TCC - Inara Moraes

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Uma Segunda chance à coisa: a invenção do objeto pela infância Inara Moraes dos Santos



UNIVERSIDADE DO VALE DOS SINOS - UNISINOS

CIÊNCIAS HUMANAS ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL

Inara Moraes dos Santos

Uma Segunda chance à coisa: a invenção do objeto pela infância

São Leopoldo 2014


Inara Moraes dos Santos

Uma Segunda chance à coisa: a invenção do objeto pela infância Trabalho de conclusão de Curso de Especialização apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Orientador: Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa

São Leopoldo 2014


Inara Moraes dos Santos

Uma Segunda chance à coisa: a invenção do objeto pela infância Trabalho de conclusão de Curso de Especialização apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.

Aprovado em ( ) ( ) ( ) BANCA EXAMINADORA

_______________________________________ Orientador Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa

_______________________________________ Segundo avaliador Prof. Dr. Maria Carmem Barbosa

São Leopoldo 2014


“Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guardachuva, são ricos de ideias e de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra”. Machado de Assis, Quincas Borba, CXLII.


UMA SEGUNDA CHANCE À COISA: A INVENÇÃO DO OBJETO PELA INFÂNCIA

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Figura 1 - MESA SUMÁRIO

Fonte: ilustração do menino thomas 1 O tempo só tem lugar no espaço e o espaço é o lugar (o teatro) do tempo. Francis ponge Vou falar da mesa-espaço da minha escrita-tempo, lugar de colocar objetos e o teatro de. Lugar de colocar ideias e memórias inventadas. Essa mesa não foi criada somente para organizar e sumariar a escrita que ora apresento. Ela também se faz mais uma possibilidade de encontro entre criança e objeto, já que o Senhor - aqui como criador - dessa mesa tem oito anos. E assim, além das histórias inventadas com crianças, a partir da linguagem do Teatro de Objetos, esse espaço também é preenchido com o desenho de alguém que está a viver o tempo da infância. Façamos dessa escrita um teatro para o tempo, uma segunda chance para as coisas!

¹ Thomas foi convidado para elaborar o sumário deste trabalho e figuras para algumas seções. Na seção intitulada ‘‘Apanhador de desperdícios’’, conto sobre essa experiência.


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Na superfície da mesa, encontramos vários objetos. Entre eles, temos alguns que escolhi e outros escolhidos pelas crianças que participaram dos encontros por mim organizados em uma escola de educação infantil. Todas essas coisas estiveram a serviço da linguagem do Teatro de Objetos, vertente do teatro de animação, que utilizei como inspiração para esses encontros, sobre os quais tornarei a falar no decorrer da minha escrita. Cada um desses objetos está no capítulo intitulado ‘‘Se a palavra é a posse da coisa nomeada’’, onde consta o seu significado - aquele do dicionário que quase confina a coisa numa coisa só, salvo se um poeta ou uma criança passa por ela. E, dentre os poetas que proseiam comigo nesta escrita, Manoel de Barros dá algumas contribuições com o seu olhar esticado para as coisas e não-coisas. Aliás, o leitor versado em manoelês irá perceber o quanto acabo me apropriando de algumas de suas criações. Foi a partir de seus poemas que passei a nomear as partes deste trabalho. Assim como Francis Ponge, que se debruçou na sua mesa, esgotando as possibilidades poéticas do móvel, onde dizia estar “tudo disposto para escrever e onde não escrevo”. (PONGE, 2002, p.213). Olhamos outra vez a mesa e deparamo-nos com três gavetas. Cada gaveta esconde e/ou guarda fragmentos ou imagens que devem estar neste espaço para falar das coisas. Não consideramos essas gavetas como capítulos. Elas possuem, em seu interior, os restos que não cabiam no espaço do texto, mas aparecerão entre um e outro. A primeira delas é a ‘‘Gaveta das memórias inventadas’’. Os restos que nela se encontram falam da criança - que talvez eu tenha sido - e de algumas situações onde os objetos conversavam com “ela”. A segunda gaveta é chamada de ‘‘Gaveta das transnominações’’, e nela estão outras possibilidades dadas aos objetos pela literatura, sobretudo a literatura infantil. No interior dessa gaveta também estão alguns poetas que ampliaram as funções dos objetos. Mas, como uma gaveta de meias para serem reviradas, as citações não estão organizadas por nenhuma critério, como ano, ordem de importância etc. Elas foram sendo descobertas e redescobertas por mim, e resolvi guardá-las aí. A última gaveta é a ‘‘As coisas que não existem são mais bonitas’’. Nesta, coloco algumas criações das artes plásticas. Artistas que também tiraram os objetos de suas únicas funcionalidades para transformá-los em outras narrativas. Esta gaveta, que não é das mais organizadas, apresenta as imagens na sequência que o meu desejo foi escolhendo. Não se trata de uma ordem de acontecimentos artísticos ou históricos. É certo que precisamos falar dos pés da mesa - afinal são eles que a sustentam e que não a levam a lugar algum. A mesa do poeta é uma “consoladora fiel”, mas ele lembra que temos de ir até ela. (PONGE, 2002, p.287). O primeiro pé é o capítulo ‘‘Sapo é um pedaço de chão que pula’’. É nele que apresento um pouco da história do Teatro de Objetos, dialogando com a obra “Teatro de formas animadas”, de Ana Maria Amaral, com a pesquisa de mestrado da atriz e cenógrafa Flávia Ruchdeschel, e contribuições de Sandra Vargas, do Grupo de Teatro Sobrevento. Nele, também explico os motivos que me levaram a utilizar o Teatro de Objetos com as crianças, e como organizei os encontros entre elas e essa linguagem. Ainda neste capítulo, relato as tardes que passei entre as crianças e as coisas


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olhadas por uma segunda vez. O segundo pé é o capítulo ‘‘Apanhador de desperdícios’’. Aqui, trago uma segunda chance à coisa, na pessoa de um menino - desenhador da minha mesa, que tanto contribuiu para essa escrita através do seu traço e, sobretudo, sua sensibilidade. O terceiro pé é o ‘‘Voar fora da asa’’, onde é possível encontrar algumas palavras que querem agradecer. Sei que, normalmente, elas aparecem no início dos trabalhos, porém, sentia que toda a sustentação dada por algumas pessoas merecia ser pé da minha mesa. Finalmente, o quarto e último pé é o ‘‘Esticador de horizontes’’, onde se encontram aqueles poetas que, como diz Barros, com um ermo no olho conseguem enxergar os despropósitos do mundo e nos convidam a vê-los também. Agora que sabemos como o texto se organiza, é preciso falar de quem fala sobre a mesa e de dentro de suas gavetas. Das vozes que a sustentam. É uma composição que se pretende polifônica, puxada pela primeira pessoa, esse “eu” – pesquisadora - que conta como o Teatro de Objetos foi parar numa experiência com crianças de idades entre 4 e 5 anos. Na gaveta das Memórias Inventadas, quem narra é “ela”, que talvez seja o meu eu lírico disfarçado de terceira p essoa do singular. Nas demais gavetas, as vozes são das artes plásticas e literárias. No capítulo onde os objetos são definidos, os já mencionados doutores da língua narram os significados das palavras (eis a voz dos dicionários!). E, para encerrar, os principais narradores desta escrita: Elas. Disfarçadas de terceira pessoa do plural, aparecem as crianças para dar a prometida segunda chance à coisa. Façamos dessa mesa um objeto para descobrir!


se a palavra é a posse da coisa nomeada

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Andaleço era o navio Etrúria. Se achava. Ele tinha incumbências para água. Crescera que nem craca nos cascos dos navios. Se houvesse de escolher entre uma coisa e outra Ficasse deitado sobre nenhuma. A doce independência de não escolher! (Se a palavra é a posso da coisa nomeada, o Etrúria era ele mesmo, o Andaleço.) Á noite caçava seu de-comer nas grotas. O que jantava eram bundas de gafanhoto com mel. Estórias de Andaleço fascinavam os meninos. O irmão-preto falou: Etrúria deve ser um lugar sem melancia! Manoel de barros

Segundo o dicionário Aurélio, a palavra significação diz respeito ao sentido das palavras; significado ou o que as coisas querem dizer (FERREIRA, 2004). Essa explicação não me parece a melhor para dialogar com o que venho escrevendo a respeito das conversas entre as crianças e as coisas. Ora, “o que as coisas querem dizer” é justamente o que não aparece nos significados que encerram a coisa numa coisa só. Na significação está o que os doutores da língua (dicionaristas?) querem dizer das coisas. Para Nietzsche, há de se dar outra chance, dizer outra vez: “É bom exprimir algo duas vezes, dando-lhe um pé direito e um pé esquerdo. A verdade pode se sustentar numa só perna, é verdade; mas com duas ela andará e circulará”. NIETZSCHE (2008). Uma coisa falada por um poeta como Manoel de Barros diz muito mais do que o dicionário. Assim como uma coisa que é vista por um olhar vestido de infância. Mas atente que é preciso, nessa escrita, mostrar os objetos pelas lentes dos dicionários. Necessário, pois, após pegar delírio com o teatro de objetos e os devaneios com as crianças, teremos como comparar. Veremos se as coisas foram ampliadas do seu “ser” cotidiano.


se a palavra é a posse da coisa nomeada

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Para Barros (2008), as latas “(...) ficam muito orgulhosas quando passam do estágio de chutadas na rua para o estágio de poesia”. Descobri que um pegador de massa engrandeceu a ponto de ser dinossauro no olho do menino. Fiquei orgulhosa do pegador. Eis alguns dos objetos que fui elegendo para os encontros com as crianças e daqueles que foram eleitos pelos seus olhares. Estão aqui com a sua significação primeira - posse da palavra nomeada -, aquela que é tão cara à escola e sua mania de eleger importâncias. Adesivo: Adjetivo. 3. Fita, papel ou plástico autocolante. Blusa: Substantivo feminino. Veste larga usada por operários, colegiais, artistas, etc. Blusão: Substantivo feminino. Blusa esportiva, folgada. Caneca: Substantivo feminino. Vaso pequeno, com asa, para líquidos. Casaco: Substantivo masculino. Peça de vestuário abotoada na frente, e de mangas, que cobre o tronco. Coador: Adjetivo. Que coa. Colher: Substantivo feminino. Utensílio em forma de concha rasa e de cabo, para levar alimentos à boca, ou para misturar, provar ou servir iguarias. Concha: Substantivo feminino. Utensílio arredondado e côncavo, ger. Com cabo, para servir alimentos líquidos ou pastosos. Esponja: Substantivo feminino. Substância porosa e leve de material sintético. Fôrma: Substantivo Feminino. 3. Vasilha em que se assam bolos. Funil: Substantivo masculino. Utensílio cônico, provido de um tubo, para transvasar líquidos. Furador (de papel): Adjetivo. 1. Que fura. Substantivo masculino. 2. Utensílio com que se abrem furos ou, furando, se quebra gelo, etc. Lenço: Substantivo masculino. Quadrado de pano para assoar o nariz ou para ornar e/ou resguardar a cabeça ou o pescoço. Luva: Substantivo feminino. Peça do vestuário que se ajusta a mão e aos dedos. Meia: Substantivo feminino. Peça tecida em algodão, lã, seda, náilon, etc., para cobrir o pé e a perna ou parte dela. Papel: Substantivo masculino. Pasta de matéria fibrosa, que se reduz a folhas secas finas e flexíveis, usado para escrever, imprimir, embrulhar, etc. Peneira: Substantivo feminino. Objeto formado de fios entrançados, de tela, etc., e usado para separar substâncias reduzidas a fragmentos, retendo as mais grossas. Ralador: Substantivo masculino. Utensílio próprio para ralar. Sapato: Substantivo masculino. Calçado que cobre só o pé. Tênis: Substantivo masculino. Sapato de lona, couro, etc. com sola de borracha ou de material sintético, de uso geralmente esportivo. Touca: Substantivo feminino. 1. Adorno de fazenda ou de lã, usado na cabeça.


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(...) Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas graças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas.

Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. é paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. era o menino e os bichinhos. era o menino e o sol. o menino e o rio. era o menino e as árvores. Figura 2 - gaveta das memórias

Fonte: ilustração do menino thomas

Manoel de barros


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O furador O furador de papel exercia uma espécie de fascínio sobre ela quando suas mãos ainda eram pequenas para manipulá-lo. Isso para sua mãe, a proprietária do objeto. Aliás, a mãe professora, no contexto rural no qual passou a infância, possuía diversos materiais fascinantes dentro do seu estojo. Mas deixemos o estojo da mãe e voltemo-nos ainda para o furador de papel, que fuzilava uma folha de ofício e não fazia sujeira. Ele escondia as provas do crime em sua base, e aqueles pedacinhos em círculos, que eram engolidos, tornavam-no ainda mais fascinante. Das coisas que levava para escola Da escola que frequentou, lembrava-se das coisas. Tanta coisa com pouca coisa pra fazer. O lápis de escrever era só pra escrever, e o de pintar, só pintar. Mas os objetos mudavam nas mãos que, pequenas, davam mais tamanho pra coisa. E caderno de escrever ficava cheio de desenho; borracha de apagar era dada a escritos. Potes de tinta serviam para empilhar. E, quando chegou o vento da adolescência, o estojo de guardar o exército da escrita virou correio dos bilhetinhos apaixonados da turma e porta chicletes (Pletz) de menta pra beijar melhor. Dos escritos não lembra mais. Só das coisas. Sustos poéticos As coisas desimportantes que não esquece, ela classificou de sustos poéticos. Sustos porque são imagens que chegam sem avisar, poéticos porque ela acha que, imagens que viram palavras, merecem. Porcelana Lembro do gatinho de porcelana Empoeirado gatinho Da penteadeira do quarto da avó Os lençóis com cheiro de idade Eram da minha irmã Que arrumava a cama Eu, passava paninho No galo, no pássaro, no empoeirado gatinho Na frente do espelho Falava com os animais, velhos enfeites Contava meus planos Era tão bom passar paninho! Longe do quarto da avó Ainda sinto o cheiro de idade

Ainda brinco Com o galo, o pássaro E o empoeirado gatinho


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Trabalho Meu pai me levou pra roça. Pensei: Devo fazer mais do que colher gravetos para o fogo Mas meu pai também plantou infância E naquela tarde de sol forte Ensinou-me a assoviar. Promoção Ele a levava para outras estâncias... Para outros lados da casa (me pergunto: quantos lados tem a casa de uma criança quando brinca no pátio?). Em riscos no chão, deixava um verdadeiro tratado sobre o vento que abraça o rosto de quem corre. Eram inseparáveis naquelas tardes de outono, quando ela tinha dois anos. Era pedaço de casa velha, madeira abandonada, árvore que foi um dia. Ficaria plantado no chão sem poder ser vida de novo. Mas foi salvo pela menina. Foi fazer história no pátio do mundo dela: Dar as voltas e ver os infinitos lados da casa. E, naquele outono, foi ser cavalo de pau.

Figura 3 - FOTOGRAFIA DA AUTORA COM 2 ANOS

Fonte: ÁLBUM DE FAMÍLIA2 ² Fotografia feita pela minha mãe no ano de 1987 na localidade de Gil - 2° Distrito de Triunfo-RS.


memórias inventadas Notas sobre um carrinho de bebê Serviu fielmente a três crianças. Acompanhou passeios. Tardes de conter perninha ligeira. Era forte, alumínio puro. Esperava solícito as ações da mãe. Foi levando os três irmãos. Foi empurrado pela primeira quando a segunda nasceu. Foi conduzido pela segunda quando o terceiro nasceu. Viu as irmãs cuidarem do irmão. Envelheceu. Perdeu estofado e ficou porta vento... Com rodinhas. Virou canto no galpão. Foi encontrado diferente: Achado carrinho de lomba. Um risco para as vidas pequenas. Virou máquina veloz na descida. Foi confiscado! Astro das tardes de verão. Virou fogueira. O brinquedo favorito. Alumínio queima? Nos olhos do avô: Memória de alegria, não. Eis um carrinho de bebê (contendo) um bebê:

Figura 4 - fotografia com a autora com 10 meses de vida

Fonte: ÁLBUM DE FAMÍLIA3 ³ Fotografia feita pela minha mãe em dezembro de 1985 na localidade de Gil - 2° Distrito de Triunfo-RS.

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Eis um carrinho (contendo) quatro crianças:

Figura 5 - fotografia com a autora, seus irmãos e prima

Fonte: ÁLBUM DE FAMÍLIA4 A carta Eram da Boca do Acre que saíam as notícias esperadas. Mal podia esperar a hora de ir até uma pequena distribuição dos correios que funcionava dentro de uma agropecuária. Ração e contas a pagar. Revistas e pintinhos. Cartas e agrotóxicos. Ela esperava as cartas da prima e meses as separavam de suas confidências. Cresceram e a espera também. Os assuntos quentes da adolescência não podiam esperar as distâncias do Brasil, mas esperavam e, a cada carta que enfim chegava, as velhas novidades eram arrancadas do envelope. E chegou o dia que a espera era por uma carta que falava dos beijos primeiros. A prima largara na frente e havia anunciado na última correspondência que estava próxima de beijar na boca. Ela passou a frequentar mais assiduamente o correio disfarçado de agropecuária. Ficava olhando os pacotes de ração para o cão que não tinha e os farelos para os pássaros que não criava. “Ei, menina, só tem a conta da luz da tua mãe!”. Foi assim até o dia em que aquelas letras chegaram dos lados do Acre. E para a sua surpresa, junto do envelope havia um papel com o carimbo dos correios. A novidade vinha acompanhada de comunicado especial: “(...) A agência Nacional dos Correios lamenta o ocorrido e está a disposição para maiores esclarecimentos”. O beijo da prima havia caído numa embarcação com óleo e a carta era um pedaço de papel com manchas negras. Nunca leu todo o conteúdo daquela carta, mas sentia certo orgulho de mostrar para as pessoas o comunicado da agência. 4

Fotografia feita pela minha mãe em dezembro de 1990 na localidade de Gil - 2° Distrito de Triunfo-RS.


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Sufocando a curiosidade, levou o negro papel e o esclarecimento do infortúnio para a aula de geografia. Estavam a estudar os estados brasileiros e sentia que, de alguma forma, poderia contribuir. A professora, pessoa de designar importâncias, não achou nada de interessante naquilo e foi logo passando no quadro algumas longitudes para copiar. E a aventura da prima ficou nas longitudes de uma gaveta que não estava no meridiano.

Figura 5 - CARTA DA ADOLESCÊNCIA

Fonte: IMAGEM ELABORADA PELA AUTORA A amizade findou-se (sem comunicado especial) com a vi(n)da adulta dos e-mails.


sapo é um pedaço do chão que pula

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‘‘(...) eu reparava que os sapos têm o couro das costas bem parecidos com o chão. Além de que eram do chão e encardidos. Um dia falei pra mãe: sapo é um pedaço de chão que pula. A mãe disse que eu estava meio variado. que sapo não é um pedaço de chão. só se fosse no meu delírio. isso até eu sabia, mas me representava que sapo é um pedaço de chão que pula’’.

manoel de barros

É sobre delírios e devaneios que falarei aqui. Não teria outro jeito para falar da transformação das coisas no olhar do poeta, dos criadores que trabalham com o Teatro de Objetos e, ainda, das crianças que estiveram comigo nas oficinas que realizei.5 Gosto muito de pensar no chão como um sapo que pula, e acho que esse despropósito, como o mesmo poeta fala, é muito familiar às crianças e à linguagem que trarei nesse capítulo, que é um pé da minha mesa. A primeira vez que tive contato com o Teatro de Objetos foi ao assistir um espetáculo que nem sequer sabia ser assim chamado. Não lembro o nome da peça, nem da companhia, mas nunca esqueci as sensações que me causaram. Em cena, atriz e sacola plástica. As coisas aconteciam em torno do tema da solidão, e eu descobria que era possível chorar por uma sacola vazia de supermercado sem sentir fome. Ao explicar as ideias dessa corrente de teatro, Christian Carrignon, codiretor da companhia francesa Théâtre de Cuisine fala como projetamos nossas fantasias nos objetos que estão em cena: A falta de personalidade do objeto reproduz milhares de exemplos, é o suporte ideal para justamente preenchermos com nossa própria história. No teatro de objetos, o espectador reconhece os objetos por ele mesmo tê-los possuído, por ter sonhado com eles. O espetáculo se desenvolve, e a imaginação de uns e outros vagabundos vão e vem ao gosto de seus próprios fantasmas: o objeto suporta os devaneios (CARRIGNON, 2009 apud BAKÉLITE, 2013, p. 6, tradução nossa).

