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eletricidade não costuma combinar com os fãs das corridas e por alguma razão os carros cem por cento elétricos têm estado afastados das pistas da especialidade. O adepto clássico gosta de motores ruidosos, automóveis prestes a saírem das limitações dos circuitos, labaredas a serem cuspidas pelo chão e muitos litros de gasolina a serem expelidos pelos tubos de escape. Mas, numa sociedade cada vez mais evoluída tecnicamente, certos modelos de competição começam a ganhar, por direito próprio, a sua legitimidade no mundo do desporto motorizado. Basta pegar nos mais recentes protótipos de Le Mans — os mesmos que, através de complexos sistemas híbridos, combinam o melhor de dois mundos — para se ter uma ideia desta mudança de paradigma. A própria Fórmula 1 tem vindo a introduzir sistemas de recuperação de energia numa tentativa de tornar a disciplina mais ecológica. Só que, a partir de Setembro, tem lugar um novo campeonato que pretende alterar tudo o que conhecíamos até aqui. Já conhece a Fórmula E?
GRUDADOS AO ECRÃ
OAQUIFUTURO TÃO PERTO
Se alguma vez conduziu um carro elétrico, saberá que o binário máximo disponível logo a partir do arranque garante uma ligeireza pouco comum. Replicando o raciocínio num monolugar tipo Fórmula 1, não é difícil imaginar que as sensações ao volante sejam ainda mais vertiginosas, com a vantagem de serem bem aceites num contexto em que as pessoas, fanáticas ou totalmente alheias à passagem de carros hiper rápidos, se mostram cada vez mais preocupadas com a sustentabilidade do planeta. Ora, é precisamente isto o que a Fórmula E promete: acelerações estonteantes (0-100 km/h em 3s), corridas equilibradas (no primeiro ano, todos os pilotos irão utilizar o mesmo carro para promover a competição) e tecnologia elétrica responsável e inovadora. Até ver, excelentes pretextos para ficarmos grudados ao ecrã. Não deixa de ser irónico que o primeiro campeonato
do mundo composto exclusivamente por monolugares elétricos seja alimentado por três empresas (McLaren, Williams e Renault) cuja história não pode ser dissociada da Fórmula 1 — a tal que sempre se assumiu como sorvedora de gasolina, promotora de grandes motores V10 ou V12 e precursora de uma evolução tecnológica que não olha a custos, mesmo quando a ideia é torná-la mais amiga do ambiente. A introdução, em 2014, de novos motores turbo de 1.6 litros, sucumbindo à pressão dos tempos modernos é um bom exemplo: são mais pequenos, fazem menos rotações e assumem-se mais poupadinhos, mas traduziramse num aumento aproximado de 40 por cento dos custos de todas as equipas. Já o que lhe vamos relatar de seguida segue uma lógica totalmente diferente.
COSMOPOLITA Com o objetivo de aproximar o público da nova disciplina, as dez corridas confirmadas da Fórmula E terão lugar no centro urbano de algumas das cidades mais cosmopolitas do mundo, como Londres, Pequim, Los Angeles, Rio de Janeiro e Berlim. Cada equipa irá correr com dois pilotos e quatro carros por prova, uma vez que os 800 volts das baterias de lítio desenvolvidas pela Williams para o SparkRenault SRT_01E suportam apenas 20 minutos de esforço. Para prolongar o espetáculo, os regulamentos definem que os pilotos irão saltar para um segundo SRT_01E a meio da corrida, efetuando, antes do final da mesma, uma segunda paragem nas boxes. O motivo? Regressarem (respire fundo) ao primeiro carro após as baterias deste terem sido devidamente carregadas ao longo de 20 minutos — o suficiente para realizar mais algumas voltas. Apesar de tudo,
VEL. MÁXIMA.......................................................... 225 KM/H 0-100 KM/H.......................................................... 3 S POTÊNCIA............................................................... 180 KW (280 CV) PESO........................................................................ 780 KG CAIXA........................................................................ DUAS VELOCIDADES BATERIAS................................................................ IÕES DE LÍTIO VOLTAGEM.............................................................. 800 VOLTS AUTONOMIA........................................................... 20 MINUTOS TEMPO DE CARGA............................................... 60 MINUTOS
INTEGRADAS NUM CONSÓRCIO CHAMADO SPARK RACING TECHNOLOGY, MCLAREN, WILLIAMS E RENAULT VÃO DETERMINAR O SUCESSO DA FÓRMULA E — O PRIMEIRO CAMPEONATO COMPOSTO EXCLUSIVAMENTE POR MONOLUGARES ELÉTRICOS. COM 10 EQUIPAS CONFIRMADAS E INÍCIO MARCADO PARA SETEMBRO, AS CORRIDAS DO FUTURO ESTÃO PRESTES A TORNAR-SE REALIDADE TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES
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o processo é menos complicado do que parece e acaba por trazer para os fórmulas o espírito das antigas corridas de Le Mans — um frenesim rumo aos carros a partir das boxes, como sempre acontecia nas partidas de cada edição da prova de resistência mais famosa do mundo. Para poupar custos, os pneus desenvolvidos pela Michelin aguentam todo o fim-de-semana de corrida e suportam condições de piso seco ou molhado, enquanto a estrutura da carroçaria, construída pelos italianos da Dallara, utiliza maioritariamente materiais compósitos. A exceção é o chassis (este sim com uma célula de segurança em carbono), onde é montada a transmissão, o motor elétrico de 180 kW (produz cerca de 280 CV de potência) e a unidade de controlo que gere o seu mapeamento e a transferência da potência às rodas. Muito mais pequeno face a uma unidade de combustão interna, o motor elétrico pesa apenas 26 kg e consegue produzir 17 500 rpm — um regime muito próximo dos motores V8 que este ano foram substituídos na Fórmula 1. Tanto o motor como a unidade de controlo são evoluções de elementos produzidos originalmente para o superdesportivo P1, com a McLaren a desenvolvê-los ao longo dos últimos quatro anos. Cabe à Renault, o primeiro fabricante com uma gama completa de veículos elétricos, a responsabilidade de tornar todo o conjunto seguro para os pilotos e mecânicos. Cada prova terá uma duração aproximada de 40 a 50 minutos. Na sessão de qualificação, o piloto terá toda a potência do carro disponível para efetuar a sua volta mais rápida, mas durante a corrida esse valor rondará os 180 CV. A exemplo do que acontece na Fórmula 1, com o KERS (Kinetic Energy Recovery System), em que os pilotos aproveitam a energia regenerada na travagem para obterem potência extra para ultrapassar outros carros ao longo de cada volta, os pilotos da Fórmula E também terão
POR DENTRO DO ASSUNTO THÉOPHILE GOUZIN DIRETOR TÉCNICO SPARK RACING TECHNOLOGY
Com passagens por equipas como a ART Grand Prix e a Oak Racing, Théophile Gouzin é um técnico experiente no mundo dos fórmulas. Classifica o projeto da Spark Racing Technology como “algo completamente diferente, apesar de não
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direito a um botão “boost” que lhes permitirá utilizar a potência máxima do veículo para atacar os adversários ou defenderem-se deles. Em entrevista à TURBO, Téophile Gouzin, Diretor Técnico da Spark Racing Technology, revelou que o período de utilização dessa energia vai variar de acordo com cada circuito: “Vai depender muito da regeneração feita pelos sistemas em cada traçado. Estivemos a testar no Circuito de Monteblanco e, durante os 20 minutos de uma das sessões, os nossos pilotos conseguiram utilizar o botão durante seis segundos por volta, enquanto noutras pistas só conseguiram fazê-lo durante três segundos. Por isso, será o traçado a decidir o tempo de utilização.” O responsável francês disse ainda que cada uma das 42 unidades pedidas pelo promotor, o espanhol Alejandro Agag, CEO da Formula E Holdings, tem um custo aproximado de 250 000 euros — o limite de orçamento definido pela FIA — e que o italiano Jarno Trulli, um dos últimos a testar o carro, saiu muito satisfeito com o ensaio realizado: “Foi uma grande sensação tê-lo ao volante. Ele é um piloto muito simpático e o seu feedback foi muito importante e o que já esperávamos dele. Diz que as sensações ao volante são semelhantes a um carro de corrida com motor de combustão, mas é óbvio que não podia ter ficado impressionado com o nível de potência, já que os 280 CV são bastante inferiores aos 600 CV de um Fórmula 1. No entanto, ele ainda assim revelou-se entusiasmado com o desempenho do carro”. Ainda não sabemos o resultado final desta história, mas, pela qualidade dos parceiros e o interesse manifestado por várias personalidades em fazer parte do bolo (o ator Leonardo di Caprio é um deles e vai ter a sua própria equipa), tudo leva a crer que a Fórmula E reúne todas as condições para ser um sucesso, com poucos decibéis (cerca de 80 dB contra os 150 dB da F1), mas muita adrenalina à mistura.
ser um carro completamente diferente” já que continuam a ser corridas em circuitos e carros que necessitam de um bom setup para os pilotos poderem extrair deles todo o seu potencial. No entanto, sempre diz que o “desenho”, os “regulamentos” e o “número de pessoas” que com ele trabalham são completamente distintos do que estava habituado. Revela ainda que “trocar os carros foi a solução encontrada para prolongar as corridas” já que o próprio peso das baterias não permite que autonomia
seja mais elevada” e explica a escolha de jantes da Michelin, de 18 polegadas, pela sua “menor resistência ao rolamento”, mas também pela capacidade de conseguir aplicar mais depressa nos carros de estrada as conclusões que retira em pista. Em 2015 convida novos construtores a juntarem-se ao campeonato, até porque gostariam de mostrar que o carro desenvolvido em conjunto com a Dallara é “igualmente rápido” com outros construtores de motores.
NOVO MUNDO
1 Controlar o calor e as altas voltagens é um dos maiores desafios deste monolugar elétrico. Componentes mais pequenos traduzem-se numa menor massa térmica e por esse motivo a resistência ao calor e a refrigeração têm de ser olhadas com particular cuidado 2 Assim que o campeonato estiver a correr sobre rodas, cada equipa será livre de desenvolver o seu próprio carro, com a configuração de motor elétrico, baterias e sistemas de recuperação de energia que considerar mais vantajosa 3 O ex-piloto de F1 Jarno Trulli ficou agradado com o desempenho do carro