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LUCA DI MONTEZEMOLO
ARRIVEDERCI,
Licenciado em Direito pela Universidade de Roma, Luca Montezemolo chegou à Ferrari após uma passagem por Nova Iorque e breves incursões como piloto
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LUCA D
a apatia generalizada que contaminava as hostes no início da década de 90 à euforia mediática em torno dos feitos de um homem cordial, elegante, que representava de forma imaculada a engenharia, paixão e tecnologia italianas, a Ferrari vivia na viragem do século tempos risonhos, em pista e fora dela. Um período que se manteve até 2004, ano do último título mundial de Michael Schumacher, ano em que Luca Cordero di Montezemolo acumulava mais um cargo com a presidência do grupo de acionistas da Fiat S.p.A. – a companhia que detinha, precisamente, a Ferrari. Enquanto Montezemolo tratava de defender os interesses dos acionistas e comandar a máquina política de negociação com os sindicatos, o recém-nomeado chefe executivo da Fiat após a morte de Umberto Agnelli, Sergio Marchionne, tratava de definir a estratégia a longo prazo da empresa. Em 2004, esta divisão de poderes não foi um problema. Mas, dez anos mais tarde, a situação ganhou novos contornos, embora a Ferrari tivesse continuado a crescer, pelo menos no plano económico, e a Fiat tivesse sobrevivido à maior crise da sua história antes de adquirir a Chrysler e transformar-se no 6º maior grupo da indústria. Qual, então, o motivo para dispensar (a bem da verdade, Montezemolo renunciou ao cargo, mas foram as
APÓS 23 ANOS DE REINADO INDISPUTADO, LUCA DI MONTEZEMOLO DEIXA A LIDERANÇA DA FERRARI AOS CUIDADOS DE SERGIO MARCHIONNE, O DIRETOR EXECUTIVO DA FIAT-CHRYSLER. CONHEÇA OS MOTIVOS PARA ESTE DESFECHO E O IMPACTO QUE O IMPERADOR LUCA DEIXOU NA MARCA ITALIANA TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES
HELLO GOODBYE - THE BEATLES
diferenças com Marchionne que o levaram a tomar essa decisão) os serviços de um líder que elevou o nome da Ferrari à condição de “marca mais reconhecida em todo o mundo” em 2013 e 2014? Para mais num momento da sua história em que, no mesmo período, registou um resultado de 2,3 mil milhões de euros (um aumento de 5 por cento face a 2012) – um valor recorde ao longo dos seus 67 anos de vida? Um presidente que abriu fronteiras para outros países, idealizou dois museus em Modena e Maranello, inaugurou um parque de diversões em Abu Dhabi e criou novas divisões como a Ferrari F1 Corse Clienti ou a Ferrari Special Projects que permitem que qualquer pessoa, a troco de uma soma avultada de dinheiro, possa conduzir Fórmula 1 históricos ou ter um Ferrari construído de raiz à medida das suas preferências? A resposta é simples: um conflito de interesses.
UMA MARCA AMERICANA Defensor da exclusividade, Montezemolo acredita que o prestígio da Ferrari sairá prejudicado se a casa italiana seguir o exemplo de outras marcas, como a Porsche, e aumentar brutalmente a produção dos seus veículos. No último ano saíram das linhas de Maranello 7200 carros, mas Sergio Marchionne quer que a Ferrari passe a produzir pelo menos 10 mil unidades por forma a aumentar a rentabilidade da empresa. Marchionne pretende ainda que existam mais sinergias entre a Ferrari e as outras marcas do grupo, algo que terá caído mal a Montezemolo: quando
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EMOÇÃO
LUCA DI MONTEZEMOLO
“CONSIGO VIVER COM PERÍODOS DE AZAR, MAS NÃO POSSO PERMITIR QUE ESTES SE TORNEM NUM ELEMENTO ESTRUTURAL DA MARCA. UMA FERRARI QUE NÃO VENCE NA F1 NÃO É A FERRARI” SERGIO MARCHIONNE
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começaram a surgir notícias da sua decisão de abandonar a empresa, o barão italiano terá dito ao seu núcleo fechado que a Ferrari era agora “uma marca americana”. No comunicado oficial divulgado no site da Ferrari, Luca diz que “a Ferrari terá um importante papel a desempenhar no seio do Grupo Fiat na bolsa de valores de Nova Iorque. Tal abrirá uma nova e diferente fase que sinto que deve ser liderada pelo CEO do Grupo. É o fim de uma era e por isso tomei a decisão de abandonar a minha posição como presidente após 23 maravilhosos e inesquecíveis anos, além dos passados ao lado de Enzo na década de 1970”, afirmou, mencionando a importância do seu passado desportivo, ao qual também deve ser imputado este desfecho. Afinal, a Ferrari não vence o título de pilotos desde 2007 e o de marcas desde 2008, mostrando-se ainda incapaz de se ajustar às regras introduzidas este ano e que contemplam motorizações híbridas – um período de insucesso criticado por Sergio Marchionne, que reitera que a Ferrari está na Fórmula 1 para vencer: “Tento lembrarme que as corridas não são uma ciência, que um número de fatores influencia o desempenho. Mas depois vou a Monza e vejo que os primeiros seis carros não são Ferrari, nem têm um motor da Ferrari, e a minha pressão arterial simplesmente dispara”. “Consigo viver com períodos de azar, mas não posso permitir que estes se tornem num elemento estrutural da marca. Uma Ferrari que não vence na Fórmula 1 não é a Ferrari”, concluiu. Agora que a empresa se prepara para ser retalhada em Wall Street após a separação da casa-mãe (80 por cento será distribuída pelos atuais acionistas da Fiat-Chrysler, com os restantes 10 por cento a serem vendidos em haste pública e os outros dez a manterem-se como até aqui na mão de Piero Ferrari), resta saber se a fábrica de sonhos italiana poderá regressar às vitórias, vencendo em pista e fora dela, ou se sairá a perder em ambas as frentes. Uma coisa é certa: aquele que foi o seu rosto nos últimos 23 anos já faz parte da história.
