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MÚSICA
Esperar Pela Chuva Antes Da Colheita
Já tinha passado demasiado tempo sem que Francisco Santos, conhecido no circuito do hip-hop tuga como xtinto, nos agraciasse com o seu álbum de estreia. O rapper de Ourém, que surgiu nos radares em 2019 com os EPs “Ventre” e “Inacabado”, brotou, de imediato, com a maturidade característica de um veterano. O seu arsenal, que trazia confiança na expressão vocal e um ‘wordplay’ singular, vinha envolto numa promessa efetiva de grandeza; só carecia um longa-duração que a comprovasse.
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Em 2023, xtinto arregaça enfim as mangas e entrega-nos o seu primeiro disco, apropriadamente batizado de “Latência”. Lançado em fevereiro, este projeto deixa transparecer, a partir do seu título, a inércia e procrastinação do artista que, nas palavras do próprio, deixam de ser só suas “para passar a ser nossas”. O seu conteúdo, no entanto, revela uma disposição diferente, de maiores proporções, e um carácter resoluto e ambicioso, faminto (e merecedor) de devido reconhecimento.
Na estreia discográfica de xtinto encontra- mos um retrato sonoro das suas vontades talhado no solo fértil que é a MUNNHOUSE, cooperativa artística da qual o rapper faz parte e de onde surgiram os nomes responsáveis pela cristalina produção do projeto, como Beiro, Lunn ou benji price. Tal como a capa do álbum sugere, este é um trabalho que flui com agilidade entre os vários estados de espírito do protagonista, evidenciando facetas distintas. A garra de faixas como “Katrina”, “Pacemaker” ou “Éden” (com benji price) disputam com o coração mole de “Android” ou “Diabo”. A descontração de “Tontura” (com Wugori) e “Iglu” (com Mike El Nite) adversam com o aguerrido foco de “Marfim”, “Carvão” ou “Cadáver”. São contrastes que, no entanto, se complementam e que alteiam a escrita imaculada do autor, que é sua raiz e seu cerne, e que impera sobre qualquer outro atributo.
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A ilação que se retira deste álbum é simples e clara: se, com projetos anteriores, xtinto trouxe uma fundação sólida à ainda jovem sonoridade da sua psique, então “Latência” vem edificar o seu estatuto como figura maior do hip-hop são categorias intrínsecas/estabelecidas, ou apenas papéis que desempenhamos quando surge a oportunidade. No entanto, a natureza do enredo e o estilo da produção é suficiente para colocar a obra numa posição de destaque. O diretor usou uma frase de Hannah Arendt para comentar o filme – nas ditaduras tudo corre bem até quinze minutos antes de tudo colapsar. O colapso aqui aparece sob forma de tragédia, no sentido clássico, que custa a descer, mas da qual não queremos desviar o olhar. nacional contemporâneo. Crava nas pedras da cena portuguesa um grande X: está aqui, sabe que não veio tarde e que “um dia ainda vai ser rei cá”. A sua energia é contagiante, a sua promessa ainda longe de ser consumada. Ora, se for para uma colheita destas, vale com certeza a pena de esperar que venha a chuva.