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As multitudes artísticas de uma mulher: a carreira de Lúcia Moniz
Artista compartilha maiores desafios enquanto mulher no seio da indústria artística em Portugal. “É preciso acreditar que tem de haver igualdade: não só nas artes, mas em todas as profissões”, defende.
- POR RAQUEL LUCAS E ANA FILIPA PAZ -
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Tem-se destacado em diferentes ramos artísticos. Sente que ficou alguma coisa por fazer?
Quando achar que já fiz tudo não é bom sinal. Eu não faço uma 'checklist' do que já fiz ou não. Considero-me uma pessoa privilegiada no meu percurso profissional, tenho sempre conseguido seguir as minhas aptidões no mundo das artes e concretizar projetos que as envolvem, tanto na música, como na representação. Com a escrita não arrisco tanto, gosto mais de ler do que escrever.
Alguma vez pensou em seguir outro tipo de percurso profissional?
Não. Quando era pequenina queria ser bailarina. No meu oitavo ano queria ser ‘designer’ e foi o que estudei na faculdade por dois anos. Lá está, tudo rondava as artes. Já tive vários sonhos de outras facetas, mas sempre no seio artístico, porque cresci nesse meio. Não só os meus pais, como também as pessoas que frequentavam a minha casa, que conviviam com eles… tive um contacto muito direto com artistas. No meu caso, foi algo natural.
Diria que ter crescido com pais músicos influenciou a sua relação com a música?
Sim, sem dúvida. O meu avô era pianista e o meu bisavô era maestro de orquestra e violinista. Está-me no sangue. Também cresci a ouvir música, fiz muitas tournées pelo país na barriga da minha mãe. Estudei no conservatório, portanto também tenho essa formação musical de escrever e ler música, o que é sempre um bónus. Esse foi um percurso muito natural. A representação é que já foi fora do esperado, mas, mesmo assim, não está totalmente fora do meu ADN.
Como é que surgiu a representação na sua vida?
A minha avó materna foi a primeira funcionária pública e a primeira mulher a fazer rádio na ilha Terceira, onde chegou a criar uma personagem. Pode ter sido daí que herdei o meu jeito para teatro e gosto pela representação, mas era algo que estava muito longe daquilo que eu projetava no ramo profissional. Estava muito focada na música, mas tive a oportunidade de compor para uma peça de teatro e, no decorrer dos ensaios, chamaram-me para cantar no espetáculo. Isto aconteceu logo a seguir ao Festival da Canção, tinha 19 anos. Aí comecei a ter um envolvimento diferente com o teatro, mais presente, vivo. Durante os ensaios o encenador escreveu-me um texto e criou uma personagem para mim. Tudo isso foi novo, mas tive imenso prazer e foi aí que comecei a ponderar seguir o ramo da representação.
Em 2003 recebeu um convite para participar no filme britânico ”Love Actually”, estreando-se a nível internacional. Também foi premiada com a longa metragem “Listen”. Como foi fazer este salto para fora do país?
Fiz o ‘casting’ para o “Love Actually” em Portugal, que foi depois enviado para Madrid e daí para Inglaterra. Foi a minha primeira experiência de ‘casting’ de cinema, e ajudou-me a perceber o que queria daí para a frente, além da música. A oportunidade surgiu porque fazia pequenos trabalhos como atriz. Quando me vi naquele meio, a lidar com aquele nível de trabalho, apercebi-me de que, se eu quisesse seguir cinema, estava na altura de o levar mais a sério. Foi então que comecei a fazer mais 'workshops' e formações que me dessem ferramentas para enfrentar outros desafios desta área.
Qual foi o convite mais irrecusável da sua carreira? E qual o mais desafiante?
Em relação aos desafios, gosto sempre de encarar aquele com que estou a trabalhar no momento como principal. Há, sem dúvida, projetos que me marcam e que vão marcar o meu percurso para sempre. Por exemplo, lembrome que li uma das primeiras páginas do guião do “Listen” e deu-me alguma coisa… sei lá... quis ligar à realizadora a dizer-lhe "eu quero fazer isto!". Sabes quando não queres perder mais tempo porque achas que um segundo depois já é tarde demais? Disse-lhe: "só estou nas primeiras páginas, mas já percebi que quero fazer parte desta mensagem, desta causa que estás a abraçar a partir da tua expressão artística, portanto conta comigo!", e foi assim. Não me desiludi, de todo. Foi muito especial. A nível de desafio mais recente como atriz, a série Santiago, que estreou na Opto, foi uma grande montanha russa.
O que nunca se imaginaria a fazer? Não sei. Não quero dizer não a uma coisa que eu ainda não tentei fazer, mas também não diria que sou capaz de tudo. Se me chegasse um desafio que não estava nada à espera, eu iria querer analisar de forma a perceber se é para mim ou não. Para já, não gosto de prever isso.
Tem alguma colaboração de sonho?
Tenho colegas atores, atrizes e até realizadores, que admiro muito e com quem gostaria muito de trabalhar. Às vezes cruzamo-nos em encontros de artistas e fica no ar a ideia de uma colaboração, não é algo que idealize ou um objetivo. São coisas que eu gostaria muito que acontecessem, mas acho que não tem de ser forçado ou influenciado.
