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Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”: educação ambiental em disputa curricular na era da BNCC Soraya Miranda Castello Branco; Fernanda Martins Cordeiro Alves; Alexandre Maia do Bomfim
from TEIA DE SABERES NAS QUESTÕES AMBIENTAIS: da educação científica e filosófica à educação ambiental
DIGA-ME COM QUEM ANDAS E EU TE DIREI QUEM ÉS”: educação ambiental em disputa curricular na era da BNCC
Soraya Miranda Castello Branco Fernanda Martins Cordeiro Alves Alexandre Maia do Bomfim
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INTRODUÇÃO
Educação ambiental, quem é você?
No começo pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade. (Chico Mendes)
A Educação Ambiental (EA) tem sido alvo de discussões políticas de todo o planeta. De início, a temática ambiental era tratada exclusivamente pela perspectiva ecológica, perceptível em publicações memoráveis como “A Origem das Espécies”, do naturalista inglês Charles Darwin, em meados do século XIX. Somente na segunda metade do século XX que se observa uma ampliação do debate ambiental para esferas socioeconômicas, impulsionada principalmente pelas inquietações quanto aos impactos ambientais das ações antrópicas. Nos anos 60, com o surgimento do Clube de Roma e sua publicação referencial “Os Limites do Crescimento” (MEC, 2016), as discussões avançaram para um inevitável incômodo: como sustentar o desenvolvimento sem impactar o ambiente? Na década seguinte, a Organização das Nações Unidas (ONU) abraça as discussões sobre o meio ambiente e o homem em conferências como as de Estocolmo (1972) e de Tbilisi (1977). Das recomendações da conferência de
Estocolmo se desdobraram a primeira ação de Educação Ambiental propriamente dita, o Encontro Internacional em Educação Ambiental (1975) promovido pela agência da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em Belgrado. Já a segunda conferência, em Tbilisi, “foi o ponto culminante da primeira fase do Programa Internacional de Educação Ambiental, iniciado em 1975 (MEC, 2007). Definiu-se os objetivos, as características da EA, assim como as estratégias pertinentes no plano nacional e internacional”.
DESENVOLVIMENTO
No Brasil, apesar da participação nos intensos debates ao longo de todo o século XX, inclusive nas conferências internacionais, somente nos anos 1990 a Educação Ambiental se consolidou enquanto política educacional. Garantida na Constituição Federal de 1988, a Educação Ambiental vinha sendo gradativamente inserida nos currículos brasileiros, sob uma perspectiva ecológica, em toda a década de 80; seu clímax ocorrera em 1992 na Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, com a publicação da Agenda 21, seu documento mais proeminente. Desde então, políticas educacionais específicas como a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), regida pela lei 9.795/99 foram criadas; concomitantemente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) são divulgados, com a temática ambiental – denominada Meio Ambiente – proposta na transversalidade curricular. A educação brasileira começa a reajustar seus currículos escolares e de formação de professores para uma Educação Ambiental na escolarização (MEC, 2007), em conformidade com a agenda global de economia e desenvolvimento sustentável.
Linhas político-pedagógicas de Educação Ambiental
Ainda que não seja o objetivo principal deste trabalho, é necessário ressaltar as diferentes correntes de Educação Ambiental discorridas em seu histórico. Sauvé (2005) cita, ao menos, 15 correntes de EA, originadas das diversas disputas do campo pedagógico e aqui categorizadas como “tradicionais” (com longa tradição, conforme o autor) e “modernas” (as mais recentes), conforme o quadro 1:
Correntes da Educação Ambiental
Tradicionais Naturalista Modernas Holística
Conservacionista/recursista
Resolutiva
Sistêmica Científica Humanista
Moral/Ética Biorregionalista
Práxica Crítica
Feminista
Etnográfica da Ecoeducação
da Sustentabilidade
Quadro 1. Correntes da Educação Ambiental Adaptado de Sauvé (2015, p. 18)
Sistematizá-las não visa, necessariamente, hierarquizá-las, tampouco eleger as que devem ser (des)consideradas. Cabe, sim, uma reflexão sobre o efeito de cada categoria, a sua dominância e suas consequências na formação dos cidadãos em todo mundo, ontem e hoje.
