefato didático dá possibilidade de os estudantes deduzirem o impacto do uso dessa fonte energética (combustíveis fósseis) no ambiente e até mesmo na saúde da população. No Ensino Fundamental I, esse instrumento tem atuação significativa, pois pode servir como mecanismo concreto de pensamento, uma vez que o pensamento abstrato ainda está em desenvolvimento, tendo as crianças dificuldades de associarem essa realidade invisível. Outro exemplo de artefato didático mobilizado pela comunidade, consiste em um experimento que propunha entender a transformação da energia luminosa em energia elétrica, sendo possível sua percepção a partir da construção de circuitos elétricos alimentados por energia solar. Durante as discussões para entender a dinâmica de interação da luz com o recheio das células voltaicas, a qual provoca a movimentação de elétrons na camada de silício (material utilizado na fabricação de chips e processadores de computadores), é sugerido aos alunos a pesquisa da natureza e origem desse material. Essa proposta cria uma relação com a mineração, possibilitando entender impactos ambientais com a construção, manutenção e funcionamento dos parques solares. Por exemplo, a poluição visual; a contaminação do ambiente por silício; entre outros. Dessa forma, propicia-se aos alunos uma compreensão complexa da questão socioambiental que envolve a mineração, ao estabelecer relações que criam uma rede de consumo, a partir do “ciclo de vida” das tecnologias empregadas no processo de conversão da energia. Que podem problematizar a classificação da produção de energia como “limpas”, sendo considerados nessa caracterização outros fatores que não só a emissão de gases poluentes. Nesse contexto, é possível por em evidência o papel que a Ciência e a tecnologia assumem nesse processo e os interesses sociais e particulares implicados. Assim, corroboramos a ideia da abordagem CTSA como promotora do pensamento crítico, que por meio de uma ação contextualizada e significativa, permite estabelecer “uma visão complexa da Ciência e da Tecnologia e das relações mútuas que estabelecem entre si e com a Sociedade e o Ambiente” (FERNANDES; PIRES; DELGADO-IGLESIAS, 2018, p. 877).
Considerações Finais
Em sua dimensão educacional, a constituição de uma compreensão ampla, complexa e integrada da Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente tem
sido um dos grandes desafios do movimento CTSA. Isso porque disputa com uma lógica de organização curricular fragmentada e um ensino de ciências engessado nos produtos da ciência. A ruptura com essa perspectiva pedagógica se faz urgente. Como forma de contribuir com esse propósito, a iniciativa docente de Iniciação Científica de alunos do Ensino Fundamental I tem buscado construir propostas de trabalho que traduzam essas demandas na prática de sala de aula. Os resultados da análise da elaboração de uma sequência didática, sob abordagem CTSA, apresentam contribuições para promoção de uma representação complexa das questões socioambientais, tratadas a partir de relações ambientais, econômicas, políticas e sociais. Essa consideração se ancora nos dados da análise da ampla e intricada estrutura conceitual conformada pela CdP. Nessa constituição, a ação multidisciplinar tem papel potencialmente significativo, corroborando a ideia da parceria universidade-escola como um espaço válido de formação mútua, em que as diferentes perspectivas e visões de mundo se comungam, construindo uma percepção ampla dos assuntos discutidos. Nesse âmbito, a valorização da ação criativa e criadora dos professores é categórica, visto que a capacidade de recontextualização materializa as demandas em propostas pedagógicas com alto potencial de problematização dos objetos de estudo. A problematização, por meio “questões instigantes” permitem aos alunos a construção de relações e de outros sentidos em torno das questões socioambientais discutidas. Os artefatos elaborados ou mobilizados pelo grupo, com diferentes formas e com diferentes linguagens, têm essa natureza. Cabe-nos, por fim, reconhecer a particularidade da experiência e dos objetos aqui analisados, o que nos afasta de qualquer pretensão de replicação ou generalização dos dados, mas, quiçá, o conhecimento aqui produzido possa ser utilizado como orientação no planejamento e no trabalho sob a abordagem CTSA, possibilitando a promoção do almejado pensamento crítico e uma percepção ampla e complexa das questões socioambientais.
Referências
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Esta é a Terra nossa: a Liberdade, humanos! Esta é a Terra nossa: a de todos, irmãos. A Terra dos Homens que caminham por ela, pé descalço e pobre. Que nela nascem, dela, para crescer com ela (...) Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer a Terra, escrava e escravos os humanos! Outra é a Terra nossa, homens, todos! A humana Terra livre, irmãos!
Dom Pedro Casaldáliga