3 minute read

Uma utopia musical no feminino

Next Article
MÚSICA

MÚSICA

- POR SIMÃO MOTA -

Reunidas em roda, num ambiente de comunhão, de braços no ar e sorrisos na cara, trocam olhares de cumplicidade. O ensaio, de duas horas, começou por volta das 20h30, com uns aquecimentos vocais. Num altar improvisado, o piano dedilhado por Neli Beloti, uma das coordenadoras, de 58 anos, segura a afinação para os primeiros exercícios. A coordenadora, que organiza e estrutura os arranjos do coro, interrompe uma e outra vez os aquecimentos, em busca de uma voz que, escondida pelo grupo, se desviou do tom. A reação do coro não é de embaraço, mas de tranquilidade. A harmonia e a cumplicidade são os tons que ligam os diversos naipes. “Normalmente há três vozes... nós chamamos baixas às contraltos, as rasas são as mezzo-sopranos e as ribas são as sopranos”, diz Neli com um sorriso. Depois de voltar a afinar no tom certo, o coro retoma os aquecimentos. Em meia-lua, as mulheres levantam os braços, gargarejam e baloiçam ao ritmo do exercício. Vão testando segundas e terceiras vozes, ao mesmo tempo que se distribuem pela sala do Atelier A Fábrica - o espaço cultural, situado na baixa da cidade, que recebe o coro todas as quartas feiras. Os movimentos de baloiço vão-se tornando circulares e, aos poucos, forma-se uma grande roda que simula o trabalho no campo. As rédeas do ensaio são, nesta altura, entregues a Vânia Couto, música profissional e outra das impulsionadoras do coro. Desta vez, ao alternar entre viola e um adufe, o trabalho intensifica-se, com uma demorada análise de cada parte do coro. Os naipes têm que estar bem conjugados e em sintonia.

Advertisement

A ideia do coletivo parece ser a mais importante e todas fazem questão de salientar esse motivo recorrente. Apesar desta filosofia, a presença de Vânia Couto é a que todas parecem reconhecer como a que mais sobressai. No entanto, a coordenadora tenta contrariar esta ideia: “existe uma espécie de anarquia orgânica - todas decidem, votam, sabem quais são os ‘cachets’, quem ganha o quê, o que se faz e as decisões surgem de forma natural”. Apesar de rejeitar o título de líder, reconhece que “um coletivo é utópico”, mas acredita na possibilidade de “um coletivo em que todas podem decidir”. A coordenação dos assuntos correntes está de tal forma assegurada pelas equipas de gestão que, durante os ensaios, Vânia e Neli podem dedicar-se ao trabalho musical.

Embora só tenha iniciado a sua atividade em outubro do ano passado e ter estreia prevista para novembro deste ano, o coro tem aproveitado uma grande divulgação mediática e uma onda de apoios. O trabalho em torno do tema popular “Desenrola o Teu Cabelo” foi motivo de interesse por parte de Tiago Pereira, diretor do projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, que decidiu gravar o grupo em janeiro deste ano.

Durante o ensaio, este tema volta a ser trabalhado e parece estar mais assente, passadas duas repetições. Depois de um demorado esforço por uma passagem de um tom maior para menor, surgem os aplausos espontâneos...

“Às vezes tenho vontade de chorar, fico muito emocionada. Fico mesmo feliz ao saber que sentiram união e beleza naquele momento”, con- fessa Vânia Couto. Para a música, o trabalho de recolha e de escolha de repertório está intimamente ligado com a filosofia do coro: “eu estive em casa de uma senhora nas aldeias do xisto a fazer recolhas e trouxe esta canção... quando eu sinto que esta gente está a cantar a canção que essa senhora me ensinou, choro. Isto é uma homenagem a todas as pessoas que nos dão o património musical que herdámos”.

A vontade de fazer parte de um coletivo musical feminino, com um repertório de música popular, ligou pessoas de áreas distintas como Cláudia Morais, responsável de comunicação, Sofia Coelho, atriz, e Katrin Pieper, doutoranda. “Era mesmo disto que o grupo precisava, sentia-se a falta de um espaço como este, um coletivo só de mulheres e com música tradicional portuguesa”, diz Cláudia Morais. Apesar da exigência dos ensaios, Catherine confessa: “faz-me muito bem vir cá e sentir o espírito do grupo. Durante a semana toda fico ansiosa pela próxima quarta-feira”.

Quanto ao futuro, segundo Vânia Couto, os planos são “fazer concertos em salas, auditórios e apresentar um espetáculo performativo com encenação própria, movimento, texto, ilustração, totalmente concebido e executado pelas mulheres do coro”. No final do ensaio arrumamse os materiais, organizam-se os transportes e fazem-se as despedidas. Ficou a imagem singular de que n´A Fábrica, onde ensaia o Coro das Mulheres, as máquinas são afinal vozes, o ruído é harmonia e as operárias constroem, com o seu canto, uma utopia no feminino.

This article is from: