Sussurro dos Anjos

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Copyright © 2017 by Cléo Moreira Todos os direitos desta edição reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressa do autor.

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www.planetazuleditora.com.br e-mail: planetazul2014@yahoo.com.br Rua Dr. Olinto de Magalhães, 152 F. Vidigal – Rio de Janeiro – RJ – 22.450-250 Tels.: (21) 2239-1179/ 99613-9632

Editoração eletrônica e Revisão: Planeta Azul Editora Capa: Zélia G. Oliveira Costa Ilustração: Felipe Santos e Cleonice Ranucci Carneiro Adaptação Ilustração: Marcos Vieira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880 M838s Moreira, Cléo,1965 O sussurro dos anjos / Cléo Moreira . -- Rio de Janeiro : Planeta azul editora, 2017. 288 p. : ilustrado. ; 14x21 cm . ISBN: 978-85-69870-82-1 1. Moreira, Cléo, 1965 . 2. Biografia. 3. Paraná (Estado).I.Título. CDD 920 Índice para catálogo sistemático: 1. Moreira, Cléo 2. Biografia 3. Paraná (Estado)

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Quem não tem medo da vida, também não têm medo da morte.

Arthur Schopenhauer

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Dedicatória

Aos meus filhos, Aline, Henrique e Júnior. Aos meus netos, Gustavo e Gabriel. Ao Jorge. É o amor por vocês que me fez seguir além de meus limites.

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Agradecimentos

Agradeço, primeiramente a Deus, por ter-me entre Suas criaturas, por me fortalecer sempre, disponibilizando pessoas incríveis a cruzar meu caminho; amparando-me e me ajudando em minha jornada, nesta Terra. Enviando-me seres celestiais, que me vigiam, proporcionando-me bem-estar. Faz-me acreditar o quão grande é o Teu amor de Pai. Aos meus filhos, Aline, Henrique e Junior, por terem me presenteado com a dádiva de ser mãe, e descobrir que esta é a magia mais impressionante que se vive em qualquer dimensão. E sempre me ensinaram a ser forte, proporcionando-me alegrias, sem nunca me decepcionarem. Creio que foram escolhidos por Deus, para serem assim tão carinhosos e tão virtuosos. Ao meu marido Jorge, que foi incansável mostrando seu companheirismo, carinho e dedicação durante toda nossa caminhada, juntos, e fazendo jus ao seu juramento: “Na saúde e na doença”. Ao meu genro Tiago Magalhães, pelo carinho, confiança e as palavras de incentivo nesta aventura.

A minha mãe Otália Felício, minha tia Francisca Felício e aos meus irmãos. Em especial, ao Aristeu e Rose, sempre tão solidários. O Sussurro dos Anjos | 9

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Àqueles que direta ou indiretamente ajudaram-me a superar a doença. Em especial aos médicos, a equipe de enfermagem, funcionários de apoio e voluntários do Hospital do Câncer de Londrina — HCL, pelo carinho e dedicação para com os doentes; pela competência e coragem de pôr em prática seus saberes, vivendo em favor dessa causa; sempre sorrindo, transmitindo esperança àqueles seres que estão ali, em busca da cura ou na espera de seu último suspiro. A todos os amigos e amigas, que perderam um pouquinho ou muito de seu tempo para me amparar, visitar, ou dar uma palavra de coragem. A Letícia, Gabriele e Nickelly, minhas “estrelas” catequisandas permanentes, por terem iniciado correntes de oração, em suas salas de aula e na catequese, em favor de minha recuperação.

Aos meus netos Gabriel e Gustavo, pela confiança e a paciência de ficarem na expectativa, motivando-me a continuar focada nas histórias que docemente me ouviram narrar; fazendo renascer sempre a criança dentro de mim. Vocês serão sempre a razão de meus sonhos.

Minha gratidão também a Zélia Guerra de Oliveira Costa, minha editora, por sua competência e dedicação. Foi meu suporte encorajador nesta viagem.

