Hoodid 2017 Mari Sales
Revisão: Cleidi Natal de Alcântara e Marta Fagundes. Capa: Mari Sales
Todos os direitos reservados.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento por escrito da autora. ISBN: 978-85-923385-0-3
Para os que acreditam no poder do perdĂŁo e nas segundas chances.
No espelho, eu via apenas gordura e feiura. Eu era deprimente e um vazio esteve dentro de mim desde sempre. Não havia nada de belo em mim, apenas defeitos, imperfeições e indignidade. Estava cansada de fazer terapia, de tomar remédios e falar dos meus sentimentos. Eles diziam que eu estava doente, que meu comportamento estava errado, mas nada poderia refutar o que o espelho refletia. Eu não tinha conserto, era apenas uma aberração da natureza. Apesar de ver gorda, eu escutava no colégio que era muito magra. Eu não entendia de onde eles tiravam isso, talvez mais uma forma de me ridicularizarem. Sem vaidade, pele muito branca e sem peitos para serem admirados pelos meninos, sempre me senti um lixo de gente. Nos meus diários, sempre escrevia cartas de despedida. Parecia a escolha certa a fazer desde quando comecei a escrever neles. Eu pesquisava na internet sobre encerrar minhas atividades nesse mundo e as imagens e notícias que o sistema de busca me trazia de resultado eram inspiradores. Além disso, o site de pesquisa apontou o número 141. Ele ficou por muito tempo gravado na minha memória e não lembro o motivo de não ter discado ele. Talvez, as coisas poderiam ter sido diferentes. Em um momento de recaída, quando minha mãe se predispunha a sentar comigo, conversar e me enfeitar com elogios e carinho, me arrisquei a ir na festa do colégio. Não me importei com a maldade, não pensei que o pequeno momento de alegria poderia se tornar o gatilho para fazer algo que eu pensava, mas não tinha coragem de fazer.
Meus pais eram os melhores, mas por algum motivo, deveria ter algum defeito de fabricação e por isso, eu precisava ser refeita. Só assim conseguiria me arrumar. Depois que o ato foi consumado, descobri que estava completamente errada. A ajuda especializada e a clínica não poderiam ter sido interrompidas como fiz, eles estavam me ajudando, eu estava melhorando. O número 141 era do Centro de Valorização da Vida e não deveria ter sido desconsiderado por mim. Meus pais me amavam e não deveriam arcar com a culpa que coloquei em seus ombros quando meu ato foi consumado. Na verdade, eu não deveria ter escutado as palavras maldosas dos meus colegas de colégio. E, já que era fraca demais, precisava abrir minha boca e pedir ajuda às pessoas que mais me amavam nesse mundo: meus pais. E, como na lei do retorno, da causa e efeito, eu receberia de retorno tudo o que desse aos outros da mesma forma que as pessoas do meu colégio receberiam tudo o que me causaram. “Quem semeia vento, colhe tempestades”.
“O preço que se paga às vezes é alto demais. É alta madrugada, já é tarde demais. Pra pedir perdão... Pra fingir que não foi mal.” Engenheiros do Hawaii, O Preço.
Entro na Igreja como faço todo ano. Eu cultivava esse hábito para lembrar o aniversário de morte de Lucirene e hoje, faria dez anos de sua morte. Descobri que seu nome era a junção do nome de suas duas avós, Lucia e Irene, mulheres de garra e que criaram seus filhos de forma independente, já que os maridos morreram antes do filho mais novo completar um ano. Coincidência, não? Apenas para me torturar, todo ano que me sento no banco dessa Igreja e peço perdão pelos meus pecados, relembro minha época do colégio, o quanto de futilidade que eu valorizava e quanto mal fiz para as pessoas ao meu redor. Cultivei o desprezo e incentivei o bullying, matei uma pessoa e para meu pecado não havia perdão. Mesmo sabendo que não seria absolvida no final da vida, quando eu fosse julgada pelas minhas ações aqui na Terra, decidi mudar minha postura a fim de reverter o que tinha feito. Eu não salvaria Lucirene, mas tentaria salvar outras pessoas. Mudei de escola, cortei cabelo o mais curto possível e abandonei a vaidade. Continuava bonita, mas não mais referência de beleza. Eu não queria ser mais o centro das atenções, isso alimentava o monstro da vaidade e o poder maquiavélico que habitava meu íntimo. Terminei o ensino médio e a universidade passando despercebida. Formei-me em psicologia e assistência social. O primeiro, porque queria estudar o comportamento humano e os fenômenos psíquicos, para servir como