Aquela cena me levou outra vez a observar sacolinhas cheias de ar que voavam e enchiam de felicidade o olhar da menina que fui - das descobertas primeiras - sobre o ar e quem sabe até sobre a liberdade. A sacolinha suportou meus devaneios! Depois dessa experiência, tornei a ter contato 5

As oficinas foram realizadas com uma turma de Jardim da Escola Municipal de Educação Infantil Aly de Lima Poeta, localizada na comunidade de Coxilha Velha - interior de Triunfo / RS.


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com essa arte, porém, em uma oficina de teatro de animação. Mário de Ballentti, ator e diretor da Companhia Caixa de Elefante de Porto Alegre, falou das principais características deste teatro e fez com que eu me encantasse com essa arte de olhar de novo para as coisas do cotidiano. Suportando devaneios: o teatro dos objetos O objeto foi entrando em cena nas artes visuais ao longo do século XX. Duchamp, com seu ready made, “teve seu status ironicamente elevado a objeto de arte” (D'AVILA, 2013, p.25). Segundo Amaral (2011, p. 209): Os surrealistas foram os primeiros a tomar o objeto funcional como objeto artístico. Diz-se mesmo que o objeto na arte é uma invenção surrealista, e que o surrealismo foi um movimento voltado para o objeto. E os futuristas, por sua vez, foram os primeiros a encenar dramas com objetos.

Essa escrita, que também permito ser protagonizada por um objeto - a mesa - não contemplará toda a história dos objetos nas artes 6 e, portanto, saltarei para a década de '80 para falar do encontro de alguns artistas, que culminou na definição do que já estavam fazendo em Teatro de Objetos. O cenário é a França do ano de 1980, e a ocasião, uma “soiré” cultural em que participaram os grupos “Vélo Théâtre”, “ Théâtre de Cuisine” e “Théâtre Manarf”. (D'ÁVILA, 2013, p.35). Nesse encontro, os artistas procuravam definir as experimentações que já realizavam desde a década de '70. “[...] discutiam uma possível denominação que servisse de identidade para suas práticas artísticas e que abarcasse as preocupações estéticas e éticas por eles compartilhadas” (D'AVILA, 2013, p.35). Katy Deville, do grupo “Théâtre de Cuisine”, sugeriu a expressão “teatro de objetos”. Carrignon (2012), citado por D'Ávila (2013), afirmou, em uma conferência realizada durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos –FITO - em Curitiba, que a expressão não foi uma unanimidade: “Entretanto, a sugestão apresentada por Katy, conectando todas aquelas práticas ao universo dos objetos, ainda foi a mais abrangente e pareceu, naquele momento, a melhor opção” (D'ÁVILA, 2013, p. 36). Renato Pallazzi, citado por Amaral (2011), lembra o fato do Teatro de Objetos não ter outras referências, mas sim a própria: É um tipo de pesquisa, sem teorias. Nasce, vive e sobrevive de sua prática. Continua ele: “Está ligado ao teatro de bonecos, mas tem muitas afinidades com a performance e com as transformações do objeto que, a partir do dadaísmo, sempre encontrou adeptos na cultura contemporânea”. (PALLAZZI s.d apud AMARAL, 2011, p.212).

Vargas (2013), do Grupo Sobrevento de Teatro de Animação de São Paulo, traz grandes contribuições para entendermos o teatro de objetos, a partir de duas experiências: a participação do 6

No capítulo disfarçado de “Gaveta As coisas que são mais bonitas não existem” faço uma espécie de inventário em imagens e pequenos textos dos objetos nas artes plásticas.


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grupo Sobrevento em um curso com o marionetista francês Philippe Genty e a curadoria do FITO no Brasil. Fala dos novos significados que um objeto pode ganhar, sem ter sua natureza transformada: “[...] por meio de associações que se podem dar pela forma, pelo movimento, pela cor, pela textura, pela função do objeto, etc.” (VARGAS, 2013). Lembra, ainda, que essas associações são figuras de linguagem, e que as mais usadas no teatro de objetos são a metáfora e a metonímia: Quando, no teatro de objetos, usamos um lenço de seda para retratar uma mulher bonita, associamos a suavidade da seda para caracterizar a maciez e, por conseguinte, a beleza desta mulher. Assim, vemos que não podemos escolher qualquer objeto para expressar a personagem ou ideia que buscamos: o objeto escolhido deve criar no espectador uma associação metafórica que o transforme em outra coisa além do que ele é, sem que deixe de ser o que ele efetivamente é. (VARGAS, 2013).

A autora ainda relaciona alguns exemplos com objetos: “Pela forma e pela cor, uma ameixa poderia ser um coração; pelo movimento, um furador de papel poderia ser um sapo; pela função, um martelo poderia ser um personagem rude e violento; pela semântica, um pregador de roupas poderia ser um pregador religioso”. (VARGAS, 2013).

Por conseguinte, o teatro de objetos é um teatro para ser “lido” nas entrelinhas, nas sutilezas das relações que o ator manipulador cria entre os objetos. Dentre alguns aspectos técnicos considerados por Vargas, gostaria de destacar o que diz respeito à escolha dos objetos, de extrema importância, no momento de criar os esquetes para as crianças, nos encontros por mim organizados, e que relatarei no decorrer deste texto: [...] um ponto de partida pode ser a seleção de famílias de objetos, tais como ferramentas, utensílios de cozinha, brinquedos, objetos femininos (joias, maquiagens, leques, tiaras, grampos, etc). A utilização de diferentes famílias de objetos empobrece o jogo metafórico do teatro de objetos, dificultando, sobretudo, a relação entre os objetos utilizados. (VARGAS, 2013).

Desta forma, podemos pensar numa história contada com objetos do banheiro, por exemplo: sabonete, creme dental, escovas de dente, etc. Mas, ao misturarmos com um jogo de chá, com suas xícaras, pires, colherinhas, açucareiro, enfim, não teremos como estabelecer conexões entre essas duas famílias de objetos. É importante lembrar que os objetos precisam ser apresentados como eles mesmos. Ao desenharmos olhos em um tubo de creme dental, por exemplo, estaríamos fazendo um “Teatro de Bonecos feito de objetos”. (VARGAS, 2013). Em sua oficina sobre Teatro de Objetos,7 Mário de Ballentti também destacou a importância da ação dramática do objeto; que a ação do objeto personagem deve ser potencializada, ação que se relaciona com a sua funcionalidade ou que é a própria. Explico: num exercício para a oficina, pegamos vidros de esmaltes para contarmos uma 7

Oficina realizada no primeiro semestre de 2013 da Especialização em Educação Infantil – Unisinos.


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história que tinha, como pano de fundo, o expressionismo nas artes plásticas. Não adiantaria só mostrarmos os vidros e esperarmos que os espectadores relacionassem o esmalte à função de pintar/pintores expressionistas. Precisávamos pintar algo com o esmalte, potencializando sua ação de pintar. Ao refletir sobre a importância do gesto no Teatro de Objetos, Amaral diz que “no jogo cênico, tanto o ator como o público acabam descobrindo um gesto próprio de cada objeto. No teatro de objetos a relação homem/objeto/máquina, se modifica na medida em que o teatro resgata o gesto” (AMARAL, 2011, p.214). Podemos dizer também que, além do gesto, o Teatro de Objetos8 resgata memórias e sentimentos dos seus criadores, pois é comum os seus espetáculos terem caráter autoral e os atores falarem de si (D'ÁVILA, 2013). Ao tirar as coisas das suas únicas funcionalidades às quais foram condenadas, o Teatro de Objetos, nos dá uma segunda chance. Chance para resgatarmos o humano - um humano que é livre para criar e, sobretudo, brincar com as tantas coisas que cria. Quando papel celofane ganha as importâncias de um oceano - primeiro encontro É chegado o momento de narrar a experiência que tive com a turma de jardim da escola que acolheu minha proposta. Para tanto, utilizarei nomes fictícios para me referir às crianças, atendendo a orientação da direção da escola. Minha intenção, desde o início, era apresentá-las à linguagem do Teatro de Objetos e fazer um espaço de criação para elas, com as coisas que encontraríamos na escola e que, cotidianamente, não são para brincadeiras, mas para outras funções dentro da rotina escolar. O primeiro desafio foi explicar esse propósito à professora da turma. No primeiro diálogo já surgiram preocupações com a possível bagunça que poderia resultar, ao propormos algo para as crianças que deslocasse objetos da escola de suas funções. Outro grande desafio foi pensar uma forma de apresentar às crianças as ideias do Teatro de Objetos, sem cair num didatismo enfadonho ou empobrecer sua linguagem. Perante essa preocupação, resolvi que o Teatro de Objetos seria minha inspiração, e que não tentaria seguir à risca sua gramática, ou mesmo dar uma aula sobre ele para as crianças, até porque não sou da área do teatro. Sendo assim, me apresentei para a turma dizendo que eu queria muito mostrar um jeito diferente de contar histórias. Que lhes apresentaria algumas histórias e que, juntos, criaríamos outras. Perguntei se gostavam de teatro e se já tinham visto um “teatro com coisas”. Expliquei, também, que haveria uma pessoa fotografando e registrando em vídeo os nossos encontros. No primeiro 9 deles, encenei uma pequena história, a qual chamei “A asa de Papilon”. Estavam presentes 10 crianças.

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Oficina realizada no primeiro semestre de 2013 da Especialização em Educação Infantil – Unisinos. Encontro realizado no dia 07 de maio de 2014 na escola.