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Sumário

Apresentação....................................................................................................13 Capítulo I: Uma Caboclinha de Pés Vermelhos...................................17 Capítulo II: Além-Mar....................................................................................34 Capítulo III: No Caminho das Onças.......................................................44 Capítulo IV: Meus Heróis Cavaleiros.......................................................58 Capítulo V: Escola das Borboletas............................................................61 Capítulo VI: As Bruxas e Tesouro da Pedra Grande..........................66 Capítulo VII: Sobre os Olhos do Céu........................................................79 Capítulo VIII: Vestida de Branco...............................................................90 Capítulo IX: O Cárcere...................................................................................98 Capítulo X: Em Busca da Liberdade..................................................... 110 Capítulo XI: Lágrimas e Risos................................................................. 117 Capítulo XII: A Voz dos Anjos.................................................................. 131 Capítulo XIII: Reencontros e Desencontros...................................... 139 Capítulo XIV: A Bruxa da Ala B............................................................... 148 Capítulo XV: Uma Professora e um Chefe Linha Dura.................. 160 Capítulo XVI: Tempestades...................................................................... 168 Capítulo XVII: Voltando para Casa........................................................ 186 Capítulo XVIII: A Estrela Cadente......................................................... 190 Capítulo XIX: Orquídeas Vermelhas..................................................... 200 Capítulo XX: De Repente, um Jardim................................................... 207 Capítulo XXI: Check-up............................................................................... 214 Capítulo XXII: Enfrentando a Morte..................................................... 221 Capítulo XXIII: A Dor.................................................................................. 229 Capítulo XXIV: O Mundo Subverso........................................................ 235 O Sussurro dos Anjos | 11

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Capítulo XXV: Voando para Longe....................................................... 243 Capítulo XXVI: A Música dos Anjos...................................................... 249 Capítulo XXVII: O Céu Orou por Mim................................................... 254 Capítulo XXVIII: Entre a Dor e o Amor................................................ 260 Capítulo XXIX: A Essência da Imaginação......................................... 264 Capítulo XXX: A Mágica da Vida............................................................. 271 Capítulo XXXI: Cântico de Paz................................................................. 277 Antes do Fim.................................................................................................. 283 E Antes, ou Mesmo Depois do Fim....................................................... 285 Referências Bibliográficas........................................................................ 286

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Apresentação

Hoje, entre uma insônia e outra, parei para refletir o quanto a história de vida de cada pessoa é importante para as transformações de uma sociedade e do mundo. As lutas dos escravos para serem homens livres, as crenças religiosas, as descobertas científicas, os avanços tecnológicos... Podemos considerar que realmente um homem sozinho não faz a história de seu povo; porém, o que seria dos grandes heróis da História se não pudessem contar com o seu povo; e o que seria da história sem os fatos contados por seu povo? Portanto, as atitudes de alguns homens e mulheres admiráveis mudaram a história do mundo. Aqueles que ousaram sonhar e sair em busca de seus sonhos, tornaram-se célebres tais como Ptolomeu, Copérnico, Pedro Álvares Cabral, Cristóvão Colombo; e essa lista é imensa, sem mencionar tantos outros que nem se tornaram tão celebres. Mas suas atitudes e seus feitos fizeram a diferença, cuja lista não caberia nesta página. Contribuíram para o desenvolvimento da História do mundo e também do Brasil. Sobretudo, lembrei-me também dos patriarcas bíblicos, nossos ancestrais Moisés, Abraão, Isaac e Jacó... Foram os primeiros pais de uma grande nação. Deixaram suas terras, a fim de cumprir uma promessa divina, cuja herança de fé desses grandiosos homens se conservou até os dias de hoje. Sou uma apaixonada pelo que diz a Sagrada Escritura, sobre a O Sussurro dos Anjos | 13

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história desses nossos líderes extraordinários; humanos que possuíam uma profunda sintonia com o saber Divino. Assim como outras ciências do conhecimento, a história está sempre sendo transformada. Pois terá sempre um novo personagem, que recontará da forma em que viu e viveu. A vinda dos europeus, a exploração e a colonização das Américas enriquecem as obras dos historiadores. Mas os feitos dos historiadores só transcenderam seu tempo e tiveram tanta ênfase, porque houve a participação de seu povo, as lutas vividas; causas que os fizeram sobreviver às tiranias, doenças, catástrofes etc. E porque foi narrada da forma vivida por cada um. Acredito que muitos homens grandiosos foram mortos antes de revelarem ao mundo suas experiências; deixando uma lacuna de fatos que poderia completar as narrativas descritas nos livros da história. Não sou ninguém importante, dentro do contexto histórico. Mas, com certeza, sou alguém além dos demais personagens que habitam este imenso planeta. E também tenho minha história para contar. Meu avô materno não foi um historiador, nem tão pouco famoso, mas falava com sabedoria. Todas as histórias que ouvi na minha infância encantaram-me; e suscitou em mim uma curiosidade pelo contexto histórico/político brasileiro. Acredito ter herdado de meu avô também a paixão pelo Magistério, a compaixão com os doentes e a curiosidade pela história do Mundo. Tudo o que ouvi e aprendi com meu avô, além de ter guardado no mural de minhas mais valiosas lembranças, ainda valeu como fonte de inspiração para os meus manuscritos. Escrevi várias vezes, “passei a limpo”, mas não como costumávamos fazer, muitas vezes, à mão, sob a luz de lamparina; e sim, guardei-as no baú de minha memória. E tenho certeza de que meus filhos, netos ou tataranetos saberão valorizar e compreender a grandeza de estar li14 | Cléo Moreira

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gado a tais fatos. Oxalá! Que esta história das lutas de nossos antepassados não seja esquecida, jamais. Quem sabe possa ser recontada novamente, incluindo alguns personagens da atual ou futura geração de nossa família. Pois este é apenas um lado de nossa árvore genealógica; o outro, vem da Família Moreira — os antepassados de meu pai; destes, falarei com mais detalhes em outros escritos, cujas grandezas históricas completam a minha árvore da vida. A história que vou contar é real. Alguns personagens, portanto, usarei as iniciais de seus nomes; outros, colocarei nome fictício para resguardar suas identidades. A maioria, citarei seus nomes verdadeiros, pois foram pessoas que passaram e marcaram minha vida. Meus avôs e também meu pai foram heróis sem medalhas, que não mudaram a história do Mundo. Entretanto, como todos os seres humanos, possuíam um passado que comportava uma bagagem de lutas e aventuras. Participei de suas histórias. E relato, aqui, a minha história de vida, baseada na última decisão do Supremo Tribunal Federal, que derrubou por unanimidade a necessidade de autorização prévia para publicações de biografias. E como disse muito bem a ministra Carmen Lucia, quando condenou a censura, em seu voto: “A liberdade nos faz sermos aquilo que queremos ser, e fazer realmente o que se quer fazer. Numa biografia não se escreve apenas a vida de uma pessoa, mas o relato de um povo, os caminhos de uma sociedade... E quando não há liberdade de expressão, não há democracia.” Estas são apenas lembranças, contidas em minha memória. Porque os seus anjos Ele dará ordens a seu respeito, para que te guardem em todos os caminhos. Salmo 91 - 11 O Sussurro dos Anjos | 15 MioloAnjos.indd 15

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Capítulo I Uma Caboclinha de Pés Vermelhos

A Região Centro-Ocidental no Estado do Paraná tem o pôr do sol mais encantador a ser admirado; as montanhas esplendorosas vão mudando suas cores em uma sincronia multicores magnífica; passando do verde a tons de vermelho, roxo, lilás, amarelo, laranja e tantas outras que são ofuscadas em nossa percepção, estonteante entre múltiplas cores e o azul tão azul, do céu mais lindo do país. Rios de águas cristalinas e suas cachoeiras completam esse cenário exuberante. Lá bem abaixo, no vale colorido com flores do campo, havia um pequeno lago que refletia um verde intenso; em que nadam despreocupados os patos. As cabras pastam esfomeadas nas relvas. As garças brancas desfilam sobre o vale, exibindo seus passos de bailarinas, enquanto outras sobrevoam ensaiando uma coreografia digna de um balé clássico. Na encosta da colina, está uma pequena cabana, simples e rústica, construída com troncos de coqueiros e madeiras lascadas. As galinhas e os porcos amontoam-se perto da porta; acostumados com a comida distribuída a eles, neste horário. Se houvesse no mundo um lugar com seres fenomenais como fadas, duendes e elfos escolhessem para habitar, com certeza, seria naquele vale encantado. Foi neste lugar mágico, pintado naquele instante pelas cores do outono, que eu nasci. Ah! O dia do nascimento, não poderia deixar passar em branco. Assim conta a minha tia e madrinha Maria Augusta, O Sussurro dos Anjos | 17