terapeuta; o segundo, porque queria promover o bem-estar coletivo e a integração do indivíduo na sociedade. Eu usaria o resto da minha vida em prol de ajudar os outros, e já não merecia mais atenção, nem de mim mesma. Minha mãe estranhou a minha mudança de postura, mas não criticou, porque eu continuava seguindo seus comandos quando dentro de casa. Ela queria saber a minha motivação para escolher um curso que possuía um padrão de remuneração tão baixo e teve que se contentar com “ajudar as pessoas me faz feliz”. Bem de vida como eram, meus pais permitiram que eu trabalhasse de forma voluntária em todos os abrigos e clínicas de reabilitação. Eles me pagavam um salário, uma mesada, que era apenas o suficiente para manter meu pequeno apartamento, carro e alimentação. Começaram a me ver como uma pessoa de bom coração e caridosa. Mal sabiam eles que tudo isso não se passava de peso na consciência. Eu não saía, não tinha amigos e não queria ter ambição. Minha vida se resumia na felicidade e recuperação dos meus pacientes e voluntariados. Minha colega de trabalho na clínica de reabilitação de dependentes químicos, Júlia, dizia que eu tinha síndrome de mártir. Estávamos sempre juntas e nos consultávamos, a fim de manter o protocolo das psicólogas. Nós tínhamos nossos carmas, mas diferente de mim, ela parecia ter se dado uma nova chance e era feliz com sua família. Eu não conseguia me dar uma chance, acreditava que não havia sofrido o suficiente para isso. Talvez, nunca conseguiria e por isso, seguiria a vida simples e de doação que decidi ter. Poderia parecer estranho que uma pessoa com tantos problemas como eu ajudava outras pessoas. Na verdade, era muito mais fácil ajudar os outros do que a mim mesma. Fecho meus olhos e faço minha oração.
“Senhor Jesus, pelo sangue precioso que derramastes carregando vossa cruz, dignai-vos socorrer e livrar as almas do Purgatório, principalmente a que sofre pelos maus exemplos que lhe dei. Levai-a hoje para o céu, a fim de que, unida aos Anjos e à vossa Mãe Santíssima, ela vos bendiga para sempre. Amém.1” Desta vez, não só pela alma de Lucirene, mas pela alma de uma paciente, a dona Beatriz, que acabou cedendo à esquizofrenia e num descuido, ao atravessar a rua, foi atropelada por um ônibus. Ela era uma mulher muito perturbada e nunca sabíamos o que era a realidade e o que era sua mente pregando peças. Ela não aceitava o tratamento e vivia de abrigo em abrigo contando suas histórias sobre homens que tentavam matá-la com armas de caco de vidro. Levanto-me de onde estou e sigo para meu turno vespertino na clínica de dependentes químicos. Estou usando minha roupa habitual, calça jeans larga, uma blusa indicando que era voluntária e meus cabelos curtos. Sempre curtos, porque nada em mim teria indícios de vaidade. Eu prezava muito a minha beleza quando adolescente e ainda hoje me pego cobiçando maquiagens e penteados, mas essa era uma tortura que eu merecia e precisava. O único luxo que me permitia eram algumas pulseiras feitas e presenteadas pelos meus pacientes. Elas ficavam em meu pulso esquerdo e tinham um significado muito importante para mim. Tenho um carro, dado pelo meu pai, que utilizo apenas para ir à sua casa. No meu dia a dia, caminho ou uso transporte coletivo. A facilidade não me atraía. Caminho quase um quilômetro até chegar à clínica. Atravesso o estacionamento e abro a porta de vidro da recepção. — Boa tarde, Joana, tudo bem? — Chego sorridente e cumprimento a jovem recepcionista. Ela é simpática e atenciosa, mas muito fechada quando se trata de seus assuntos pessoais. Existe algo de muito ruim ou muito triste na 1
Orai sem cessar 2: A força de todo cristão, Áurea Cristina Assis Barreto, 3ª. Edição, Editora Santuário.
