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ENCONTRO COM A HISTÓRIA
16 ANOS APÓS O ÚLTIMO TRIUNFO, A PORSCHE REGRESSOU A LE MANS PRONTA PARA RECUPERAR PARTE DA SUA HISTÓRIA. A TRAJETÓRIA DE AMBOS CONFUNDE-SE E POR ISSO O REENCONTRO ACABOU POR SER BONITO, MAS NÃO FOI DESTA QUE A MARCA ALEMÃ VOLTOU AO SEU VERDADEIRO LUGAR: O PÁTEO DOS VENCEDORES TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES EM LE MANS
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primeira vez que se vai às 24H de Le Mans é como o primeiro amor: não se esquece. Se lhe juntarmos o regresso da Porsche e a oportunidade de conviver de perto com as estrelas que venceram a prova ao serviço da fábrica de sonhos alemã, então temos desde logo a certeza de que teremos sempre uma boa história para contar aos netos, família e amigos, independentemente do resultado. A ideia não é fazer inveja a ninguém, apenas transmitir, da melhor maneira possível, um pouco da magia da maior corrida do mundo, vista, igualmente, pelo lado do fabricante que mais vezes associou o seu nome ao lote dos vencedores. Está preparado?
DIGRESSÃO EXIGENTE Estamos à porta do Verão e os odores são naturalmente quentes, com as gotas de suor a escorrerem até bem perto da madrugada. O termómetro marca 27 graus, mas a temperatura revela-se ainda mais escaldante assim que os 56 carros que, este ano, formaram a grelha de partida começam a povoar a pista, sem esquecer a multidão que se pega ao nosso corpo de cada vez que nos decidimos aventurar pelos pontos emblemáticos do circuito. Tudo ao nosso redor respira competição, das lojinhas que vendem roupa e miniaturas, às relojoeiras, gasolineiras e parceiros técnicos que, após anos de investimento, começam a confundir-se com o desporto. Tal como os pilotos se preparam arduamente para suportar os desafios de uma prova desta envergadura, também nós fomos munidos de tudo o que considerámos indispensável para realizar da melhor maneira o nosso trabalho. A mochila de carregar às costas vinha apetrechada com um computador, um telemóvel e uma máquina fotográfica, uma camisola para quando caísse a noite, um casaco para a eventualidade de caírem alguns chuviscos (talvez a
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melhor decisão de todas, como se veio a comprovar mais tarde) e duas baterias portáteis para que nenhum dos nossos “gadgets” se desligasse por falta de corrente. Só não vínhamos preparados para caminhar tanto – uma condição inerente à magnitude do circuito. Com 13,65 km de extensão, La Sarthe é das digressões mais exigentes e cansativas que se podem imaginar. Se para dominar a arte de andar de bicicleta é primeiro necessário espetarmo-nos no chão algumas vezes, conhecer os cantos à casa da prova de resistência mais famosa do planeta obedece a muito planeamento e a várias incursões pelas estradas e povoações que lhe dão corpo. A simples deslocação entre as bancadas centrais que se encontram em frente à reta da meta, antes das Curvas Dunlop, e a zona do paddock onde se situam as estruturas de acolhimento das equipas é um roteiro que leva cerca de 15 minutos e sempre a passo de corrida, aos quais é necessário adicionar outros tantos para nos perdermos na quantidade de quadros, fotografias antigas e merchandising que se encontram espalhados pelas inúmeras barraquinhas que clamam pela nossa atenção. Tudo depende do grau de fanatismo – nós só não ficámos mais porque o tempo não nos permitiu –, mas aqui encontra-se de tudo, até cuecas com o símbolo da Porsche. Uma boa maneira de surpreender a namorada ou a esposa e convencê-las depois a irem às corridas, não acha?