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Permitam-me, antes de prosseguir, apresentar em uma imagem, alguns dos meus personagens:

Figura 7 - Sapúcio, jeco e caracol

Fonte: imagem elaborada pela autora

No enredo, Papilon - uma borboleta e folha de papel vegetal - brincava com seu amigo Jeco - um grampeador com ares de jacaré. Eles cansavam de brincar no lago mágico - representado por uma folha de celofane azul -, e iam ao pântano - representado por uma cartolina marrom. No pântano, encontravam o temível Sapúcio - um sapo com ares de furador de papel. Sapúcio atacava Papilon, furando sua asa. Desesperada, a borboleta não pode mais voar. Seu amigo tenta ajudar, grampeando sua asa, o que piora a situação. No final da história, Papilon e Jeco conseguem a ajuda de um caracol que mais parece um rolo de fita durex. Caracol conserta a asa da borboleta, que pode voar outra vez. As crianças assistiram à história sem muitas reações. Pude perceber que olhavam muito atentamente para minhas mãos. No momento em que a asa da borboleta foi furada, escutei um “Oh! Coitada da abelha!”, comentário que partiu do menino Júnior, constantemente referido pela professora como o mais “danado” da turma. E que, coincidentemente ou não, tornarei a citar aqui. Terminada a apresentação, esperei algumas participações espontâneas. Como não ocorreram, decidi fazer algumas perguntas. Quis saber, então, quais os animais que utilizei para contar a história. Para isso, ia mostrando o objeto e esperava que falassem. Nesse momento, Júnior quase monopolizou a palavra e foi dizendo o nome de cada animal. Ao se referir a Papilon - minha borboleta - falou de um pássaro. Então lhes expliquei que, ao pensar a história, imaginei uma borboleta, mas que aquela folha de papel era o que eles tinham visto ou queriam ver. Questionei-lhes o que acharam de uma história contada assim, com coisas que cabiam em um estojo (no final da história, guardava os personagens em um estojo) e, parecendo um coro,


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responderam: “legal”. Então, Alice mostrou contrariedade, mas parecia tímida para falar. Aliás, usava uma chupeta no momento. A professora lhe pediu para tirar a chupeta e falar o que pensava. Alice falou que preferia história com boneco. E foi assim que senti que começávamos a nos entender. No primeiro encontro, tão importante para estabelecer vínculos e prosseguir, ouvir alguém destoar daquele coro de crianças comedidas pelas cadeirinhas da escola foi um ótimo sinal. Fiz questão de mostrar cada objeto, para ver se todos os conheciam. Fez-se necessário apresentar-lhes o furador de papel. Fiz uma demonstração na própria folha de papel vegetal, e todos quiseram fazer um furinho. Questionei se lhes interessava contar uma história com coisas também e Thiago - que foi se soltando no bate papo - respondeu pela turma: “Sim, e podia ser dos três porquinhos!”. Para encerrar nosso primeiro encontro, perguntei se gostariam de ficar com algum dos papeis que utilizei para contar a história, pois os objetos eu não poderia deixar. O “lago mágico” foi uma unanimidade, e a folha de papel celofane foi para o fundo da sala. Fui guardando minhas coisas e observando que todos os brinquedos que eles tinham na sala foram sendo colocados em cima do “lago”. Num outro dia, recebi notícia da professora de que o celofane ainda rendia brincadeiras e eventuais discussões. Que fizeram barcos para ele e que continuava num cantinho ao fundo da sala.

Figura 8 - FOTOGRAFIA DA AUTORA APRESENTANDO TEATRO

Fonte: imagem FEITA PELA PROFESSORA DA TURMA aIDA TERESINHA Quando os sapatos dão liberdade para os pés trocarem de chão - segundo encontro (parte 1) Neste encontro10optei por encenar um pequena história com a ajuda de uma voluntária de onze anos - minha enteada - que, assim como todos da casa, já está sabendo um pouco sobre o 10

Encontro realizado no dia 22 de maio de 2014 na escola.


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Teatro de Objetos. Estavam presentes nove crianças nessa tarde. Montamos uma narrativa curta, inspiradas pelo trabalho do argentino Fernán Cardama,11 que utiliza sapatos de variados formatos, tamanhos e cores para contar suas “Histórias de Meia Sola”. No nosso enredo, uma família composta pelo pai, mãe e o pequeno filho vive duas cenas bem cotidianas. Na primeira, o filho grita pela mãe. Fungando e espirrando, vai ao seu encontro como a pedir ajuda. A mãe, que havia resmungado, demonstra ternura e limpa o “nariz” (ou ponta do calçado) do filho. Ele sai contente a saltitar. Na segunda cena, o filho volta a aparecer, porém, a gritar pelo pai. O pai resmunga, mas vai ao seu encontro. O filho sacode-se a mostrar que seus cadarços estão desamarrados. O pai amarra os cadarços do filho e, também com ternura, dá-lhe um beijo. Antes de prosseguir este relato, gostaria de mostrar-lhes uma foto de família:

Figura 9 - fotografia de família de sapatos

Fonte: imagem elaborada pela autora O grupo estava muito mais receptivo e falador neste dia. Demonstraram-se surpresos quando os sapatos apareceram na história e, espontaneamente, aplaudiram ao terminar. Apresentei ao grupo minha nova ajudante e, ao perceber que demonstravam vontade de manipular os pares de sapatos, resolvi abrir um espaço para que brincassem, antes de fazer minha proposta: um convite para eles contarem uma história (pois, até ali, somente eu havia lhes contado “histórias com coisas”). Dessa situação não planejada, o que se viu foi um espetáculo; não de teatro, mas da vida. Da vida da criança que brinca inteira, intensamente, com algo que, sem o status de brinquedo, transforma-se, em suas mãos, no mais potente objeto lúdico. 11

Ator, diretor e pedagogo argentino. Sua companhia explora diferentes formas de expressão a partir da relação entre atuação, o teatro de objetos e as marionetes. Mais detalhes de seus trabalhos disponível em: www.fernacardama.com. Site consultado em: 15 de maio de 2014.


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Figura 10 - fotomontagem brincando com os sapatos

Fonte: imagem elaborada pela autora Do canto da sala, fiquei observando a brincadeira, que durou cerca de 15 minutos. Uma menina colocou nas mãos o sapato que representava o pai, e saiu a engatinhar pelo espaço. Ela aplicava bastante força e parecia gostar do barulho que o sapato fazia no chão. Outra, como se pode observar no registro a cima (segunda imagem), colocou o par de sapatinhos que representava o filho dentro do sapato masculino que representava o pai. Mas o que mais me chamou a atenção foi a disposição das cadeiras na sala. Antes da brincadeira, estavam alinhadas em uma coluna, previamente organizadas pela professora. As crianças foram dispondo os assentos em um círculo e, deixando os sapatos ao lado, subiram neles para realizar uma brincadeira de roda a qual, segundo a professora, só faziam no chão. A educadora a observar aquele “tumultuo”, como classificou, fez algum comentário, como se a minha proposta é que tivesse desencadeado tamanha movimentação. Não discordei e sugeri que os sapatos é que tinham levado as crianças para a desordem que é própria da liberdade de quem brinca. O dinossauro de pegar massa e os três porquinhos no refeitório - segundo encontro (parte 2) Após a brincadeira com os sapatos na sala da turma, chegou o momento de convidá-las para irmos ao refeitório da escola, a fim de que escolhessem os objetos para montarmos, juntos, uma história com coisas. Havia combinado previamente com a direção da escola que as levaria na cozinha, para que vissem os objetos no seu estado “natural”. Então, escolheriam o que achassem mais legal para a história, a qual, aliás, já haviam decidido, desde o primeiro encontro, que seria “Os três porquinhos”. Infelizmente, essa visita não foi possível por uma demanda da escola. Então, a diretora solicitou a uma funcionária da cozinha que escolhesse algumas coisas e as colocasse em uma bacia grande. Esse evento me bloqueou um pouco, pois contaríamos com uma escolha bem diferente da que eu havia imaginado e planejado.


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Diante da bacia posta em cima de uma mesa comprida de refeitório, deixei as crianças olharem todos os objetos. Fui-lhes dizendo que escolhessem aqueles de que mais gostassem, e que pudessem ser bons para representarem nossos personagens - precisamente: um lobo e três porquinhos. Sabiamente, Julia lembrou-me ser necessário encontrar objetos que representassem as três casas da história, as quais o lobo assopra para tentar derrubar. Assim, entre escorredores de massa, raladores, conchas e demais objetos, o grupo foi selecionando aqueles com que mais se identificaram.

Figura 11 - fotomontagem olhando os objetos no refeitório

Fonte: imagens feitas pela diretora da escola Isana moraes dos santos Júnior, o menino que, conforme anunciei, seria constantemente referido neste texto, protagonizou algumas situações. Como um excelente imitador de diferentes animais - qualidade que não parou de mostrar a todos durante os encontros -, pôs-se a imitar um lobo, enquanto buscava um objeto para representar o animal. Houve algumas tentativas da professora de conter o grupo, até sob a justificativa de estar em um espaço comum da escola, que não a sala da turma. Pedi-lhe que os deixasse com mais liberdade, pois era importante. Assinalei que faria alguma intervenção, caso entendesse necessário. Junior não se conteve e exclamou, bem alto, ao encontrar uma concha enorme na bacia: “O lobo! Um lobo muito mau!”. Com a atenção voltada para aquele objeto, alguns meninos do grupo também demonstraram interesse pela concha. Junior repetia, entre uivos de lobo, que seria o malvado da história. Precisei intervir, mostrando como ainda havia coisas legais e lembrando trechos da história que precisavam ser pensados. Pedi, então, que escolhessem objetos para serem as casas dos três porquinhos, assim como alguns para serem os próprios porquinhos. Thiago decidiu que os porquinhos seriam os menores objetos encontrados na bacia.


