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PASSOU PELAS MÃOS DE SENNA E PROST, VENCENDO 15 DE 16 CORRIDAS, UM FEITO APENAS AO ALCANCE DOS PRÉ-DESTINADOS. PARECE MENTIRA, MAS FOI HÁ 25 ANOS QUE O MCLAREN MP4/4 TOMOU A FÓRMULA 1 DE ASSALTO! TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES FOTOS ARQUIVO JOSÉ VIEIRA
I’VE GOT THE POWER – SNAP
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Q
ue palavras definem um mito? Como é que ele se exprime? E de que maneira podemos honrar a sua história? Todas estas questões assolaram a nossa memória enquanto procurávamos a melhor forma de descrever o impacto que o McLaren MP4/4 teve na Fórmula 1 em 1988, o ano em que Ayrton Senna conquistou o seu primeiro título mundial. Este é, afinal, o carro que venceu 15 das 16 corridas do campeonato. Que conquistou igual número de “pole-positions”. E que está na génese de um dos duelos mais apaixonantes, pela destreza e controvérsia dos intervenientes, alguma vez vistos pela modalidade: Prost contra Senna, Senna contra Prost. Foi assim até 1993, ano da retirada do francês.
FÓRMULA DE SUCESSO A sublime criação de Gordon Murray e Steve Nichols representou um passo determinante para o sucesso da McLaren, afastada dos títulos desde o MP4/2 de John Barnard. Revolucionário por ter sido o primeiro monolugar com uma monocoque totalmente construída em fibra de carbono (foi com ele que Prost venceu, em 1985 e 1986, os dois primeiros títulos da carreira), a evolução do ano seguinte revelou-se insuficiente para bater os Williams e Lotus equipados com motor Honda. Estratégia para 1988? Primeiro, contratar o melhor piloto disponível para desenvolver o carro e levá-lo às vitórias — Senna. Depois, aproveitar as ligações do brasileiro para adquirir
os V6 turbo japoneses. Por fim, reforçar a equipa técnica com um brilhante engenheiro aerodinâmico que se tinha destacado pelo trabalho desenvolvido na Brabham de Bernie Ecclestone — Gordon Murray. A bem da verdade, Murray já estava na McLaren, onde chegou no final de 1986. Mas nessa altura o MP4/3 era um projeto concluído. Ao longo de 1987, traçou as linhas do que era preciso fazer para regressar às vitórias: “Esse tempo foi muito bom porque aproveitei para concentrar-me em absoluto no desenho do carro de 1988 e para pensar no que eu achava ser necessário para termos sucesso com o motor Honda”, contou-nos ao telefone. “Consegui transferir o meu conceito do Brabham BT-55, baixando a posição do piloto e do motor para melhorar a aerodinâmica, por isso diria que 1987 foi mais importante do que o ano em que ganhámos os dois campeonatos. Foi esse período que nos permitiu assentar as bases do sucesso que a equipa viria a registar nos anos seguintes”. Era o primeiro carro de Murray na McLaren e o guru sulafricano do design e da engenharia queria garantir que a sua obra-prima seria bem-sucedida, apesar da insistência em replicar uma fórmula que não tinha corrido bem na Brabham. Quisemos, por isso, saber o que mudou para, de um momento para o outro, ter uma máquina capaz de dominar o pelotão: “A diferença começa pela posição do piloto, que está a 30º e não a 45º, e pelo motor, que, na Brabham, era um BMW de quatro cilindros vertical e, na McLaren, um Honda V6 biturbo. Enquanto na Brabham foi-nos impossível baixar o motor, a direção da Honda, que na altura era composta por engenheiros, percebeu as minhas dificuldades e aquilo que eu queria fazer.” No entanto, havia outro segredo: a construção de uma nova 1
MÁQUINA DO TEMPO
1 Estoril, 1988. O senhor de vermelho é Steve Nichols, responsável pelo chassis do MP4/4 2 Gordon Murray com um dos seus pares de óculos “esquisitos e engraçados” que, segundo o próprio, faziam com que Prost desconfiasse dele 3 O francês em grande estilo no GP da Hungria, insuficiente ainda assim para bater Senna. No Hungaroring, o brasileiro venceu a sexta de oito corridas
“LEVEI MAIS TEMPO A CONHECER O ALAIN — PENSO QUE ELE NÃO CONFIAVA MUITO EM MIM PORQUE NESSE TEMPO USAVA UMAS CAMISOLAS COLORIDAS E ÓCULOS ESQUISITOS E ENGRAÇADOS” GORDON MURRAY
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1 Senna no GP de Espanha, uma das raras corridas em que não subiu ao lugar mais alto do pódio 2 No topo de Spa, secundado pelo “professor” 3 Estoril, 1988. Senna contra Prost, Prost contra Senna. Foi assim ao longo de todo o ano e até 1993, ano da retirada do francês
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caixa de velocidades com três veios de transmissão, montada transversalmente: “Mais do que o Steve Nichols, que também me ajudou no carro, mas a quem eu encomendei sobretudo o chassis do MP4/4, foram realmente importantes o David North e o Peter Weismann, que me ajudaram na definição da arquitetura da zona traseira e na conceção da caixa de velocidades e da transmissão. O Neil Oatley foi também muito importante e o designer em quem realmente confiei para fazer os McLaren V10 que seriam obrigatórios em 1989. Acabei depois por incluí-lo no projeto MP4/4 com os motores turbo”.