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irmã caçula de meu pai, que na época tinha quinze anos e morava próximo, do outro lado do rio. Naquela tarde fresca e luminosa, ainda com a luz do pôr do sol; resolveu visitar minha mãe. Eram muito amigas, tinham a mesma idade e devido ao estado da gravidez da cunhada, foi correndo vê-la, antes do anoitecer. Quando se aproximou da casa, ouviu um choro de bebê. Corria de forma desenfreada pela floresta. “Dizem que às dezoito horas é a hora dos anjos; mas tenho medo desse movimento sinistro da floresta. E foi mais ou menos por aqui que o meu pai e o Nivaldo mataram uma onça que estava atacando as cabras outro dia” — pensava Maria Augusta, com os cabelos da nuca eriçados pelo medo. E matar onça naquela época era uma questão de sobrevivência; e não um crime ambiental. Pois quando adentravam a desbravar uma mata, nunca imaginavam que um dia os animais se extinguiriam. Assustou-se com um gambá que corria apressado, atravessando a trilha à frente de seu caminho. Quando já ia chegando perto da cabana, com o coração saltando pela boca, tropeçou em uma porca que amamentava seus leitõezinhos; caiu de bico numa poça d’água e ao levantar-se, um porco grande que com o susto vinha correndo entrou no meio de suas pernas, obrigando-a a voltar montada no porco, até cair novamente na lama. Quando entrou sacudindo a lama, minha mãe, que estava dando a luz, levou um tremendo susto, até reconhecer minha tia, atrás daquela sujeira toda. Pegou rapidamente uma caneca com água, lavou as mãos, mas não teve coragem de tocar no bebê ao ver que ainda estava ligado ao cordão umbilical; que a coitada não fazia a menor ideia do que era aquilo. Minha mãe estava muito fraca e assustada. A Maria Augusta saiu novamente numa corrida, agora tendo mais cuidado com os porcos, e foi na roça chamar meu pai. Meu pai foi um camponês que aprendera deste menino a decifrar os indícios da chegada das chuvas e das secas. Olhou para o céu e viu que o dia já estava no fim; a revoa18 | Cléo Moreira

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da das maritacas e o barulho das gralhas azuis anunciavam o anoitecer. Estava fazendo a colheita do milho; precisava se apressar para juntar as espigas esparramadas. Era preciso terminar logo a colheita antes que a chuva que tinha dado uma trégua retornasse. Chuva esta, já anunciada pelos pássaros que se apresentavam em uma aclamação festiva. E quando estes sobrevoam lentamente em voos rasantes, é sinal de muita chuva. Já avistara pela manhã os sapos saltando sobre a relva em volta do açude. E como diz o ditado: “Quando o sapo salta, a chuva não falta”. Aos sete anos de idade, já enfrentava doze horas de trabalho árduo nas lavouras de café, ao norte do Paraná. Ele e seus irmãos perderam sua mãe, que tinha o mesmo nome da bisavó Luzia, para uma doença estranha que lhe causara dores no peito durante algum tempo; e morrera plantando batatas doces embaixo de uma chuva fina. Meu pai dizia que tinha apenas três aninhos, mas se lembrava de ter visto a mãe tombar sobre a terra molhada. Lembrava-se nitidamente de ver a mãe ser carregada sem vida com as mãos e os pés cheios de barro, enquanto ele, tão pequenino, corria atrás, chorando sem entender aquilo tudo. Mas quem entenderia tal cena tão drástica? Não consigo imaginar o tamanho de seu sofrimento. Meu pai, Nivaldo José Moreira, era um lavrador sem-terra; arrendava ou alugava terras; e como todos os lavradores nessa situação, perdiam suas sementes para a chuva, as secas. E o pouco que restava tinha que pagar a renda em porcentagem ao proprietário da terra. Sem contar os atravessadores que compravam a produção e pagavam o que bem queriam aos pobres produtores. O pouco que lhes sobrava, ainda tinha que pagar o armazém, que fornecia as sementes, o sal, o açúcar e a farinha... Portanto, naquele dia, quanto mais pudesse adiantar o serviço da colheita, melhor. A fome assolava o seu estômago, mas não podia se preocupar com isso agora. Nesse momento, escutou os gritos da irmã que vinha correndo em sua direção: O Sussurro dos Anjos | 19

