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A questão socioambiental nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental: reflexões na formação continuada de professores em ciências naturais Gabriela Ventura e Grazielle Rodrigues Pereira
from TEIA DE SABERES NAS QUESTÕES AMBIENTAIS: da educação científica e filosófica à educação ambiental
A QUESTÃO SOCIOAMBIENTAL NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: reflexões na formação continuada de professores em ciências naturais
Gabriela Ventura Grazielle Rodrigues Pereira
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Uma leitura crítica da questão ambiental
Neste texto discutimos possibilidades para a inserção da questão socioambiental nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Alinhando-nos às perspectivas críticas da Educação Ambiental entendemos que a incorporação da ciência e da tecnologia ao sistema capitalista colaborou para a mercantilização dos bens naturais e dos seres humanos (através da força de trabalho) para atendimento às demandas de ampliação do capital (TREIN, 2012). Ao refletir sobre o papel da Educação em Ciências face aos problemas socioambientais, Ventura (2017) assinala a relevância de explicitar a distribuição desigual e injusta dos danos reais e potenciais decorrentes da contínua inovação científico e tecnológica, assim como dos seus benefícios. Segundo a autora, evidenciar o comprometimento desses processos com a lógica capitalista pode se constituir um importante caminho para explorar a dimensão sociopolítica e econômica da crise socioambiental nas práticas da Educação em Ciências. No âmbito de um curso de formação continuada de professores em Ciências Naturais, nos questionamos como podemos contemplar essas discussões nos anos iniciais do Ensino Fundamental: como favorecer processos educativos que deem às crianças possibilidades de análise e reflexão para a compreensão e o enfrentamento dos problemas socioambientais que são agravados nas sociedades contemporâneas? Refletimos sobre essas possibilidades a partir de duas atividades propostas às professoras e aos professores que participaram do curso e que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
De acordo com a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), o desenvolvimento científico e tecnológico sob a lógica produtivista do capital, baseia-se na expropriação dos bens naturais, dos territórios, das comunidades e de diversos grupos sociais e seus saberes, agravando a desigualdade social e os problemas ambientais. A partir de uma visão industrialista, consumista e utilitarista da natureza, esse modelo promove o distanciamento entre os seres humanos (os quais exploram outros seres humanos nos processos de trabalho para obtenção de lucro) e a cisão entre os seres humanos e natureza (vista como fonte inesgotável de recursos para manutenção do consumo e atendimento ao mercado). Dessa forma, questionamos com Veloso (2007) se as escolas têm colaborado para a construção de sociedades justas e sustentáveis que respeitem a “comunidade dos seres vivos, a melhoria da vida humana, o respeito e a manutenção da biodiversidade do planeta, atitudes e práticas de pessoas humanizadas, alianças comunitárias e globais em favor de nossa própria história” (p. 80). Sob esse viés, temos como principal objetivo colaborar para práticas educativas comprometidas com a justiça, a igualdade e a proteção a todas as formas de vida e com a formação de pessoas integras e solidárias
A questão socioambiental e a produção e consumo dos alimentos
Entendendo que o ensino de Ciências ocupa um lugar secundário nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o Curso de Formação Continuada de Professores em Ciências Naturais é destinado aos docentes que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental e tem como objetivo dar subsídios a esses professores para contemplar as Ciências Naturais em suas práticas pedagógicas. O curso é estruturado em sete módulos: O ensino de Ciências nos anos iniciais da educação básica; Educação Ambiental; Corpo Humano, Saúde e Sexualidade; Ciência e Arte; Neuroeducação; Astronomia; Fontes e Transformações de Energia. Os módulos visam desenvolver propostas de atividades e materiais didáticos para serem aplicados em sala de aula. (PEREIRA et al., 2017). Neste texto refletimos sobre duas atividades propostas às professoras e aos professores, utilizando rótulos e embalagens de alimentos, no módulo Educação Ambiental. Na primeira atividade, o objetivo foi compreender os processos de produção e consumo dos alimentos. Para tanto, realizamos
alguns questionamentos: quantas crianças conhecem uma laranjeira? Quantas perguntam sobre o percurso das laranjas até chegar às caixinhas de suco?