Nas mãos de quem está a educação ambiental?
O currículo, grosso modo, é uma organização, priorização e formação de propostas de ensino, onde elenca-se o quê, como e quando determinados conhecimentos devem ser participados na vida escolar. Silva (2010) é ainda mais assertivo nas noções de currículo.
O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder. O currículo é capitalista. O currículo reproduz - culturalmente - as estruturas socais. O currículo tem um papel decisivo na reprodução da estrutura de classes da sociedade capitalista. O currículo é um aparelho ideológico do Estado capitalista. O currículo transmite a ideologia dominante. O currículo é, em suma, um território político” (SILVA, 2010, pp. 147; 148).
Diretrizes curriculares nacionais conduzem a prescrição dos currículos regionais e locais onde, com a autonomia docente, o currículo seria adequado a realidade de cada comunidade escolar – o chamado currículo em ação. Acontece que a gestão da educação brasileira, cada vez mais, se subordina a organismos
internacionais de grande poder econômico e seus interesses para com a América Latina. Tais organizações impõem reformas educacionais, especialmente curriculares; “essas reformas estão estruturadas basicamente em torno de três dimensões articuladas entre si: formação e atuação docentes, avaliação dos estudantes e aprendizagens essenciais” (SCHNEIDER; NARDI, 2018, p. 48). Nestas sucessivas reformas (a mais recente, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC) observa-se um importante efeito imobilizador do sistema de avaliação dos estudantes, o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e o Pisa (Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes45 ), e a incansável busca por índices que fere a autonomia docente. A Base Nacional Comum Curricular é uma realidade para a educação brasileira. Homologada em 2017, apresenta-se como um “documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017). Seus primeiros movimentos iniciaram no final da década passada, precisamente em 2010, com a realização da Conferência Nacional de Educação (CONAE), onde especialistas debateram as necessidades da Educação Básica. Neste evento, registrou-se a demanda de uma Base Nacional Comum Curricular como parte do Plano Nacional de Educação (PNE), já previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 9º, inciso IV (BRASIL, 2017). O documento, lançado com a promessa de redução das disparidades socioeducacionais, traz desde a capa a epígrafe “A Educação é a Base” que, conforme Macedo (2018), encerra em si duas possíveis interpretações: a literal, que reduz a Educação brasileira (ou o que dela se espera) na Base (Nacional Comum Curricular) ou, não menos dramática, uma ideia salvacionista da Educação, solução dos demais problemas mundiais, e “a assunção de que a educação precisa, pragmaticamente, ser útil para algo que virá. Assim, ela é marquetizada, um bem a ser trocado no mercado futuro” (MACEDO, 2018, p.28). Análises de versões anteriores da BNCC já denunciavam um silenciamento da Educação Ambiental de maneira motivada. Foi verificada “a perda de espaço da Educação Ambiental, prevalecendo sua compartimentalização em disciplinas e, mesmo como tema integrador em apenas três disciplinas, com reinserção condicionada a autonomia das escolas, nos 40% restantes do currículo” (ANDRADE & PICCININI, 2017, p. 11), justificada quando se observa quem são os atores no mercado gerado pela implementação da BNCC.
45 Do ingles Programme for International Student Assessment.
Só para dar materialidade a tais exemplos, em março agora (2018) ocorreu, em São Paulo, evento de promoção da MindLab, empresa privada que vem atuando na formação de professores e em ambientes informáticos para o desenvolvimento, entre outros, de jogos educativos voltados ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais, um dos “novos” conceitos presentes na BNCC. A propaganda da MindLab traz um conjunto de parcerias com Universidades estrangeiras, dentre as quais a Yale University, em que são realizados estudos experimentais - modelo cuja validade é questionada na literatura educacional desde os anos 1970 - com a função de avaliar os jogos por ela produzidos. Na mesma época, no Rio de Janeiro, ocorria um evento sobre a BNCC e a formação de professores, nos quais estavam representados o MEC, o Teachers College/Columbia University e a Fundação Lemann. A única instituição de formação de professores brasileira presente oficialmente era o Instituto Singularidades, sediado em São Paulo e parte do grupo Península (leia-se Abílio Diniz) (MACEDO, 2018, p. 31).
