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Conselho Feminino: a outra metade da História

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MÚSICA

MÚSICA

- POR ANA CARDOSO, LENA HERTEL E DISA PALMA -

Em 1947, surgia numa Via Latina (VL): “A realidade é esta: elas estão aqui. Aqui e nas outras universidades. No entanto, ainda ninguém as viu…”. Este artigo afirma que a nova Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) prevê a criação de uma Comissão Feminina e realça a necessidade de pensar os problemas “culturais e especificamente femininos” para a rapariga “cumprir a missão que traz”. Assim, em 1948, os Estatutos da AAC incluem o Conselho Feminino (CF) e, em 1949, acontece a primeira eleição para o órgão. Composto por uma representante de cada Faculdade e Escola, criava atividades “mais apropriadas e do interesse do público feminino”.

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“A mulher é principalmente mulher ou estudante?” (Revista FLAMA, 1954)

Manuela Cruzeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (UC), analisou a participação das mulheres nos movimentos associativos. Na sua perspetiva, “a evolução do CF refletiu as contradições, os avanços e os recuos no que respeita à participação das mulheres”. Explica que, no início, era um “grupo de jovens destinadas à missão de mães, esposas, fadas do lar”. Registos na VL sobre a sua atividade - como costura ou culinária - corroboram esta afirmação. “Era um órgão pouco valorizado, tanto que funcionava numa cozinha, o que indica para onde as raparigas eram remetidas”, continuou.

Contudo, a sua participação na AAC - secções, organismos autónomos e Assembleias Magnas (AM) - continuava a ser escassa. A presidente do CF em 1960/1961, Eliana Gersão, refere que esta ausência se devia à falta de atividades e também “à imagem da mulher recatada, que tinha de ter cuidado com os meios que frequentava e ser bem comportada”.

Apesar da visão conservadora do CF e da sua desvalorização, as estudantes eleitas procuravam que as raparigas “tivessem o seu lugar dentro da Academia”, como se lê num artigo publicado na VL, em 1955. Manuela Cruzeiro refere que “só nos anos 50 é que elas começam a entrar no ambiente académico”. Acrescenta que estudar era uma “mera adição à natureza da essência feminina”, que não era suposto mudar.

O mesmo artigo relata um conjunto de iniciativas desportivas e “femininas” organizadas e termina com um apelo à participação: "É às raparigas, a todas nós, afinal, que compete reagir contra a apatia e lutar para que não volte a perder-se o terreno conquistado”. As lamentações “surgem muitas vezes quando a inércia e o comodismo nos invadem”, conclui.

Todavia, a proatividade destas estudantes não era a norma. “Notava o choque que tinham as meninas que vinham sobretudo do interior e dos colégios de freiras”, conta-nos a vice -presidente do CF em 1962, Isabel de Alarcão. “Vinham de um mundo muito conservador, muito fechado”, relembra. É neste contexto que tinha conhecimento deste e, ao notar a sua reduzida expressão, almejou dinamizá-lo.

“Ou os comunistas ou nós”

No mesmo ano, em maio, começou um clima de mudança. Uma lista de esquerda, representante do Conselho de Repúblicas (CR), vence as eleições para a DG/AAC. A vitória de Carlos Candal surpreendeu a Academia, já que “perdiam sempre as eleições”, conta Eliana Gersão. A nova equipa promoveu novas atividades e secções. Eliana revela “um certo deslumbramento por conhecer novas pessoas, novas atividades e novos sítios”, tal como aconteceu a “centenas de raparigas e rapazes”. Este ambiente fez-se sentir no CF. Mantiveram as atividades anteriores, mas fizeram outras, como a criação de sessões de educação sexual disfarçadas, que tiveram “muito sucesso”.

Devido a estas alterações, começou a intensificar-se a oposição de setores conservadores face à DG/AAC, uma vez que não aceitavam uma atitude tão favorável a uma direção de esquerda. Assim, para Eliana Gersão, a maneira que se arranjou para fragilizar a AAC foi “atacar as raparigas”. Os dois meses que se seguiram foram “verdadeiramente infernais”.

Com o intuito de fortalecer a cooperação entre as academias de Lisboa, Porto e Coimbra, em fevereiro de 1961 organizou-se um convívio InterAcademias com atividades sobre os problemas estudantis, bailes e conversas. Contudo, “a cidade [surgiu] coberta de panfletos” anónimos - metidas pelas raparigas, como dormirem em repúblicas, vistas como casas de boémia apenas frequentadas por rapazes, relata Eliana.

