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DOCUMENTO 1

Documento 1

REPUBLICAÇÃO DO CONTEÚDO DA REVISTA CONSCIÊNCIA E LIBERDADE DE 1999

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O conteúdo deste Documento é um excerto da edição especial da revista Consciência e Liberdade de 1999, dedicado ao movimento em curso de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa. Ele reflete tanto o panorama jurídico da liberdade religiosa à data, como os passos iniciais da reforma que conduziu à Lei da Liberdade Religiosa, dois anos depois.

ÍNDICE

EDITORIAL ............................................................................................. 29

A Reforma da Lei da Liberdade Religiosa ..................................................... 32

A Liberdade Religiosa em Portugal em 1999 Concordata entre Portugal e a Santa Sé, de 1940 ........................................ 34

Liberdade Religiosa – Lei nº 4/71 de 21 de agosto ...................................... 43

Petição nº 159/VI (2ª) .................................................................................. 51

Relatório Final e Parecer da Comissão de Petições ..................................... 58

Constituição da República Portuguesa, sobre matéria religiosa: Art.º 13º. nº 2; 41º; 43ª. nº3 ................................. 68

Ministério da Justiça – Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa ................................. 70

Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa – Desp. 96/MJ/96, 8 de abril......................................................................... 72

REFLEXÕES E PROPOSTAS DAS CONFISSÕES RELIGIOSAS

A) Reflexões e Propostas da Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) sobre a Liberdade Religiosa em Portugal ..................................................... 75

B) Reflexões e Propostas da União dos Adventistas do Sétimo Dia (UPASD) sobre a Liberdade Religiosa em Portugal ................................................... 108

C) Reflexões e Propostas da Comunidade Islâmica de Lisboa sobre a Liberdade Religiosa em Portugal ................................................... 122

EDITORIAL

“Seitas”, novas espiritualidades, novos movimentos religiosos, religiões secularizadas, etc. Os especialistas em sociologia religiosa ou em história das religiões estão em sintonia para declarar que ainda não existe um termo apropriado para identificar o fenómeno atual das novas manifestações da religiosidade. Seja como for, a fragmentação faz parte da paisagem religiosa da Europa ocidental. Isto é inquietante! A conotação negativa do termo “seita” na linguagem comum testemunha isto suficientemente. A década entre 1960-1970, conheceu profundas modificações na maneira de responder às questões da existência. Depois, o que se poderia chamar de “revolução espiritual” não parou de se ampliar. Com efeito, aquilo que podemos constatar no presente momento não é senão uma pequena parte da questão. “Sem entrar em profundas considerações acerca da natureza do sagrado no final do século XX, constatamos um surto de toda uma religiosidade difusa e ‘selvagem’ independente das instituições. Por causa das polémicas que as envolve, olha-se com desconfiança para os movimentos religiosos estruturados. Mas paralelamente, cada vez mais gente, mesmo entre os fiéis de outras Igrejas, adota ideias saídas da ‘religiosidade paralela’, suficientemente maleável para penetrar um pouco por todo o lado. Com efeito, as novas religiões, com sucesso individual limitado, não são tomadas coletivamente, senão na ponta do iceberg que é visível”.1 Portugal não permaneceu incólume a todos estes movimentos. A imprensa portuguesa já vem fazendo, há algum tempo, eco destes movimentos. No entanto, apesar de geograficamente distantes, os dramas de Salvan e Chèry, na Suíça, e no Vercors francês, provocados pela Ordem do Templo; ou ainda as disputas da Cientologia com a justiça e com as autoridades na Alemanha e em França, suscitaram também um sentimento que dificulta qualquer abordagem sobre a situação dos movimentos religiosos minoritários. É neste contexto, e para prevenir eventuais abusos, que o Ministro da Justiça, Dr. José Vera Jardim, anunciou no dia 24 de abril de 1996,

1 Jean-François Mayer, Les sectes et vous, p. 37.

a criação de uma Comissão encarregada de estudar uma emenda à atual Lei da Liberdade Religiosa. O Conselheiro José de Sousa Brito, juiz no Supremo Tribunal Constitucional, foi nomeado para presidir a essa Comissão. Ela deverá brevemente entregar o seu relatório ao Ministro da Justiça. O método de trabalho escolhido pela Comissão consistiu, numa primeira fase, em consultar as Igrejas estabelecidas em Portugal para conhecer as suas reflexões acerca da situação do direito das religiões no País e também as suas propostas em matéria legislativa neste domínio. Foi enviada uma carta pela Comissão no mês de junho de 1996. Neste momento, 210 Igrejas responderam ao apelo; 18 de entre elas apresentaram as suas propostas acerca da Lei. Paralelamente a esta consulta, a Comissão pode consultar diferentes departamentos dependentes do governo para obter informações necessárias para que os trabalhos avancem. Neste contexto, acompanhado pelo Professor Daniel Basterra, magistrado na Audiência Nacional de Espanha, e pelo advogado Jorge Rodrigues, e pelo Dr. Joaquim Dias, Presidente da Secção Portuguesa da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, tive o privilégio de ser recebido na qualidade de Secretário-Geral da AIDLR, por Sua Excelência o Ministro da Justiça, Dr. José E. Vera Cruz Jardim, a 16 de maio de 1996, em Lisboa. No encontro foram abordadas as preocupações atuais suscitadas pela ação de certos grupos religiosos novos, que apareceram em Portugal e a necessidade de harmonizar o direito das religiões perante as desigualdades existentes, com a preocupação de respeitar a liberdade religiosa para todos. O Ministro sublinhou que o “objetivo da comissão é procurar uma maneira de estabelecer direitos iguais para as diferentes confissões religiosas não-católicas aos concedidos à Igreja Católica, guardadas as proporções”. Tendo em conta o seu caráter de tratado internacional, a Concordata assinada entre Portugal e a Santa Sé não pode ser modificada por este projeto. Este encontro foi seguido de outros dois, um com o Conselheiro José de Sousa e Brito, Presidente da Comissão para a Reforma da Lei sobre a Liberdade Religiosa, e outro com o Professor Jorge Miranda, reitor da Faculdade de Direito em Lisboa, o pai da Constituição Portuguesa e membro do Conselho de Honra desta Associação.

O Ministro da Justiça, e o Conselheiro Sousa e Brito insistiram que na reflexão da Comissão se interessassem pelo modelo espanhol e italiano como tipos de relações do Estado com as Igrejas. Esta é a razão de ser desta edição em português da Revista Consciência e Liberdade. Aqui estão documentos inerentes ao direito religioso nos três países: Portugal, Espanha e Itália. No que diz respeito a Portugal, os limites impostos pelo número de página da Revista obrigaram-nos a uma escolha de documentos. Retivemos aqueles que nos parecem mais significativos. Nesta publicação estão as diferentes reflexões submetidas à Comissão pela União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia (UPASD) e da Aliança Evangélica Portuguesa, sendo esta a organização mais representativa do mundo protestante em Portugal. A UPASD, com a colaboração do Dr. Jorge Rodrigues, apresentou ainda, além de algumas reflexões sobre a Liberdade Religiosa, a sua proposta de lei e em consequência desta, um projeto de alteração a introduzir no Código Civil, respeitante ao casamento. O objetivo deste número especial, é contribuir, através da informação para o progresso da Liberdade de Consciência, de Religião ou de Convicção. O leitor atento descobrirá certamente a pertinência dos documentos publicados à luz dos debates que agitam a opinião pública. É importante, em democracia, através da lei, proteger a igualdade dos cidadãos e fazer respeitar os direitos fundamentais do homem. A este propósito é de saudar a iniciativa do Ministro da Justiça, o Dr. José Vera Jardim. Mas, como escreveu em 1980, Pierre Lanarès, no seu editorial desta revista em língua francesa: “As palavras nada são se não encontram eco nos corações (…)”, mesmo as palavras utilizadas nos textos legislativos.

Maurice Verfaillie

Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR).

A Reforma da Lei da Liberdade Religiosa

ALei da Liberdade Religiosa em vigor em Portugal – Lei 4/71, de 21 de agosto, está a ser reformada por se tornar insatisfatória a situação do direito português nesta matéria. A situação insatisfatória do direito português no respeitante à Liberdade Religiosa e as vantagens de dar a conhecer os diplomas jurídicos existentes, como as várias intervenções tendentes a normalizar esta matéria, estão na base da publicação deste número especial da revista Consciência e Liberdade.