sua vida e percebo que o trabalho é uma fuga. Não pressiono para informações ou sugerir soluções, apenas tento proporcionar o melhor ambiente possível para que ela se sinta bem. Joana tem dezoito anos e largou os estudos para ajudar com a renda da família. — Estou indo, Dra. Isabel e você? — ela responde como sempre, nunca está bem, apenas indo. Abro minha bolsa e tiro de dentro um bombom trufado. No dia anterior, a vi disfarçando o olhar quando o parente de um de nossos pacientes trouxe uma caixa de bombons trufados. Joana era humilde e todo o salário que recebia, entregava para os pais, que bancavam mais outros quatro irmãos. Entrego o presente a ela, que abre um grande sorriso, um que nunca vi. — Passei na frente da loja de chocolate e não resisti. Experimenta! — Estimulo e ela prontamente faz o que sugiro. Desembrulha o bombom como se fosse uma joia rara e então, dá a primeira mordida, pequena, como se tivesse medo de acabar com essa preciosidade. — Hum, delicioso. — Aprecia a menina. — Então coma tudo! — Sorrio, encorajando-a. — Vou guardar para depois, comerei aos poucos. — Ela ameaça fechar o bombom quando pego outro dentro da minha bolsa. — Esse você come agora. — Indico o que está na sua mão. — Esse aqui, você pode deixar para depois. — Mostro o outro na minha mão. Seus olhos se arregalam de um jeito que me faz querer comprar a loja inteira. Essa é a minha recompensa, o que preciso para seguir em frente. — Eles devem ser caros, você não deveria... — ela fica sem graça. Poucos sabem que meus pais eram ricos e que isso não faria falta a mim e a eles.
— Bobagem, coma esse logo, senão não lhe darei o outro. — Ameaço colocá-lo na minha bolsa e ela rapidamente coloca todo o primeiro bombom na boca. Ela se levanta e me dá um abraço de urso. — Obrigada! Eu nunca comi um desses — diz e se afasta, envergonhada por revelar algo tão pessoal quanto isso. — Se você continuar tratando meus pacientes com tanto amor e carinho, talvez eu compre uma caixa e então, você pode compartilhar em casa. — Tento descontrair, mas ao mencionar sua casa, ela murcha sua alegria e apenas concorda com a cabeça, calada. Passo por ela e ando pelo corredor, colocando minha cabeça para dentro das salas abertas e proferindo boas-tardes para todos. Quem me vê feliz e prestativa não imagina que isso é apenas uma fachada para que as pessoas se sintam bem e não a minha verdadeira felicidade. No final do corredor, abro a porta da sala, que é a mesma que divido com Júlia e me surpreendo por encontrá-la ocupada por ela e um homem. Ele é bonito, apesar de não conseguir ver seu rosto por completo, já que está olhando para o chão. Seus ombros são largos e estão salientados pela camiseta de manga curta, braços torneados e, sua postura curvada indica que a conversa que estava acontecendo com Júlia não era agradável. Olho para Júlia e a vejo enxugar as lágrimas em seu rosto e controlar o choro. Ela levanta da cadeira quando percebe minha presença e vai até um canto da sala, onde temos uma mesa com copos e uma jarra de água. — Precisa de ajuda, Júlia? — pergunto, preocupada pelo estado da minha colega, mas sabendo que não devo ultrapassar o limite invisível de nossa não intimidade. — Não, está tudo bem, nós... — ela funga e serve dois copos de água com a mão trêmula. Sigo minha intuição e entro na sala, vou até minha colega e termino de servir a água por ela. Aperto sua mão e nos encaramos. Ela sorri agradecida e vou até o rapaz sentado no sofá.
— Aqui, senhor. — Ofereço o copo de água e ele levanta sua cabeça em minha direção. Nossos olhos se encontram e algo dentro de mim se aquece, como um cobertor no frio de zero grau. Ele pega o copo da minha mão, nossos dedos se tocam brevemente e foi o suficiente para que eu imaginasse essa mão na minha, forte e cuidadosa. Ele olha para Júlia, bebe todo o copo e se levanta com determinação. — Eu gostaria de poder conversar mais, se você permitir. — Ele estende o copo em minha direção e agradece de forma silenciosa. Sua atenção era toda de Júlia. — Tudo bem, sim, claro — ela responde no automático e respira fundo. — Vou trazer a ficha do seu pai, aguarde só um momento. — Júlia sai da sala, quase correndo e franzo a testa para esse visitante, que deve conhecer algum paciente. — Você é parente de algum paciente? — pergunto, sigo até a mesa de canto e devolvo o copo na bandeja. — Sim, meu pai esteve nessa clínica duas vezes no ano passado e desta vez, não estou conseguindo que ele venha por vontade própria. Então, preciso de alguns documentos para entregar ao advogado, para interditá-lo e interná-lo contra sua vontade. — O cansaço e a frustração são evidentes em seu tom. — Entendo. — Aproximo-me dele e nos encaramos por um momento. — Muito prazer, sou Isabel, psicóloga voluntária da clínica. Quem é seu pai? Talvez o conheça e possa ajudar. — Estendo minha mão e ele a pega. Sua palma na minha e, seu olhar intenso no meu me deixa tímida, como nunca antes fiquei. Abaixo meu olhar, solto minha mão da sua e dou um passo para trás, receosa da aproximação e dessa reação que nunca antes senti. Não sei o que está acontecendo comigo e essa sensação estranha faz com que meu coração comece a bater forte. — Guilherme Pontes, 54 anos, alcoólatra e usuário de crack — ele diz com vergonha e pesar. Minha mente começa a trabalhar, imaginando o que esse homem e esse pai já passaram.