IMPRESSIONANTE
1 Cerca de 150 mil pessoas vibram, todos os anos, com a parada dos pilotos que decorre no centro da cidade 2 263 300 pessoas assistiram à vitória da Audi, a 13ª em 15 participações 3 O ambiente é fantástico, mas deslocarmo-nos entre os diversos pontos do circuito pode tornar-se numa enorme dor de cabeça
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MARK WEBBER
ESTRANHOS RECADOS Já se percebeu que, sem orientação prévia, torna-se complicado perceber exatamente como se vai para onde se quer ir. Valeu-nos a comitiva da Porsche, que lá nos foi guiando e dando acesso a espaços que impressionam pela logística, custo e dimensão envolvidas. Assim que chegámos à localidade francesa fomos transportados para uma de três zonas de acolhimento construídas propositadamente
A PRIMEIRA VEZ QUE SE VAI ÀS 24H DE LE MANS É COMO O PRIMEIRO AMOR: NÃO SE ESQUECE
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De volta ao mundo da resistência após 11 anos na Fórmula 1, Mark Webber explica as diferenças que encontrou neste seu regresso à modalidade: “Bom, os carros agora são pelo menos 15 segundos por volta mais rápidos do que quando aqui estive pela última vez e são muito mais avançados tecnologicamente. Quinze anos representam geralmente um passo muito grande no desporto motorizado, mas neste momento os veículos híbridos são realmente excecionais e uma forma totalmente diferente de encarar este desporto. Para mim, a maior diferença está sobretudo em lidar com o peso do carro. Duzentos quilos a mais é um volume considerável quando comparado com os 680 kg de um F1, mas a aerodinâmica do carro é impressionante e a potência muito mais do que o que tinha nos últimos anos, o que é muito bom, tal como ter pneus slick de corrida”.
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BOXES
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A TURBO foi um dos poucos meios a ter direito a uma visita exclusiva às boxes da Porsche, uma oportunidade para conhecer um pouco mais como tudo se encontra organizado. Nas traseiras existe um edifício com seis camas para que os pilotos e mecânicos possam descansar, gabinete médico, fisioterapeuta, um espaço de refeições e uma pequena sala que serve de armazém. Além de repositório das estruturas em fibra do 919 Hybrid, é nesta área que se encontram duas arcas térmicas. Estas aquecem dois conjuntos de pneus durante uma hora e meia de forma a que estejam na temperatura ideal assim que são montados nos carros. Já a zona das boxes propriamente dita encontra-se dividida em dois andares. A zona superior esconde várias peças mecânicas e eletrónicas devidamente catalogadas e ainda uma pequena sala onde os engenheiros analisam toda a telemetria. Em baixo há um espaço com televisor para acompanhar toda a ação da corrida que os membros da equipa podem igualmente utilizar como espaço de refeições, enquanto ao fundo do corredor é onde se concentram todos os mecânicos. 3
pela marca para receber os seus convidados: uma para jornalistas, patrocinadores e membros da equipa, outra para que as lendas da Porsche se pudessem refastelar a ver a prova e prestar algumas declarações para a imprensa selecionada (a TURBO estava incluída neste grupo), e outra exclusiva para clientes, decorada com um ecrã de cinema e uma enorme varanda que tinha como anfiteatro inesquecível a curva Ford e a entrada para a zona das boxes. Foi neste último edifício que decorreu a conferência de imprensa prévia ao início da corrida, resultando, por sua vez, na nossa oportunidade para trocar dois dedos de conversa com Mark Webber e Timo Bernhard, os pilotos mais mediáticos da equipa. Mark estava de volta a uma prova que conhece bem. Para a história ficará para sempre o seu célebre voo na reta de Mulsanne, ao volante do Mercedes CLR-GT1, durante o warm-up para a corrida de 1999, mas com certeza que o australiano regressou às competições de resistência e à mais emblemática das suas corridas em busca de recordações mais felizes do que um par de cambalhotas a alta velocidade. A mensagem, no entanto, mantinha-se inalterada desde que a Porsche anunciou o seu retorno ao palco onde detém inúmeros recordes: “O objetivo passa por terminar a prova e