Seguindo a ordem cronologia: 1. A Concordata, celebrada entre o Estado Português e a Santa

Sé, em 7 de Maio de 1940, a qual foi modificada por um Protocolo Adicional de 15 de fevereiro de 1975. 2. A Lei 1/71 de 21 de agosto de 1971 sobre a Liberdade Religiosa, que conforme se pode verificar, especialmente na base

XVIII, não pretendeu estabelecer uma efetiva igualdade. 3. A Petição nº 159/VI (2ª) DAR, 2ª C.d 12.2.93-6/129, subscrita por 11 654 cidadãos. 4. O Relatório Final e Parecer da Comissão de Petições. 5. A Constituição da República Portuguesa: a. Artigo 13º. nº 2 – Proíbe qualquer discriminação com fundamento religioso. b. Artigo 41º - Consagra claramente a liberdade religiosa e a separação entre o Estado e as Igrejas. c. Artigo 43º. Nº 3 – Impõe-se um ensino público não confessional. 6. O despacho 96/MJ/96, de 28 de abril de 1996, com o reconhecimento explícito de que “em matéria religiosa o direito português apresenta uma situação que poderemos considerar insatisfatória” e que nomeia uma Comissão para a Reforma da Lei da Liberdade Religiosa. 7. A Comunicação da referida Comissão às Igrejas e Confissões religiosas solicitando destas “não apenas as reflexões que en-

tenderem apesentarem, mas também, de forma especial, propostas em matéria legislativa”. 8. Respostas à referida solicitação da Comissão: entre as 210 respostas em forma de reflexão, 18 eram propostas em matéria legislativa enviadas à Comissão, Consciência e Liberdade, teve acesso a: a. Reflexões e propostas legislativas apresentadas pela Aliança Evangélica Portuguesa. b. Reflexões e propostas legislativas apresentadas pela União

Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia. c. Propostas da Comunidade Islâmica de Lisboa.

Para um contributo ainda mais válido e o enriquecimento do debate público que se pretende, publicam-se também os diplomas jurídicos e acordos celebrados na Espanha e na Itália, referidos no Desp. 96/ MJ/96, como possíveis modelos a seguir em Portugal para a igualdade de direitos e a eliminação das presentes lacunas inaceitáveis no domínio da Liberdade Religiosa.

A Liberdade Religiosa em Portugal em 1999

Concordata entre Portugal e a Santa Sé, de 1940

Em nome da Santíssima Trindade, Sua Santidade o Sumo Pontífice Pio XII e Sua Excelência o Presidente da República Portuguesa, dispostos a regular por mútuo acordo e de modo estável a situação jurídica da Igreja Católica em Portugal, para a Paz maior da Igreja e do Estado, resolveram concluir entre si uma solene Convenção que reconheça e garanta a liberdade da Igreja e salvaguarde os legítimos interesses da Nação Portuguesa, inclusivamente no que respeita às Missões Católicas e ao Padroado do Oriente. Para tal efeito, Sua Santidade nomeou como seu Plenipotenciário, Sua Eminência Reverendíssima o Senhor Cardeal Luigi Maglione, seu Secretário de Estado; o Senhor Presidente da República Portuguesa nomeou como Seus Plenipotenciários: Sua Excelência o Sr. General Eduardo Augusto Marques, antigo Ministro das Colónias, Presidente da Câmara Cooperativa, Grã-Cruz das Ordens militares de Cristo de S. Bento de Aviz e da Ordem do Império Colonial; Sua Excelência o Sr. Doutor Mário Figueiredo, antigo Ministro da Justiça e dos Cultos, Professor e Diretor da Faculdade de Direito na Universidade de Coimbra, Deputado e Grã-Cruz da Ordem militar de Santiago da Espada; Sua Excelência o Sr. Doutor Vasco Francisco Caetano Quevedo, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto da Santa Sé, Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e Cavaleiro de Grã-Cruz da Ordem de S. Gregório Magno; os quais, trocados os seus respetivos plenos poderes e achados em boa e devida forma, acordaram nos artigos seguintes:

Art.º I

A República Portuguesa reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica.

As relações amigáveis com a Santa Sé serão asseguradas na forma tradicional porque historicamente se exprimiam, mediante um Núncio Apostólico junto da República Portuguesa e um Embaixador da República junto da Santa Sé.

Art.º II

É garantido à Igreja Católica o livre exercício da sua autoridade: na esfera da sua competência, tem a faculdade de exercer os atos do seu poder de ordem e jurisdição sem qualquer impedimento. Para tanto, a Santa Sé pode livremente publicar qualquer disposição relativa ao governo da Igreja e, em tudo quanto se refere ao ministério pastoral, comunicar e corresponder-se com os prelados, clero e todos os católicos de Portugal, assim como estes podem com a Santa Sé, sem necessidade de prévia aprovação do Estado para se publicarem e correrem dentro do País as bulas e quaisquer instruções ou determinações da Santa Sé. Nos mesmos termos gozam desta faculdade os Ordinários e demais Autoridades eclesiásticas relativamente ao clero e fiéis.

Art.º III

A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica. O reconhecimento por parte do Estado da personalidade jurídica das associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente eretos, resulta da simples participação escrita à Autoridade competente feita pelo Bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante. Em caso de modificação ou de extinção, proceder-se-á do mesmo modo que para a constituição, e com os mesmos efeitos.

Art.º IV

É reconhecida à Igreja Católica em Portugal a propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e estão ainda na posse do Estado, como templos, paço, episcopais e residências paroquiais com os seus passais, seminário com as suas cercas, casas de institutos religiosos, paramentos, alfaias e outros objetos afetos ao culto e religião católica, salvo os que se encontrem atualmente aplicados a serviços públicos ou classificados como «monumentos nacionais» ou como «imóveis de interesse público». Os bens referidos na alínea anterior que não estejam atualmente na posse do Estado podem ser transferidos à Igreja pelos seus possuidores sem qualquer encargo de caráter fiscal, desde que o ato de transfe-

rência seja celebrado dentro do prazo de seis meses a contar da troca das ratificações desta Concordata. Os imóveis classificados como «monumentos nacionais» e como «de interesse público», ou que venham a ser dentro de cinco anos a contar da troca de ratificações, ficarão em propriedade do Estado com a afetação permanente ao serviço da Igreja. Ao Estado cabe a sua conservação, reparação e restauração de harmonia com o plano estabelecidos, de acordo com a Autoridade Eclesiástica, para evitar perturbações no serviço religioso; à Igreja incube a sua guarda e regime interno, designadamente no que respeita ao horário de visitas, na direção das quais poderá intervir um funcionário nomeado pelo Estado. Os objetos destinados ao culto que se encontrem em algum museu do Estado ou das autarquias locais ou inconstitucionais, serão sempre cedidos para as cerimónias religiosas no templo ao qual pertenciam, quando este se ache na mesma localidade onde estão guardados os ditos objetos. A cedência far-se-á por requisição da competente Autoridade Eclesiástica, que velará pela guarda dos objetos cedidos, sob a responsabilidade de fiel depositário.

Art.º VII

Nenhum templo, edifício, dependência ou objeto de culto católico pode ser demolido ou destinado pelo Estado a outro fim, e não pode ser por acordo prévio com a Autoridade eclesiástica competente ou por motivo de urgente necessidade pública, como guerra, incêndio ou inundação. No caso de expropriação por utilidade pública, será sempre ouvida a respetiva Autoridade eclesiástica, mesmo sobre o quantitativo de indemnização. Em qualquer caso, não será praticado ato algum de apropriação sem que os bens expropriados sejam privados do seu caráter sagrado.

Art.º VIII

São isentos de qualquer imposto ou contribuição, geral ou local, os templos e os objetos nele contidos, os seminários ou quaisquer estabelecimentos destinados à formação do clero, e bem assim os editais e aviso afixados à porta das Igrejas, relativos ao ministério sagrado; de igual isenção gozam os eclesiásticos pelo exercício do seu múnus espiritual.

Os bens e entidades eclesiásticas não compreendidos na alínea precedente, não poderão ser onerados com impostos ou contribuições especiais.

Art.º IX

Os Arcebispos e Bispos residenciais, seus coadjutores cum iure successionis e auxiliares, os párocos, os reitores dos seminários, e em geral os diretores e superiores de institutos ou associações dotados de personalidade jurídica, com jurisdição numa ou mais províncias do país, deverão ser cidadãos portugueses.

Art.º X

A Santa Sé, antes de proceder à nomeação de um Arcebispo ou Bispo residencial ou de um coadjutor cum iure successionis, salvo o que está disposto a respeito do Padroado e do Semi-Padroado, comunicará o nome da pessoa escolhida ao Governo Português a fim de saber se contra ela há objeções de caráter político geral. O silêncio do Governo, decorridos trinta dias sobre a referida comunicação, será interpretado no sentido de que não existem objeções. Todas as diligências previstas neste artigo ficarão secretas.

Art.º XI

No exercício do seu ministério, os eclesiásticos gozam da proteção do Estado, nos mesmos termos que as autoridades públicas.

Art.º XII

Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham conhecimento por motivo do sagrado ministério.

Art.º XIII

Os eclesiásticos são isentos da obrigação de assumir os cargos de jurados, membros de tribunais ou comissões de impostos, e outros da mesma natureza considerados pelo Direito Canónico como incompatíveis com o estado eclesiástico.