A Educação Ambiental, de acordo com uma definição de Layrargues (2002), “é um instrumento ideológico de reprodução social que, dependendo da conformação das forças sociais em disputa pela significação da educação ambiental, pode se dar na direção da conservação ou transformação social, dependendo das práticas desenvolvidas” (LAYRARGUES, 2002, p. 11). Como se dá, então, a Educação Ambiental inserida, transversalizada, discutida e operada nessa disputa curricular? Há espaço para uma Educação Ambiental contrahegemônica em um currículo mantenedor de hegemonias? Como resultado, é comum observarmos um adestramento ambiental (BRÜGGER, 1994 apud LAYRARGUES e LIMA, 2011, p. 7), onde o pragmatismo acentuado – demanda da agenda global de desenvolvimento sustentável – evita discussões sobre a ação direta das relações humanas de dominação e de consumo como severos impactos ambientais, isolando a discussão ambiental das contribuições das Ciências Humanas. “[...] O entendimento da educação ambiental como um objeto de estudo sociológico poderá [...] indicar rumos mais nítidos e coerentes para a função social que se deseja dar a essa prática pedagógica” (LAYRARGUES, 2002, p. 12).
Quais caminhos (ou descaminhos) da educação ambiental, no fim das contas?
Aqui analisamos dois documentos curriculares recentes, elaborados pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ), onde as autoras são regentes na disciplina de Ciências. O primeiro, denominado Orientações Curriculares, teve sua última alteração em 2012 e vigência até 2019. O segundo, Currículo Carioca, teve início da vigência em 2020, contemplando as orientações da BNCC. Buscamos compreender a possível disputa entre o campo curricular (que acompanha as discussões da Base), a predominância de determinada macrotendência político-pedagógica de EA e suas limitações. As Orientações Curriculares foram organizadas por disciplinas, em diferentes cadernos: Artes Cênicas, Artes Visuais, Ciências, Geografia, História, Língua Estrangeira (Inglês/Espanhol), Língua Portuguesa, Matemática e Música. Norteiam os objetivos (competências) e habilidades a serem alcançados. O Currículo Carioca também se organiza em cadernos disciplinares, desconsiderando a característica de organização dos componentes curriculares em áreas do conhecimento (MEC, 2018). Não participam desta análise os materiais didáticos produzidos pela rede municipal de ensino, os Cadernos Pedagógicos (até 2018) e os Materiais Didáticos Cariocas (2019 em diante). Para esta análise foi pesquisado o termo incompleto ambient, que traria resultados para as palavras “ambiente” e “ambiental” e seus plurais, em cada caderno de Orientações Curriculares para o Ensino Fundamental (Anos Finais) e do Currículo Carioca (Anos Finais). Nos cadernos das Orientações Curriculares de Artes Cênicas ocorreram 6 retornos, todos referindo-se ao ambiente cênico; em Artes Visuais, 7 retornos, sendo apenas dois relacionados ao “meio ambiente”: ambiente e cultura indígena e patrimônio ambiental; em Geografia, como esperado, um número considerável de retornos: 29, sendo a maioria comparando ambientes naturais e ambientes antropizados; em História apenas 2 retornos; tanto em Língua Inglesa quanto em Língua Espanhola, 5 retornos onde apenas 1 referia-se ao meio ambiente (conservação ambiental); em Língua Portuguesa apenas 7 retornos, todos citados em sugestões para os anos iniciais do EF; Música traz 4 retornos, sobre menções aos sons do meio ambiente. Excluindo-se os significados de “ambiente” dissociados do que nos interessa, cada retorno está especificado no quadro 2.