Como foi a experiência de sair do 'spotlight' e encenar a peça infantil "João Sem Medo"?
Isso foi outro desafio! Foi algo proposto pelo Marco Medeiros que é um encenador da companhia Palco13. Ele propôs-me: "gostava muito que encenasses as aventuras do João Sem Medo". Eu nunca tinha dirigido uma peça na vida e ainda lhe disse "és maluco" (risos). Lá está, uma coisa que eu se calhar diria “nunca vou fazer”. Fiquei assim a pairar um bocado e a pensar "faço ou não faço?”. Então, desafiei o meu irmão, porque não me sentia ainda preparada para pôr um espetáculo de pé sozinha. Isso foi fantástico, já tinha visto peças produzidas pelo meu irmão e acabámos por trabalhar juntos. Ele foi o meu assistente, mas, na verdade, acabou por ser um trabalho em conjunto. Foi a primeira vez que dirigi atores, tive imenso prazer em fazê-lo, até mesmo de perceber como é que eu gostaria que a história fosse apresentada a nível estético. Foi um espetáculo muito bonito que vou sempre recordar com muito amor.
Qual a área a que tem dedicado mais tempo? Neste momento, na ilha Terceira, eu e o meu irmão vamos dar aulas de teatro, que é o que vou fazer daqui a bocadinho. Temos um grupo de 28 jovens no qual abordamos todas as técnicas teatrais e exercícios de improvisação, bem como tudo o que possa acontecer a partir daí... É uma forma de nos desinibirmos, discutir assuntos, ter um espaço democrático para exprimir opiniões e percebermos quais são as nossas inseguranças e vencê-las. O teatro tem todas essas capacidades! Está a ser um desafio espetacular.
Já estamos no terceiro ano e todos os anos encenamos um espetáculo com eles.
Aproximando-se o Dia Internacional da Mulher, qual a sua figura feminina de referência?
Ahh! Isso é... uff... Não consigo nomear uma figura! Posso falar de três mulheres. Estou agora a trabalhar nas "Novas Cartas Portuguesas", obra literária da Maria Isabel Barreno, da Maria Teresa Horta e da Maria Velho da Costa. Nestes últimos meses têm sido as minhas grandes referências femininas. Estou a organizar uma espécie de maratona de leitura com a obra para assinalar o Dia Internacional da Mulher. Portanto, estas três mulheres são, sem dúvida nenhuma, uma referência enorme de resistência, coragem e luta pelos direitos da mulher através da arte.
Que dificuldades é que sentiu enquanto mulher no seio da indústria artística em Portugal?
Umas de forma mais direta, outras menos, porque o sistema funciona assim… Só pelo facto de sabermos que há mais papéis para homens do que para mulheres. Há pouco tempo recordei uma história, que me chocou e me fez perceber a minha condição de mulher. Na altura do "Love Actually", em 2003, antes do filme sair, encontrei uma agente inglesa - porque o filme ia sair e ia ser exibido no mundo inteiro - e íamos começar a trabalhar. Entretanto engravidei e liguei-lhe, estava super feliz quando lhe disse: "estou grávida, vou estar um bocadinho mais condicionada, a barriga vai crescer! Queria que soubesses disto". Ela disse-me: "vais ter de escolher, porque estás numa altura da tua carreira em que tens todas as oportunidades à tua frente. Portanto, ou és mãe ou segues a tua carreira". O pior é que foi uma mulher a fazer-me isto, o que é mais grave. Aquilo bateume... pff sei lá! Eu fiquei congelada. Fiquei chocadíssima, triste, foi muito chocante. Só consegui descrever o que senti anos mais tarde. Na altura ela diz-me aquilo - escolhe. Eu disse, "ok, já escolhi, vou ser mãe"! E foi o que aconteceu. Não hesitei, porque não tinha sequer dúvidas. Agora, ser posta nesta situação é muito grave.
Como é que a arte pode servir de forma de contestação em prol da luta feminista?
As "Novas Cartas Portuguesas" são um grande exemplo, o que é transversal a toda a arte interventiva, que queira dar voz a quem não a tem devido à opressão. Este livro deu-me força para falar. A literatura e, em especial, esta obra, foi e é um grande exemplo de manifestação pela arte, por ter conseguido fazer o chão tremer. A arte tem essa força de provocar quem não quer ser provocado.
Que mensagem gostava de passar a uma mulher que está agora a iniciar um percurso nas artes em Portugal?
Eu nunca tive jeito para fazer esse tipo de coisas, não arrisco. No meu percurso comunico com outras mulheres, já servi de apoio a algumas e fui apoiada por outras. Uma coisa que eu possa dizer concreta, não sei. Que horror! Posso dizer que aquilo que fiz no meu percurso foi ser verdadeira comigo própria e não me submeter a qualquer situação que sinta que é um cortar dos meus direitos como mulher e como profissional. É preciso acreditar que tem de haver igualdade: não só nas artes, mas em todas as profissões, as mulheres e homens podem exercer todo o tipo de funções.
Com Marília Lemos