Júlia volta para a sala recomposta, com o seu sorriso simpático no rosto e um envelope branco nas mãos. — Pronto, Luís. Espero que dê tudo certo e estaremos aqui para recebê-lo com muito amor e dedicação — ela diz, entrega o envelope, faz o discurso padrão para os parentes e dá um passo para trás, me olha com súplica. — Isabel, você poderia acompanhá-lo até a saída? — Claro. Por favor, me acompanhe. — Sigo na frente de Luís e sinto seus olhos na minha nuca. Assim que chegamos à porta de saída da clínica, abro-a e me despeço. — Até breve. — Luís sai, se despedindo de mim apenas com o olhar. — Nossa, doutora, o cara é lindo — Joana sussurra e olho para ela com o cenho franzido para repreensão de brincadeira. Ela se ajeita em sua cadeira e fica acanhada. Aproximo-me dela e falo em seu ouvido: — Bonito e esconde muitos segredos, Joana. — Pisco um olho para ela e volto para a sala, em busca de Júlia e algumas explicações. Ela está sentada no sofá, olhos fechados e cabeça apoiada no encosto. — Júlia, quer conversar sobre isso? — pergunto, com meu tom profissional. — Lembra-se do rapaz que dei minha virgindade e então, engravidei? — Ela eleva sua cabeça e abre seus olhos para mim. A dor e a desolação que vejo neles é assustadora. — Então, é Luís, o filho do nosso paciente Guilherme.
Saio da clínica que meu pai frequentou em suas duas últimas recaídas mais devastado do que entrei. Depois que minha mãe tentou me matar e fugiu, há dez anos, nunca mais soube dela e nunca pensei em procurá-la. Estar com um pai irresponsável e alcoólatra, com dezesseis anos, se mostrou muito melhor do que imaginei. Eu consegui tudo o que queria, ser um pegador e então, cabulei dois anos de colégio. A decadência e falta de dinheiro, depois de toda a diversão, não foi tão atraente. O choque de realidade quando meus amigos se formaram, entraram na faculdade e me excluíram de suas vidas por eu ser um bêbado chato, fiquei consciente da minha situação e pedi ajuda para o dono do bar que fornecia todas as nossas bebidas e comidas. Ele me encaminhou para os Alcoólicos Anônimos e tive a grande sorte de ser apadrinhado por Jorge, um homem humilde, mas que conseguiu enriquecer com seu restaurante vegetariano. Ele tirou a bebida e os animais do seu cardápio e tentou fazer o mesmo comigo, porém, só teve sucesso com o álcool. Ele também me apresentou a natação, que me ajudou na abstinência com a bebida. Voltei a estudar, terminei o ensino médio e fui aprovado em educação física em uma universidade pública. Formei e durante todo esse tempo, estive trabalhando com meu padrinho Jorge, juntando dinheiro e buscando meu sonho de abrir uma academia.
Durante esse tempo, meu pai perdeu o emprego, o carro e a casa. Enquanto estávamos aproveitando a vida com bebidas e mulheres, na nossa própria casa, acabamos por nos falir. Disso tudo, como o grande louco que meu pai era, ele me deu metade do dinheiro da venda da casa e a outra metade, gastou com bebidas. A minha sorte foi que eu consegui não gastar tudo e com isso, consegui me manter em uma quitinete até que a academia abrisse. Então, fui morar dentro dela. Enquanto crescia e expandia meu empreendimento, consegui construir um cômodo para mim, anexo a ela. Era um quarto-sala-cozinha e um banheiro, pouco maior que minha quitinete. Eu não precisava de nada além disso, porque meu foco eram as endorfinas que a atividade física me proporcionava, principalmente a natação. Até o primeiro ano da minha academia, me mantive recatado e consciente. As mulheres que frequentavam as esteiras, bicicletas e aulas de zumba faziam apostas para ver quem eu pegaria. Eu me permitia paquerar apenas desconhecidas e que não me conhecessem. Depois de um tempo sem sucesso da parte delas, o boato era que eu era gay e os homens começaram a fazer suas investidas. Eu era bonito, estava com um porte atlético invejável, não aguentei a pressão e acabei levando para a minha cama uma muito disposta aluna, Silvana. Ela era linda, gostosa e me deixou usá-la por muitas noites, até se cansar, abandonar minha academia e a mim. No final, quem usou alguém foi ela. Não me importei, apesar de sentir falta de transar quase todas as noites. Então, enquanto eu crescia na vida, meu pai estava largado por algum lugar nesse mundo. A primeira vez que me encontraram, foi há três anos, quando ele foi internado por algum acidente de carro e encontraram seus documentos, com isso, me acharam. Não tive notícias dele por sete anos e encontrá-lo depois de tanto tempo me fez sentir péssimo. Ele não era exemplo de pai, mas era a única família que eu tinha, já que minha mãe desapareceu de nossas vidas.
Eu comecei sustentando ele em uma pensão, depois precisei internálo, mas ele fugia e quando seu dinheiro acabava, me encontrava e o ciclo continuava, até que encontrei uma ótima clínica, que conseguiu segurá-lo até estar completamente bem, há um ano. Até então, ele se internava por vontade própria. Ele melhorou, mas teve recaídas, porque não queria participar dos grupos de aconselhamento e não aceitava um padrinho. Depois das duas últimas vezes, eu estava de saco cheio e com pouco dinheiro para gastar com ele e suas superficialidades. Ele me procurou e eu queria interná-lo, mas ele se recusou e estava me assediando. Não podia interná-lo à força, então, consultei um advogado e decidi interditá-lo, uma forma de torná-lo irresponsável pelos seus atos. Fui para a clínica que ele esteve das últimas vezes, ela era bemconceituada e conseguiu fazer com que meu pai ficasse mais de um mês sóbrio depois de sair dela. Percebi que eu precisarei ficar no pé dele quando terminar seu tratamento, porque as recaídas são rotina e a única coisa que não fiz de diferente, foi colocá-lo dentro de casa e participar com afinco na sua recuperação. Eu não queria dividir a mesma casa com o meu pai. Ele me deu ilusórios bons momentos e quase me afundei com ele. Eu tinha medo de não ser forte o suficiente e estar em contato diário com meu padrinho, cuidando da minha academia e fazendo meu nado noturno, antes de dormir, me fazia sentir bem e equilibrado. Ter meu pai ao meu lado ameaçava a vida que conquistei. Na clínica que meu pai frequentou, falei apenas com um assistente administrativo, não interessado em procedimentos e inclusão social. Eu só queria despachá-lo e seguir com minha vida. Então, qual não foi minha surpresa quando a recepcionista me apresentou uma das psicólogas do local. Júlia, aquela menina que eu tirei a virgindade e me afastei como o gato fugia da água. Eu nunca soube dela depois que a dispensei, porque não frequentei mais a escola, ignorei meu celular e meus amigos de colégio.
Lembrando exatamente do que aconteceu no dia que fiquei com Júlia, me envergonho das minhas ações. Eu havia esquecido o que aconteceu entre nós, mas ao vê-la bem, bonita e sorrindo, me fez lembrar tudo o que eu poderia ter e menosprezei. Meus pensamentos e ambições, naquela época, eram mesquinhos e fúteis. O que fiz foi imperdoável e antes que ela desvanecesse seu sorriso ao me reconhecer, queria não ter marcado a vida dela para sempre. — Luís? O que você está fazendo aqui? — ela pergunta cautelosa assim que entro na sua sala. — Sim, sou eu, Júlia. — Mesmo envergonhado, olho em seus olhos em busca de um perdão que não mereço. — Vim em busca de documentos do meu pai. Ele foi internado aqui duas vezes e novamente teve uma recaída, mas desta vez, não quer ser internado voluntariamente. Preciso de documentos que comprovem seu vício para fazer uma interdição. Pensando melhor, acho que meu perdão veio com o meu pai. Com ele na minha casa, eu nunca mais transaria. Também, depois do que fiz a essa garota, agora mulher, não deveria conseguir transar nunca mais. — Seu pai é... — ela parece encabulada e confusa. — Guilherme Pontes, ele é um dependente e sou o único parente vivo — digo muito mais com meu olhar: ele é o meu fardo por ter feito tanto mal a você. — Ah sim, senhor Guilherme. — Reconhece quem é e aponta um sofá para me sentar. — Por favor, sente-se. — Eu queria os documentos de internação, o advogado precisa para a interdição e então, a internação compulsória. — Sento-me no sofá e encaro os olhos azuis que uma vez esqueci. Como eu esqueci o mal que fiz a essa garota? Bem que dizem, quem bate não lembra e quem apanha nunca esquece. Um peso monstruoso pairou em meus ombros e um pedido de desculpas começou a se formar nos meus lábios.