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levar os dois carros a cruzar a linha da meta”. Baixar ao máximo as expetativas é um recado algo estranho para um construtor com o historial da Porsche e assim que se viu a prestação do 919 Hybrid nos treinos e na qualificação (os carros #14 e #20 ocuparam a segunda e quarta posições à partida para o grande desafio) levantouse logo a suspeita de que os engenheiros alemães poderiam estar a tentar esconder o jogo para deixar à nora a concorrência. Webber dizia que não: “A qualificação dá uma ideia aparente de onde nos encontramos, mas é durante a corrida que poderemos julgar verdadeiramente o nosso desempenho. Pessoalmente sinto-me bem, agora é manter as emoções em cheque e a máxima concentração para enfrentarmos a corrida. No entanto, podemo-nos sentir orgulhosos de algumas das coisas que já conseguimos.” Logo depois, o antigo piloto da Red Bull acrescentava: “O primeiro desafio é realmente terminar a prova. Temos pouco tempo de desenvolvimento do carro e de operações de corrida. Há equipas com carros mais rápidos e por isso o trabalho de garagem vai ser fundamental. Será uma corrida muito interessante entre todos os construtores, mas penso que, ao nível de todos os detalhes, a Audi e a Toyota têm muito mais experiência do que nós e estão por isso melhor
TUDO EM GRANDE
1 A comandar os destinos da Porsche neste regresso a Le Mans estiveram 30 engenheiros e 20 mecânicos 2 Cada paragem na boxe demora entre 20 a 30 segundos contando com a mudança de piloto 3 É permitido um máximo de oito mecânicos por cada carro 4 O engenhoso sistema híbrido do 919 conjuga um motor de 2.0 litros e quatro cilindros a gasolina com dois sistemas de recuperação de energia da travagem e do escape
JÁ DIZ O DITADO QUE GOSTOS NÃO SE DISCUTEM E O QUE PARA ALGUNS É RUÍDO, PARA NÓS É SINÓNIMO DA MAIS BELA SINFONIA preparados. Será uma corrida sensacional entre ambos, mas penso que nós temos uma boa oportunidade de aproveitar qualquer coisa”. Companheiro de equipa de Webber no carro #20, o alemão Timo Bernhard mostrava-se igualmente cauteloso: “Os Audi vão ser muito consistentes durante a corrida, mas neste momento não há nenhuma indicação clara sobre quem será o vencedor. As condições da pista durante o dia e a noite são totalmente distintas e isso pode influenciar o desempenho de cada carro. Somos uma equipa jovem e ainda não sabemos como o carro se irá comportar numa corrida de 24 horas”.
COMO NENHUM OUTRO Depois de recuperarmos o fôlego (a conversas com os pilotos decorriam em grupo e não nos safámos dos habituais safanões que tanta emoção conferem a estes encontros jornalísticos) seguimos diretos para a Praça da República, local onde iria decorrer o habitual desfile dos pilotos
a bordo de alguns clássicos da história automóvel. Em época de Mundial de Futebol houve ainda tempo para um “sambinha”, embora o ritmo e as vestes destes carnavaleiros de ocasião estivesse a destoar da mística que envolve a corrida e deste evento de enorme importância para a comunidade. Enquanto a população se degladiava por um dos muitos brindes que são atirados pelos pilotos, Freulon Gérard, nascido e criado em Le Mans há 62 anos, conta-nos que a parada é “a festa mais importante” da região. Todos os anos, “mais de 150 mil pessoas” deslocam-se ao centro da cidade para ver de perto os heróis que irão enfrentar os perigos e os segredos de La Sarthe ao longo de extenuantes 24 horas, o que se traduz numa animação sem paralelo para os seus habitantes e num sempre importante acréscimo financeiro para todos os comerciantes: “É extremamente importante para nós do ponto de vista económico e é também por isso que as pessoas se sentem felizes e orgulhosas por continuar a receber este evento”, afirma. O entusiasta das corridas, por outro lado, sente-se apenas feliz por poder ver, no mesmo espaço, tantas máquinas por metro quadrado, dos mais recentes Porsche 918 Spyder e Bugatti Veyron Grand Sport, a modelos intemporais como o Ford GT40. De cerveja na mão (e muitas mais na barriga),
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LE MANS 2014 dois ingleses tentam descrever-nos a magia de Le Mans: “É um lugar como nenhum outro, em que a história se confunde com o presente, em que os desafios são constantemente superados. Depois, tem a vantagem, tal como Goodwood ou Silverstone, de ser um local onde só se encontram verdadeiros aficionados”. Também a servir os apaixonados pelas corridas está o café “Le Mans Legend” – um templo gastronómico obrigatório para quem visita a cidade, não tanto pela qualidade da comida, mas antes pela decoração única que reveste a fachada e cada uma das suas paredes. É fácil perdermo-nos na quantidade de bielas, pneus, fatos, capôs e outro tipo de peças mecânicas e de vestuário ligadas à competição que se encontram espalhadas pelos seus dois andares, todas originais (nada de imitações) e repletas de história(s).