Disciplina Artes Cênicas
Artes Visuais
Geografia
História Língua Inglesa
Língua Espanhola
Expressão
X Questões ambientais (...) cultura indígena Valorizar o Patrimônio (...) Ambiental Questões socioambientais
Problemas ambientais
(Combate à) Degradação ambiental Questão ambiental Ponto de vista ambiental Meio ambiente e sustentabilidade Meio ambiente Desastre natural/ambiental Motivos ambientais Meio ambiente
Léxico relacionado a questões ambientais Questões ambientais Conservação ambiental
Contexto
Habilidades e Sugestões
Objetivos
Apresentação Objetivos, Conteúdos, Habilidades e Sugestões Objetivos
Objetivos Sugestões Conteúdos Habilidades Sugestões Sugestões Habilidades
Conteúdos
Sugestões Habilidades
Língua Portuguesa Matemática Música
X X Fenômeno sonoro no meio ambiente Compreender os sons do meio ambiente Apresentação
Objetivos
Materiais do meio ambiente Sugestões Escuta do meio ambiente Objetivos Quadro 2. Resultados das pesquisas do radical “ambient” nas Orientações Curriculares da SME/RJ.
A mesma pesquisa foi realizada nos cadernos do Currículo Carioca 2020. As disciplinas da área das Linguagens (Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras, Artes Cênicas, Artes Visuais e Música) reportaram entre zero e 8 retornos, totalizando 18 resultados; a área de Ciências da Natureza reportou 21 retornos; a área de Ciências Humanas (História e Geografia) trouxe 22 ocorrências e, por fim, a área da Matemática trouxe apenas uma ocorrência do termo.
Depurando tais resultados, as ocorrências do termo ambiente relacionadas ao “ambiente natureza” ocorreram conforme o quadro abaixo:
Disciplina Artes Cênicas Artes Visuais Língua Espanhola Língua Inglesa Língua Portuguesa Música
Ciências
Expressão
X
Meio Ambiente (8x)
X Aspectos ambientais Questões ambientais X X
Meio ambiente
Impactos (socio)ambientais
Características ambientais Problemas (socio)ambientais
Condições ambientais Equilíbrio ambiental Ambiente natural Meio ambiente
Problemas (socio)ambientais
Contexto
Apenas na nomenclatura do eixo temático
Habilidades Objetos de aprendizagem
Habilidades e Objetos de Aprendizagem Habilidades e Objetos de Aprendizagem Habilidades Habilidades e Objetos de Aprendizagem Habilidades Habilidades Habilidades Habilidades
Habilidades
Geografia
História Matemática
Questões geopolíticas, econômicas e ambientais Objetos de Aprendizagem
Questão ambiental Habilidades
Ambiente natural
Contexto geopolítico e ambiental
Impactos (socio)ambientais Meio ambiente e sustentabilidade Degradação ambiental Contextos socioculturais, ambientais Habilidades
Habilidades
Habilidades e Objetos de Aprendizagem
Objetos de Aprendizagem
Habilidades
Habilidades
Quadro 3. Resultados das pesquisas do radical “ambient” no Currículo Carioca 2020 da SME/RJ.
Em ambos os documentos, como se esperava, o maior número de retornos deu-se no caderno de Ciências. Na apresentação do caderno de Orientações Curriculares – Objetivos Gerais do Ensino de Ciências – sugere-se uma tendência crítica às transformações socioambientais, com “a presença de aspectos éticos, estéticos, políticos, sociais e econômicos na busca pela sustentabilidade” (p. 5). Em todo o documento, as orientações seguem correntes tradicionais de Educação Ambiental com um verniz de sustentabilidade, ratificando a ideia de um pragmatismo em atendimento aos acordos internacionais dos quais o Brasil é parte (MORALES, 2009). Uma evidência são as sugestões para o desenvolvimento do conteúdo sobre “energias renováveis e não-renováveis”, discriminada para o 9º ano:
Discutir, a partir de manchetes de jornal, as vantagens e desvantagens, para o planeta Terra, da utilização da energia renovável e não renovável.
Elaborar tabela com os diferentes tipos de combustíveis e sua relação com a sustentabilidade do planeta. Pesquisar, em grupos, sobre as alterações ambientais, resultantes da ação humana. Promover debate sobre o protocolo de Kyoto e o de Paris (recente) a poluição ambiental, o IPCC e o aquecimento global (ORIENTAÇÕES CURRICULARES DE CIÊNCIAS, p. 72).
No Currículo Carioca, a abordagem pragmática persiste, com silenciamentos sensíveis em algumas áreas, inclusive no componente curricular de Ciências Naturais. A orientação para um debate crítico das questões socioambientais ficou restrita ao componente curricular de Geografia, como a descrita na imagem abaixo.
Habilidades do 8º ano no componente curricular Geografia, Currículo Carioca (RIO DE JANEIRO, 2020, p. 24)
A superficialidade das propostas e a ausência de reflexões por outras áreas do conhecimento tornam-se ainda mais preocupantes pelo fato de que os professores ainda consideram o currículo como prescrição (GOODSON, 2007) e, reforçados pela necessidade de alcançar metas quantitativas (Prova Brasil e similares), tendem a obedecer ao script. Desses documentos são elaborados os materiais didáticos próprios da rede municipal carioca, cujos conteúdos são cobrados em avaliações (bimestrais ou semestrais) elaborada pela Secretaria Municipal de Educação. Consequentemente, assumindo o caráter prescritivo do currículo e a necessidade de registrar bons resultados na avaliação municipal, os professores não costumam ir além do que consta nas diretrizes municipais. O caminho que estamos vendo ser adotado contraria as políticas educacionais vigentes desde a Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 225º, parágrafo VI, incumbe ao Poder Público a promoção da educação ambiental em todos os níveis de ensino; a PNEA que em seu artigo 5º, parágrafo I, cita como um dos objetivos da EA “o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos” (Lei 9795/99); os PCN que sugerem os conteúdos de Meio Ambiente “integrados às áreas, numa relação de transversalidade, de modo que impregne toda a prática educativa e, ao mesmo tempo, crie uma visão global e abrangente da questão ambiental, visualizando os aspectos físicos e histórico-sociais, assim como as articulações entre a escala local e planetária desses problemas”, o currículo municipal da segunda maior capital do país segue empobrecido na abordagem da Educação Ambiental, sem espaço para a transversalidade temática e reduzindo-a a uma visão ecológica-científica (priorizando-a na disciplina de Ciências) e rasa nas provocações socioambientais, sob a perspectiva do desenvolvimento sustentável. Tramita no Senado Federal, desde 2015, um Projeto de Lei (PLS nº 221/15) que visa resgatar a relevância do debate ambiental na educação em meio às reformas. A proposta, conforme citado em sua ementa,
Altera a Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999, que “dispõe sobre a Educação Ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências”, para incluir como objetivo fundamental da Educação Ambiental o estímulo a ações que promovam o uso sustentável dos recursos naturais e a Educação
Ambiental como disciplina específica no ensino fundamental e
médio, e a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que fixa as diretrizes e bases da educação, para tornar a Educação Ambiental disciplina obrigatória (BRASIL, 2015, grifo nosso).
No início de 2019, houve uma tentativa precipitada da SME/RJ de alocar a Educação Ambiental, exigida no currículo por organizações internacionais com as quais o Brasil mantém acordo46 , em uma disciplina específica: “Sustentabilidade Cidadã”47 . A medida não se concretizou48 devido a pressões da opinião pública, visto que para inseri-la no currículo, haveria redução na carga horária das disciplinas de Língua Portuguesa e de Matemática. A BNCC, por sua vez, que vem para reorientar os currículos oficiais dos estados e municípios já em 2020, enfraquece a ainda incipiente Educação Ambiental da Educação Básica. Análises de Andrade e Piccinini (2017) e de Behrend, Cousin e Galiazzi (2018) mostram o esvaziamento gradativo da Educação Ambiental ao longo da elaboração das diferentes versões da BNCC para o Ensino Fundamental, até a sua homologação em 2017. Acredita-se que
o ocultamento da EA na BNCC seja produzido, especialmente, pelo papel político-pedagógico da Educação Ambiental, que possui caráter emancipatório e transformador e ao problematizar as relações sociais vigentes, atua no plano da existência (...). A perspectiva transformadora da EA vai de encontro à política neoliberal em expansão no país, que aposta no sucateamento da Educação básica, na alienação dos trabalhadores e na exploração do ser humano e dos recursos naturais (BEHREND; COUSIN; GALIAZZI, 2018, p. 81).