— Tudo bem, os arquivos estão no almoxarifado, já volto. — Ela se levantou, estava sentada em uma cadeira na minha frente. Segurei sua mão e evitei que se levantasse. — Eu me lembro — digo com pesar. — Eu te fiz tanto mal e queria me desculpar. Não mudará nada, você parece feliz e bem-sucedida, mas agora que lembrei o que fiz, o quanto fui um babaca em te dispensar depois do que aconteceu entre nós, eu queria me desculpar. — Aperto sua mão e ela me olha com cautela. — Me perdoa, de coração. Se servir de consolo, eu perdi dois anos da minha vida para o álcool, como meu pai e agora, eu tenho ele como fardo. — Não me consola. — Ela retira minha mão da sua e continua sentada. Recebo essas palavras como um banho gelado, porque eu afetei a vida dessa mulher mais do que imaginei e isso me incomoda. Muito. — Olha, eu já superei o que aconteceu entre nós. Éramos adolescentes, irresponsáveis e sonhadores. — Ela olha para suas mãos, que estão no seu colo. — Sobre perdoar, eu ainda estou tentando. É difícil aceitar as desculpas de alguém, quando o resultado de suas ações resultou em uma criança em um orfanato. Arregalo os olhos e empalideço. Uma criança, em um orfanato. Nós tínhamos transado sem camisinha. Ela engravidou. Eu tinha receio que acontecesse isso na época, mas ocupei minha cabeça e dias para não pensar sobre isso. Céus, como isso aconteceu? Como eu permiti que isso acontecesse? Abro e fecho minha boca, sem saber o que falar. Os olhos marejados de Júlia terminam de esmagar um coração que achei que tinha sido recuperado pelo vício no álcool. Passo minhas mãos pelos cabelos e aprecio o silêncio entre nós. Tenho muitas perguntas e estou morrendo de medo das respostas. Eu preciso saber delas e não estou preparado. — Luís, como eu disse, éramos jovens. Como estou fazendo, tente superar, até porque, o que poderíamos fazer, duas crianças que não se amavam cuidando de outra criança inocente. — Ela tenta não colocar emoção
em suas palavras, mas percebo que esse fardo que carregou, sozinha, a atormenta. — Eu nem posso dizer que, se eu soubesse na época, algo mudaria em mim e nós ficaríamos juntos. Não quero justificar meus atos, mas depois da última vez que nos encontramos, no intervalo do colégio, cheguei em casa, meu pai quase matou minha mãe, depois ela tentou me matar e então, fugiu. — Suspiro e tento controlar a onda de emoção que ameaça quebrar em mim. — Quando
precisamos vender a
casa,
encontrei exames
dela
que a
diagnosticavam com esquizofrenia e meu pai, em vez de ajudá-la, decidiu começar a beber e a atormentá-la. — Tudo bem... — ela sussurra e vejo uma lágrima escorrer de seu olho. Droga de mente vazia de adolescente que eu tive. — Não está tudo bem e gostaria de mudar isso. Você é a psicóloga, sugira o que eu preciso fazer para remediar meus atos do passado. Eu estou disposto a tudo... — digo um pouco animado demais. Eu queria resolver isso e achava que, com ela sendo psicóloga, facilitaria. — Primeiro, crie uma máquina do tempo, me convença a não dormir com você ou então, se convença a usar camisinha. Uma primeira vez ruim é fácil de superar, mas não a doação de um filho — diz com raiva e isso apenas massacra meu coração. Olho para meus sapatos e não me importo com o novo visitante na sala, até que uma mão me oferece um copo de água e olho para a mulher mais triste que já conheci. Júlia pareceu triste e rancorosa, mas apenas quando me reconheceu. Essa mulher, mesmo com seu sorriso simpático, seus olhos me mostravam sua alma e nela, existia apenas sofrimento e tristeza. Será que era apenas minha própria alma refletida em seus olhos? Seu cabelo curto, suas roupas largas e postura assertiva me fazia pensar em uma contradição. Parecia até que ela se vestia assim de propósito, para não parecer tão bonita quanto era.
Sua beleza estava camuflada, mas eu vi e tentei controlar minha vontade de tocá-la e sentir qualquer coisa, porque eu era um homem, ou melhor, era um pai e não merecia nenhum afeto ou consideração. Não pressiono Júlia para continuarmos nossa conversa, apesar de pedir que a continuemos em outro momento. Eu quero remediar o que fiz a ela e essa criança que nunca conheci. Respiro aliviado quando a outra psicóloga, Isabel, a auxilia. Troco algumas palavras com Isabel, falo sobre meu pai e vou embora, com os documentos para a interdição na mão, metade do meu coração faltando, a outra metade esmagada e o peso do mundo nos meus ombros. Saio de lá em minha moto e sigo direto para o restaurante do meu padrinho. Se eu não me controlar, não pedir ajuda agora que consigo identificar os sinais, me afundarei no álcool como há dez anos.
Termino o expediente na clínica, troco minha blusa por uma cinza e sigo para um dos abrigos que voluntario. Eu tenho quatro deles na minha lista, mesma gerência e costumo ajudá-los no período noturno, pois é quando existe mais limpeza a se fazer e mais conversa de apoio para ter com os abrigados. Era nesse momento que meu lado assistente social entrava em ação. Às vezes, eu pedia dinheiro para os meus pais, para comprar alimentos e um pouco de roupa. Outras vezes, eu saía de casa em casa buscando doações. Todos os dias da semana eu procurava me ocupar, transformei meus horários de lazer em voluntariado. Uma vez por ano, eu ficava reclusa por duas semanas dentro do meu pequeno apartamento, lia, bebia e assistia filmes. Seria um tipo de férias forçadas, porque fiquei dois anos nessa rotina e quase enlouqueci. Eu não poderia me dar ao luxo de ficar incapacitada para ajudar as pessoas. Ando quase dois quilômetros até o abrigo. O clima está agradável e o sol já se pôs. O bairro não é muito agradável e já fui abordada várias vezes por homens querendo me assaltar ou coisa pior. Porém, assim que eles me reconhecem, me deixam em paz. Eu ajudava a comunidade e o mínimo que poderiam fazer por mim era não me prejudicar. Subo dois degraus para atravessar a porta aberta do abrigo. A recepção está cheia de pessoas da rua, buscando pelo menos um local no sofá
para se acomodar e dormir. Uma pequena televisão está no alto, transmitindo a novela. Cumprimento todos no local, a maioria adultos. Um por um, ofereço minha mão e pergunto como estão, o que precisavam para hoje. A maioria pede comida, outros choram pela vida difícil que estão tendo. Escuto um a um, sem me incomodar com sua aparência ou cheiro. Esse era o meu papel, o que eu precisava fazer para tentar alguma absolvição no final da minha vida. Depois de quase duas horas em torno deles, o cheiro dos alimentos cozidos começarem a pairar no recinto. Sigo para o refeitório, onde pessoas já estão jantando e outras se servindo. Vou até o balcão, coloco minha bolsa debaixo dele e pego um avental. — Boa noite, Jonas, Aline — cumprimento outros dois voluntários, praticamente com a mesma idade que eu. Eles não pareciam felizes, na verdade, eles nunca pareciam. Serviam as bandejas de forma automática e sem emoção. Era o padrão deles, faziam isso por obrigação. — Alguém fez a maior bagunça no banheiro dos homens — Jonas anuncia, não reparando na careta que o homem com a bandeja de comida fez quando ele o serviu. Eu segui até a pia que ficava atrás de nós e lavei minhas mãos, ainda atenta ao que o voluntário dizia. — Seu João tentou limpar, mas a merda está até no teto. Faço uma careta interna, imaginando o que poderia ter acontecido. Alguém passou mal, houve uma briga e tudo ficou pior. Seu João era um senhor de idade que ajudava na limpeza do abrigo. Ele frequentou o local e quis mudar de vida, então, o governo paga seu salário como serviços gerais. — Será que ele precisará de ajuda? — Enxugo minha mão e assumo o local onde entregava um copo com suco. — Sim, ele precisa e não serei eu a ajudá-lo — Jonas resmunga e continua servindo a contragosto. Talvez, estar em um barzinho e rindo com os amigos seria a melhor opção para ele, mas estava aqui, a pedido dos pais ou mesmo como uma
experiência social. Os voluntários não ficavam por muito tempo e os dois, já faria um mês. Com certeza iriam embora em poucos dias. — Vou ajudar um pouco aqui, então, auxiliarei João. Não se preocupe, Jonas. — Sorrio de forma engessada e vejo-o resmungando baixo. Se eu não tivesse minha própria penitência para pagar, eu com certeza estaria fazendo como Jonas, ou pior, estaria humilhando todos aqui, por causa de seus cheiros, cabelos e falta de dentes.
