MOMENTOS MÁGICOS

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MOMENTOS MÁGICOS

ESPREITAR O RAIDILLON É COMO VISLUMBRAR UMA PAIXÃO DE INFÂNCIA. A VISTA INEBRIANTE NUNCA CANSA, APENAS ALIMENTA O ESPÍRITO DE QUEM JÁ ERA FANÁTICO POR UM DOS CIRCUITOS MAIS BONITOS DO MUNDO TEXTO ANDRÉ BETTENCOURT RODRIGUES EM SPA-FRANCORCHAMPS

LES TOREADORS - GEORGES BIZET

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nfiar três portugueses num utilitário de passageiros ao longo de quatro dias chuvosos e friorentos tem tudo para se transformar numa ideia peregrina rumo ao desastre, em particular quando dois dos elementos do grupo são “Ferraristas” assumidos e o outro um adepto incondicional da McLaren. A experiência, tortuosa, conduz, como em todos os debates que mexem com o nosso coração, a argumentações impossíveis sobre quem é o melhor piloto ou a equipa mais em forma. Mesmo que, este ano, nenhum dos representantes deste trio de jornalistas tivesse grandes motivos para sorrir, tendo em conta o domínio exercido pela Mercedes ao longo do campeonato. Com civismo e muita boa disposição, os momentos de companhia mútua lá decorreram sem qualquer ato de violência, até porque o encontro forçado acontecia pelo melhor dos motivos: uma ida exclusiva ao Grande Prémio de Fórmula 1 da Bélgica para ver Hamilton, Rosberg e companhia desfilarem o seu talento em pista. Melhor era difícil.

PRIORIDADES Cerca de 60 km separam o aeroporto de Liége (local onde dormimos, mas curiosamente não aterrámos) da pista de Spa-Francorchamps, um percurso que se faz sempre em auto-estrada e a bom ritmo desde que não tenhamos de ir para um dos parques situados na periferia do circuito. Quando já suspirávamos com a perspetiva de meter o olho no Raidillon, o ponto mais emblemático do traçado belga, eis que levamos com uma fila de carros interminável que nos diz, afinal, que o mundo não está perdido e que ainda existem muitos entusiastas pelas corridas. Tática para fugir ao trânsito? Uma condução à boa maneira portuguesa: chega

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SÓ AO VIVO É QUE SE TEM NOÇÃO D A I N C L I N A Ç Ã O D A R E TA Q U E S E I N I C I A APÓS O GANCHO DE LA SOURCE E TERMINA NA QUE PROVAVELMENTE É A D I R E I TA M A I S B O N I TA E E X I G E N T E D O P L A N E TA para a esquerda, mete para a direita, enfia aqui, atravessa ali e... já está. Má educação? É provável. Mas, enquanto os belgas, ingleses e franceses esperavam pacientemente pela resolução do problema, nós só pensávamos em sair dali o mais depressa possível para chegar a tempo dos treinos. Prioridades… Seis décadas dividem a primeira da última corrida de Fórmula 1 realizada na pista montanhosa que liga as cidades de Stavelot, Malmedy e Francorchamps. A contagem do tempo prova a longevidade daquele que é considerado por pilotos e adeptos como um dos mais bonitos, senão mesmo o mais elegante, circuito do mundo, mas é também um testemunho das mudanças que desde aí ocorreram no traçado (hoje com menos relva e gravilha para dar lugar a escapatórias mais largas) e na aparência (e troar) dos monolugares. Antes de descrevermos a sinfonia, importa referir o que se sente assim que se vislumbra aquele topé enorme cravado nas entranhas das Ardenas — uma seção muitas vezes confundida com Eau Rouge, a pequena curva à esquerda que antecede a subida. Em primeiro lugar, a paisagem: o vasto arvoredo e o ar da montanha fazem de Spa um circuito verdadeiramente especial e só ao vivo é que se tem noção da inclinação da reta que se inicia após o gancho de La Source e termina na que provavelmente é a direita mais bonita e exigente do planeta. Depois, o silêncio, a paz dos seus 7,04 km, de certa forma incongruente com o que se deve esperar deste desporto, mas perfeitamente ajustado ao som abafado e incaraterístico dos novos carros.