Art.º XIV

O serviço militar será prestado pelos sacerdotes e clérigos sob a forma de assistência religiosa às forças armadas, e, em tempo de guerra, também nas formações sanitárias. Todavia o Governo providenciará para que mesmo em caso de guerra o dito serviço militar se realize com o menor prejuízo possível para a cura das almas das populações na Metrópole e no Ultramar Português.

Art.º XV

O uso do hábito eclesiástico ou religioso por parte de seculares ou de pessoas eclesiásticas ou religiosas a quem tenha sido interdito por medida das competentes Autoridades eclesiásticas, oficialmente comunicada às autoridades do Estado, é punido com as mesmas penas que o uso abusivo de uniforme próprio de um emprego público. É punido nos mesmos termos o exercício abusivo de jurisdição e de funções eclesiásticas.

Art.º XVI

É assegurado à Igreja Católica o livre exercício de todos os atos de culto, privado ou público, sem prejuízo das exigências de polícia e trânsito.

Art.º XVII

Para garantir a assistência espiritual nos hospitais, refúgios, colégios, asilos, prisões e outros estabelecimentos similares do Estado, das Autarquias locais e institucionais e das Misericórdias, que não tenham capela e serviço privativo para este efeito, é livre o acesso ao pároco do lugar e ao sacerdote encarregado destes serviços pela competente Autoridade eclesiástica, sem prejuízo da observância dos respetivos regulamentos, salvo em caso de urgência.

Art.º XVIII

A República Portuguesa garante a assistência religiosa em campanha às forças de terra, mar e ar; para este efeito, organizará um corpo de capelães militares, que serão considerados oficiais graduados. O Bispo que desempenhar as funções de Ordinário Castrense será nomeado pela Santa Sé de acordo com o Governo.

Para as expedições coloniais poderá ser nomeado Ordinário Castrense um Bispo que tenha sede na respetiva colónia. O Ordinário Castrense pode nomear, de acordo com o Governo, um Vigário Geral. Os capelães militares serão nomeados, de entre os sacerdotes apurados para os serviços auxiliares, pelo Ordinário Castrense, de acordo com o Governo. Os capelães militares têm jurisdição paroquial sobre as suas tropas, e estas gozam, quanto aos seus deveres religiosos, dos privilégios e isenções concedidos pelo Direito Canónico.

Art.º XIX O Estado providenciará no sentido de tornar possível a todos os católicos, que estão ao seu serviço ou que são membros das suas organizações, o cumprimento regular dos deveres religiosos nos domingos e dias festivos.

Art.º XX

As associações e organizações da Igreja podem livremente estabelecer e manter escolas particulares paralelas às do Estado, ficando sujeitas, nos termos do direito comum, à fiscalização deste e podendo, nos mesmos termos ser subsidiadas e oficializadas. O ensino religioso nas escolas e cursos particulares não depende de autorização do Estado, e poderá ser livremente ministrado pela Autoridade eclesiástica ou pelos seus encarregados. É livre a fundação dos seminários ou de quaisquer outros estabelecimentos de formação ou alta cultura eclesiástica. O seu regime interno não está sujeito à fiscalização do Estado. A este deverão, no entanto, ser comunicados os livros adotados das disciplinas não filosóficas ou teológicas. As autoridades eclesiásticas competentes cuidarão do ensino das disciplinas especiais, como no da História, tendo em conta o legítimo sentimento patriótico português.

Art.º XXI O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelo princípio da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País. Consequentemente, ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas nas escolas

públicas elementares, complementares e médias aos alunos cujos pais, ou quem as suas vezes fizer, não tiverem feito o pedido de isenção. Nos asilos, nos orfanatos, estabelecimentos e institutos oficiais de educação de menores, e de correção ou reforma, dependentes do Estado, será ministrado por conta dele o ensino da religião católica e assegurada a prática dos seus preceitos. Para o ensino da religião católica, o texto deverá ser aprovado pela Autoridade eclesiástica e os professores serão nomeados pelo Estado de acordo com ela; em nenhum caso poderá ser ministrado sobredito ensino por pessoas que a Autoridade eclesiástica não tenha aprovado como idóneas.

Art.º XXII

O Estado Português reconhece efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas desde que a ata do casamento seja transcrita nos competentes registos do estado civil. As publicações do casamento far-se-ão não só nas respetivas Igrejas paroquiais, mas também nas competentes repartições do registo civil. Os casamentos in articulo mortis, em iminência de parto, ou cuja imediata celebração seja expressamente autorizada pelo Ordinário próprio por grave motivo de ordem moral, poderão ser contraídos independentemente do processo preliminar das publicações. O pároco enviará dentro de três dias cópia integral da ata do casamento, à repartição competente do registo civil, para ser aí transcrita; a transcrição deve ser feita no prazo de dois dias e comunicada pelo funcionário respetivo ao pároco até ao dia imediato àquele em que foi feita com indicação da data. O pároco que, sem graves motivos, deixar de enviar a cópia da ata dentro do prazo inerente incorre nas penas de desobediência qualificada; e o funcionário do registo civil que não fizer a transcrição no tempo devido incorrerá nas penas cominadas pela lei orgânica do serviço.

Art.º XXIII

O casamento produz todos os efeitos civis desde a data da celebração, se a transcrição for feita no prazo de sete dias. Não o sendo, só produz efeitos, relativamente a terceiros, a contar da data da transcrição. Não obsta à transcrição a morte de um ou ambos os cônjuges.

Art.º XXIV

Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos.

Art.º XXV

O conhecimento das causas concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado, é reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes. As decisões e sentenças destas repartições e tribunais, quando definitivas, subirão ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica para verificação, e serão depois, com os respetivos decretos daquele Supremo Tribunal, transmitidas, pela via diplomática, ao Tribunal da Relação do Estado, territorialmente competente, que as tornará executivas e mandará que sejam averbadas aos registos civis, à margem da ata do casamento.

Art.º XXVI

A divisão eclesiástica do Ultramar Português será feita em dioceses e circunscrições missionárias autónomas. Dentro de umas e de outras podem ser eretas direções missionárias pelos respetivos prelados de acordo com o Governo. Os limites das dioceses e circunscrições missionárias serão fixados de maneira a corresponderem, na medida do possível, à divisão administrativa.

Art.º XXIX

São consideradas em vigor as disposições da Concordata de 21 de fevereiro de 1857, ressalvadas pela Concordata de 23 de junho de 1886, umas e outras na parte não atingida por acordos posteriores, designadamente pelos de 15 de abril de 1928, e de 11 de abril de 1929, bem como por esta Convenção.

Art.º XXX

Se vier a surgir qualquer dúvida na interpretação desta Concordata, a Santa Sé e o Governo Português procurarão de comum acordo uma solução amigável.

Art.º XXXI

A presente Concordata, cujos textos em língua portuguesa, e em língua italiana farão igualmente fé, será ratificada e entrará em vigor logo que sejam trocados os instrumentos de ratificação, salvo na parte cuja execução depende da legislação interna complementar da República Portuguesa, em que entrará em vigor só com essa mesma legislação. A entrada em vigor desta não poderá diferir-se além do prazo de dois meses a contar da ratificação.

Feito um duplo exemplar. Cidade do Vaticano, 7 de maio de 1940.

L. + S. L. Card. Maglione L. + S. Eduardo Augusto Marques L. + S. Mário Figueiredo L. + S. Vasco Francisco Caetano de Quevedo

Liberdade Religiosa Lei nº 4/71 de 21 de Agosto

Em nome da Nação, a Assembleia Nacional decreta e promulga a lei seguinte:

I – Princípios Fundamentais

BASE I

O Estado reconhece e garante a liberdade religiosa das pessoas e assegura às confissões religiosas a proteção jurídica adequada.

BASE II

1. O Estado não professa qualquer religião e as suas relações com as confissões religiosas assentam no regime da separação. 2. As confissões religiosas têm direito a igual tratamento, ressalvada as diferenças impostas pela sua diversa representatividade.

II – Conteúdo e Extensão da Liberdade Religiosa

BASE III

É lícito às pessoas, em matéria de crença e de culto religioso:

a. Ter ou não ter religião, mudar de confissão ou abandonar a que tinham, agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que pertençam; b. Exprimir as suas convicções; c. Difundir, pela palavra, por escrito ou outros meios de comunicação, a doutrina da religião que professam; d. Praticar os atos de culto, particular ou público, próprios da religião professada.

BASE IV

1. Ninguém será obrigado a declarar se tem ou não religião, nem qual a religião que professa, a não ser, com caráter confidencial, em inquérito estatístico ordenado por lei. 2. Ninguém pode ser perseguido, nem privado de um direito ou isento de um dever, por causa das suas convicções religiosas; e nenhuma discriminação se fará, por motivo delas, no acesso aos cargos públicos ou na atribuição de quaisquer honras ou dignidades oficiais.

BASE V

1. É lícita a reunião das pessoas para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos da vida religiosa. 2. Não dependem de autorização oficial nem de participação às autoridades civis as reuniões com as finalidades indicadas no nº 1, promovidas pelas confissões religiosas reconhecidas, desde que se realizem dentro de templos ou lugares a ela especialmente destinados, bem como a celebração de ritos, próprios dos atos fúnebres dentro dos cemitérios.

