MICHÈLE MOUTON

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orriu quando Per Eklund lhe disse que não se importava de ser o primeiro homem a vencer o rali depois dela. Estávamos em 1982 e Michèle Mouton acabava de festejar em Portugal a segunda vitória da carreira, com o piloto sueco a ter de se contentar com a segunda posição. Desse ano, Michèle recorda-se de todas as mulheres que esperavam por si e da multidão de gente que se pendurava nos mais diversos sítios para ver os carros daquela época. “Eram milhares e milhares de pessoas, até mesmo na auto-estrada”. A moldura humana era de tal maneira grande que chegava a ser assustadora, mas fazia com que a prova portuguesa pertencesse a um leque muito restrito de países, em conjunto com a Itália e a Grécia, onde a febre pela competição parecia maior e o público acudia com mais força. “Penso que é da cultura latina. São pessoas que gostam de mostrar que gostam, entendes? Em Inglaterra, por exemplo, podias sair de estrada e ninguém fazia nada”. Já em Portugal, “as pessoas ajudavam e queriam fazer parte da história”. Havia apenas um senão: o número de adeptos que tapavam as estradas. “Procurávamos ser cuidadosos, mas era

sempre uma batalha muito difícil. Era como se estivéssemos constantemente a tentar não bater numa árvore.” SEGUIR EM FRENTE No rescaldo dos loucos anos dos Grupo B, Michèle refere que os pilotos acabaram por se habituar às pessoas, à pressão e ao ambiente. E que o nosso rali era uma das suas provas favoritas: “Eu adorava o Rali de Portugal. Tinha a primeira parte em asfalto, de que eu gostava muito por ter começado a minha carreira nesse piso, e depois as estradas de terra em que era possível dançar com o carro e onde eu me divertia muito. Gostava muito dos troços de Arganil, Fafe e adorava correr à noite e no meio do nevoeiro”, recorda. Entusiasmados com a rapidez da piloto francesa, os adeptos também a tinham em boa conta. Tanto que não se livrou do assédio de um fã durante a contagem de partida para um troço, precisamente no Rali de Portugal de 1982: ”O controlador estava a fazer a contagem normal, 5, 4, 3... até que há um tipo que abre a porta do carro e tenta tocar-me. Só tive tempo de fechá-la e de seguir em frente.”

ILUSTRAÇÕES RICARDO SANTOS QUATTRO Tinha 300 CV de potência e fez história como o primeiro carro de ralis com tração integral. Foi com ele que Michèle Mouton venceu os ralis de San Remo, Portugal, Acrópole e Brasil

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TRIUNFOU NUM MUNDO DE HOMENS NA ÉPOCA MAIS GLORIOSA DO MUNDIAL DE RALIS E SAIU COM QUATRO VITÓRIAS NO BOLSO, UMA DELAS EM PORTUGAL. TRINTA ANOS DEPOIS, ABRIMOS O BAÚ DAS RECORDAÇÕES DA PILOTO MAIS FAMOSA DO MUNDO NUMA ENTREVISTA EXCLUSIVA DE ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES R OC K YOU LIK E A HURRIC ANE - S CORPIONS

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SEMPRE FABRIZIA Foi a sua navegadora entre 1981 e 1985. Juntas festejaram quatro vitórias e um vice-campeonato. Sobre Fabrizia Pons, Michèle só tem palavras de apreço: “Tínhamos uma relação pessoal fantástica e nunca nos chateámos. Argumentávamos sempre tudo como deve ser”

MUITA TESTOSTERONA Dezoito vitórias em 40 especiais de classificação provam que não se saiu nada mal na prova portuguesa, deixando para trás nomes como Hannu Mikkola, Walter Rörhl, Per Eklund, Ari Vatanen e Henri Toivonen — todos os grandes pilotos da época. Sobreviver num mundo de homens não era fácil, embora Michèle nos tenha dito que sempre se deu bem com toda a gente. “Eu nunca me importei com o que os outros pensavam de mim, como nunca pensei em vencer corridas. Só queria competir com eles. Não ser ridícula. Tinha o mesmo material e queria fazer boa figura, mas daí até ganhar ia uma grande distância.” Até 1982, este sentimento era partilhado pelos adversários, que nunca a tinham visto como uma séria ameaça. Walter Rörhl dizia que preferia perder o campeonato para qualquer piloto, menos para ela. Já Ari Vatanen contava que pintaria a cara de preto no dia em que ela lhe ganhasse um rali. Quando venceu o Rali de San Remo, em 1981, tornando-se na primeira mulher a vencer uma prova do Campeonato do Mundo (com Vatanen no 2º lugar), Michèle não se esqueceu da promessa e ofereceu-lhe uma lata de tinta. Com Rörhl esteve muito perto de responder na mesma moeda, disputando o título de 1982 até ao Rali da Costa do Marfim, a penúltima etapa do calendário. Mas uma saída de estrada hipotecou aquele que seria o maior feito da carreira. Ressentida? Nem por isso. Disse-nos com a maior naturalidade do mundo que foi apenas um título que se perdeu: “Nesse dia estava com a cabeça noutro lugar. A partida estava marcada para as 8h e a minha mãe liga-me às 7h a dar a notícia. Tinha perdido o meu pai”. Michèle disse à mãe que ia para casa. A mãe pediu-lhe para ficar e ganhar a corrida (e quem sabe o campeonato) por ele. “Assim que estamos dentro de um carro, estamos. Não se fala mais nisso. Tentamos estar concentrados e desligamos do mundo à nossa volta”, contou. Só que a mente não estava relaxada. “Quando desistimos, disse à Fabrizia: bolas, não vou vencer.” Michèle descreve a notícia do desaparecimento do pai como o pior momento da carreira, à frente da morte do amigo e colega de profissão, Henri Toivonen. “ A morte do Henri marcou-me muito, mas a do meu pai foi pior. Foi o culminar de um fim-de-semana desastroso, com problemas na caixa de velocidades e uma penalização que nos obrigou a atacar a fundo para continuarmos a luta com o Walter na Costa do Marfim”.

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PAIXÃO PELOS RALIS Antes de se juntar à elite dos ralis, a piloto mais famosa do mundo conduziu nos campeonatos nacionais de França e chegou a correr nas 24 H de Le Mans. Gostou da experiência “enquanto esteve a chover”, porque isso tornou tudo interessante, com “muitas ultrapassagens”. Mas nunca pensou em trocar de campeonato. “Quando estamos a 300 km/h em Le Mans sentimo-nos leves, temerários. Só que há muita gente à nossa volta. Nos ralis somos só nós e o nosso co-piloto, mais ninguém”. Michèle disse-nos que nunca gostou de estruturas muito grandes e que também teve uma experiência em circuitos com o Didier Pironi, ex-piloto de Fórmula 1, em 1977. “A Elf era um patrocinador comum e eles insistiram que realizasse uma experiência em MagnyCours, com a Elf Driving School. Quando terminamos eu disse ok, foi giro, mas prefiro continuar nos ralis”. Sobre o convite da Audi, recorda-se do telefone tocar e de alguém começar a falar em inglês: “Naquela altura, o que sabia era da escola e só consegui perceber as palavras Audi Sport, Campeonato do Mundo de Ralis e tração às quatro rodas. Pedi uma reunião. Quando aceitaram vi que o assunto era sério e que queriam mesmo contar comigo”. VOLTA AO MUNDO Aos 14 anos, Michèle Mouton sabia apenas que adorava conduzir e que tirar a carta era uma prioridade, assim que fizesse 18. Nunca pensou em ser piloto, muito menos em lutar taco-a-taco contra os grandes nomes do campeonato. “Estava desejosa de tirar a carta de condução, mas apenas pela liberdade que o carro me dava. Pela independência. Queria muito viajar, descobrir o mundo”. Nascida em Grasse, França, tida

EU NUNCA ME IMPORTEI COM O QUE OS OUTROS PENSAVAM DE MIM. SÓ QUERIA COMPETIR. NÃO SER RIDÍCULA

como a capital do perfume, Michèle acabaria por conhecer o mundo, mas a bordo de um carro de ralis. A primeira experiência, curiosamente, deu-se no outro lado do banco, como co-piloto de Jean Taibi — um amigo de longa data. Via-se a ditar notas “a vida toda” porque esta era já “uma atividade muito entusiasmante”, mas o pai continuou a incentivá-la e lançou-lhe o desafio de passar para o volante. Do primeiro rali, lembra-se que foi nas montanhas do norte de França e que estava muito nervosa. “Tinha 22 anos e estava a tremer, com os pés pesados e as mãos molhadas. Penso que é assim quando não se sabe nada sobre este desporto”. Muito do que sabe aprendeu na Audi, com o finlandês Hannu Mikkola. “O Mikkola ensinou-me a travar com o pé esquerdo, dizendo-me que esta era a única maneira de ser rápida com o Quattro. O carro funcionava a altas rotações e esta era a maneira certa de o colocar lá em cima, doseando o pedal do acelerador e aproveitando o turbo ao mesmo tempo. Ele dizia-me que se não o fizesse seria difícil andar mais depressa”. Michèle conta que a sua relação com o colega era fantástica. “Mesmo sabendo que eu não estava assim tão interessada na parte técnica e na ciência do carro, ele tinha paciência para me explicar tudo e partilhar comigo pontos de vista.” Apesar de se classificar como uma

“desportista individual”, disse-nos que aquilo de que mais gostava nos ralis era a capacidade de improviso e a possibilidade de testar os limites do carro e da equipa. “É como fazer parte de uma orquestra, todos têm de ser perfeitos ao mesmo tempo para se poder lutar pela vitória. Nada mau para quem não gosta de desportos coletivos, não é?” MODÉSTIA À PARTE Embora o seu talento seja reconhecido por todos, desvalorizar aquilo que alcançou é uma das características de Michèle Mouton. Luís Caramelo, que cobriu várias provas do Mundial de Ralis como jornalista e trabalhou com a piloto francesa na Corrida dos Campeões de 1991, recorda uma conversa que teve com ela pouco antes de mais um Rali de Portugal: “Eu fazia parte da organização do rali e disse-lhe que íamos convidar uma data de antigos pilotos e que gostava que ela viesse também. Ela chama-me à parte e diz: ‘Luís, se me disseres que eu vou fazer um rali de Fiat 131 Abarth, Porsche Carrera, Peugeot 205 Turbo 16 ou Audi Quattro, eu vou. Mas estes carros novos eu não sei guiar. Os pilotos que lá estão são muito melhores do que eu, conhecem melhor os carros e só me vão humilhar. Sinceramente, tenho dúvidas sobre se saberia guiar. Às vezes fechava os olhos e lá ia.’” Trinta anos depois, nunca mais se viu nada assim.


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