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Assim, o primeiro porquinho era uma esponja de louça, o segundo, um funil e o terceiro, um pote plástico. Julia, Mariana e Douglas escolheram as casas e definiram que as ficariam segurando para o lobo assoprar. A casa do primeiro porquinho era um ralador, onde, segundo apontaram, havia buracos pelos quais o sopro do lobo entraria, derrubando-a facilmente. A casa do segundo porquinho era uma concha (menor que a do lobo), pois Julia não a queria largar, mesmo contrariada pelos colegas que acharam uma concha muito diferente de uma casa. Aliás, a concha é realmente um objeto fascinante, não? Por fim, a casa do terceiro porquinho - aquela que não cai pelo sopro do lobo -, foi uma forma de pão, dessas de alumínio. Thiago a escolheu para segurar, lembrando que, por ser daquele material, era forte. Em um grupo de nove crianças, posso dizer que seis se integraram mais à história, sendo que quatro foram mais atuantes, desde a escolha das coisas até a manifestação da vontade de fazer o teatro. Algumas crianças preferiram ficar olhando os colegas, assim meio de longe, a demonstrar um pouco de vergonha. A atitude de um garoto precisa ganhar espaço aqui. Túlio, um menino franzino e falante, disse não querer pegar nada, mas que “cantaria” a história, pois sabia a música de cor. Animada, sugeri-lhe que cantasse a música dos três porquinhos enquanto o lobo se aproximasse das casas para assoprar. Túlio, então, foi para o meio do espaço que ocupávamos no refeitório, tapou os olhos e começou a contar a história. Percebemos que não se tratava de música, e que ele queria ser uma espécie de narrador. Quando questionado sobre o fechar os olhos, me disse que era pra lembrar mais fácil. Assim, Túlio contava ou cantava o que lembrava da história, e os colegas iam segurando os objetos. Dei uma ajuda para se posicionarem e deixei que fizessem como queriam. O ponto forte era o momento em que Júnior se aproximava com sua concha (lobo) gigante e assoprava as “casas” que estavam nas mãos dos colegas.


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Aqui, imagens de um destes momentos de contar “história com coisas”, como me refiro a eles:

Figura 12 - FOTOMONTAGEM OS TRÊS PORQUINHOS NO REFEITÓRIO

Fonte: imagens feitas POR lARA MOEHLECKE GUIMARÃES12 O desfecho deste intenso segundo encontro deu-se com uma disputa de objeto. Ao encerrarmos a história dos três porquinhos, fomos guardar os objetos na bacia para entregar à funcionária da cozinha. Nesse momento, Júnior encontra um pegador de massa. Ao perceber um dinossauro naquele objeto, o menino se dirige à turma, gritando que encontrou o animal e, claro, sai imitando-o. Isso chama a atenção de Pedro, uma das crianças que, até então, só olhava tudo. Os dois meninos brigam pelo dinossauro de pegar massa, e uma pequena confusão acontece no refeitório.

Figura 13 - PEGADOR DE MASSA

Fonte: IMAGEM ELABORADA PELA AUTORA 12

Minha enteada de 11 anos que, interessada por meu projeto, pediu para ir a uma oficina comigo.


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Realmente, Júnior sabe de animais e das coisas...

Figura 14 - UM LOBO...

Fonte: imageM feita POR lARA MOEHLECKE GUIMARÃES Eu vi animais no closet - terceiro encontro (parte 1) Aproximadamente dois meses se passaram, desde o meu último encontro com as crianças. Essa distância entre os dias não foi planejada, mas, infelizmente, por alguns problemas pessoais, não pude estar com o grupo antes. Para compensar o tempo que passou, e retomar o vínculo com as crianças, decidi que apenas lhes apresentaria uma história, deixando que, após minha apresentação, brincassem com os objetos postos a serviço do meu narrar. Cheguei à escola com uma mala para nosso terceiro encontro.13 Já entrei encenando minha “história com coisas”. (Importante ressaltar que essa história me foi sugerida pela bagunça de meu guarda-roupa.) A conferir! Coloquei a mala em cima de uma cadeira. Eles foram se organizando perto de mim para assistirem à intervenção. De dentro, fui tirando peças de roupas, enquanto lhes confidenciava o quão assustador me é o frio, e que havia feito uma viagem a um lugar muito gelado. As crianças mostraram-se super à vontade comigo e foram se manifestando desde o início. Júnior e Túlio começaram a listar animais que moravam no Polo Norte. Deixei-os terminar de falar e continuei meu “relato”. Disse que o frio me apavorava, assim como alguns animais e, nesse momento, ia tirando da mala as roupas da viagem. Cada “animal” que saía dali era nomeado pelo grupo aos gritos. De dentro, fui tirando peças de roupas, enquanto lhes confidenciava o quão assustador me é o frio, e que havia feito uma viagem a um lugar muito gelado. 13

Encontro realizado no dia 05 de agosto de 2014 na escola.


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Realmente, Júnior sabe de animais e das coisas... As crianças mostraram-se super à vontade comigo e foram se manifestando desde o início. Júnior e Túlio começaram a listar animais que moravam no Polo Norte. Deixei-os terminar de falar e continuei meu “relato”. Disse que o frio me apavorava, assim como alguns animais e, nesse momento, ia tirando da mala as roupas da viagem. Cada “animal” que saía dali era nomeado pelo grupo aos gritos. Nesse momento, tirava da mala:

Do quanto eu tinha vontade de ficar escondida no inverno, assim como um tatu-bola... de meia:

Figura 16 - CINTO SERPENTE

Fonte: imageM PRODUZIDA PELA AUTORA


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Depois que tirei da mala as terríveis luvas aranhas e o enorme cinto serpente, prossegui falando o quanto o frio me deixava lenta, devagar como uma:

Figura 17 - touca tartaruga

Fonte: imageM PRODUZIDA PELA AUTORA Do quanto eu tinha vontade de ficar escondida no inverno, assim como um tatu-bola... de meia:

Figura 18 - tatu bola de meia

Fonte: imageM PRODUZIDA PELA AUTORA


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As crianças vibravam a cada “animal” que saía da mala. Então, comecei a falar da alegria que o verão me proporcionava. O qual me fazia lembrar os bichos de que gostava, assim como a...

Figura 19 - CASACO ZEBRA

Fonte: imageM PRODUZIDA PELA AUTORA Também, que me sentia leve e livre, como um lenço (ops!), como uma pomba!

Figura 20 - LENÇO DE POMBA

Fonte: imageM PRODUZIDA PELA AUTORA Terminando de tirar as “roupas” da mala, comentava que minha mãe queria que eu arrumasse tudo. Ia falando e fechando a mala, ao som de rugidos que vinham do seu interior. As crianças gritavam que tinha um tigre ali dentro. Parecendo assustada, eu dizia que pensava já ter tirado tudo de dentro da mala.


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Abri devagar e mostrei o que fazia tanto barulho:

Figura 21 - CASACO LEÃO

Fonte: imageM PRODUZIDA PELA AUTORA Encerrei dizendo que era só o meu casaco de frio! ‘‘(...) ela tem um leão aqui’’ - terceiro encontro (parte 2) Desde o primeiro dia com esse grupo de crianças, soube do seu interesse pelos animais e de como esse assunto os mobilizava. Isso foi determinante na escolha do tema, para que eu lhes criasse alguma história nessa retomada dos trabalhos. A participação deles mudou muito desde o começo dos nossos encontros, e agora eu quase não conseguia falar. Ia tirando minhas “roupas animais” da mala ao som das vozes que imitavam os animais que eles iam enxergando. Abaixo, um registro desse momento (infelizmente, as fotos deste dia ficaram comprometidas em qualidade!).


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Figura 22 - uma mala animal

Fonte: fotografia feita pela professora da turma Aida teresinha No momento em que acabei a narrativa e meus animais estavam espalhados pelo chão pois fazia parte da minha “dramaturgia” jogar as peças -, as crianças correram para juntá-las (ou seria juntá-los?) para começarem a brincar. Imitavam os sons dos animais e tentavam manipular as peças de roupas, como eu havia feito.

Figura 23 - crianças se aproximam

Figura 24 - tocando nos animais

Fonte: fotografias feitas pela professora da turma Aida teresinha


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Júnior, o exímio imitador de bichos, foi logo pegar o leão para dar os seus rugidos. Aliás, o casaco de gola-juba imponente foi o preferido, e algumas meninas da turma até pediram para serem fotografadas pela professora com o animal:

Figura 25 - CARINHO E FOTO COM O ‘‘leão’’

Fonte: fotografia feita pela autora Fiquei na sala, por cerca de quinze minutos, observando o grupo brincar com as peças e, quando percebi que o interesse já não era o mesmo, pedi que me ajudassem a guardar tudo na minha mala. Também já era hora do lanche e alguns já começavam a perguntar sobre ele. Enquanto se encaminhavam com a professora para o refeitório, me despedi e fui levando minha mala para o pátio. Chegando ao refeitório, Júnior quis me acompanhar até o portão. Fez questão de levar a mala (de rodinhas). Fiquei muito agradecida com a gentileza. A ponto de lhe dizer o quanto era gentil. Enquanto caminhávamos até o portão, passamos por outra professora da escola, que mexeu com ele: “Aí, Júnior! De profe nova então?”. Virando-se para ela, e bem sério, respondeu apontando para a mala: “Ela não é minha profe, ela tem um leão aqui!”. Saí da escola sentindo que minha mala estava mais pesada, afinal, depois de estar com as crianças, realmente carregava ali o rei da floresta. A ‘‘profe da mala’’: notas sobre um encontro que se pretendia ser o último 14

Chegou o último dia para os encontros com as crianças e as coisas. E chegou pelo compromisso com a escrita, para eu poder dar conta de registrar tudo. E foi chegando assim de supetão, me pegando totalmente desprevenida e quase sem 14

Encontro realizado no dia 04 de setembro de 2014 na escola.


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saber o que precisava ser feito. Como falar para o grupo que era a última tarde de tirar coisas da mala? A propósito a melhor acolhida para uma última tarde chegou aos meus ouvidos em forma de exclamação: “Chegou a profe da mala!”. É... Chegou para o último (pelo menos por enquanto) encontro de desinventar objetos. Minha proposta nesse dia foi apresentar para o grupo em forma de vídeo, algumas outras formas de contar histórias com coisas. Pelas dificuldades de conseguir um espaço apropriado com televisão para as crianças, resolvi com a professora da turma, que mostraria na tela do meu computador mesmo. Para tal, tivemos que conversar e achar uma solução para que todos conseguissem enxergar e ouvir bem. Por sugestão de uma amiga, mostrei para eles, três vídeos dos “Contadores de Histórias”, quadro do programa Castelo Ra Tim Bum da TV Cultura. Também lhes contei que existia um festival chamado Fito (Festival Internacional de Teatro de Objetos) que apresentava um monte de histórias com coisas e que isso é que tinha me dado a ideia de passar essas tardes com eles. Então, lhes mostrei pequenas vinhetas de divulgação do festival, em que aparecem algumas situações vividas por objetos. As crianças prestaram muita atenção em todo o material e demonstraram gostarem muito de cada história do programa citado.

