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LAUDA AS CICATRIZES IDENTIFICAM-NO À DISTÂNCIA, MAS A HISTÓRIA É MAIS DO QUE APARÊNCIAS E RECORDARÁ PARA SEMPRE O SEU PALMARÉS INVEJÁVEL. ESCOLHIDO POR ENZO COM O DEDO DE CLAY REGAZZONI, NIKI LAUDA DESAFIOU A MORTE E ESCREVEU UMA DAS PÁGINAS MAIS BONITAS DA FERRARI. NÓS FALÁMOS COM ELE. TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES K N O CK I N ’ O N H E AV E N ’ S D O O R – G U N S N ’ R O SE S
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Ferrari não existe sem Niki Lauda e Niki Lauda não existe sem Enzo, a Ferrari e o britânico David Purley. A história entre todos cruza-se de forma curiosa num de muitos episódios memoráveis do austríaco, mas antes importa saber como se formou o mito. Vinte e cinco vitórias e três campeonatos do mundo dão corpo a um palmarés verdadeiramente invejável, quase todo construído ao volante de equipas de grande prestígio. Começou na March e BRM, ganhou dois títulos mundiais na Ferrari e passou sem sucesso pela Brabham, antes de se retirar para fundar a sua companhia aérea e regressar ao ativo para um terceiro título mundial com a McLaren. No entanto, é da equipa italiana que guarda as melhores recordações da carreira, numa associação indiscutivelmente eterna que não deixa de incluir alguns dissabores: “As melhores recordações são da Ferrari, porque ganhei dois campeonatos e porque conduzir pela Ferrari é um sonho para qualquer piloto. Sim, tive um grave acidente, mas consegui realizar o meu sonho com muito sucesso pelo caminho”. A influência de Lauda na equipa mais desejada do mundo explica-se por diversas razões. Quinze vitórias e dois campeonatos colocam-no apenas atrás de Michael Schumacher na lista de pilotos com maior sucesso da casa italiana. Tal como o alemão, Lauda pegou numa equipa que não ganhava nada há demasiado tempo, transformando-a na estrutura a bater entre 1974-77. Pelo meio colocou um ponto final num jejum com 11 anos e foi capaz de repetir uma segunda vez a proeza, contribuindo ainda para que a ‘scuderia’ aumentasse a sala de troféus com três títulos de construtores. FACTOR EXTRA A determinação do austríaco era indiscutível desde os tempos da BRM. Tim Parnell, o diretor da equipa de 1970 a 1974, conta que NÖRDSCHELEIFE Niki dominou o circuito alemão como ninguém, sendo até hoje o único piloto que conseguiu realizar uma volta abaixo dos sete minutos aos 22,8 km do traçado. Em baixo é possível vê-lo em ação no “carrossel”
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nunca tinha visto tanta dedicação num piloto. “Logo à primeira vista percebia-se que ele tinha aquele fator extra”, pode ler-se num artigo da Motorsport, em Maio de 2005. O inglês acrescenta que Lauda chegou à Fórmula 1 numa época em que a preparação física era essencial para o sucesso, descrevendo-o como alguém bem preparado a 150%: “Ele era incrivelmente profissional no que à competição dizia respeito. Vê-lo chegar ao topo nunca me surpreendeu.” Foi essa coragem extra que deu a Niki ânimo para regressar ao cockpit do 312T, apenas seis semanas após o acidente que quase lhe retirou a vida, no GP da Alemanha de 1976. E o que o levou a aceitar, com a mesma bravura, o convite de Enzo para correr pela Ferrari, no final de 1973: “Naquela altura, o Jacky Ickx corria pela Ferrari e na segundafeira, depois de uma corrida, Enzo pediu-me para passar pelo seu escritório, oferecendo-me um contrato no mesmo instante. Fiquei muito surpreendido com o convite e, embora estivesse prestes a realizar um sonho, aquela não foi uma decisão fácil.” NADA NO MEIO Lauda contou-nos que a opção de Enzo retirar os seus carros em algumas corridas da temporada de 1973, como o GP da Alemanha desse ano, pesou na sua escolha. Mas quando conheceu a fábrica questionou-se como era possível a Ferrari não ganhar todas as corridas do campeonato. Habituado às instalações mais modestas da March e da BRM, teve a certeza de que assinar pela equipa era a decisão certa assim que viu “todo o potencial” que eles tinham, embora o 312B2 estivesse completamente ultrapassado e os maus resultados tivessem levado Enzo a acabar com o investimento nos sport-protótipos para se concentrar em exclusivo na Fórmula 1. Logo naquele momento, o austríaco ficou com uma certeza sobre a figura de proa em Maranello: “Enzo era uma pessoa difícil de lidar, um italiano com um grande coração que ou gostava de ti ou não gostava. Não havia nada no meio”. 1973 foi um ano realmente dramático para a Ferrari. O 6º lugar nos construtores, com apenas 12 pontos e a meias com a BRM, diz tudo sobre a prestação da equipa, que acabou a época a inscrever somente um carro. A entrada de Lauda estava a ser ponderada por Enzo desde o GP da Grã-Bretanha, mas viria a ser o suíço Clay Regazzoni a dar o impulso decisivo: “Foi ele [Regazzoni] quem me encorajou nessa escolha”, viria a escrever.