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“Corre Nivaldo. Corre. A criança já nasceu. E anda depressa, porque as tripas da tua mulher tá saíndo junto.” Meu pai saiu numa correria, pensando o que fazer, já que levava uns vinte minutos a cavalo, até a casa da parteira que estava combinado de vir para ajudar na hora do parto. Por sorte, quando chegavam em casa, avistaram a madrasta de meu pai, dona Angélica, que vinha acompanhada da senhora parteira. Era comum naquele tempo a parteira visitar antes a parturiente, para recomendar alguns cuidados, e indicar certos chás. Tudo saiu bem, bebê de banho tomado, a mãe dormindo. As senhoras conversavam descansando em volta do fogão de lenha, revezando a cuia do chimarrão, enquanto esperavam a sopa da galinha ficar pronta. “Essa criança não vai vingar, é muito miúda. Nasceu antes do tempo.” — Afirmou a parteira à dona Angélica, que se ajeitava melhor no caixote de lenha em que estava sentada. “É acho que não era o tempo certo, nasceu antes.” Meu pai entrava com baldes d’água e ouviu; deu uma pigarreada e falou sério: “Vai vingar sim. Eu sei que vai.” Ninguém falou mais nada. Tive sarampo aos dois meses de idade. Minha mãe conta que meus padrinhos e parentes se revezavam cuidando “daquele Cisquinho”, termo que ela usava para descrever meu minúsculo tamanho. Dizia que eu tinha espasmos e não só tremia, mas pulava de febre, também. Meu avô, que era descendente de índios das tribos Charrua e Guarani, herdara de seus antepassados o conhecimento da cura pela natureza, aprendendo decifrar cada propriedade e benefício das plantas; também fazia rezas fortes; diziam que ele tinha o dom da cura; e este dom, sua bisavó e a avó Maria também possuíam. Diziam que meu avô parava seu trabalho para ensinar catequese, aulas de português e matemática para aqueles que não sabiam e tinham vontade de aprender. Muitas vezes deixava se perder a colheita de sua lavoura se alguém lhe chamasse 20 | Cléo Moreira

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para ir ver um doente, abandonava o que estava fazendo e saía para socorrer quem quer que fosse. Muitas vezes foi mal interpretado, algumas pessoas achavam-no imprudente, e até “caçoavam” dele dizendo: “Lá vai o Nho Sperança. Quem será que está precisando de suas orações, ou de seus conselhos? Desse jeito a sua roça vai morrer no mato.” Contou-me que nessa época, vovô morava em outro município, que só chegou dois dias depois, respondendo ao chamado de minha mãe, que lhe enviara um mensageiro para avisar de meu estado; enviara também um mensageiro na frente com alguns remédios. “Este era muito veloz, também era índio e se chamava Tibiriçá, que significa ‘Sentinela da Serra’”. Diziam que nada escapava dos seus olhos. Durante as caças, enxergava as presas até nas noites mais escuras. Quando meu avô chegou, olhou para o pequeno “Cisco”, não viu muita esperança de que seus remédios surgissem efeitos. Sentiu um arrepio ao adentrar no quarto em que me encontrava jazida sobre o colo de meu pai, que já chorava a minha morte eminente. Meu avô dizia que viu a sombra da morte ao lado do meu leito, mas também viu um anjo vestido de verde do outro lado da cama. Mas não era homem de desistir facilmente de nada; portanto preparou os unguentos e chás específicos. Também acendeu um fogo no chão e rezou com as mãos sobre as chamas invocando a ajuda divina, fez um chá com as brasas do fogo, me deu três goles do tal chá e pediu que minha mãe me desse um banho com o restante da água de brasas. As mulheres rezadeiras, que estavam ali esperando para preparar a minha mortalha, questionaram o tal banho àquela hora da noite, uma vez que eu estava com sarampo, não poderia tomar banho; ainda mais à noite. Mas vovô insistiu, e elas se retiraram do quarto. Minha mãe conta que depois daquele banho, vovô pediu que ela me segurasse no colo, abriu minha pequena boca, e segurando levemente tapou meu nariz e pingou algumas gotas do unguento, jogou-me para cima e soprou três vezes O Sussurro dos Anjos | 21