Figura 26 - ASSISTINDO OS VÍDEOS

Figura 27 - CONVERSANDO SOBRE OS VÍDEOS

Fonte: fotografias feitas pela professora da turma Aida teresinha


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Camila até sugeriu que a atriz era eu: “É tu que tá contando história!”.

Figura 28 - VÍDEO CONTADORES DE HISTÓRIAS RÁ-TIM-BUM

Fonte: PRINT SCREEN DO VÍDEO ‘‘A MULHER E A COZINHEIRA’’15 Ao olharem uma das vinhetas do festival FITO, que traz dois palitos de fósforos com um casal que se apaixona, uma das meninas do grupo sentiu-se incomodada: “Não quero ver isso!”. Pelo que entendi no momento, o “isso” referia-se a cenas de amor.

Figura 29 PALITOS DE FÓSFOROS

Figura 30 - PALITOS APAIXONADOS

Fonte: print screen do vídeo da vinheta de divulgação16 do FITO - Festival Internacional de Teatro de Objetos Nesse ínterim, a professora interveio, contando que recentemente havia trabalhado lendas do folclore, e chamou atenção sobre eles terem adorado a história da mula. Fiquei empolgada e sugeri que quem sabe eles não faziam com a professora a encenação 15 16

Disponível em: <HTTP://www.youtube.com/watch?v=oezwjzt5adw> Acesso em ago. 2014. Disponível em: < HTTP: www.youtube.com/watch?v=yZu28JMBh_w> Acesso em ago.2014.


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das lendas com objetos. O grupo ficou pensativo e a professora também. Após exibir os vídeos e conversar um pouco sobre eles, apresentei minha proposta de brincadeira para aquele dia. No centro da sala, abri minha mala. Expliquei que dentro dela havia alguns objetos, os quais eu gostaria que eles separassem por famílias. Aqui, segui parte da ideia do teatro de objetos que explanei no início deste capítulo, sobre as famílias de objetos. Falei como seriam as famílias de objetos, e esperei que separassem e colocassem em cima de um colchonete. Havia objetos que encontramos no banheiro, objetos pertencentes a um bebê e objetos que usamos para estudar e levar para a escola.

Figura 31 - apresentando a proposta

Figura 32 - realizando a proposta

Fonte: fotografias feitas pela professora da turma aida teresinha No começo da brincadeira, eles separaram algumas coisas, mas no decorrer, começaram a pegar para si as que mais lhes atraíam. Houve uma disputa pelos objetos, e nem todos conseguirem pegar os que desejavam. Foi um pouco difícil acalmar aqueles que se sentiam lesados pelos colegas. Depois de apaziguarem-se os ânimos, convidei-os para conferirmos aquela separação, e perguntei se alguém queria tentar contar uma história com alguma daquelas famílias de objetos. Para minha surpresa, Pedro arriscou falar de uma “minhoca” que encontrou dentro de um livro. E Júnior pegou uma tartaruga da família de coisas de bebê para contar, segundo ele, como as tartarugas vivem.


sapo é um pedaço do chão que pula Figura 33 - pedro e a minhoca

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Figura 34 - júnior e a tartaruga

Fonte: fotografias feitas pela autora Após a iniciativa dos meninos, o grupo não demonstrou muito interesse pela minha proposta, e foi-se diluindo em pequenas duplas ou trios. Buscavam, no centro da sala, os objetos que mais lhes interessavam e iam brincar. Fiz registros de algumas dessas brincadeiras - o que rendeu muita diversão - e até desenhos, na fralda descartável da minha filha, que levei para compor a família de objetos de bebê. Aliás, um dos pedidos mais sinceros, ao final do encontro, quando tentava me despedir, foi para que eu leve minha filha no “próximo dia”.

Figura 35 - desenhando na fralda Figura 36 - brincando de mamãe e bebê

Fonte: fotografias feitas pela autora


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Figura 37 - brincando com o livro

Fonte: fotografias feitas pela autora No final, agradeci a acolhida e contei que, a partir de agora, eu precisava escrever sobre nossos encontros. Disse que mandaria, pela professora, as fotos das nossas tardes, para que montassem uma espécie de livro sobre esses momentos. Quando já estavam na pracinha, e eu me dirigia ao portão, acenavam de cima da casinha do escorregador: “Volta pra contar mais história!” “Traz a mala dos bichos!” “Traz tua nenê!” De promessa, ficou o pacote de fotos. De vontade, voltar com minha pequena, que também tanto adora as coisas... As meias usadas de um dia, para ela, são inúmeras possibilidades.


GAVETA DAS TRANSNOMINAÇÕES Figura 38 - GAVETA ITINERÁRIA

Fonte: ilustração do menino thomas Do livro ‘‘As coisas que eu queria ser’’, de Artur Nestrovski A gente sempre vê as coisas do nosso jeito. Do jeito das coisas, é tudo diferente. (...) Todo mundo sabe que é bom ser liquidificador. (Até a batedeira não esconde sua inveja.) Mas só o liquidificador conhece a delícia de liquidificar. (...) Telefones merecem tanto dengo, pois o resto do tempo não param Um segundo de produzir silêncio. Seria super ser lápis. Dentro de um lápis cabe o mundo inteiro. Basta escrever: mundo. Ou tirar o mundo de palavras que o lápis tem por dentro. O mar de histórias, a montanha de desenhos. O lápis, quanto mais lápis for, menos lápis fica. Tem gente que sente pena de apontar o lápis. Mas o lápis adora. Se ninguém aponta, fica desapontado. Canetas vêm, canetas vão.

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Computadores mudam o tempo todo. Só o lápis vai ficar para sempre. Cortina tem duas caras. Uma olha para fora; a outra, para dentro. A cortina é a primeira a acordar na casa, Mal aparece um raio de sol. Tem cortina que queria ser vestido de noiva. Outras preferiam estar na praia. As mais românticas queriam ser cortina de fumaça. As pomposas preferiam ser rainhas. Cortina adora quando chega o abridor de janela e deixa o vento entrar. É o momento mais agitado na vida calma dela. A maioria das vezes, quando a janela está aberta, a cortina fica aberta também. Nessas horas, fica só sentindo o peso gostoso. Das dobras, umas sobre as outras, De alto a baixo no canto da parede. A cortina gosta muito da madrugada. Especialmente em noite de lua cheia. Fica até tarde ouvindo o silêncio, Bem quieta, Varada de luz. Do livro ‘‘A bolsa amarela’’, de Lygia Bojunga Nunes A bolsa por fora: Era amarela. Achei isso genial: pra mim amarelo é a cor mais bonita que existe. Mas não era um amarelo sempre igual: às vezes era forte, mas depois ficava fraco; não sei se porque ele já tinha desbotado um pouco, ou porque já nasceu assim mesmo, resolvendo que ser sempre igual é muito chato. Ela era grande; tinha até mais tamanho de sacola do que de bolsa. Mas vai ver ela era que nem eu: achava que ser pequena não dá pé. A bolsa não era sozinha: tinha uma alça também. Foi só pendurar a alça no ombro que a bolsa arrastou no chão. Eu então dei um nó bem no meio da alça. A bolsa por dentro: (...) A bolsa tinha sete filhos! (Eu sempre achei que bolso de bolsa é filho da bolsa.) E os sete moravam assim: Em cima, um grandão de cada lado, os dois com zíper; abri-fechei, abri-fechei, abrifechei, os dois funcionando bem que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois bolsos menores, que fechavam bom botão. Num dos lados tinha outro- tão magro e tão comprido que eu fiquei pensando


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o que é que eu podia guardar ali dentro (um guarda-chuva? Um martelo? Um cabide em pé?). No outro lado tinha um bolso pequeno, feito de fazenda franzidinha, que esticou todo quando eu botei a mão dentro dele; botei as duas mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania de sanfona, como eu ia dar coisa pra ele guardar! E por último tinha um bem pequenininho, que eu logo achei que era o bebê da bolsa. Comecei a pensar em tudo o que eu ia esconder na bolsa amarela. Puxa vida, tava até parecendo o quintal da minha casa, com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica, que é pequeno, que é grande. E tinha uma vantagem: a bolsa eu podia levar sempre a tiracolo, o quintal não. Do livro ‘‘O clube dos contrários’’, de Silvia Zatz Cadeira é pra sentar Juca era um menino levado que gostava de fazer tudo o que lhe dava na veneta. Ele gostava de prestar atenção nas coisas. Encarava as pessoas, ficava olhando a cara delas, a roupa delas, reparando na voz e nos dentes. Ficava observando longamente os objetos mais banais. Um dia era uma bola, depois uma jarra de suco, um carro, um sapato, ou até mesmo um cachorro. Cada coisa tinha o seu mistério, e Juca prestava atenção em todas elas da mesma maneira. Quem é que fazia a bola rolar? Como é que o suco saía direitinho pelo bico da jarra sem se derramar? Isso sem falar no carro, que a uma simples virada de chave saía andando numa velocidade incrível, se comparada aos passinhos curtos de Juca. O que deixava Juca mais intrigado era que todo mundo agia como se aquilo tudo fosse muito natural. O que o levava a pensar que as pessoas deviam entender muito bem tudo o que acontecia. Mas onde é que elas aprendiam isso que só Juca não conseguia ver? Os pais de Juca tentavam explicar, mas ele não ficava satisfeito com as respostas que davam para ele. Já tinham explicado para Juca como os bebês nasciam. E ele tinha entendido muito bem aquela história de sementinhas que se encontravam e cresciam dentro da barriga das mães. Mas uma coisa era saber como acontecia, e outra, totalmente diferente, era ver aquilo acontecendo de verdade. Juca não conseguiu esconder o espanto quando a barriga da cadelinha de dona Ana começou a crescer. E quando, meses depois, saíram seis cachorrinhos pequenininhos de dentro da barriga dela. Foi como um passe de mágica. Parecia um truque maravilhoso de alguém que estava lhe querendo pregar uma peça. Juca sentia vergonha da sua surpresa, pois não queria que pensassem que ele ignorava as engrenagens da vida. Tinha medo de ser chamado de burro, de bobo ou de mulherzinha. Tinha medo de levar uma bronca e ficar sem a sobremesa no jantar. E por falar em jantar, na casa do Juca tinha uma sala de jantar. E na sala de jantar da casa do Juca tinha uma mesa e muitas cadeiras. Em outros lugares da casa tinha cadeiras também: na cozinha, na sala de estar e... até nos quartos! E é claro que ele se cansava de tanto observar cada uma delas. E de tanto observá-las, descobriu que podia fazer um mundo de coisas com elas.