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Regazzoni disse que Lauda, apesar de “novo e desconhecido”, parecia ser uma “aposta com futuro.” Uma previsão que viria a confirmar-se entre 1974-76, anos em que foram companheiros de equipa, e depois em 1977, já com o argentino Carlos Reutemann do seu lado. Nesse período, a Ferrari conquistou dois títulos de pilotos (75-77) e três de construtores (75-76-77). DEMASIADO EXIGENTE Com Luca di Montezemolo na equipa e o projetista Mauro Forghieri de volta ao desenho do carro, Niki conquistou em 1974 as duas primeiras vitórias da carreira. Admite que poderia ter-se sagrado campeão mundial logo no primeiro ano de vermelho, “não fossem dois ou três erros estúpidos” cometidos por ele. Não consegue escolher nenhum carro como o seu preferido, afirmando que “todos os carros novos eram fantásticos” e que por isso é-lhe difícil escolher “o melhor”. Do acidente em Nürburgring, em 1976, lembra-se de que a segurança do circuito era há muito debatida entre os pilotos e que ele próprio tinha dado uma palestra sobre a necessidade de haver um plano de reestruturação para os próximos três anos, caso contrário a Fórmula 1 deixaria de passar por ali: “Os carros estavam cada vez mais rápidos e o Nördscheleife estava a tornar-se demasiado exigente. Era claro que aquela corrida seria a última de qualquer forma, uma vez que o circuito não podia ser melhorado pelas exigências de segurança e o comprimento da pista”. Apesar do desfecho, Niki não se arrepende da decisão de correr no GP da Alemanha, da mesma forma que se recusa a lamentar a retirada no Japão, quando ainda tinha hipóteses de ganhar o campeonato: “Naqueles dias tínhamos de decidir antes da corrida se queríamos ou não correr o risco de perder a vida. Para mim era claro que a pista estava demasiado molhada e que ninguém conseguia conduzir naquelas condições. A direção de prova não quis saber e disse-nos que
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TRIO INSEPARÁVEL Enzo Ferrari, Niki Lauda e Luca di Montezemolo foram os grandes obreiros da recuperação da Ferrari entre 1974 e 1977. Nesse período, a equipa venceu cinco títulos com a ajuda de Mario Forghieri
tínhamos de iniciar a corrida. E eu não aceitei porque achei ridículo. Podia ter ganho mais um título. E depois?”, questionou, indiferente. COELHO BRANCO Depois de revalidar o título em 1977, Lauda saiu da Ferrari para a Brabham de Bernie Ecclestone. Duas vitórias foram os pontos altos de um ano e meio de convivência, altura em que abandona a F1 para se dedicar em exclusivo à Lauda Air, a companhia aérea que fundou em 1979. Em 1982, aceita o convite para regressar à McLaren: “Foi difícil adaptar-me aos novos carros e regulamentos, com motores turbo e outras mudanças, mas este era exatamente o desafio que estava à procura e no meu caso foi possível realizá-lo. Queria muito ser campeão novamente!” Demasiado sereno para quem esteve às portas da morte, mas de uma ambição desmesurada, Niki faz parte de uma geração de heróis em movimento. No entanto, há um nome que sobressai entre todos: David Purley. “Nunca percebemos que era o carro do Roger Williamson a arder. Pensávamos que Purley estava a proteger o próprio carro”, conta sobre o episódio de Zandvoort, em 1973, quando Purley tentou salvar Williamson das chamas. Lauda tem grandes memórias de Purley, não só pelo acto heróico, mas também porque entre ambos houve um despique curioso no GP da Bélgica de 1977. Purley liderava a corrida num Lec alugado quando Lauda se aproximou a grande velocidade no seu 312T. Pressionado por Gunnar Nilsson, o austríaco acabou por cometer um pião e no final foi pedir satisfações ao britânico: “Tapasteme! Coelhos como tu deviam parar para deixar passar ases como eu”, atirou, ao que Purley respondeu: “Se um ás como tu ao volante de um Ferrari oficial não consegue passar um coelho num Lec sem fazer um pião, então não és nenhum ás no meu dicionário...” Na corrida seguinte, Purley apareceu com um autocolante de um coelho branco no seu carro e até “O Rato” (alcunha pela qual Lauda era conhecido) se riu. Enzo é que não deve ter achado piada nenhuma...