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em meu ouvido, chamando meu anjo da guarda, pedindo que trouxesse minha alma de volta. Meu pai também sempre me contava esse fato, dizia que depois disso eu dormi profundamente, até o outro dia, e despertei com o sol alto. Transpirei muito, e depois de outro banho daquele, comecei a chorar de fome. Grudei no peito de minha mãe e só me desgrudei quando estava satisfeita e voltei a dormir, para, novamente, acordar e mamar como fazem os bebês com saúde. Meus pais casaram-se muito jovens, ele com dezoito e ela com quinze; um casamento arranjado pelos pais de ambos. Sem se conhecerem, sem saber nada sobre o amor. Minha mãe dizia que foi muito difícil ficar naquela casinha que tinham arrumado para morarem após o casamento, conviver as primeiras semanas, pois como não se conheciam, era estranho dividir o espaço da minúscula casa com um “desconhecido”. Quando nós perguntávamos como tinha sido a sua lua de mel, ela respondia: “Foi muito triste, não gosto de me lembrar.” Sempre pensei sobre esta questão, de como os pais tinham coragem de jogar suas filhas inocentes para homens estranhos; muitos eram uns brutos, grosseiros e agressivos. Algumas meninas nem sonhavam o que era o sexo. Muitas foram severamente estupradas por seus maridos; na verdade, seus “senhores”; mas para seus pais, nada era mais importante do que a honra, e ter filhas solteiras em casa era um perigo a tal honra. Minha mãe era uma caboclinha muito linda. Naquele tempo quase não se tirava fotografia, mas a imagem que trago no registro de minha memória é que minha mãe tinha um rosto jovem, olhos puxados com traços orientais e indígenas, cabelos negros e longos com uma franja na testa, que realçava ainda mais a sua jovialidade. Haja vista, que hoje na casa dos setenta, continua esbanjando beleza. Recentemente, tive o prazer de ler o livro do jornalista Lucius de Mello, que cita num romance muito bem escrito, a história dos colonizadores do Norte do Paraná, cujo título 22 | Cléo Moreira

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é A Travessia da Terra Vermelha. Gostei muito. Porém, num dos diálogos, uma das personagens, subestima de forma preconceituosa, no meu ponto de vista, que as caboclinhas sem cultura não conheciam batatas e comiam chuchu. Afirma que seus filhos pareciam “africanos”, devido os flocos de carvão e da poeira vermelha desconhecida pelos seus pulmões (Mello, p. 33). Faço esta referência, apenas em caráter esclarecedor a alguns conceitos; para mostrar outros relatos dos colonizadores que já viviam aqui neste “Brasil horrível”, conforme descrito pela personagem. “Mas para nós, que já possuíamos raízes, costume e peculiaridades, sentimos nossas vidas sendo invadida.” — já dizia meu avô. Ouso dizer que essas mulheres grandiosas, sim, por seus feitos e de muita coragem, apesar do “medo das pulgas”, por conseguirem adaptar-se em uma terra “selvagem”, como elas mesmas disseram em depoimento a alguns historiadores. Sem querer desrespeitá-las, até porque o meu outro lado da árvore genealógica é composto por europeus, a mãe de meu pai era uma mulata, bisneta de escravos, tinha o mesmo nome de sua bisavó (Luzia Flauzina dos Santos), e esta lhe contara ter sofrido na pele as marcas das chibatas de seu dono, que era um coronel. Dela, meu pai ouvia as narrativas das lembranças tristes, de um passado em que os castigos mais cruéis imperavam nos porões abafados das senzalas. Tinha vindo para tal fazenda, como uma “negrinha” dada de presente de casamento para a filha do coronel. Meu avô paterno era filho de italianos. Meu avô era louro e de olhos azuis. Sabemos que essas mulheres são, com certeza, merecedoras de nosso respeito por terem se lançado a atravessar além-mar; e que trouxeram em suas bagagens muito mais do que a suas “porcelanas e pianos”, como já disseram muitos historiadores. “Desbravadoras” impetuosas lançaram o grito de largada em busca da “independência” feminina; como sabemos, dentro de suas limitações dada à submissão ao poderio do marido, que vinha de uma esfera longínqua. Eram O Sussurro dos Anjos | 23