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Usava uma cadeira como escada para observar as coisas que estavam lá no alto da estante. Uma outra era a casa dos seus bonecos intergalácticos, que também poderia servir como estacionamento de naves espaciais. A do quarto ele punha atrás da porta para travá-la e evitar a surra que iria levar. Ah! Também tinha uma que, por ser mais leve, dava para ele segurar pelo encosto. Ela então se transformava numa poderosa arma com quatro lanças pontiagudas. Podiam ainda ser um palanque de discursos ou um simples cabide, que ele ia enfeitando com roupas até que a mãe entrava escondida e devolvia toda para o armário. Um belo dia Juca discursava tranquilamente do seu palanque, para um público de homenzinhos imaginários, quando sua mãe entrou pisando firma na sala. - Você vai ter que aprender de uma vez por todas! – falou a mãe apontando com o dedo. - Cadeira é pra sentar! Sentar! S-e-n-t-a-r! Entendeu? A mãe ficava louca da vida quando faziam bagunça na sala dela. - Na cadeira a gente senta. Desse jeito você vai acabar estragando todas as minhas cadeiras. Cadeira. Cadeira... Cadeira é mesmo uma palavra engraçada. Juca nunca tinha pensado muito nela. No que ela queria dizer. Mas ele entendeu_ ou pelo menos se esforçou bastante para isso_ qual era a principal função da c-a-d-e-i-r-a. No fundo Juca não gostava nem um pouco de magoar a mãe, de vê-la com aquela cara de quem comeu e não gostou. Então ele decidiu que, a partir daquele dia, só usaria as cadeiras para sentar. Afinal, a mãe devia ter motivos para pensar dessa maneira. Motivos dos quais nenhuma criança ousaria duvidar. Acontece que Juca não era uma criança como as outras. E depois de alguns sem brincar com as c-a-d-e-i-r-a-s, suas tardes foram ficando cada vez mais cheias de tédio. Ele chegava em casa e sentava. Numa cadeira, é claro. Depois ia almoçar e sentava de novo. Ia para a sala e tudo o que podia fazer era sentar mais uma vez. “Que chatice!”, pensava Juca. Antes de ter aprendido que c-a-d-e-i-r-a é pra s-e-n-t-a-r, as coisas eram bem mais divertidas. Será que a mãe não via isso? Então ele resolveu explicar isso para a mãe, na esperança de que ela o aliviasse do castigo. É, porque conviver com as cadeiras daquele jeito era um verdadeiro castigo para ele. Mas a mãe não era como Juca, e não tinha o costume de prestar atenção em todas as coisas. E tudo o que ouviu foi: - Pela última vez, filho. Cadeira é pra sentar e pronto. Será que é tão difícil entender? Juca deu meia-volta e saiu com o rabo entre as pernas. Era difícil, sim. E bota dificuldade nisso! A mãe era mais velha que ele, era uma adulta. E a gente tem que aprender o que os mais velhos nos ensinam. Mas algumas vezes eles, os mais velhos, deveriam aprender certas coisas com a gente. “Por que a gente tem sempre que fazer as coisas do jeito que os adultos querem?” Essa era a pergunta que ficava se mexendo lá dentro da cabeça do Juca. Ele ia para um lado, a pergunta ia junto. Saía de casa, a pergunta saía atrás. Aonde quer que Juca fosse, a pergunta o acompanhava. E Juca foi ficando cada vez mais intrigado. E a pergunta foi parecendo cada vez mais sem resposta. Até que finalmente, um dia ao voltar da escola, Juca se revoltou. Concluiu que não tinha nenhuma razão para fazer tudo de acordo com o mundo dos adultos. Decidiu que, daquele dia em


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diante, faria tudo do seu próprio jeito. Diferente, trocado, alterado, invertido, mudado ou ao contrário, não importa. Simplesmente não faria nada igual aos outros. Do livro ‘‘De como nasceu a memória do bosque’’, de Rocío Martínez A mesa e ele envelheceram juntos. Nela o lenhador comia, ria, jogava baralho, conversava com o filho e cantava com os amigos. Da mesa ele contemplava o bosque, na mesa ele morreu. Do livro ‘‘Poesias do Nilo’’, de Guiles Eduar Uma pedrinha redonda (Parece de gude): Um pente; Um papel de presente (Com golfinhos azuis); Uma pedrinha amarela: Uma abelha quase morta; Um lápis; E, atenção, Mais duas pedras lisinhas E uma pedra torta! Eu gosto de varrer seu quarto: Cinco pedrinhas, Já é uma coleção. Do livro ‘‘O guarda-chuva verde’’, de Yun Donj - jae O velho mendigo não está mais ali, nem a lata amassada. De pé está somente o guarda-chuva verde de plástico que ela deixou para ele. Do livro ‘‘Memórias inventadas’’, do poeta Manoel de Barros Desobjeto O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo.


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O fato é que o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deram lugar a um esverdeado a musgo. Acho que os bichos do lugar mijaram muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente. Latas Estas latas têm que perder, por primeiro, todos os ranços (e artifícios) da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferentes de nós as latas com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até de serem pousadas de caracóis. Elas sabem, as latas, que precisam chegar ao estágio de uma parede suja. Só assim serão procuradas pelos caracóis. Sabem muito bem, essas latas, que precisam da intimidade com o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes. Para que possam obter estames e pistilos. A fim de que um dia elas possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos. Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até louvável.


as coisas que não existem são mais bonitas 46 Conheço de palma os dementes de rio. Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama e de Rogaciano. Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar no horizonte. Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas de Corumbá. Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas. Manoel de barros

Figura 39 - GAVETA DAS ARTES PLÁSTICAS

Fonte: ilustração do menino thomas


as coisas que não existem são mais bonitas 47 Em uma noite quente, Salvador Dali negou acompanhar sua adorada esposa Gala ao cinema. O motivo seria uma terrível dor de cabeça. Ao contemplar os restos do jantar na mesa, especialmente um pedaço de queijo camenbert já derretido no prato, ao mesmo tempo em que via uma paisagem na qual estava trabalhando, Dali “viu” seus relógios derretidos. Algumas horas depois, a obra “A persistência da memória” estava acabada (FARTHING, 2010). Já o pintor René Magritte, tocado pela obra do filósofo alemão Ludwig Wittgenstein, encantou-se pela relação entre um objeto e a palavra usada para representá-lo (FARTHING, 2010). Encantamento esse não raro nas crianças! Segundo Farthing (2010, p. 433): Para Magritte, a realidade diária era repleta de paradoxos e aberta a múltiplas interpretações. O pintor adotou esse tema em uma série de pinturas denominada Chave dos Sonhos, na qual ele retratou objetos não ambíguos sobre telas. Sob cada imagem ele pintou uma palavra que descrevia o objeto de maneira incorreta- por exemplo, a folha recebeu o nome de “a mesa” e a bolsa, “o céu”- exceto pela quarta e última imagem, cujo nome está correto. É essa última imagem a que mais desconcerta o espectador, ressaltando o papel desempenhado pelo nome na maneira como a realidade visual é compreendida. (FARTHING, 2010, p. 433).

Outro artista que deu protagonismo ao objeto nas artes plásticas foi Duchamp, lançando os ready made, objetos industriais, feitos em série. “Com eles, Duchamp queria fugir a tirania do convencional, escapar do que se considerava bom gosto, e bom gosto no sentido de ser apenas um hábito” (AMARAL, 2011, p. 209). Saltando largamente no tempo e buscando uma referência bem distinta das obras e artistas até aqui citados, escolhi algumas imagens de três artistas gráficos contemporâneos, que também produziram conversas com as coisas de uso cotidiano em suas obras. O alemão Domenic Bahmann produziu um tornado (ao que parece) de dentro da sua própria lavanderia ou área de serviço. Já as fotografias do mineiro Bruno Alves muito se assemelham ao trabalho de Javier Pérez, que também desenha a partir de objetos que estão a sua vista. Sonho com uma escola para a infância que dê essa segunda chance aos objetos, deixando as crianças livres para inventarem com eles o que quiserem. Uma escola que também valorize o ilógico, o impossível e o não-saber, necessário para o pensar. Nas palavras de Walter Kohan (2004, p. 88): O pensar é algo que se faz sempre entre o possível e o impossível, entre o saber e o não saber, entre o lógico e o ilógico. Se estivéssemos situados na clareza do absolutamente lógico, da pura consistência, muito provavelmente não teríamos materiais para criar. Se estivéssemos situados na absoluta certeza do que não responde a qualquer lógica, talvez não pudéssemos sequer pensar. É na tensão da contradição entre dois extremos que algo nos força a pensar, nos faz perceber o sentido e o valor de pensar algo não pensado [...]. (WALTER KOHAN, 2004, p. 88).


as coisas que não existem são mais bonitas 48 A dor de cabeça do artista mais o queijo, a lata mais a infância do poeta, o calor mais a memória. Transformação do cotidiano em coisas que passam a existir no nosso olho. Coisas não situadas na lógica, nem amarradas nos significados das palavras. São distantes aproximados... São... Outras coisas. A persistência da memória, 1931. Salvador Dali. A fonte, 1951. Marcel Duchamp. Pintura da série Chave dos Sonhos, 1927. René Magritte.

Figura 40 - tela a persistência da memória

Figura 41 - obra a fonte

Fonte: site universia brasil17

Fonte: site ecoarte 18

Figura 42 - tela da série Chave dos sonhos

Fonte: site icônica19 17

Disponível em<http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2012/01/07/903289/conheca-persistencia-da-memoria-salvador-dali.html> Acesso em ago.2014. Disponível em <http://ecoarte.info/ecoarte/2012/11/a-relevancia-da-arte-ciencia-na-contemporaneidade/fonte-urinol-marcel-duchamp-1917/>Acesso em ago. 2014. 19 Disponível em <http://iconica.com.br/blog2/?p=1353> Acesso em ago. 2014. 18


as coisas que não existem são mais bonitas 49 Fotografias produzidas por Domenic Bahmann.