VISITA ÚNICA

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CRONOLOGIA

1 Após umas voltas no F14 T, Alonso e Raikkönen tiveram de arranjar tempo para dar a cara pela Eco-Maratona da Shell, um dos projetos mais emblemáticos do parceiro de longa data da Ferrari 2 Não é barato: 1500 euros é quanto custou o fim de semana de corrida para Fernando Rodrigues, de 33 anos, que veio de Lisboa até Spa na companhia de quatro amigos. 3 Só sorrisos depois da qualificação. Na corrida, o desfecho seria diferente, com um toque de Nico Rosberg a condicionar a corrida do rival e companheiro de equipa Lewis Hamilton

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Temos que agradecer à Renault, o fabricante de motores mais representado na modalidade, por nos levar até à Bélgica para conhecer por dentro a Fórmula 1 moderna. Além de um almoço VIP numa “mezzanine” privada com vista para o nosso querido Raidillon e de um lugar na bancada principal que se encontra no mesmo sítio para ver a corrida (só para ter uma noção, três dias no “spot” mais concorrido do circuito custavam 480 euros), também tivemos direito a uma visita única às boxes da Caterham, Toro Rosso, Lotus e Red Bull

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GOODWOOD1 FESTIVAL OF SPEED FÓRMULA época que testou para a Jaguar. Só que Lotterer pensava claramente de forma contrária e pouco depois já estava à frente do companheiro de equipa, o sueco Marcus Eriksson, menos experiente na idade (32 contra 24 anos), mas bem mais habituado ao monolugar da equipa britânica. Apesar da dimensão do feito, lutar pelos últimos lugares da tabela desde 2009, o ano da formação da Caterham, não pode fazer bem à motivação de ninguém. O desinteresse é notório e na postura de cada elemento reina a descontração absoluta. Não existem sinais de tensão, nem de entusiasmo. Lotterer tanto podia ter ficado em 21º como em 17º, ter saído da pista ou destruído o carro, que a única fonte de excitação continuaria a provir dos nossos sorrisos perante a honra concedida. Precisamente o contrário do que aconteceu na Lotus assim que Pastor Maldonado levou o E21 ao muro quando o piso estava molhado: “Pastor, estás bem?”, perguntou o engenheiro de corrida, depois de soltar em surdina um “Oh, não! Outra vez…” Se a garagem da Toro Rosso contava com duas zonas independentes para a análise de dados, a Red Bull bateu tudo o que tínhamos visto até então pela panóplia de ecrãs planos que apetrechavam cada uma das suas paredes. Além da transmissão televisiva, os elementos que se encontravam na boxe verificavam em coloridos diagramas todas as

NÃO LHE VAMOS MENTIR: E M C A S A O E S P E TÁ C U L O É M E L H O R — as quatro equipas com V6 turbo desenvolvidos pela casa francesa. A enumeração por esta ordem é propositada, não só porque corresponde à cadência dos acontecimentos, mas sobretudo porque faz justiça à dimensão de cada uma destas estruturas. Aparentemente, os meios disponíveis são iguais entre todos se pensarmos que não falta gente a cirandar à volta de cada viatura, nem ferramentas para executar as diversas operações de afinação e reparação dos carros. Só quando olhamos para os rostos dos mecânicos, os equipamentos de monitorização e análise, a sistematização dos processos e os próprios pilotos é que nos damos conta de que os lugares que ocupam no campeonato não são fruto do acaso. Passa pouco das 11h00 quando somos convidados a iniciar o périplo pelas garagens. A servir de cicerone de luxo está Olivier Gillet, diretor de marketing da Renault F1. Antes de conhecermos os segredos das equipas, o dirigente francês diz que estamos proibidos de filmar, tirar fotografias e ouvir as comunicações de rádio entre os engenheiros e os homens que se encontram atrás do volante. Tudo porque somos jornalistas, o que, aqui entre nós, nos parece um contrasenso, já que foi essa mesma condição que nos deu acesso a este programa exclusivo. Começamos pela Caterham, que trazia uma novidade de peso no seu alinhamento: André Lotterer, triplo vencedor das 24 H de Le Mans pela Audi. Apesar do seu “pedigree”, esta é uma escolha algo inusitada para o lugar do japonês Kamui Kobayashi se nos lembrarmos que o alemão não se sentava num Fórmula 1 desde 2002,

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DIAS DE FESTA

1 Para os fãs da Fórmula 1, SpaFrancorchamps está ao nível do Grande Prémio do Mónaco 2 As estruturas das equipas dominam o paddock. No GP da Bélgica e ao contrário do habitual, estas tiveram de ser distribuídas por três zonas distintas por força do relevo da pista 3 Não faltam tendas onde se podem adquirir vários produtos das equipas 4 Das quatro equipas que visitámos, a Red Bull foi a que nos pareceu mais organizada

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informações relativas à temperatura do motor, regimes, combustível e um sem fim de outros fluxos e contra-fluxos dos quais não percebemos nada. A título de comparação, um dos engenheiros de corrida da Caterham analisava estes dados… num pequeno portátil! Pela sua dimensão e estatuto de campeã em título, a Red Bull pareceu-nos mais organizada e focada do que as outras equipas apoiadas pela Renault. Mas isso não quer dizer que não saibam divertir-se. James Paton, gestor de contas da estrutura sediada em Milton Keynes, explica-nos que, no seio do touro vermelho, as coisas fazem-se de uma forma diferente: “Somos muito exigentes, focados e determinados, mas nunca perdemos a boa disposição. Isso é visível em algumas das ações de marketing que já fizemos, mas também agora, em que estás a ouvir música aos altos berros enquanto os mecânicos trabalham”. De facto, o “puntz-puntz” digno das melhores discotecas de Ibiza que invadiu o pitlane no final dos treinos só podia provir dali, nunca de uma Williams ou McLaren.