BASE VI

1. A assistência a atos de culto religioso, ainda que celebrados em unidades militares ou em estabelecimentos públicos, é facultativa. 2. Podem, todavia, os atos de culto religioso ser prescritos com caráter obrigatório, em estabelecimentos educativos ou de formação, ou em instituições penitenciárias, ou de reeducação, para os menores cujos pais ou tutores não tenham pedido isenção.

BASE VII

1. O ensino ministrado pelo Estado será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País.

2. O ensino da religião e moral nos estabelecimentos de ensino será ministrada aos alunos, cujos pais ou quem suas vezes fizer, não tiverem pedido isenção. 3. Os alunos maiores de 18 anos, poderão fazer eles próprios o pedido de isenção. 4. Para o efeito, no ato de inscrição em qualquer estabelecimento em que se ministre o ensino de religião e moral, aquele a quem competir declarará se o quer ou não. 5. A inscrição em estabelecimentos mantidos por entidades religiosas implica a presunção da aceitação do ensino da religião e moral da respetiva confissão, salvo declaração pública em contrário dos seus dirigentes.

BASE VIII

1. A ninguém será lícito invocar a liberdade religiosa para a prática de atos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física ou a dignidade das pessoas, os bons costumes, os princípios fundamentais da ordem constitucional ou os interesses da soberania portuguesa. 2. Não são consideradas religiosas as atividades relacionadas com os fenómenos metapsíquicos ou parapsíquicos.

III - Do Regime das Confissões Religiosas

A - Das confissões religiosas em geral

BASE IX

1. As confissões religiosas podem obter reconhecimento que envolverá a atribuição de personalidade jurídica à organização correspondente ao conjunto dos respetivos fiéis. 2. O reconhecimento será pedido ao Governo em requerimento subscrito por um número não inferior a 500 fiéis, devidamente identificados, maiores e domiciliados em território português.

3. O requerimento será instruído à prova da existência da confissão em território nacional e dele constatarão os princípios essenciais da sua doutrina, o nome da confissão, a descrição geral dos atos de culto, as regras de disciplina e hierarquia da organização, a identidade dos dirigentes e a duração da sua prática no País. Na falta de indicações suficientes, a entidade competente fixará o prazo dentro do qual o requerimento terá de ser completado. 4. Se a organização tiver estatuto estrangeiro ou depender de outra com estatuto estrangeiro, poderá o Governo exigir não só os meios de prova necessários ao pleno conhecimento do regime a que ela fica sujeita, como a subscrição do requerimento por parte das entidades responsáveis. 5. O Governo pode ordenar os inquéritos que julgue indispensáveis à prova, tanto da existência da confissão como da prática efetiva do seu culto em território nacional, e pode dispensar a prova de qualquer destes requisitos quanto às confissões há mais tempo radicadas em território português. 6. O reconhecimento será recusado: a. Se a doutrina, as normas ou o culto da confissão contrariarem o disposto na base VIII; b. Se o requerimento não obedecer aos requisitos exigidos nesta base ou as suas indicações não forem verdadeiras.

BASE X

1. O reconhecimento pode ser revogado pelo Governo quando se mostre que a organização é responsável pela violação do disposto na base VIII, atua por meios ilícitos ou se dedica a atividades estranhas aos fins próprios das confissões religiosas. 2. Notificada a revogação do reconhecimento, cessarão imediatamente as atividades da organização, incorrendo em crime de desobediência todos os que nela prossigam.

BASE XI

1. As confissões religiosas legalmente reconhecidas podem organizar-se em harmonia com as suas normas internas. 2. Às confissões reconhecidas é permitido formar, dentro de cada uma delas, associações ou institutos destinados a assegurar o exercício do culto ou a prossecução de outros fins específicos da vida religiosa.

BASE XII

1. São consideradas religiosas as associações ou institutos constituídos ou fundados com o fim principal da sustentação do culto de uma confissão religiosa já reconhecida ou qualquer outra atividade especificamente religiosa, desde que se constituam de harmonia com as normas e disciplina da respetiva confissão. 2. As associações ou institutos religiosos adquirem personalidade jurídica mediante o ato de registo da participação escrita da sua constituição pelo órgão competente da confissão religiosa reconhecida; a participação será apresentada e o registo efetuado nos termos que em regulamento forem fixados. 3. Em caso de modificação ou extinção da associação ou instituto, far-se-á participação e registo nos termos estabelecidos para a sua constituição.

BASE XIII

A revogação do reconhecimento de uma confissão religiosa determina a extinção das respetivas associações ou institutos religiosos, e bem assim das outras pessoas coletivas que dela dependam.

BASE XIV

1. As organizações correspondentes às confissões religiosas e as associações e institutos religiosos administram-se livremente,

dentro dos limites da lei, sem prejuízo do regime vigente para as associações religiosas que se proponham também a fins de assistência ou de beneficência, e para os institutos de assistência ou de beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por associações religiosas. 2. As organizações correspondentes às confissões religiosas e as associações ou institutos religiosos não podem ser submetidos ao regime de tutela.

BASE XV

1. As pessoas coletivas religiosas não carecem de autorização para a aquisição dos bens necessários à realização dos seus fins, mesmo que se trate de bens imóveis e a aquisição se faça a título oneroso, nem para a alienação ou oneração dos bens imóveis a qualquer título. 2. Os bens destinados a proporcionar rendimento não são considerados necessários à prossecução dos fins das pessoas coletivas religiosas e a sua aquisição está sujeita ao disposto na lei geral.

BASE XVI

1. As confissões religiosas reconhecidas têm o direito de assegurar a formação dos ministros do respetivo culto, podendo criar e gerir os estabelecimentos adequados a esse fim. 2. Os referidos estabelecimentos no número anterior estão sujeitos à fiscalização do Estado, mas apenas para o efeito de ser garantido o respeito das leis e dos limites impostos pelo nº 1 da base VIII. 3. Os estabelecimentos que não se restrinjam a ministrar formação e ensino religiosos ficam submetidos, nessa medida, ao regime previsto para os estabelecimentos de ensino particular.

BASE XVII

A construção ou instalação de templos ou lugares destinados à prática do culto só é permitida quando este seja de confissões religiosas reconhecidas, mas não depende de autorização especial, estando apenas sujeitas às disposições administrativas de caráter geral.

A - Do regime especial da Igreja Católica

BASE XVIII

1. Ficam salvaguardadas todas as disposições da legislação vigente, nomeadamente as contidas na Concordata de 7 de maio de 1940, que dizem respeito à religião e à Igreja Católica. 2. São aplicáveis às pessoas coletivas católicas as disposições desta lei que não contrariem os preceitos concordatariamente estabelecidos.

IV – Do Sigilo Religioso

BASE XIX

1. Os ministros de qualquer religião ou confissão religiosa devem guardar segredo sobre todos os factos que lhes tenham sido confiados ou de que tenham tomado conhecimento em razão e no exercício das suas funções, não podendo ser inquiridos sobre eles por nenhuma autoridade. 2. A obrigação do sigilo persiste, mesmo quando o ministro tenha deixado de exercer o seu múnus. 3. Consideram-se ministros da religião ou da confissão religiosa aqueles que, de harmonia com a organização da mesma, exerçam sobre os fiéis qualquer espécie de jurisdição ou cura de almas.

BASE XX

A violação do sigilo religioso é punida com a pena de prisão maior de dois a oito anos, quando consista na revelação de factos confidenciados segundo as práticas da religião ou confissão religiosa, e com a pena de prisão até seis meses, nos outros casos.

BASE XXI

Fica o Governo autorizado a estender no ultramar, com as necessárias adaptações, o regime da presente lei.

Marcello Caetano

Promulgada em 9 de agosto de 1971

Publique-se.

O Presidente da República, Américo Deus Rodrigues Thomaz.

Petição nº 159/VI (2ª)

(Apresentada pela Aliança Evangélica Portuguesa, solicitando a adoção pela Assembleia da República de legislação ordinária que termine, de vez, com a discriminação existente em matéria de IVA, IRS e IRC entre a Igreja Católica e as demais confissões religiosas não católicas.)

Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República

Excelência:

A Aliança Evangélica Portuguesa, associação religiosa que congrega e representa a comunidade evangélica, pessoa jurídica devidamente registada no Ministério da Justiça, vem ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei nº 43/190 de 10 de agosto, apresentar a V. Exª, esta petição coletiva, subscrita também por 11 654 cidadãos portugueses, crentes evangélicos de diversas Igrejas espalhadas por todo o território nacional, no pleno gozo e exercício dos seus direitos, nos termos e com os fundamentos que seguem:

I – Princípios fundamentais

1. A constituição de 1976, que nos rege, define, na área do direito à liberdade religiosa, quatro grandes princípios fundamentais: a. Inviolabilidade do direito à liberdade de religião – artigo 41, nº 1; b. Plenitude do exercício deste direito, sem constrições das autoridades ou do Estado – ibidem, nº 2 e 4; c. Um Estado não confessional, que assim, se deve manter neutral perante as confissões religiosas, católica e demais – ibidem, nº 4; d. Igualdade, a obstar à discriminação das confissões religiosas, sobretudo no tratamento jurídico a conceder-lhes – artigo 13º; 2. Movem-se estes princípios no quadro da Declaração Universal dos Direitos do Homem, inspiradora e integrativa do exercício constitu-

cional dos direitos fundamentais – cf. Artigos 16º da Constituição e 18º daquela Declaração. 3. A melhor exegese dos textos da lei fundamental, dentro das regras da boa hermenêutica, conduz a que, em matéria de liberdade religiosa, não pode nem deve haver discriminação de nenhuma ordem entre a Igreja Católica e as demais confissões religiosas não católicas, designadamente, a confissão cristã-evangélica, que agora requerente congrega e representa e de que os subscritores são membros ativos. 4. Deste modo, toda a desigualdade de tratamento jurídico em qualquer área entre o que é concedido à Igreja Católica e é negado – por não atribuído legalmente – às demais confissões religiosas, in casu, a evangélica, é manifestamente violadora do texto constitucional, por via omissiva, como bem se ponderou a propósito do ensino religioso nas escolas, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 423/87, de 27 de outubro de 1987, publicado no Diário da República, 1ª série, nº 273, de 26 de novembro de 1987. 5. Assim sendo, é indiscutível que, em matéria tributária, que constitui o objeto da presente petição, não podem nem devem existir, sob pena de violação, por omissão, da lei constitucional, situações discriminatórias – de profunda desigualdade – entre os benefícios fiscais de que usufrui a Igreja católica e a sua não atribuição à confissão cristã-evangélica, que os signatários integram e a requerente representa. 6. E que esta representação não oferece dúvidas, di-lo, de forma esclarecedora e muito bem elaborada, o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, homologado superiormente, no processo nº 119/90, publicado no Diário da República, 2ª série, nº 99, de 30 de abril de 1991.

II – Igreja Católica

7. Ora, nesta matéria tributária, rege, para a Igreja Católica, o artigo 8º da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, de 7 de maio de 1940, publicado no Diário do Governo, 1ª série, nº 158 de 10 de julho de 1940. 8. Neste preceito, que se transcreve, estabelece-se: 9. ‘São isentos de qualquer imposto ou contribuição, geral ou

local, os templos e objetos neles contidos, os seminários ou quaisquer estabelecimentos destinados à formação do clero e, bem assim, os editais e avisos afixados à porta das Igrejas, relativos ao ministério sagrado; de igual isenção gozam os eclesiásticos pelo exercício do seu múnus espiritual; os bens e entidades eclesiásticos não compreendidos na alínea precedente não poderão se onerados com impostos ou contribuições especiais.’ Obedecendo e integrada nesta perspetiva concordatária, veio o Estado Português a publicar, quanto ao IVA (imposto sobre o valor acrescentado), o Decreto-Lei nº 20/90, de 13 de janeiro, que, no seu artigo 1º, prevê: ‘A restituição pelo Serviço de Administração do IVA, do imposto sobre o valor acrescentado correspondente às aquisições e importações efetuadas por instituições da Igreja Católica – Santa Sé, Conferência Episcopal, dioceses, seminários, e outros centros de formação, fábricas da Igreja, ordens, congregações e institutos religiosos e missionários, bem como associações de fiéis – relativas a objetos que se destinem única e exclusivamente ao culto religioso e a bens e serviços respeitantes à construção, manutenção e conservação de imóveis destinados exclusivamente ao culto, à habitação e formação de sacerdotes religiosos, ao apostolado e ao exercício da caridade.’ 10. Também no domínio do IRS (imposto sobre o rendimento de pessoas singulares), vem a Igreja Católica e os seus ministros gozando da sua isenção, face ao disposto no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de julho, o qual, ao manter os benefícios fiscais anteriores e referir a sua fonte internacional no seu nº 2 – a referida Concordata reafirmou o que constava do artigo 4º, alínea f) e #2º, do anterior Código do Imposto Profissional, que isentava os eclesiásticos católicos. 11. Ainda no domínio do IRC (Imposto sobre o rendimento mínimo de pessoas coletivas), beneficiam a Igreja Católica e os seus organismos, por razão idêntica, de isenção quanto aos juros dos depósitos, à ordem ou a prazo, efetuados em instituições financeiras. 12. Sem que se contestem estes benefícios, compreendem-se os mesmos em razão do interesse público prosseguido pela Igreja Católica, desenvolvido em multiformes áreas e atividades.

III – Confissão cristã-evangélica

13. É bem distinto o panorama jurídico referente a estes três impostos: IVA, IRS e IRC, no que concerne à confissão cristã-evangélica. 14. Quanto ao IVA, na base de inexistência de diploma ou texto legal que o proclame, vem a administração fiscal entendendo que o benefício concedido à Igreja Católica se não estende à confissão-evangélica. ‘É certo que, ao abrigo do disposto no artigo 9º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, a administração fiscal poderia operar uma interpretação extensiva do artigo 1º do Decreto-Lei nº 20/90, de 13 de janeiro, concedendo o benefício às instituições cristãs-evangélicas. Mas a verdade é que, nos casos em que estas o peticionaram, viram sempre o seu indeferimento, através de uma interpretação restritiva do preceito. Daí, portanto, ser manifesta a discriminação existente quanto ao Iva entre o que se concede à Igreja Católica e às suas instituições, e o que se nega à confissão cristã-evangélica.’ 15. Também quanto ao IRS, vem a administração fiscal pretendendo o seu pagamento pelas Igrejas evangélicas, seus pastores e ministros. No entender desta Aliança Evangélica e dos subscritores desta petição, é esta pretensão não só discriminatória quanto à Igreja Católica, mas é de todo ilegal, já que a situação que concerne as Igrejas evangélicas, seus pastores e ministros é manifestamente de não sujeição tributária. Para pretender o pagamento de IRS pelas Igrejas evangélicas, seus pastores e ministros, entende a administração fiscal que: As Igrejas evangélicas são entidades patronais dos seus pastores e ministros; os pastores e ministros são seus empregados ou, então, exercem uma atividade por conta própria de prestação de serviços. Qualquer entidade, porém, minimamente informada e de boa-fé reconhece que nenhuma destas situações se verifica: Nem as Igreja evangélicas têm qualquer relação de natureza laboral com os seus pastores e ministros; Nem estes têm com aquelas qualquer relação jurídico-contratual, já que o múnus sacerdotal se não resolve em qualquer contrato de trabalho, de prestação de serviços ou afim.

À administração fiscal bastaria considerar a especificidade e a natureza deste múnus, bem como o fim público e desinteressado prosseguido pelas Igrejas evangélicas, o que lhe permitiria concluir que as liberalidades ou donativos que são feitos às Igreja ou aos seus pastores e ministros não podem estar sujeitos a qualquer incidência tributária do IRS. Todavia, face à exigência da administração fiscal, é notória a discriminação existente, concedendo-se à Igreja Católica e seus sacerdotes um benefício de isenção do IRS e negando-se o mesmo à confissão cristã-evangélica, seus pastores e ministros.’ 16. Por fim, quanto ao IRC, é patente a discriminação que se verifica. Concede-se o benefício de isenção quanto aos depósitos em instituições financeiras efetuados pela Igreja Católica e seus organismos, mas denega-se às Igrejas evangélicas, não obstante esses depósitos visarem, afinal, a realização de objetivos de interesse público e não lucrativo em tudo idênticos aos prosseguidos pela Igreja Católica.

IV – Inconstitucionalidade por omissão

17. Face ao exposto, observa-se, pois, no nosso ordenamento jurídico ordinário uma inconstitucionalidade por omissão nessa área tributária – IVA, IRS, IRC, violando-se, por um lado, o princípio de que o Estado não é confessional – artigo 41º da Constituição, que conduziria à sua neutralidade no tratamento jurídico a dar às confissões religiosas, católica ou evangélica, mas que, como se viu, beneficia claramente a Igreja Católica, tudo denegando à confissão cristã-evangélica, ofendendo-se, por outro lado, o princípio da igualdade – artigo 13º da Constituição, tratando-se de forma desequilibrada, discriminatória e desigual. Demais que as razões que servem as isenções concedidas à Igreja Católica, em formulação tão ampla que até abrange meras associações de fiéis e simples exercícios de caridade, servem igualmente à confissão cristã-evangélica, já que o seu objeto, finalidade e múnus é idêntico. Na verdade, Igreja e organizações evangélicas prosseguem nas mais diversificadas áreas, formativa, assistencial, de juventude, espiritual, fins de interesse público e desinteressado – o que se inscreve na ratio de isenção.

18. Aliás, não poderá buscar-se a isenção em função da representatividade numérica, uma vez que o Estado português não é confessional. Como escreve Pérez de Ayala, na Revista de la Facultad de Derecho Universidad Complutense: “A igualdade é uma forma de usufruir o direito de liberdade religiosa, proporcionando iguais meios de benefício a todos.” 19. Refira-se também que em Espanha e Itália, países onde existem concordatas com a Santa Sé, são hoje concedidas, por igual, as isenções referidas tanto à Igreja Católica como às Igrejas evangélicas. 20. Note-se que já idêntico paralelismo em matéria tributária foi concedido quanto à isenção da sisa e do imposto de sucessões e doações – artigo 13, nº 14, do respetivo Código, aditado pelo Decreto-Lei nº 91/89, de 27 de março. 21. E se se pensar na integração europeia plena, servida pelo Tratado da União Europeia, mais gritante se torna a discriminação já referida e hoje existente, mais breve se impondo a sua solução, enquanto, como se apontava em recente seminário, se tem de reconhecer “ser ampla a proteção ao individuo na ordem jurídica comunitária.” 22. Aliás, o Sr. Provedor da Justiça, em tempo oportuno, recomendou à Assembleia da República providência legislativa adequada com vista à concessão de igualdade de tratamento jurídico nesta matéria entre a Igreja Católica e as demais confissões religiosas.

V – Requerimento

23. Face ao que fica exposto, a Aliança Evangélica Portuguesa e todos os subscritores desta petição requerem a adoção por esta Assembleia da República, por ser da sua competência exclusiva, de legislação ordinária que termine, de vez, com a discriminação existente atrás descrita e supra a inconstitucionalidade, por omissão, que se verifica, em matéria de IVA, IRS e IRC, entre a Igreja Católica e a confissão cristã-evangélica, por um lado, estendendo os benefícios constantes do Decreto-Lei nº 20/90, de 13 de janeiro, às Igrejas evangélicas, devidamente registadas, suas instituições, seminários, institutos e centros de formação, e, por outro lado, isentando de IRS e IRC as Igrejas evangélicas, devidamente registadas, os seus ministros e pastores.

24. Mais se requer que a apreciação desta petição seja feita com urgência, por forma a poder ser considerada e inscrita, em tempo útil, a respetiva legislação na que enquadrar e disciplinar o Orçamento do Estado para 1993 e sua execução.

27 de outubro de 1992

O 1º Signatário, José Bravo, presidente da Aliança Evangélica Portuguesa.

Nota – Desta petição foram subscritores 11 654 cidadãos.

Relatório Final e Parecer da Comissão de Petições

Petição nº 159/VI (2ª)

I

A petição nº 159/VI (2ª), subscrita por 11 654 cidadãos, é apresentada pela Aliança Evangélica Portuguesa e foi admitida em 30 de março de 1993.

Os peticionantes solicitam que se termine com a discriminação existente entre a Igreja Católica e a Confissão Cristã-Evangélica através da adoção, pela Assembleia da República, de legislação ordinária que supra a inconstitucionalidade, por omissão, que se verifica em matéria de IRS, IRC e IVA, e, nomeadamente, estendendo os benefícios constantes do Decreto-Lei nº 20/90 de 13 de janeiro, às Igrejas evangélicas, suas instituições, seminários, institutos e centros de formação, por um lado, por outro, isentando-as, aos seus ministros e pastores, daqueles impostos. Incumbida de elaborar relatório de parecer desta petição em 13 de janeiro de 1994, entendi, desde logo, ser necessário proceder a um estudo aprofundado de direito comparado sobre o que estipula, em razão da matéria, a legislação dos vários países comunitários. Não obstante tratar-se de uma petição coletiva ou até, no meu ponto de vista, por maioria de razão, por ter de dar-se resposta aos anseios de tão expressivo número de peticionantes, procuramos compulsar os vários elementos recolhidos de modo a habilitarem a Comissão de Petições e os Srs. Deputados em geral, a uma tomada de posição esclarecida e fundamentada sobre a matéria em causa, no debate em Plenário.

II

A Aliança Evangélica Portuguesa é uma associação religiosa que congrega e representa a comunidade evangélica de diversas Igrejas espalhadas por todo o território nacional. É pessoa jurídica devidamente registada no Mi-

nistério da Justiça, nos termos do artigo 14º do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de novembro, que reconhece e regulamenta o direito da associação. Os peticionantes começam por vincar a definição, em termos constitucionais, de quatro grandes princípios fundamentais na área do direito à liberdade religiosa:

1. Inviolabilidade do direito à liberdade de religião (artigo 41º, nº 1); 2. Plenitude do exercício daquele direito, sem restrições das autoridades ou do Estado (artigo 41º, nº 2 e 4); 3. Sendo o Estado não confessional, assim se deve manter neutral perante as confissões religiosas, católica e demais (artigo 41º, nº 4); 4. Igualdade, a obstar à discriminação das confissões religiosas, sobretudo no tratamento jurídico a conceder-lhes (artigo 13º).

Assim, “a melhor exegese dos textos da lei fundamental, dentro das regras doa boa hermenêutica conduz a que, em matéria de liberdade religiosa, não pode nem deve haver discriminação de qualquer ordem entre a Igreja Católica e as demais confissões, designadamente a Confissão Cristã-Evangélica. Pelo que “toda a desigualdade de tratamento jurídico em qualquer área entre o que é concedido à Igreja Católica e é negado – por não atribuído legalmente – às demais confissões religiosas, in casu, a Evangélica, é manifestamente violadora do texto constitucional, por via omissiva”. Ora, é a matéria tributária o objeto dessa petição. Entendem os peticionantes que “não podem nem devem existir, sob pena de violação, por omissão, da lei fundamental, situações discriminatórias – de profunda desigualdade – entre os benefícios fiscais de que usufrui a Igreja Católica e a sua não atribuição á Confissão Cristã-Evangélica.

III - Importa sintetizar:

A Constituição da República Portuguesa começa por, no artigo 13º, estipular o princípio de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, não permitin-

do que alguém possa ser “privilegiado, beneficiado ou prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de […] religião”. No artigo 41º, a Constituição da República Portuguesa consagra, por outro lado, o princípio de liberdade religiosa, que se exprime não só pela proibição de toda a discriminação ou privilégio por motivos religiosos como também pelo princípio da liberdade de organização e independência da Igreja e confissões religiosas. Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa é clara ao estabelecer o princípio de separação entre o Estado e a Igreja – “As Igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres” (artigo 41º, nº 4). Assim as duas primeiras conclusões que se devem extrair:

1. Nos termos jurídico-constitucionais todos os cidadãos portugueses são iguais perante a Lei, qualquer que seja a confissão religiosa que professem; 2. O Estado não pode privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever, conceder privilégios, beneficiando ou prejudicando quem quer que seja, em razão, entre outras, de confissão religiosa.

IV

O que se passa então em matéria fiscal? Em matéria tributária não existe, na legislação portuguesa, um regime fiscal igual para todas as confissões religiosas, validamente registadas no Ministério da Justiça. No que respeita à Igreja Católica: Primeiro, rege o artigo 8º da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, de 7 de maio de 1940, publicada no Diário do Governo, 1ª série, nº 158, de 1 de junho de 1940. Segundo, por outro lado, quanto ao regime do IVA, vigora o Decreto-Lei nº 20/90, de 13 de janeiro, que no seu artigo prevê: A restituição, pelo Serviço de Administração do IVA, do imposto sobre o valor acrescentado correspondente às aquisições e importações

efetuadas por instituições da Igreja Católica – Santa Sé, Conferência Episcopal, dioceses, seminários e outros centros de formação, fábricas da Igreja, ordens, congregações e institutos religiosos e missionários, bem como associação de fiéis – relativas a objetos que se destinem, única e exclusivamente, ao culto religioso e a bens e serviços respeitantes à construção, manutenção e conservação de imóveis, destinados exclusivamente ao culto, à habitação e formação de sacerdotes e religiosos, ao apostolado e ao exercício da caridade. Terceiro, no domínio do IRS vem a Igreja Católica e os seus ministros gozando da sua isenção, face ao disposto no nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de julho. Quarto, quanto ao IRC, a Igreja Católica e os seus organismos beneficiam de isenção quanto aos juros dos depósitos à ordem ou a prazo efetuados em instituições financeiras. No que respeita à Conferência Cristã-Evangélica esclarecem os peticionantes: Quanto ao IVA, “na base de inexistência de diploma ou texto legal que o proclame, nem a administração fiscal entende que o benefício concedido à Igreja Católica não se estenda à Confissão Cristã-Evangélica”. Também quanto ao IRS vem a administração fiscal pretendendo o seu pagamento pelas Igrejas evangélicas, seus pastores e ministros. É também discriminatória a situação quanto ao IRC, ao negar-se o benefício de isenção quanto aos depósitos em instituições financeiras. Verificamos, por outro lado, que apenas no que se refere a matéria de sisa e de imposto sobre sucessões e doações, o Decreto-Lei nº 91/89, de 27 de março, permitiu, de certo modo, um tratamento paritário entre as instituições religiosas de qualquer confissão, “desde que a afetação dos bens a adquirir se destine à direta e imediatamente realização dos seus fins”. Em conclusão: no ordenamento jurídico português em matéria tributária, não existe tratamento paritário entre as Igrejas das várias confissões religiosas. Refere-se a propósito que esta matéria já foi objeto de Acórdão do Tribunal Constitucional nº 273, de 27 de outubro de 1987, publicado no diário da República, 1ª série, nº 273, de 26 de novembro de 1987, bem como de parecer do Conselho Consultivo do Procurador-Geral da República, homologado superiormente no processo nº119/90

publicado no Diário da república, 2ª série, nº 99, de abril de 1991, no sentido de dever a Assembleia da República adotar providências legislativas adequadas à efetiva concessão ou igualdade de tratamento jurídico em matéria tributária entre a Igreja Católica e a demais confissões religiosas. À Igreja Católica, por força do estipulado na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, vêm sendo concedidos privilégios e benefícios que se não estendem às outras confissões religiosas. Não está em causa contestar tais benefícios concedidos à Igreja Católica. Pretendem os peticionantes, em síntese, que, reconhecida a existência legal da Igreja Cristã-Evangélica nos termos do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de novembro, tudo se passe no ordenamento jurídico em termos de total igualdade entre as várias Igrejas. Assim, vem requerer que a Assembleia da República, no uso da sua competência exclusiva, produza legislação ordinária “que termine, de vez, com a discriminação existente e supra a inconstitucionalidade, por omissão, que se verifica em matéria de IVA, IRS e IRC, entre a Igreja Católica e a Confissão Cristã-Evangélica, por um lado, estendendo os benefícios constantes do Decreto-Lei nº 20/90, de 13 de janeiro, às Igrejas Evangélicas, devidamente registadas, suas instituições, seminários, institutos e centros de formação, e por outro lado isentando de IRS e IRC as Igrejas Evangélicas, devidamente registadas, seus ministros e pastores”.

V

Porque a matéria em análise é, efetivamente, pelas suas várias vertentes, muito importante, entendemos proceder ao levantamento dos ordenamentos jurídicos de vários países da Comunidade, designadamente, pela sua semelhança em termos de tradição religiosa, em Espanha e em Itália.

Bélgica

As relações entre o Estado e a Igreja são ainda consequências da Concordata entre Napoleão e a Saint-Siège (Santa Sé) celebrada no início do século XIX. O Estado tem a seu cargo o pagamento dos salários aos sacerdotes (i. e., católicos, protestantes, anglicanos, islâmicos e israelitas), sendo

os seus salários submetidos aos impostos sobre o rendimento de pessoas singulares, tal como os outros funcionários. Quanto aos bens imóveis, estão isentos de contribuição predial, desde que, obviamente, estejam destinados ao exercício do culto público.

Espanha

As entidades isentas de imposto sobre o rendimento são a Igreja Católica, as associações confessionais não católicas legalmente reconhecidas, bem com outras entidades e associações com motivação ou finalidade religiosa. Estas últimas são constituídas, fundamentalmente, por fundações e associações. As fundações, para que fiquem abrangidas pelo mesmo regime tributário, terão de ter um caráter benéfico e deverão ser dirigidas em regime de voluntariado. Quanto às associações confessionais não católicas legalmente reconhecidas, para que sejam abrangidas pelos benefícios fiscais previstos na lei, deverão ter estabelecido “acordos de cooperação” com o Estado Espanhol.

Tomamos como referência o regime da Igreja Católica, uma vez que desde 1953, na sequência de uma Concordata celebrada, tem um tratamento diferenciado em termos fiscais e é ela que tem servido de ponto de referência para as outras Igrejas. Assim, a isenção abarca os rendimentos obtidos, direta ou indiretamente, para o exercício das atividades que constituem o seu objeto social ou a sua finalidade específica. Deste modo, não estão sujeitas ao imposto sobre o rendimento ou sobre o consumo as prestações dos fiéis, as coletas públicas, as esmolas ou as publicações ou ilustrações. Não estão, ainda sujeitas ao imposto a atividade de ensino em seminários, diocesanos ou religiosos, e a aquisição de objetos de culto. A isenção abrange ainda, os bens imóveis. Existe também, a isenção total de impostos sobre sucessões, doações e transmissões patrimoniais sempre que os bens ou direitos adquiridos se destinem ao culto, ao sustento e ao exercício da caridade. Quanto ao regime do IVA, estão isentas as prestações de serviço de assistência social efetuadas por pessoas coletivas de direito público,

entidades ou estabelecimentos privados de caráter social, desde que prossigam objetivos sem fins lucrativos e sejam dirigidos de forma voluntária. Estão ainda isentas de IVA, as associações religiosas no desenvolvimento de certas atividades, tais como hospitalização, assistência sanitária, assistência social, educação, ensino, formação e reciclagem profissional.

Quanto às exportações, encontram-se igualmente isentas de IVA, desde que sejam efetuadas no âmbito das suas atividades humanitárias, caritativas ou educativas. Em relação às importações, a isenção abrange bens importados por entidades sem fins lucrativos adquiridos a título gratuito para serem distribuídas por pessoas necessitadas, vítimas de catástrofe, para assistência a deficientes, particularmente quanto à educação, emprego ou promoção social das mesmas. O regime fiscal espanhol não se refere em nenhum momento às “seitas”. As alusões de direito positivo são feitas à Igreja Católica, à Comunidade Israelita, à Federação das Igrejas Evangélicas de Espanha e à Comissão Islâmica de Espanha. De facto, na sequência do estipulado no artigo 16º da Constituição Espanhola de 1992, estas associações não católicas celebraram “acordos de cooperação” com o Estado Espanhol nos termos dos quais foram alargados os benefícios fiscais existentes para a Igreja Católica desde 1953.

França

Igreja Católica – As remunerações dos membros da Igreja Católica são consideradas benefícios não comerciais. As receitas da missa destinadas a fazer face às despesas do culto e à manutenção dos edifícios não são considerados rendimentos, para efeitos fiscais. Os donativos regularmente oferecidos ao clero em razão da sua atividade religiosa e desde que constituam recursos habituais, utilizados para a manutenção pessoal, incluem-se na categoria de benefícios não comerciais. Igreja Protestante – As remunerações dos pastores protestantes são passíveis de imposto na categoria dos salários (IRS) em razão das suas remunerações.

Igreja Judaica – As remunerações dos rabinos são consideradas salários, logo passíveis de IRS.

Reino Unido

Desde que a Igreja Católica, ou outras Igrejas, estejam registadas como instituições de caridade, deverão estar isentas na maior parte dos rendimentos que auferirem, desde que esses proventos sejam aplicados em fins de beneficência.

A situação legal do ministro de culto em França

Sacerdote Direito Fiscal

Católico Regime de benefícios não comerciais, exceto: regime de subsídios e salários para os padres sob contrato de trabalho.

Protestante Regime de salários passíveis de tributação.

Judaico Regime de salários. Os pastores remunerados mediante um salário fixo determinado sob controlo do sínodo nacional da União das Igrejas Reformadas de França (UNACERF), à qual estão ligados por associação, são passíveis de tributação.

No entanto, alguns aspetos da atividade das Igrejas podem cair fora do conceito de caridade, tais como atividades desportivas ou de lazer. Nesse caso, deverá a Igreja separar estas atividades das restantes diretamente relacionadas com a beneficência, para que se mantenha isenta de impostos. Desde que as atividades se situem no âmbito da sua ação caritativa estão isentas do imposto sobre o rendimento de imposto de capitais, de sucessões de sisa e imposto de selo, uma vez que se mantenha o fim de obras de caridades. Não há isenção de IVA; no entanto, na prática, a maior parte das atividades de beneficência não chegam a alcançar o valor mínimo de base da incidência do IVA (£ 37,600). Assim que uma organização esteja inscrita nos serviços do IVA, deverá cobrar IVA podendo posteriormente recuperá-lo.

Existem variados tipos de atividades com fins caritativos, alguns dos quais são taxados com IVA de 17,5% ou de 0%. Por exemplo, a venda de cartões de Natal ou de outros bens está sujeita à taxa de 17,5%, enquanto as doações ou os subsídios estão sujeitos à taxa de 0%.

Itália

Refira-se que em Itália se encontra atualmente em discussão na Camera dei Deputati um projeto de lei do Governo (projeto de lei nº 1430, de 1993), nos termos do qual se procede à equiparação das Igrejas não católicas ao estatuto gozado atualmente pela Igreja Católica em termos fiscais. Assim, prevê-se a criação de um estatuto especial para as confissões religiosas que prossigam fins de utilidade pública. Nos termos desse estatuto prevêem-se isenções fiscais a nível de IRS, IRC, contribuição predial e do imposto do sisa, sucessões e doações. Para ficarem abrangidas por este estatuto as confissões religiosas terão de ser legalmente reconhecidas e celebrarem acordos com o Estado Italiano.