Figura 43 - fotografia sem título

Figura 44 - fotografia sem título

Fonte: instagran do artista20 Fotografias de Javier Pérez.

Figura 45 - imagem sem título

Figura 46 - imagem sem título

Fonte: site do artista 21

20 21

Disponível em: <http://instagram.com/p/civoY_y6wg/?modal=true>Acesso em ago. 2014. Disponível em: <http://javierperez.es/works/photo/> Acesso em ago.2014.


as coisas que não existem são mais bonitas50 Fotografia de Bruno Alves.

Figura 47 - imagem sem título

Fonte: site eu pago meia 22

22

Disponível em: <http://eupagomeia.com.br/blog/cultura/artista-brasileiro-mistura-ilustracao-com-objetos-do-cotidiano> Acesso em ago. 2014.


apanhador de disperdícios

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(...) Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. manoel de barros

Sempre gostei de ampliar a função dos meus ouvidos quando estava perto das crianças. Elas, sim, engrandecem todos os sentidos das coisas do mundo. E acho que gosto disso desde que era criança também. Se houvesse grupo de adulto precisando falar coisa proibida, algum tio lembrava-se de pedir que eu conduzisse os menores do recinto. Sentia-me importante e achava bem melhor que ouvir o proibido. O poeta foi aparelhado para ouvir passarinhos, e eu queria ser aparelhada para ouvir e ver a infância nas pessoas. Imagine: Olhar nos olhos do taxista que está de mal com o trânsito e ver o seu menino brincando de dificultar o caminho das formigas. Desta forma pode não ser possível, mas sempre haverá o momento em que um adulto vai dizer: Ah, quando eu era pequeno... E lá virá uma estória... Na maioria das vezes, sem se dar conta do quão grande era ou, pelo menos, do quanto de mundo cabia no seu olho. E assim, sem o tal aparelhamento, vou tentando ouvir o que de crianças há por aí. Estava certa de que esta escrita querendo falar das coisas nos olhos das crianças, de encontros, de tardes de desinvenção/invenção, precisava estar acompanhada do traço de uma delas. E, nessa necessidade, lembrei-me do menino Thomas.


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Menino de olhar que argumenta, desenhador de muita qualidade, e de observações contundentes sobre o seu entorno, Thomas tem oito anos. Sua mãe, que me é próxima, lhe adiantou o assunto, perguntando se aceitaria ilustrar uma pesquisa, e via como e quando ele preferia desenhar. Ele gostou da ideia de me visitar, para conversarmos. Apareceu na porta do apartamento numa tardezinha de inverno. Pelo olho mágico, espiei um menino cheio de importâncias a carregar um verdadeiro kit de desenho. Organizamos suas coisas numa mesa, e passei a lhe contar sobre o meu trabalho. Que desejava muito um sumário que também fosse coisa, com desenho de criança, etc. Falei sobre e lhe mostrei o livro “A mesa”, do poeta Francis Ponge, e ele demonstrou bastante interesse por um livro tão grande que fala o tempo todo de um só objeto. Decidiu desenhar uma mesa para mim e, antes de começar, fez questão de saber como o trabalho se organizaria, demonstrando muita seriedade com a tarefa. Ao lhe contar que imaginava os capítulos - ou seções - do trabalho como os pés da mesa, prontamente me foram sugerindo formas de representar isso: “Teu trabalho fala de crianças e objetos, então vou colocar brinquedos num pé da mesa, pois brinquedos são objetos que lembram crianças”. Thomas ia desenhando com os materiais que havia trazido, enquanto comentava suas ideias para este trabalho, além de outras observações sobre arte, livros e bebês. Minha filha, então com 9 meses, brincava no chão. Em algumas pausas que dava no desenho, ele participava da brincadeira. “Os bebês adoram tocar no rosto da gente se a gente olha muito pra eles”. Contei-lhe sobre as partes que chamaria de Gavetas e, em especial, a Gaveta das Memórias Inventadas. Ele ponderou que faria somente uma gaveta aberta, a qual seria a das memórias inventadas. E não é que memória é isso mesmo? Algo que, embora guardado, está acessível; aberta para ser revirada! “Eu poderia escrever coisas que têm a ver com memória saindo de um balão nessa gaveta!”. Para minha surpresa, escreveu Pilar - nome da minha filha - no balão. Ao questioná-lo sobre essa escolha, explicou: “É que na memória estão as coisas que a gente vê e ouve, e aqui eu vejo um monte de coisa com o nome dela”. E, na sequência, falou sobre a escolha de duas palavras, as quais me pareceram constituir uma das definições mais bonitas sobre memória que já escutei: “Coloquei a palavra continuação e a palavra cabeça porque a memória é a continuação das coisas na nossa cabeça”. Direcionando o olhar para alguns livros que temos nas nossas estantes - a maioria de literatura infantil e de arte -, fez uma declaração digna de ganhar espaço nos comerciais da editora:


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“A Cosac Naif é a editora que fez eu me apaixonar de ler”. Ainda numa dessas pausas para conversar, e pelo visto, sensibilizado com o tema abordado no meu trabalho, falou-me sobre suas impressões enquanto olhava para as coisas. “Sabe, eu pensei que todo mundo enxergava pelo menos olhos e nariz nas coisas”. Continuou... “Até nas letras eu vejo olhos e nariz, pode observar...”. Voltando para o desenho, seguiu elegendo as coisas que deveriam aparecer nos pés da minha mesa. Resolveu que, em um deles, apareceriam as máscaras do teatro, já que um dos capítulos fala sobre o teatro de objetos. Em outro, desenharia alguns objetos como um clip, estojo, etc. Ao saber que eu colocaria algumas obras das artes plásticas em um dos capítulos, pensou em desenhar o rosto da artista Frida Kahlo em um dos pés. Foi contemporizando: “Faço um rosto com a sobrancelha bem forte e uma carinha triste, né?... Porque a vida dela não foi fácil”. Acabou desistindo da Frida e colocou a seguinte frase em um dos pés: “Língua das coisas”. Na superfície da mesa, optou por desenhar alguns dos objetos que eu havia levado ou visto com as crianças no primeiro encontro, na escola. Assim, cuidadosamente, pôs uma folha de papel, um grampeador (com ricos detalhes!), uma meia sem par, uma fita adesiva e uma concha. Eis a mesa:

Gostei muito do resultado e da ideia de que essa mesa seja o sumário, o esquema ou a representação gráfica possível para essa escrita sobre a segunda chance das coisas no olhar da infância. Thomas contribuiu de forma intensa para que eu visse meu trabalho de outra forma. E o mais importante: viu que meu trabalho fala muito mais de memória que de outra coisa; fala da continuação das coisas na minha cabeça!


voar fora da asa

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Dedico esse final de escrita que não quer acabar para ser espaço que quer agradecer. As outras asas que ajudaram minhas palavras a voarem no tempo de dedicação a este texto. Primeiramente agradeço aos professores Euclides Redin, Marita Redin e Paulo Fochi, pelas horas de aprendizagem e discussões tão humanas, e por levarem esse curso à diante. Ao ator e diretor de teatro Mário de Balenti, pelos materiais cedidos e por ter em tão pouco tempo de oficina, arrebatado meu coração para o teatro de animação, sobretudo o teatro de objetos. A Flávia D'Ávila, pela disponibilização de sua dissertação, além do diálogo interessado e permitido em tempos de interações de distantes. Ao meu orientador e pai da recém chegada Julia Luciano Bedin da Costa- menino disfarçado de professor- que tanto permitiu que eu voasse nos devaneios de uma pesquisa e nas vontades de inventar em outro tempo: o das crianças. As colegas Patrícia e Dianer pelas conversas de quem corre contra o tempo e entende o quanto e como o outro também corre. A Gárdia pela compreensão e solicitude ao me “emprestar” seu menino desenhador. Ao menino Thomas, pelos desenhos e horas de conversa sobre as belezas do mundo. A direção, professores e funcionários da Escola Municipal de Educação Infantil Aly de Lima Poeta, pela coragem de deixar essa pesquisa entrar e revirar suas panelas. As crianças da turma de Jardim da escola, pela recepção amiga e cúmplice para dar outras chances às coisas. E para minha família, palavras que agradecem a esparramar amor: Ao Roberto, pelo amor que encurtou distâncias para buscar-me um livro, pelo amor que revisou meus deslizes na língua portuguesa. Por tudo. A Lara, minha legal filha (enteada é palavra feia) pelos registros fotográficos e por colocar luz nas criações das minhas histórias com coisas. Ao Quintana, presença e calor em forma de gato. E a minha pequenosa Pilar, presente desde sua vida intra-uterina nessa jornada a falar de infância. Grata e mais feliz.

inara moraes DOS SANTOS


esticador de horizontes

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AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos, Objetos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. BACHELAR, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2006. ______. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel. São Paulo: Planeta, 2008. ______. O livro das ignoranças. Rio de Janeiro: Record, 2009. ______. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Planeta, 2010. BRITO, Alexandre. O museu desmiolado. Porto Alegre: Editora Projeto, 2011. D'ÁVILA, Flávia Ruchdeschel. Teatro de Objetos: Um olhar singular sobre o cotidiano. São Paulo. 2013. Dissertação (Mestrado em Artes). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. DONG- jae, Yun. O guarda-chuva verde. São Paulo: Comboio de Corda, 2010. EDUAR, Guilles. Poesias do Nilo. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009. FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Miniaurélio: O minidicionário da língua portuguesa. 6 ed. Curitiba: Positivo, 2004. KOHAN, Walter Omar (Org.). Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. MARTÍNEZ, Rocío. De como nasceu a memória do bosque. São Paulo: Martins Fontes, 2011. NESTROVSKI, Arthur. Coisas que eu queria ser. São Paulo: Cosac Naify, 2003. NUNES, Lygia Bojunga. A bolsa amarela.17 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1990. VARGAS, Sandra. Pontão de Cultura Guaicuru. O Teatro de Objetos: história, ideias, visões e reflexões a partir de espetáculos apresentados no Brasil. Jul. 2013. Disponível em: <http://www.pontaodeculturaguaicuru.org.br/artigos/index/id/20>. Acesso em: 13 de maio. 2014. ZATZ, Silvia. O clube dos contrários. São Paulo: Companhia das letrinhas, 1999.



Inara Moraes dos Santos


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