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sem dúvidas, mulheres extraordinárias que deixaram para trás as lembranças de suas pátrias, e tiveram que se adaptarem a uma terra estranha e realmente “selvagem”. Apenas questiono a forma com que o povo descendente de índios, negros e caboclos, que já habitava esta terra vermelha, teve sua cultura usurpada. Um povo que já carregava as marcas do preconceito da escravidão, e já era menosprezado por não ter a mesma pele branca; que, aliás, ser branca já garantia o passaporte de inclusão na massa da sociedade reconhecida como “respeitáveis” senhores e senhoras. Eu me orgulho em descender desse povo caboclo, de “pés vermelhos”. Não sou tão branca nem negra; minha cor é uma mistura de todas elas. Ao contrário, aprecio muito uma salada de chuchu. E também nunca tivemos medo das pulgas. Minha mãe banhava nossos pés com um chá de folhas de aroeira com enxofre. Lavava até nossas camas com essa mistura, vinagre e cinza; um repelente natural que aprendemos com meu avô índio. Meu pai, aos sete anos de idade, como eu já disse, era um “caboclinho” que viveu explorado para enriquecer muitos europeus aqui nesta terra. E nos contava que, muitas vezes, ele e seus irmãos viram e ouviram suas patroas brancas xingarem e maltratarem suas empregadas, chamando-as de “caboclinhas” imundas e tontas, por elas não saberem cozinhar seus pratos típicos “europeus”. Contava que uma de suas patroas, assim como a personagem do romance citado, também tinha ciúmes do patrão, porque ele admirava a cor canela-bronze da pele de uma caboclinha que trabalhava na fazenda. Muitas, além de serem escravizadas como exploração da mão de obra barata, sofriam assédios e violência sexual, e ainda eram castigadas. E acreditem! Isso aconteceu em 1947, em nossa cidade, ao norte do Paraná, quando a escravidão já deveria ter sido abolida. Também nos contava que para sua sorte encontrou, nessa terra, os colonizadores japoneses. Estes, sim, em sua maioria eram de muita simplicidade e sabedoria, eram jus24 | Cléo Moreira

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tos. Lembrava-se da família com a qual foi trabalhar, mas não conseguia pronunciar muito bem seus sobrenomes, o que dificultou a minha pesquisa para encontrar os descendentes dessa família. Dizia que o chamavam de senhor “Manuti”, e nos mostrou o local onde seriam as terras em que ele trazia em suas lembranças, que na verdade este senhor chamava-se “Yassufussa Yamaouchi”, segundo alguns antigos moradores dessa localidade. Gostaria muito de conhecer seus descendentes. E lhes contar que, assim, ele fugiu das garras do seu patrão ”tirano”. Meu pai contou várias vezes o quanto tinha grande apreço pela família de japoneses com a qual meu avô trabalhava. Ele não entendia nem uma palavra que a esposa do patrão dizia, pois ela só falava japonês. Mas os tratava com muito carinho, e lhe vestia com roupas quentes de seu filho japonesinho, pois ambos tinham a mesma idade. Ela e o filho corriam atrás dele debaixo do cafezal para levar-lhe bolinhos de feijão com chazinho de frutas cítricas. Deu-lhe remédios quando esteve doente. Ficava comovida ao ver aquele homem viúvo, meu avô, com seis filhos para criar. Trazia os filhos junto consigo para ajudá-los na colheita. Certa vez, apareceu nesse sítio um fotógrafo; ele contava que a senhora japonesa chamou meu pai a sentar-se ao lado de seu filho, para fazer uma foto. Apesar de, naquele tempo, já existir alguns modelos mais sofisticado lançados recentemente no Japão, aqui, as máquinas antigas que tinha um suporte-cavalete bem alto feito em madeira, ainda eram muito usadas, e ele teve muito medo da geringonça pegar fogo, pois saía muita fumaça e faíscas durante o clic da fotografia. Meu avô sempre comentava que este menino japonês talvez tivesse guardado ainda, tal foto. Mas, para a sua tristeza, o menino japonês, seu amiguinho, foi enviado pelos seus pais para estudar no Japão; pois aqui o clima ainda era de muita tensão, com poucas escolas, e estas vinham sendo invadidas por policias para caçarem professores que ensinassem alemão. Os pais do menino acharam mais seguro enviá-lo de volta a sua pátria. O Sussurro dos Anjos | 25

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