Conclusão

O quadro em anexo apresenta, de forma sintética a situação jurídico-fiscal das Igrejas existentes nalguns países europeus. De uma maneira geral existe uma grande paridade no regime tributário praticado, gozando tanto a Igreja Católica como as restantes confissões religiosas de um regime de isenção fiscal. A isenção de imposto ou situação de gozo de algum benefício fiscal prende-se fundamentalmente ou com a prática do culto ou com o fim assistencial ou benéfico que a confissão prossegue. Nalguns países, nomeadamente a Espanha, verificou-se a necessidade de se criarem, ex novo, a favor das outras confissões, via negocial ou legal, as isenções já existentes para a Igreja Católica, dado o facto de a natureza dos acordos que lhe deram origem – entre a Santa Sé e o país em questão – não poderem ser aproveitados por aquelas. Considerando todo o atrás exposto, ao abrigo da Lei nº 43/90, de 10 de agosto, com a redação dada pela Lei nº 6/93 de 1 de Março, nomeadamente nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 16º, somos a parecer:

1. Que seja remetida a presente petição a S. Exa. O Presidente da Assembleia da República para apreciação pelo Plenário da

Assembleia, uma vez que vem subscrita por 11 654 cidadãos. 2. Seja distribuída a petição pelos vários grupos parlamentares e

Deputados independentes a fim de que, caso entendam, subscrevam a iniciativa legislativa pretendida pelos peticionantes. 3. Que seja remetida aos peticionantes a cópia deste relatório, dado o fim breve desta legislatura e não sendo previsível a realização em tempo útil de discussão em Plenário.

Palácio de São Bento, 13 de julho de 1995 A Deputada Relatora, Cecília Catarino.

(a) Consta do processo.

Nota: O relatório e parecer foi aprovado por unanimidade.

Constituição da República Portuguesa, sobre matéria religiosa

Artº 13

(Princípio de igualdade)

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território, origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.

Artº 41

(Liberdade de consciência, de religião e de culto)

1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável. 2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa daas suas convicções ou prática religiosa. 3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder. 4. As Igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto. 5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades. 6. É garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da lei.

Artº 43

(Liberdade de aprender e ensinar)

3. O ensino público não será confessional.

Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa, Ministério da Justiça

Comunicação às Confissões

Excelentíssimos Senhores,

A Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa, foi criada pelo Despacho nº 96/MJ/96, de 8 de abril, publicado no Diário da República, II série, nº 97, de 24 de abril de 1996. A reforma da Lei da Liberdade Religiosa em vigor, que é a Lei 4/71, de 21 de agosto, parcialmente revogada, justifica-se nas palavras do Despacho, por ser insatisfatória a situação do direito português na matéria. Deve a Comissão apresentar, no prazo de seis meses, um anteprojeto de diploma legal, acompanhado do respetivo relatório de fundamentação, do qual conste também relato das diligências promovidas e resultados delas obtidos. Para a prossecução do seu objetivo impõe-se a audiência atenta dos principais interessados e, designadamente, de Igrejas e confissões religiosas. Entre os interessados estão certamente as pessoas jurídicas religiosas não católicas, registadas no Ministério da Justiça, além da própria Igreja Católica, que são afetadas, de vários modos, pela legislação a propor. Pretende a Comissão obter dos interessados, não só as reflexões que entenderem apresentar, mas também, de forma especial, propostas em matéria legislativa. Todos os elementos enviados serão atentamente estudados pela Comissão, como ajuda imprescindível para o seu trabalho. Todas as respostas devem ser enviadas, até ao dia 15 de julho próximo, para o seguinte endereço:

COMISSÃO DE REFORMA DA LEI DA LIBERDADE RELIGIOSA – GABINETE DE ESTUDOS E PLANEAMENTO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Av. Óscar Monteiro Torres, 39 1016 LISBOA CODEX

Quaisquer contatos podem ainda ser estabelecidos pelo nº 793 50 34 ou pelo fax nº 739 59 35, ambos na rede de Lisboa. Para uma melhor compreensão do alcance do agora solicitado junta-se cópia do já referido Despacho 96/MJ/96.

Apresento a V. Exas os meus respeitosos cumprimentos.

Conselheiro José de Sousa e Brito

Presidente da Comissão da Reforma da Lei da Liberdade Religiosa

Lisboa, 11 de junho de 1996

Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa

Gabinete do Ministro

Desp. 96/MJ/96, 8 de abril.

Nº 97 – 24-4-1996, Diário da República – II Série

Em matéria de liberdade religiosa, o direito português apresenta uma situação que poderemos considerar insatisfatória. Por um lado, a Constituição consagra claramente a liberdade religiosa e a separação entre o Estado e as Igrejas (art.º 41º), proíbe qualquer discriminação com fundamento religioso (art.º 13º e nº 2), e impõe um ensino público não confessional (art.º 43, nº 3), nunca se referindo especialmente à Igreja Católica. Por outro, os dois diplomas jurídicos fundamentais sobre a matéria, a Concordata de 07/05/1940 (cujo artigo XXIV foi modificado pelo Protocolo Adicional de 15/02/1975, que revogou a proibição de aplicação aos casamentos católicos) e a Lei 4/71, de 21/8, sobre a liberdade religiosa, separam radicalmente o regime da Igreja Católica do das demais confissões religiosas. É certo que a Concordata não pode ser alterada por direito interno infraconstitucional e que a atual Constituição não pretendeu pôr em causa a existência de concordatas como um meio de regular matérias de interesse comum da Igreja Católica e do Estado. Mas, sem prejuízo das regras sobre hierarquia das normas e da equiparação das concordatárias ao direito internacional público, há que entender que o primeiro princípio constitucional da igualdade proíbe as diferenças materiais de regime entre as diversas confissões e entre os respetivos membros quanto aos direitos individuais e coletivos relacionados com a religião. Ora a Lei 4/71 não pretendeu estabelecer, à partida, uma efetiva igualdade de direitos (cf. especialmente a base XVIII dessa lei). É assim natural que se mantenham na legislação numerosas lacunas de regulamentação, quando não são regras de todo inaceitáveis, no que respeita às confissões não cristãs, que se traduzem na prática, em discriminações que têm sido objeto de frequentes denúncias públicas e de queixas perante órgão de soberania (cf., por exemplo, a petição 159/VI (2ª), DAR, 2ª – C, de 12-2-93, a p. 129).

Um dos direitos coletivos que devem entender reconhecidos na Constituição às confissões religiosas é precisamente o de celebrarem com o Estado, acordos sobre matérias de interesse comum, em termos semelhantes, exceto quanto à forma jurídica, às concordatas. Esta tem sido, aliás, uma das formas de promover a igualdade de direitos em países com concordatas em vigor, como a Espanha (acordos com a Federação das Comunidades Evangélicas de Espanha, com a Federação das Comunidades Israelitas de Espanha e com a Comissão Islâmica de Espanha, aprovados por leis e celebrados no seguimento da Lei Orgânica da Liberdade Religiosa de 05/07/1980, que criou no Ministério da Justiça uma Comissão Assessora de Liberdade Religiosa, composta de forma paritária por representantes do Estado e das confissões, para preparar tais acordos e outras formas de cooperação) e a Itália (acordos com as Igrejas representadas pela Table Vaudoise – lei de 11/08/1994 , com a União das Comunidades Judaicas Italianas – leis de 08/03/1989 – com a União Cristã Evangélica Batista de Itália – lei de 29/03/1989 – e com a Igreja Evangélica Luterana de Itália – lei de 20/04/1993). Não se desconhecem as críticas que se podem levantar contra a proliferação de acordos, precisamente do ponto de vista da igualdade. Mas estas e outras eventuais dificuldades não devem obstar a uma urgente renovação da legislação básica sobre liberdade religiosa. A reforma não poderá ser levada a cabo sem uma audiência atenta dos principais interessados. Do mesmo modo se impõe nunca esquecer a realidade da sociedade portuguesa, em que evidentemente avulta a especial posição da Igreja católica, largamente majoritária, e o especial estatuto jurídico da Concordata, que não é afetada pela reforma. Assim: 1. É criada a Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa. 2. A Comissão é constituída pelos seguintes membros: a. Conselheiro José Inácio Clímaco de Sousa Brito, que presidirá; b. Dr. José Manuel Martins da Silva; c. Dr. Luís Miguel de Oliveira Fontes; 3. Para a prossecução do seu objetivo, a Comissão deverá designadamente, proceder à audição de Igrejas e confissões re-

ligiosas e efetuar consultas junto dos vários departamentos governamentais cujas atribuições sejam relevantes para os seus trabalhos. 4. No prazo de seis meses, a Comissão deverá apresentar um anteprojeto de diploma legal, acompanhado do respetivo relatório de fundamentação, do qual conste também relato das diligências promovidas e resultados delas obtidos. 5. A Comissão reunirá em instalações do Gabinete de Estudos e Planeamento da Justiça.

08/04/1996

O Ministro, José Eduardo Vera Cruz Jardim.

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