DESDE A PRIMEIRA CORRIDA A época de 1988 foi particular, não só pelo domínio exercido pela McLaren, mas também por ter permitido que motores turbo e atmosféricos convivessem na mesma grelha de partida. Gordon teve, por isso, as mãos cheias em 1987, com a McLaren a apostar no desenvolvimento de dois carros diferentes, tendo em vista os regulamentos de 1988 e 1989. A preparação, afirma, foi a chave dessa era dourada, sem esquecer o papel dos pilotos: “Tinha mais pessoas comigo — penso que éramos quatro na equipa de desenho da Brabham, enquanto na McLaren tinha cerca de 18 pessoas do meu lado —, mas também tivemos muito mais trabalho. Muitas vezes isso não chega. Para vencer um Grande Prémio ou um campeonato precisamos que todos os elementos — carro, piloto, estratégia e aerodinâmica — estejam alinhados. Basta que um falhe para não conseguirmos e obviamente que tanto o Alain como o Ayrton foram muito importantes na extração de todo o potencial do carro”. Apesar de apenas terem testado uma vez antes do início da época, Gordon nunca receou que o carro apresentasse problemas de fiabilidade,
certificando-se, ao longo de 1987, que todas as peças e soluções do MP4/4 seriam capazes de aguentar as exigências das corridas. “Mais do que a qualidade dos pilotos ou a eficácia do motor, foi esse o grande motivo para o domínio exercido em 1988. O carro era muito simples e fácil de trabalhar, de tal forma que quase não fizemos alterações ao longo do ano”. Ao recuar vinte e cinco anos entre livros e repetições das corridas, a ideia com que se fica é que este McLaren, pelo desenho irreverente e desempenho bombástico, era realmente a máquina perfeita. E com as vitórias a alternarem de forma quase sistemática entre os seus dois pilotos, não demorou muito para que a tensão se começasse a fazer sentir dentro da equipa. Quando? “Creio que desde a primeira corrida”, recorda Murray, com risos à mistura. “Quando temos dois pilotos competitivos, mas não só competitivos — com tanta qualidade, garra, tão focados em vencer corridas —, as tensões surgem assim que o primeiro vence. Mas sempre foi assim na história dos Grandes Prémios”.