REI DA ESTRADA Contratado pelo fundador Enzo para dirigir os destinos da equipa de Fórmula 1, em 1974, Luca Montezemolo foi sedimentando a sua posição na empresa até 1991, data em que foi nomeado presidente da marca do “Cavallino Rampante”. Para este aristocrata nascido em Bolonha e oriundo de boas famílias (o avô e bisavô foram ambos generais do exército transalpino), a subida ao topo chegava numa época de sofrimento. A morte do fundador, em 1988,
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os fracos resultados desportivos e as perdas financeiras do negócio automóvel tinham colocado a Ferrari em sérias dificuldades. Como primeiro ponto de honra estabeleceu como meta devolver a marca às vitórias na Fórmula 1. Nomeou Niki Lauda como consultor e Claudio Lombardi como diretor técnico, e foi dele a responsabilidade de contratar o francês Jean Todt, atual presidente da FIA e obreiro dos sucessos da Peugeot no Mundial de Ralis e no Dakar, para diretor desportivo da equipa. Este, por sua vez, trouxe Ross Brawn e Gary Byrne para revolucionar o futuro da “Scuderia”. Enquanto a Ferrari recuperava o seu prestígio na modalidade (o primeiro de uma senda de 11 títulos só surgiu em 1999, mas a equipa tinha regressado aos triunfos de forma sistemática a partir de 1996, ano em que Michael Schumacher se juntou ao “dream-team” idealizado por Jean Todt), Montezemolo diminuía ao mesmo tempo a dívida da Ferrari com o lançamento de novos modelos e uma estratégia comercial virada para os mercados emergentes. Essa aposta foi reconhecida em 2001 pela revistas “Automobile” e “Time”, que o consideraram “Homem do Ano” e o “Rei da Estrada” pelo trabalho desenvolvido na recuperação da Ferrari e Maserati, adquirida em 1997 pela Fiat e da qual Montezemolo era também responsável.
ASCENSÃO E QUEDA Se a ele deve ser atribuída as contratações de Jean Todt e de Michael Schumacher que viriam a revitalizar os resultados desportivos da Ferrari, é também da responsabilidade de Luca Montezemolo o desmantelamento de uma estrutura campeã com algumas decisões que privilegiaram a crescente “italinização” do grupo que comandava as operações na Fórmula 1 e impediram o crescimento da equipa. Após o título conquistado por Kimi Räikkönen, em 2007, os erros somaram-se: fricções com os pilotos (puxou as orelhas a Fernando Alonso quando este se mostrou crítico com o rumo das coisas) e a inércia em melhorar o túnel de vento e reforçar o departamento de motores numa era em que o desempenho na Fórmula 1 é tão dependente da aerodinâmica e acaba de introduzir a maior revolução tecnológica da sua história contribuíram para a sua saída. Mas é inegável que Luca é uma parte integral da história da Ferrari e que esta, do mesmo modo, estará sempre associada ao gestor italiano. Infelizmente para ele, a tradição ainda é o que era: tal como os pilotos, ninguém é maior do que a Ferrari. Nem mesmo o seu presidente.
CRONOLOGIA
1 Antes de chegar à presidência da companhia, Luca Montezemolo foi administrador da Fiat e gestor da Cinzano e da Itedi (duas empresas da família Agnelli). Foi ainda responsável pela primeira participação de um veleiro italiano na America’s Cup e membro do comité organizador do Mundial de Futebol de 1990, em Itália 2 Ladeado por Enzo, de quem disse ter aplicado muitos dos seus princípios ao “inovar constantemente, nunca aceitar ser o segundo melhor e tomar decisões rapidamente” 3 e 4 Com Lauda e Schumacher, dois dos melhores pilotos que passaram pela Ferrari 5 Com a demissão de Montezemolo, Sergio Marchionne acumula, para já, a presidência da Ferrari com o cargo de chefe executivo do Grupo FiatChrysler (FCA)
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