Atividade 1: Proposta de atividade sobre a produção dos sucos
Na segunda atividade, a proposta era a análise dos rótulos e embalagens de alimentos. O objetivo foi questionar o estímulo ao consumo dos alimentos industrializados através da análise das estratégias de propaganda presentes nas embalagens, observando as informações destacadas pelos fabricantes, assim como as informações pouco enfatizadas.
Atividade 2: Proposta de atividade com rótulos de alimentos
Iniciamos o módulo discutindo aspectos da transformação do ambiente pelos seres humanos para a produção dos alimentos (históricos, culturais, sociais, econômicos, políticos) e o papel da ciência e da tecnologia nesses processos através de questões como, por exemplo, o uso de fertilizantes e pesticidas, manipulação genética de sementes e animais, o uso de conservantes e aditivos químicos nos alimentos, transporte e manutenção dos alimentos. Questionamos as relações entre o aumento da produção e consumo de alimentos e a erradicação da fome, suscitando temas como desigualdade social. O objetivo nesse primeiro momento foi questionar discursos do senso comum acerca das questões socioambientais, assim como fomentar a elaboração de críticas ao modelo hegemônico de desenvolvimento social e político-econômico, fundamentado em sociedades capitalistas e urbano-industriais. Centrado nos interesses do mercado e na geração de lucros esse modelo gera desequilíbrio ambiental, desigualdade social e sofrimento para os seres vivos, incluindo os seres humanos. Considerando as características específicas das crianças durante essa fase da escolarização básica, cuja faixa etária é dos 6 aos 10 anos de idade, entendemos que: “Na educação infantil e no início do ensino fundamental é importante enfatizar a sensibilização com a percepção, interação, cuidado e respeito das crianças para com a natureza e cultura destacando a diversidade dessa relação”. (LIAPI, LAYRARGUES e PEDRO, 2007, p. 30). Concordamos com Tiriba (2007) sobre a importância dos processos educativos que favorecem o contato das crianças com a terra, a água e o ar, reconhecendo esses elementos como fundamentais para a vida, sendo relevantes atividades como semear, plantar, cuidar e colher alimentos, entendendo as cozinhas, hortas e oficinas de produção e reparo de brinquedos como espaços educacionais. Na crítica aos produtos industrializados, os processos educativos devem “questionar e combater as práticas consumistas e a onipresença dos meios de comunicação na vida das crianças abrindo espaço e incentivando as trocas humanas que se dão através da narrativa, da brincadeira e da produção artística”. (TIRIBA, 2007, p. 226).
Refletindo sobre as atividades realizadas junto às professoras e aos professores destacamos aspectos sobre a inserção da temática socioambiental nos anos iniciais do Ensino Fundamental, favorecendo leituras críticas acerca das relações entre os seres humanos e o ambiente. A análise dos caminhos de produção e consumo dos alimentos possibilitou problematizar o uso de agrotóxicos, a contaminação de trabalhadores do campo e dos alimentos que consumimos, refletir sobre alternativas de produção de alimentos orgânicos, dentre outras questões. Também permitiu abordar questões como o trabalho escravo e trabalho infantil nas lavouras para a produção de alimentos e outros produtos que consumimos, evidenciando as relações de exploração, injustiça e desigualdade que têm sido estabelecidas entre os seres humanos e destes com o ambiente nas sociedades contemporâneas. Ressaltamos ainda a abordagem da dimensão histórica das modificações nos processos de produção e consumo dos alimentos suscitando debates acerca dos hábitos alimentares atuais, a naturalização do consumo de alimentos industrializados e o distanciamento entre os seres humanos e natureza. Nesse sentido, assinalamos a importância de atividades que resgatem tradições, através de pesquisas sobre a alimentação em diferentes culturas, regiões e épocas, valorizando e recuperando diferentes saberes. A análise das embalagens e rótulos favoreceu um olhar crítico sobre a propaganda de incentivo ao consumo de alimentos industrializados. Além disso, também proporcionou discutir aspectos relativos à saúde alimentar através da identificação dos ingredientes que compõem os alimentos. Por exemplo, discutimos as estratégias de propaganda nas embalagens de sucos que destacam a quantidade de fruta e a adição de açúcar e abordamos questões relativas à regulamentação para informar a quantidade de sódio ou açúcar presente nos alimentos, a importância de ler os rótulos e a informação nutricional, além das estratégias para incentivar o consumo através do uso de desenhos, cores e letras chamativas, por exemplo. Durante essa atividade também podem ser contemplados conteúdos de matemática (referente às quantidades informadas nos rótulos) e de português (textos e títulos nas embalagens), corroborando a proposta do curso de formação continuada de professores de fomento ao “diálogo entre as Ciências e demais
disciplinas de forma interdisciplinar, objetivando à formação integral da criança” (PEREIRA et al., 2017). Embora as atividades tenham enfocado a questão dos alimentos, elas podem contemplar outros objetos que são produzidos e consumidos, como por exemplo, brinquedos e eletrodomésticos. As atividades aqui propostas podem se constituir em um importante caminho para a construção de um olhar crítico acerca da realidade socioambiental, entendendo conforme Trein (2012, p. 316) “que incorporar a dimensão ambiental na educação é expressar o caráter político, social e histórico que configura a relação que os seres humanos estabelecem com a natureza mediada pelo trabalho”. Assim, não basta apenas propor mudanças de hábitos alimentares, por exemplo; é preciso construir possibilidades para refletir sobre os condicionantes econômicos, sociais, políticos e culturais desses hábitos, estratégias de estímulo ao consumo, relações de exploração nos processos produtivos, desigualdade e injustiça no acesso aos bens produzidos pelo desenvolvimento científico e produção tecnológica, assim como a distribuição injusta dos riscos e danos decorrentes desses processos. Assim, os estudantes podem compreender os processos econômicos, problematizar as relações entre consumo, industrialização e saúde, relativizar a noção de desenvolvimento científico e tecnológico (a partir da análise dos seus aspectos positivos e negativos), refletir sobre as diversas relações entre os seres humanos e destes com o ambiente nas diversas etapas dos processos produtivos (trabalho, exploração e contaminação no campo e nas indústrias), além do resgate da dimensão histórica das modificações sociais, econômicas e ambientais, como por exemplo, o uso intensivo e crescente de agrotóxicos nos alimentos e suas implicações sociais, ambientais e político-econômicas. Orientando-nos pela relevância do ensino de ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental buscamos colaborar com os processos de formação de professores e especificamente com as reflexões teóricas e práticas acerca da inserção do debate socioambiental no Ensino Fundamental favorecendo processos educativos voltados para a construção de novas relações entre os seres humanos e destes com a natureza.
Referências
LIPAI, E. M.; LAYRARGUES, P. P.; PEDRO, V. V. Educação ambiental na escola: tá na lei. In: TRAJBER, R. e MELLO, S. S. (Ed.). Vamos cuidar do Brasil: conceitos e práticas em educação ambiental na escola. (pp. 23-32). Brasília, Brasil: UNESCO. 2007. PEREIRA, G. R., PAULA, L. M., PAULA, L. M. & COUTINHO-SILVA, R. Formação continuada de professores dos anos iniciais da educação básica: impacto do programa formativo de um museu de ciência a partir do viés crítico-reflexivo. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências 19. 2017. https://dx.doi.org/10.1590/198321172017190115 REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL (RBJA). Carta Política do VI Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em: https:// redejusticaambiental.wordpress.com/2014/09/05/carta-politica-do-vi-encontronacional-da-rede-brasileira-de-justica-ambiental/ TIRIBA, L. Reinventando relações entre seres humanos e natureza nos espaços de educação infantil. In: TRAJBER, R. e MELLO, S. S. (Ed.). Vamos cuidar do Brasil: conceitos e práticas em educação ambiental na escola. (pp. 219-228). Brasília, Brasil: UNESCO. 2007. TREIN, E. A educação ambiental crítica: crítica de quê? Revista Contemporânea de Educação, 7 (14), 295-308. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/ article/view/1673/1522. 2012 VELOSO, N. Entre camelos e galinhas: uma discussão acerca da vida na escola. In: TRAJBER, R. e MELLO, S. S. (Ed.). Vamos cuidar do Brasil: conceitos e práticas em educação ambiental na escola. (pp. 73-84). Brasília, Brasil: UNESCO, 2007. VENTURA, G. Da dissimulação das relações de dominação às possibilidades de superação da crise socioambiental: uma análise discursiva das finalidades da educação em ciências (Tese de doutorado), UFRJ/NUTES, Rio de Janeiro, Brasil, 2017.
Serás uma parte de utopias certas e o canto de tuas bocas irmanadas ensinará a dignidade ao Mundo.
Dom Pedro Casaldáliga