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O V A S T O A R V O R E D O E O A R D A M O N TA N H A FAZEM DE SPA UM CIRCUITO VERDADEIRAMENTE ESPECIAL

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AFOGAR AS MÁGOAS Após uma noite bem dormida, a manhã de Domingo começa com sotaque português. Durante o pequeno-almoço demos de caras com quatro amigos que vieram propositadamente do nosso País para assistir, ao vivo, à magia de SpaFrancorchamps. Apaixonado pela Ferrari, com direito a boné e tudo, Fernando Rodrigues, de 33 anos, diz que o circuito belga é “o mais bonito” do campeonato. Para cumprir o sonho de assistir pela primeira vez a uma prova de Fórmula 1 teve de desembolsar “1500 euros” entre “o hotel, a viagem, o aluguer do carro e a compra de algumas lembranças”, apesar de não gostar de nenhum dos pilotos da sua equipa favorita. Pior do que isso só mesmo a melodia dos carros: “A Fórmula 1 é e será sempre o topo do desporto motorizado. Mas não gosto do som. Acho que não reflete a tradição da modalidade.” Apoiado!

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POR DENTRO DO ASSUNTO

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RICARDO PENTEADO RESPONSÁVEL PELOS MOTORES DA TORO ROSSO

Já trabalhou com Fernando Alonso, Robert Kubica, Kimi Raikkonen e, mais recentemente, com Daniil Kvyat e Jean-Eric Vergne. Responsável máximo pelos motores da Toro Rosso, o brasileiro Ricardo Penteado falou-nos um pouco mais sobre a forma como a Renault se relaciona com as equipas: “Todos os estudos que fazemos para o motor ser mais fiável são partilhados com todas as estruturas porque dessa forma o desenvolvimento torna-se bem mais rápido. No GP da Hungria, por exemplo, o Daniil Kvyat teve um problema de “stall” — o motor dele apagou. Para resolver o problema, a Renault preparou várias opções e cada equipa testou uma solução diferente, mais ou menos agressiva. No final do processo escolhemos o melhor sistema de “anti-stall” para todas. Não faz sentido não partilhar tudo o que tem que ver com fiabilidade. O mesmo não acontece com a performance. O modo de utilizar o motor elétrico, o turbo ou o sistema de escape são dados que não compartilhamos.”

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GRANDE VITÓRIA

1 O toque de Rosberg em Hamilton estragou a corrida do britânico. Aqui pode vê-lo numa luta pouco habitual com a Lotus, este ano a lutar pelos lugares do fundo da tabela 2 Evidenciando, novamente, uma maturidade impressionante para quem acaba de chegar à Red Bull e tem como companheiro de equipa o tetracampeão mundial Sebastian Vettel, Daniel Ricciardo fez uma corrida imaculada, somando a terceira vitória do ano e da carreira

Poder conhecer por dentro a ética de trabalho das equipas e a complexidade dos carros atuais, com baterias, cabos e sistemas de recuperação de energia a afunilarem ainda mais o motor foi uma experiência única e extremamente gratificante, mas as limitações deste bónus vão perdurar algum tempo na nossa memória. Afinal, como é que se supera o desgosto de não termos podido falar com o Adrien Newey, o Daniel Ricciardo, o Jean-Eric Vergne ou o Sebastian Vettel quando eles se encontravam mesmo à nossa frente? Felizmente tínhamos o nosso Raidillon para afogar as mágoas, mas não lhe vamos mentir: em casa o espetáculo é melhor. Quarenta e quatro voltas — a duração do GP deste ano — a ver carros a passarem no mesmo sítio pode tornar-se aborrecido, para mais quando não houve nenhum despiste e a chuva, após soltar uns avisos, decidiu abordar outras paragens. Apesar do ecrã gigante colocado em frente da bancada, só com uns binóculos se conseguia acompanhar minimamente o decorrer da corrida. De outra forma era impossível saber quem ia à frente de quem e que lutas estavam a suceder em pista. Também não lhe vamos dizer que o som é maravilhoso, porque não o é, ou que os carros são bonitos, porque não o são. Mas, mesmo com todos estes defeitos, a verdade é que a Fórmula 1 continua a ser uma montra tecnológica impressionante. A velocidade com que os monolugares atingem 300 km/h e a forma como curvam é própria de um míssil ou de um carro telecomandado. É uma coisa do outro mundo, tal como o Raidillon — na nossa opinião, o bocado de asfalto mais bonito da galáxia.

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