3 minute read

Tipografia Damasceno, uma casa de memórias

Rui Damasceno partilha momentos marcantes da vida da tipografia. Ator caracteriza espaço como espelho da passagem de uma época.

O45B da Rua Montarroio alberga uma casa com mais de 50 anos de história - a Tipografia Damasceno. Ao entrar, o visitante é presenteado com uma visão que quase permite uma viagem ao passado. A coleção de máquinas - entre elas, um prelo do século XIX, uma máquina de braços e uma pedaleira - transmite a lembrança de uma era. Ao som de música clássica, o ator e atual proprietário do espaço, Rui Damasceno, partilha memórias passadas dentro e fora daquelas quatro paredes.

Advertisement

Fernando Rui da Silva Damasceno de Albuquerque, mais conhecido por Rui Damasceno, nasceu a 10 de março de 1957. Tirou o curso complementar de eletrotecnia na Escola Secundária de Avelar Brotero. No entanto, nunca usufruiu deste, pois começou a trabalhar na tipografia no ano da sua fundação, em 1969, quando tinha apenas 12 anos. Antes desse momento, passou pela Imprensa da Universidade de Coimbra, onde, como conta o próprio, aos dez anos aprendeu “a caixa e as marotices todas dos tipógrafos”.

Odete Paixão e João Damasceno, fundadores do histórico espaço, eram tipógrafos e compositores de profissão, que trabalharam em diversas imprensas coimbrãs. Rui Damasceno conta que a passagem dos seus pais pela antiga Tipografia Progresso foi a alavanca decisiva para a construção de um negócio familiar. O sítio, localizado no Pátio da Inquisição, chegou a conhecer outro nome: Damasceno, Santos e Batista Lda. No entanto, João Damasceno ficou “farto da sociedade” e comprou uma tipografia em Lorvão, que forneceu os materiais necessários para a tão conhecida casa conimbricense.

Rui Damasceno recorda com orgulho a memória da sua mãe, Odete Paixão. Explica que esta foi, durante muitos anos, a única compositora na Gráfica de Coimbra, devido à proibição imposta às mulheres de exercerem a profissão: “considero a minha mãe como uma das grandes fundadoras desta casa”.

O ator relata também as passagens do seu pai, João Damasceno, pela Fortaleza de Peniche e pela prisão de Caxias, motivadas pela sua militância comunista. Emocionado, condena a atuação do empregador da sua mãe, o padre Assis, ao despedi-la “na altura mais difícil da vida dela”. Relembra assim as palavras proferidas pelo pároco: “agora tu já não és a Odete Paixão, tu és a mulher de um comunista. Portanto, vamos fazer contas e rua”. Rui Damasceno reforça o seu relato com uma reflexão sobre os tempos da ditadura, pois considera que “as pessoas falam dos presos políticos, mas não falam das suas famílias”.

O tipógrafo descreve um “episódio curioso” ocorrido em 1971, se não lhe falha a memória. Já em liberdade, o seu pai imprimia peças que não eram visadas pela censura. Desta vez, foram uns prospetos para o Dia da Mulher, que lhe concederam uma visita da PIDE. Quando o seu pai se apercebeu, mandou-os para um caixote e colocou aparas por cima. Rui Damasceno menciona que um deles estava tão perto de os descobrir que “estavam mesmo quase a queimá-lo”. No entanto, a busca não deu em nada.

À frente do negócio desde 1989, o ator considera que o espaço tem uma “importância imensa” devido à “história incomensurável” que possui. Antes do aparecimento das novas tecnologias, a tipografia era “a alavanca do mundo que fazia as ideias andarem”, reitera.

Rui Damasceno acredita que a passagem da gravura por tipo de chumbo, muito utilizada nas décadas de 1980 e 1990, para a impressão digital foi um momento que as artes gráficas não conseguiram acompanhar. Nesse sentido, posiciona a revolução informática como a culpada pelo “descalabro da arte tipográfica”.

Os tempos áureos em que era possível empregar 11 trabalhadores não foram esquecidos pelo tipógrafo. Hoje em dia, está reduzido “ao Fernando, ao Rui, ao Silva, ao Damasceno e ao Albuquerque”, diz em tom de brincadeira. No entanto, acredita que a tipografia tem futuro, pois ainda existem entusiastas pela arte, o que impede o seu desaparecimento. Quanto ao seu sucessor, confessa que esse tópico não o preocupa. “Há pessoas interessadas em trabalhar aqui quando eu fechar a pestana”, admite.

Rui Damasceno atribui a sobrevivência do negócio à impressão de livros de faturas e livros de pequena tiragem, entre cem a 200 exemplares. No entanto, confessa que é um trabalho moroso, uma vez que todos os livros são cosidos à mão.

O ator termina por realçar a importância da casa como um símbolo da mudança dos tempos, já que qualquer pessoa que a visite tem ao seu dispor a história que a sustenta. As paredes, decoradas com quadros artísticos e objetos de militância comunista, refletem o passado e o presente desta tipografia, que fez parte da resistência portuguesa ao Estado Novo.

This article is from: