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O SALTO DE FAFE
O BRITÂNICO KRIS MEEKE VENCEU A DISPUTA ENTRE OS QUE VOAM MAIS ALTO, MAS AS BIFANAS, OS FINOS, AS MOTOS DE TRIAL E ALGUM TT FORAM O GRANDE DESTAQUE DA ETAPA MAIS FAMOSA DO RALI DE PORTUGAL. MAIS DO QUE O SALTO, FAFE É UMA FORMA DE ESTAR TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES FOTOS MONDEGOSPORT
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escrever o ambiente em Fafe é uma tarefa quase impossível. O cruzamento de emoções é tão grande perante a azáfama que contar, com pormenor, tudo o que se passa obriga a um exercício de memória exigente e profundo. Depois de muita ponderação, acreditamos que a melhor maneira de começar a interiorizar o cenário seja levá-lo a imaginar uma conversa, num arraial repleto de folclore, barulho e movimento, com um primo de quem se gosta muito, mas com o qual estamos poucas vezes. No final de cada diálogo saímos com a sensação de que gostaríamos de repetir aquele momento, ao longo do ano e por tempo indeterminado. Só que as circunstâncias repetem-se e aquela festa cheia de cor, pitoresca, acaba por ser a única oportunidade de manter o contacto. Fafe é igual. Durante um dia, 140 mil fervorosos adeptos espalham-se pelos montes, outrora virgens (apenas as eólicas carregam uma imagem despida) para ver os melhores carros e pilotos do Mundial de Ralis a voar sobre um concelho onde vivem pouco mais de 50 mil pessoas. O motivo? Bom, o mesmo para se estar com o tal primo: a reunião acontece apenas uma vez por ano e é algo que se gosta muito. A magia de Fafe nasce em 1984, com duas etapas do Rali de Portugal a realizarem-se entre Fafe-Lameirinha e FafeLagoa. O número sobe para três em 1986, com a inclusão do troço Fafe-Montim e, em 1987, duas passagens em dias
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consecutivos confirmam a região nortenha como uma das mais emblemáticas da prova. Com o desaparecimento do rali do calendário mundial e a sua deslocação para o sul do país com o apoio dos patrocinadores, o Turismo de Portugal e as câmaras locais, os melhores pilotos do mundo só voltariam a pisar o terreno nortenho em 2012, ano em que se realizou, pela primeira vez, o Fafe Rally Sprint. Desde aí tem sido, simplesmente, a loucura.
MAIS FERVORISMO Nas três edições de um evento que serve apenas de chamariz para a prova que decorre no Algarve e no Baixo Alentejo (realiza-se na semana anterior ao rali e o seu resultado não conta para a classificação final nem para nenhum dos campeonatos), 430 mil pessoas passaram por Fafe — um número impressionante se considerarmos a natureza nãocompetitiva do certame. E o que leva, então, tanta gente a juntar-se em terrenos irregulares, muitas vezes cheios de lama, que obrigam ao calçar de botas de montanha ou, na pior das hipóteses, uns ténis velhos, não vão eles estragar-se por completo, para ver três dezenas de carros num percurso com pouco mais de 6 km? “O convívio”, explica Nuno Matos, de 38 anos. Junto ao salto da Pedra Sentada — o mais espetacular, embora haja outro, da Pereira —Nuno conta-nos, na companhia dos dois filhos, o motivo para visitar Fafe há tantos anos: “É o que eu lhes costumo dizer. Que isto é uma brincadeira, um convívio muito salutar em que também
CRONOLOGIA
Seis fotografias exemplificam na perfeição o enorme salto de Kris Meeke durante o Fafe Rally Sprint 2014, de longe o mais aplaudido pelo público presente e aquele que mais sustos pregou aos fotógrafos que registaram o momento. Pode não ter sido o mais rápido, mas o britânico foi, em definitivo, o piloto mais espetacular que passou pelo salto da Pedra Sentada
passam carros”, refere. Apesar da oportunidade única de ver passar máquinas com mais de 300 CV de potência, este adepto dos ralis admite que vem “mais pela animação e pelas pessoas” do que pelos carros, embora estes também o atraiam, “logicamente”. Não concorda que o rali esteja no sul por achar que o público não adere “com tanto fervorismo”, referindo também que no norte estão muitos espanhóis e franceses — turistas que se deslocam de propósito para acompanhar um salto que é hoje a imagem do concelho: “Não tem nada a ver com regionalismos, mas nota-se que a tradição ainda é isto. O Rali de Portugal tinha um calendário muito próprio e acho que, geograficamente, o norte dá outra espetacularidade à prova. Lá em baixo não é a mesma coisa: falta-lhe esta emotividade do monte”. Nos últimos tempos, muito se tem falado sobre a possibilidade de o Rali de Portugal voltar a decorrer no norte do País. O próprio ACP é o primeiro a admiti-lo, mas apenas mediante o apoio das câmaras locais, já que a prova seria mais cara. Só que, para fanáticos como Nuno, devem ser ponderados outros fatores, além do dinheiro: “Vemos que os organizadores têm os patrocínios lá em baixo e que as câmaras suportam a prova, mas esta opção acaba por retirar a própria popularidade das corridas. Os ralis ainda são das poucas corridas que são para o povo e o povo está cá em cima”, refere. O debate é grande e não é de agora. Mas o que pensarão os pilotos desta discórdia? O campeão do mundo Sébastien Ogier afirma que, com tantas pessoas, a atmosfera em Fafe é fantástica, mas que seria impossível optar entre uma e outra região:
“É muito bom correr em frente delas, mas ainda bem que não depende de mim tomar esta decisão porque, para ser honesto, adoro o sul. É um bom local, tenho tido muito sucesso e adoro as estradas aqui. Mas também vimos que os fãs são ainda mais malucos no norte. Por isso, tenho a certeza que seria igualmente um bom local para correr. Aconteça o que acontecer, ficarei feliz por correr em Portugal, no sul ou no norte”, adianta. Já o norueguês Mads Ostberg lança algumas cautelas: “Fica mais perigoso se todas as etapas forem assim. Vão precisar de muita assistência da polícia, mas para nós é sempre muito bom ter muitos espetadores”. A julgar pelas declarações destes dois pilotos, o Rali de Portugal é, assim, a prova que está bem no sul, mas que (quase) todos querem no norte. Não nos compete dizer se seria melhor ou pior, mas podemos ao menos descrever o que se passa em Fafe: um surto de gente festiva, que aprecia o convívio. Que monta acampamentos. Que se desloca a pé, de mota ou de jipe. Que não tem medo de sujar as calças. Que anda (quase) sempre de copo na mão. E para quem o rali é muito mais do que um bando de carros no ar, embora a Pedra Sentada esteja marcada com pequenas placas que assinalam a distância percorrida. Na edição deste ano, Ogier triunfou no cronómetro e Meeke foi o herói da espetacularidade. Mas o prémio de vencedor foi repartido pelos milhares que assistiram à prova, comprovando que Portugal continua (e quer continuar) a ser uma das catedrais dos ralis e do desporto motorizado. MAIO 2014 / WWW.TURBO.PT
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