Quase antes da meia-noite, eu termino a limpeza dos banheiros junto com Seu João. Ele era calado e não reclamava, porém, quando não queria fazer algo, ele não fazia e pronto. Limpar esse banheiro era uma dessas, mas o convenci a me ajudar. O cheiro da água sanitária ardeu em meu nariz e manchou minha calça jeans. Não me importei, porque essa era eu, quanto mais massacrada, mais achava que estava sendo absolvida. Eu achava que era minha sina fazer coisas que não me agradavam. Vou para minha casa, nem um pouco incomodada com a distância e com o vazio das ruas. Aproveito esse momento para escutar um pouco de música e tentar relaxar. Coloco os fones de ouvido, encaixo no meu celular e aperto o botão para começar a tocar minha lista de músicas. Até o fim, da banda Engenheiro do Havaí começa a tocar e eu canto baixo junto com a música. O tempo e a distância passaram que eu nem percebi. Olho para os lados, procurando algum desabrigado ou dependente, mas as ruas estão desertas. Todo mundo quer cuidar de mim, da cantora Brava começa a tocar no mesmo momento que sou abordada por um homem enlouquecido. — Dinheiro, eu preciso de dinheiro. — Acelerado, seu corpo está completamente agitado, não há nenhuma parte dele que não está se movimentando ou tremendo.
Não é a primeira vez que fui abordada dessa forma e nem seria a última. Verifico de forma rápida se o homem está armado, para saber como proceder. Normalmente, os armados não aceitam conversar e é melhor entregar tudo a eles. Os desarmados são os desesperados, que conseguem tudo no susto e no impulso, mas eu estava preparada para eles, eu estava pronta para conversar e aconselhar. — Tudo bem, senhor, eu vou te ajudar. — Tiro meus fones, abro minha bolsa e vejo sua mão tentando tirá-la de mim. — Eu tenho uma barra de cereal para o senhor, não precisa se apressar. — Eu quero dinheiro! — diz enérgico. Ele me empurra e eu me equilibro para não cair. Tenho conhecimento de defesa pessoal, mas uso apenas em último caso. Eu sempre tento ajudá-los. — Eu tenho apenas alguns trocados, para o passe do ônibus. Coma alguma coisa, vai lhe fazer bem. — Consigo segurar minha bolsa e tirar de dentro a barra de cereal. Ele começa a me chacoalhar, desesperado. Ele deve estar em abstinência e sendo assim, é mais perigoso do que sob o efeito do entorpecente. — Me dá dinheiro, sua vadia, senão te mato! — Ele consegue me derrubar, mas eu não solto a bolsa do meu aperto. Ele avança em cima de mim e eu o chuto entre suas pernas, de leve, apenas para que eu consiga falar com ele. — Filha da puta! — Ajoelha e se encolhe no chão. — Me perdoe por isso, mas não havia outro meio, senhor. Eu quero ajudá-lo. Que droga você precisa? Eu posso ajudá-lo com isso e também posso auxiliá-lo a se livrar disso. Não deixe que ela te domine. — Aproximo-me dele devagar, agachada e falo o mais suave que consigo. — Eu não sou viciado! — ele grita e pula em cima de mim. Eu caio de costas no chão e bato minha cabeça. Ele começa a me apalpar, procurando dinheiro ou tentando se satisfazer. Meu coração congela com essa constatação.
— Por favor, deixe-me ajudá-lo. Assim eu não... — minhas palavras morrem quando ele coloca a mão dentro da minha calça e eu endureço meu corpo em uma tentativa de me defender. Cheguei ao meu limite, eu não iria conseguir ajudá-lo. Respiro fundo, levanto o meu quadril para tirá-lo de cima de mim e então, coloco meu joelho com força em sua virilha, arrancando um grito estridente dele. Saio correndo, esqueço a direção da minha casa e procuro abrigo em qualquer estabelecimento que estivesse aberto. Minha bolsa ainda estava em minhas mãos. — Eu vou te matar! — o homem grita atrás de mim e o medo preenche minhas veias. Duas, três quadras, ele ainda está atrás de mim e eu ainda estou correndo o máximo que consigo. Não acredito que ele não desistiu e isso apenas faz com que meu temor aumente ainda mais. Começo a bater nas portas, em busca de alguma aberta e não desacelero. Na próxima esquina, quando bato em uma porta de vidro, ela se abre e eu apenas entro e continuo correndo, sem olhar para os lados. Pulo roletas, uma mureta e então, dou de cara com uma enorme piscina. Assustada, eu paro minha corrida e vejo um homem parando seu nado para me olhar. Está escuro, não consigo ver sua fisionomia e mesmo que conseguisse, o meu perseguidor grita, pula em cima de mim e nos joga dentro da piscina. Ele não me deixa nadar, eu estava sem fôlego e o homem que tentei ajudar estava me segurando debaixo da água. Ele realmente queria me matar. Estou desesperada, esperneando, mas parecia que nada resolvia. Fui ficando sem ar e minhas vistas começaram a embaçar. Então, era assim que eu iria terminar?