LENDAS DE LE MANS
Gijs Van Lennep (na foto) e Vic Elford são dois dos pilotos mais emblemáticos da Porsche. Hoje com 72 e 79 anos, tornaram-se famosos pelas suas aventuras com o Porsche 917 KH nas décadas de 1960 e 1970, tendo corrido numa era totalmente distinta da atual: “No meu tempo tínhamos de nos preocupar com a mecânica e agir com cuidado em pista, porque um acidente podia significar a morte e o fim das nossas carreiras”, explica o britânico Elford. “Os carros de hoje apresentam uma filosofia totalmente distinta: são corridas de sprint, em que os pilotos correm mais riscos, e às vezes questiono-me se o ACO não deveria fazer alguma coisa em relação a isso. Por vezes temos pilotos muito jovens e inexperientes que acham que são indestrutíveis”. Já o holandês Van Lennep diz que “a grande diferença está nas forças G e na tecnologia. Éramos mais lentos, mas, por outro lado, tínhamos uma caixa de velocidades manual dura, direção rija e travões menos eficientes”.
1 É apenas um consolo, mas a verdade é que, até à 22º hora, o 919 Hybrid #20 era líder e caminhava para um pódio certeiro. Problemas no sistema de propulsão destruíram o sonho, enquanto a caixa de velocidades arruinou a prova do 919 #14 quando este seguia no 4º lugar 2 O terceiro lugar da Toyota não serve de consolação para os japoneses que lideraram grande parte da corrida e tiveram sempre o carro mais rápido 3 A terceira vitória de Andre Lotterer, Benoit Treluyer e Marcel Fassler foi uma das mais difíceis da carreira, depois de terem sido afetados por um problema no turbo do R18 e-tron
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TUDO NA MESMA
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HÁ MANEIRAS DE IR A LE MANS E DEPOIS HÁ A MANEIRA PORSCHE, QUE ULTRAPASSA TODAS AS EXPETATIVAS
De regresso ao circuito, a manhã de sábado começa com uma corrida de antigos carros do Grupo C cuja beleza natural e barulho ensurdecedor teve o condão de nos retirar do estado de dormência em que nos encontrávamos perdidos. Já diz o ditado que gostos não se discutem e o que para alguns é ruído, para outros é sinónimo da mais bela sinfonia. Para nós, o grito ensurdecedor dos Porsche 956 na decoração da Jagermeister e 962 com a pintura da Rothmans, do Jaguar XJR-8/9 com as cores da Silk Cut e do Mazda 787B verde e laranja está ao nível de uma ária de Bach e não há ninguém que nos convença do contrário. Seguiu-se uma corrida da Porsche SuperCup e mais duas demonstrações em pista antes da grande caminhada pelo pitlane, um luxo gratuito para jornalistas e fotógrafos, mas cujo custo para o adepto é de 490 euros. O desporto motorizado não é barato e ir a Le Mans também está longe de ser acessível, embora existam alternativas para todos os bolsos e feitios que incluem, igualmente, o alojamento. Além da tarifa de entrada no circuito (73 euros para semana completa e 45 euros para Domingo), há ainda que somar o custo das bancadas centrais no caso de ser daqueles que não prescindem do conforto. Para que não se sinta deprimido connosco, optámos por não perder muito tempo com os inúmeros programas VIP que também se encontram à disposição de alguns afortunados, embora não resistamos a dar-lhe uma pequena achega: para ver a corrida no maior “hospitality” da Porsche, os clientes da marca tiveram que pagar um valor na casa dos milhares (e não centenas) de euros. Há maneiras de ir a Le Mans e depois há a maneira Porsche, que ultrapassa todas as expetativas. Do ponto de vista do adepto, isso significa ter acesso a um “lounge” requintado, com comida de estrela Michelin, wi-fi gratuito, ecrãs variados para que se possa acompanhar toda a ação das corridas e acesso às míticas curvas com o mesmo nome, um local idílico onde podemos, simultaneamente, sentir o calor dos motores, ver as máquinas a passarem por nós a alta velocidade e petiscar confortavelmente enquanto rejubilamos com todas as emoções do circuito. Já do ponto de vista jornalístico representa a possibilidade única de falar com lendas do desporto que venceram a prova ao serviço da marca alemã, como o francês Laurent Aiello, o belga Jacky Ickx, o holandês Gijs van Lennep e os britânicos Vic Elford, Richard Attwood e Derek Bell. A “Missão 2014” não foi o regresso triunfal que todos desejavam (o 919 Hybrid nunca foi o mais rápido, embora o carro #20 liderasse à 22ª hora à custa dos problemas dos outros). Mas representa, ainda assim, um exercício de audácia impressionante que confirma, a todos os que assistiram à prova, que o lugar da Porsche é este e que Le Mans, e o mundo da resistência, não são a mesma coisa sem ela.
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