Perante estas críticas, o CF apoiou a posição da DG/AAC e lançou um comunicado no qual repudiava “as injúrias e mentiras” dos panfletos. Isto valeu-lhes um voto de louvor da AM, que manifestou “a sua alegria pelo progressivo interesse das raparigas nas iniciativas académicas”. Todavia, em resposta a este voto de louvor, foi convocada uma Assembleia Geral de Raparigas, por estudantes sobretudo dos lares católicos, que aprovaram um voto de censura “pelo modo independente como [o CF] atuou”.

Eliana conta ainda que foi obrigada a escolher entre “os comunistas” ou permanecer na Juventude Universitária Católica Feminina.

“Na AAC ninguém me perguntou se ia à missa, se acreditava em Deus”, revela. Para a entrevistada, era “evidente que nunca iria deixar a AAC”. Porém, foi uma “rutura difícil porque, de certo modo, era cortar com uma etapa” da sua vida, explica. “Houve muitas pessoas que deixaram de me falar e cumprimentar, assim como à minha família”, expõe.

“Separa-nos um muro alto e espesso”

Em 19 de abril de 1961, após os ânimos acalmarem, surgiu publicada na VL aquilo que Isabel de Alarcão denomina “uma pedrada no charco”: a “Carta a uma jovem portuguesa”. Por Artur Marinha de Campos, mas assinada anonimamente, ousou defender o amor livre, denunciou a existência de um muro entre rapazes e raparigas, e a condição subalterna a que era submetida. Este artigo suscitou “uma reação muito grande, sobretudo do setor católico”.

Segundo a antiga estudante, a carta apresenta “uma certa sensualidade para a época”.

Para Isabel de Alarcão, a Carta surge na altura em que “a água começava a ferver”. Acrescenta ainda que, “subjacente, está sempre a ideia de que para chegar à liberdade é preciso a libertação”. Já Eliana considera que “foi inoportuna porque se estavam a preparar as eleições para o ano seguinte”. Especula que o facto de a censura ter autorizado a sua publicação pode ter sido “uma armadilha para fragilizar todo o movimento associativo”.

Deste modo, o CF volta a uma situação complicada. Não podiam tomar uma posição a favor, porque também representavam as estudantes conservadoras. Por outro lado, não podiam tomar uma posição contra, visto que “isso seria trair a Associação Académica”. Eliana conta que com a ajuda do Padre Miguel Pereira, professor de Filosofia ligado a um setor progressista, escreveu um comunicado “que dá tanto para um lado como para o outro”.

Ao reler a Carta anos depois, Isabel de Alarcão e Eliana concordam que tinha um tom paternalista. Eliana diz que isso pode ter contribuído para irritar algumas raparigas. Contudo, refere que, numa época em que os “comportamentos sexuais entre jovens eram muito conservadores, a Carta foi um marco onde as coisas começaram a mudar”.

“Significa que a jovem e o jovem trabalham finalmente lado a lado” (VL, 1961)

Segundo Manuela Cruzeiro, o CF começou a fragmentar-se quando Eliana Gersão e Maria da Glória (vice-presidente) ficaram sozinhas, devido aos episódios relatados. Todavia, com o aumento da presença das estudantes na AAC e a “avalanche de acontecimentos” ao longo da década de 60, o seu trabalho “foi engolido”. Aliás, Isabel de Alarcão tomou posse em 1962 e recorda-se de ter organizado uma atividade com pouca adesão das estudantes. Tudo isto leva a que o CF perca relevância e deixe de fazer sentido.

Em 1964, já havia vontade de acabar com o órgão, mas o seu caráter estatutário dificultava o procedimento. Em 68, começa a ser repensado, como consta no programa eleitoral da DG/ AAC eleita, pois “o rapaz e a rapariga têm os mesmos problemas”. No âmbito de uma problemática estudantil “não nos parece lícito estar a distinguir”. A propósito, Manuela Cruzeiro conta que “a discriminação positiva não estava plenamente assumida” e que ”as bandeiras do feminismo não tinham sido ainda postas às claras”. As relações íntimas eram ”matéria do foro pessoal”, adiciona. Refere ainda o “grande cuidado” nas demonstrações de afeto em público, pois, ainda que fossem aceites entre alguns estudantes, "seriam penalizadas se fossem bandeiras assumidas publicamente".

Assim, a luta da mulher era abafada pelas lutas sociais e políticas. Elas colocavam os interesses do país e o combate às desigualdades sociais como prioridades. No entanto, o desaparecimento do CF era previsto por Eliana em 1961, num artigo escrito para a VL: “não significa que os seus interesses foram esquecidos, significa que [a estudante] tomou finalmente consciência do papel que lhe pertence dentro da AAC”

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