CAMISAS COLORIDAS Os livros dos recordes dizem-nos que Ayrton subiu por oito vezes ao lugar mais alto do pódio, enquanto Alain fê-lo por sete vezes. Mas também que, ao longo da temporada, o francês somou mais pontos (105 contra 94) do que o brasileiro. Não fossem as regras de pontuação em vigor (contavam apenas os 11 melhores resultados) e Prost teria ganho o título de 1988, mas, com Senna a marcar a “pole-position” por 13 vezes (Prost, apenas duas e Berger, uma, no GP de Silverstone), poucas dúvidas havia sobre quem era o mais rápido. Escolher entre ambos é
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EM DESTAQUE
O McLaren MP4/4 foi tão dominador que, em 1988, a TURBO sentiu-se obrigada a fazer um especial com ele. Vinte e cinco anos depois repetimos a graça, desta vez sem a mestria de António Eiras, autor deste e de muitos outros desenhos que marcam a história da nossa revista
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SIMPLESMENTE O MELHOR CARRO QUE A FÓRMULA 1 JÁ VIU. LIDEROU 97 POR CENTO DAS CORRIDAS EM QUE PARTICIPOU E CONDUZIU SENNA AO PRIMEIRO TÍTULO DA CARREIRA 128
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praticamente impossível e por isso a dúvida que se impõe é simples e pretende apenas satisfazer a nossa tremenda curiosidade: como seria trabalhar com estas duas vedetas? “Muito bom. Era realmente gratificante termos do nosso lado dois indivíduos que eram capazes de transmitir tão bem o que queriam do carro, como ele se comportava. O seu contributo era inestimável e isso não parava de me surpreender”, conta Murray. “Eu e o Ayrton demo-nos bem imediatamente. Levei mais tempo a conhecer o Alain — penso que ele não confiava muito em mim porque nesse tempo usava umas camisolas coloridas e óculos esquisitos e engraçados. Mas os dois eram muito exigentes. No entanto, creio que o Ayrton era mais determinado, mais focado como piloto. As corridas eram a vida dele e ele pensava muito detalhadamente sobre o carro, a próxima sessão de treinos, a próxima prova. Era muito meticuloso”. Há quem diga que este foi um dos campeonatos mais aborrecidos da história. Outros, que a luta desenfreada entre Senna e Prost foi a melhor coisa que podia ter acontecido para reavivar o interesse na Fórmula 1. Decorridas as primeiras 11 provas, apenas eles tinham subido ao lugar mais alto do pódio, o que fazia crer que o pleno era possível e que todos estavam motivados. Nada mais natural, certo? Mas Murray diz-nos que não: “Estranhamente, esta foi uma das épocas mais difíceis para motivar as pessoas. Não tanto os pilotos, porque eles motivavam-se mutuamente, mas foi realmente difícil motivar a equipa, particularmente na fábrica. Depois de ganhares cinco ou seis Grandes Prémios de forma consecutiva, as pessoas começam a olhar para esse sabor de vitória como um dado adquirido e penso que Monza foi realmente importante para nós porque trouxe-nos de volta o foco e a motivação”.
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Grudados ao telefone como se da nossa namorada se tratasse, Gordon continuou a desfilar recordações.Admite que a equipa ficou um pouco desapontada com a vitória de Berger, mas recorda que ganhar 15 de 16 corridas é tão improvável que na McLaren nunca pensaram que poderiam ganhar tudo. “Monza foi uma chamada de atenção que em nada retira o mérito do que fizemos. Mais uma vez, grande parte do motivo para termos ganho todas essas corridas deve-se à fiabilidade do carro. No final de 1986 introduzi uma data de sistemas aborrecidos para recolher dados durante os testes e acredito que essa decisão foi determinante para o que viria a acontecer”. Vencer três campeonatos de forma consecutiva e trabalhar ao lado de dois dos melhores pilotos que a Fórmula 1 já viu parece algo digno de um conto de fadas, se pensarmos numa história criada de raiz para satisfazer os desejos mais íntimos de um engenheiro submerso na modalidade. Porquê rejeitar tudo isso pelo projeto de estrada da McLaren, o F1? “Pelo desafio. Tinha ganho cinco campeonatos e cinquenta corridas e continuar significava apenas continuar a ganhar — sim, porque eu não gostava de ficar em segundo. Os regulamentos eram cada vez mais apertados e inventar algo revolucionário estava a tornar-se cada vez mais difícil. Depois, desde miúdo que tinha o desejo de construir o melhor carro de estrada que pudesse fazer. Queria ser o melhor noutra coisa e a McLaren deu-me a oportunidade. Por isso, não me arrependo da decisão que tomei”. Ok… E saudades, nenhumas? Daquela adrenalina? Da velocidade? “Se estivesse parado, sentiria a falta, sem dúvida. Mas estou tão ocupado com a minha empresa que não tenho tempo para isso. Encontrei novos desafios e sinto-me realizado”. Palavra de Murray, Gordon Murray.
INÍCIO DO MITO
O primeiro título de Ayrton Senna foi simultaneamente o último de um carro com motor turbo. A combinação de ambos foi explosiva e tem números estonteantes para a época: oito vitórias e treze “pole-positions”