Diante de uma BNCC criticamente estéril, é praticamente óbvio que as projeções curriculares que dela emergem serão vazias na abordagem da Educação Ambiental Crítica, tão urgente e necessária (cada vez mais) na perspectiva socioambiental brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das análises documentais das políticas nacionais e da rede municipal carioca para a Educação, é evidente o esvaziamento dos debates ambientais, independentemente de sua corrente conservadora ou crítica. A concentração de citações do termo “ambiente” (e suas variantes) nos documentos norteadores das disciplinas de Geografia e de Ciências evidencia que
46 Agenda 2030, https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/ 47 Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, edição 203 de 17 de janeiro de 2019, pp. 17-20. 48 Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, edição 210 de 28 de janeiro de 2019, pp. 12-14.
vigora, ainda, uma compartimentalização da Educação Ambiental e consequente fragmentação e fragilidade das discussões que tornariam a didática ambiental, de fato, transformadora. Não há nestas orientações qualquer indicação para a transversalidade do tema; a escassez da abordagem desta temática em disciplinas como a História, que muito contribui para um debate crítico sobre os mecanismos de dominação que aniquilam os ecossistemas, é uma importante evidência da fuga da transversalidade da Educação Ambiental curricular. A constante associação de Educação Ambiental ao consumo sustentável, a hábitos sustentáveis e outros atributos da sustentabilidade limita a reflexão a um pragmatismo desejável apenas pela minúscula parcela de poderio econômico, cerceando a capacidade social de reinventar seu modo de desenvolvimento a níveis não predatórios. As novas orientações municipais (Currículo Carioca, 2020), alinhadas à BNCC, corresponderam às expectativas de diversos autores sobre o apagamento da Educação Ambiental, visto que a própria BNCC ignorou a sua necessária abordagem nos objetos de aprendizagem de toda a Educação Básica. A participação do magistério municipal na elaboração do novo currículo49 foi pouco divulgada, o que leva a crer que houve baixa participação da categoria e de demais envolvidos no processo educacional. Ainda não houve uma devolutiva da SME/RJ sobre a participação dos professores. Faz-se necessário, como sempre, o papel autônomo dos professores e demais educadores ambientais da escolarização na prática da Educação Ambiental crítica, para que as discussões e reflexões possam existir apesar das limitações intencionais nos currículos, que buscam reduzi-las a meros comportamentos miméticos, sustentáveis e sem criticidade. Sabe-se que a soberania na construção dos currículos tem pertencido a grandes corporações do terceiro setor, em atendimento às necessidades do mercado e não dos indivíduos. Lopes (2018) aponta uma alternativa que não apenas é viável, como segura para que seja possível extrair água do deserto.
Todo o esforço – financeiro, humano, intelectual – investido na produção de uma base curricular nacional deveria estar sendo investido na valorização do comprometimento dos docentes com
seu trabalho, na melhoria das condições de trabalho, de estudo
e de infraestrutura nas escolas, na formação de quadros nas secretarias para trabalharem com e sobre o currículo (LOPES, 2018, p. 27, grifo nosso).
49 Através de um formulário online, conforme http://antigo.rioeduca.net/blogViews. php?bid=20&id=6678
É legítimo, portanto, que os principais atores do famigerado “chão da sala” ocupem, também, os espaços intelectuais e políticos que regulam os fundamentos educacionais nas esferas pública e privada; que apesar do baixo investimento e toda a sorte de impedimentos numa caminhada “contra o vento” da hegemonia neoliberal nas políticas educacionais, sejam resistência frente a administração mercadológica da educação, a subserviência ao alcance de índices, a imposição de uma BNCC não democrática e seus consequentes currículos esvaziados e alienantes.
REFERÊNCIAS
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Na minha idade, tudo cabe em uma oração. Hoje, já aposentado, contemplo a vida relativizando o que é relativo em mim,
na sociedade e na Igreja, e absolutizando o que é absoluto:
Deus e a humanidade
Dom Pedro Casaldáliga