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Anos da Lei da Liberdade Religiosa

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DOCUMENTO 2

DOCUMENTO 2

compatível com essa Constituição e, portanto, não discriminatório das várias comunidades religiosas existentes no país. Entendiam uns, como se veio a verificar mais tarde nas votações da Assembleia da República, que, a tarefa que tínhamos pela frente, e por tantos anos esquecida, deveria começar pela revisão da Concordata ou mesmo pela sua denúncia. Não foi esse entendimento o adoptado depois de consulta e conversas informais com várias entidades do universo religioso e, naturalmente com o então Primeiro-Ministro Engº António Guterres. Iniciou-se então um longo e profundo processo de auscultação das várias comunidades existentes que se materializou em 3 consultas amplamente participadas, inclusive pela Igreja Católica, conduzidas já pela Comissão encarregada de apresentar um ante-projecto presidida pelo Conselheiro Sousa e Brito, meu amigo de longa data e nessa altura membro do “Consórcio Europeu para a Investigação das Relações entre o Estado e Igrejas” e autor de numerosos estudos e profunda reflexão sobre estas matérias. A primeira decisão que teve de se tomar, atentas as situações comparáveis em países europeus, designadamente no Sul da Europa, dizia respeito à opção a tomar entre uma lei donde constassem apenas princípios gerais combinada com um regime de acordos entre o Estado e um conjunto limitado de confissões religiosas mais implantadas nos respectivos países ou com significativo histórico, tudo à semelhança das opções adaptadas pela Itália e pela Espanha, ou a elaboração de uma lei geral regulando tendencialmente todos os aspectos importantes relativos ao universo religioso, sem discriminação e que fosse portanto uma lei bastante mais completa e abarcando muito mais questões, interessando às várias comunidades existentes. A decisão por uma lei abrangente foi fácil, embora a solução dos acordos tivesse defensores mesmo em comunidades religiosas directamente interessadas na futura lei.

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No que respeita aos princípios fundamentais na matéria vêm estes desenvolvidos a partir do artigo 41º da Constituição da República designada-

mente o princípio da separação Igreja-Estado, princípio da não discriminação e da inviolabilidade da liberdade consciência e religião, princípio da cooperação entre Estado e comunidades religiosas e princípio da igualdade. Claro que a liberdade religiosa tem, como a generalidade dos direitos fundamentais, limites ao seu exercício podendo ser objecto de restrições que constituam “disposições necessárias numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos e das liberdades de outrém” (artº 9º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). Relevante na enunciação e explicitação dos vários princípios é a consagração do princípio da tolerância como forma de resolução de conflitos entre diversas religiões e suas práticas, aplicando-se também aqui o artº 18, nº 2 da Constituição quanto à restrição de direitos.

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Regulam-se na lei, com extensão e profundidade adequadas, os direitos individuais quer negativos quer positivos que constituem conteúdo necessário da Lei da Liberdade Religiosa. Para além da densificação do preceito constitucional (artigo 41º) no que diz respeito aos direitos positivos e negativos da liberdade religiosa (artigos 8º e 9º da Lei), regulam-se nesta parte matérias relevantes como a educação religiosa dos menores, os princípios fundamentais em matéria de objecção de consciência, dispensa de trabalho e de obrigações de ensino nos dias de descanso semanal prescritos pela respectiva religião ou comunidade religiosa, em certas condições fixadas na Lei, bem como o conjunto de direitos dos ministros de culto das várias comunidades, “Artº 15 e seguintes”, que constituem a base do estatuto jurídico desses mesmos ministros. Inovação, a meu ver muito relevante, diz respeito ao casamento sob forma religiosa com efeitos na ordem civil, sendo embora esta possibilidade reservada às chamadas religiões radicadas, cuja qualificação traz consigo um sinal de garantia de duração, considerado essencial para atribuição pelo Estado, de efeitos civis ao casamento religioso.

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Para além dos direitos individuais de liberdade religiosa assumem na lei uma especial relevância os direitos colectivos ou seja, os direitos das próprias comunidades religiosas. Desde logo o direito já consagrado na Constituição no nº 4 do seu artº 41 de livremente se organizarem, de desenvolverem as suas funções, incluindo a título meramente exemplificativo o estabelecimento de locais de culto, de difusão de ensino da sua religião, prestação de assistência aos seus membros e designação dos seus ministros de culto. Toda esta matéria vem desenvolvida na enunciação dos direitos colectivos de liberdade religiosa. Alarga-se igualmente a todas as comunidades o direito de ensinar a sua religião na escola pública desde que, naturalmente, exista número de crentes suficiente para organizar turmas, sendo que serão as confissões a organizar os programas, devendo os respectivos docentes a contratar pelo Estado ser considerados idóneos por cada uma das confissões religiosas que possa usar deste direito. Especial protecção merecem os edifícios destinados ao culto, com as limitações impostas pela sua situação, bem como os demais bens religiosos. Também de especial relevância é a instituição do regime fiscal de geral isenção de pagamento de impostos para as actividades religiosas que é hoje o equivalente ao regime de que goza a Igreja Católica. São igualmente isentos de impostos os respectivos edifícios e instalações para o culto e actividades com ele relacionadas. Foi criado pela Lei à semelhança do que existe em Espanha e Itália um regime de consignação duma percentagem de um imposto pessoal (IRS) a favor das respectivas confissões no caso de se tratar de comunidades radicadas. Não se trata de um novo imposto a favor das igrejas e comunidades religiosas, como existe na Alemanha (Kirchsteur), mas de alocar uma parte do imposto pago a uma comunidade ou igreja da escolha do contribuinte. Para cumprimento do princípio da igualdade entre os cidadãos contribuintes, crentes ou não crentes, permite-se que esta consignação seja feita a favor de uma instituição de utilidade pública, de fins de beneficência ou assistência, ou de solidariedade social.

Este aspecto da Lei e seus objectivos estão por cumprir em relação às comunidades religiosas tendo todas elas, trata-se obviamente das radicadas, optado pela devolução do IVA que não pode ser cumulado com o produto da referida consignação. É um dos aspectos mais inovadores da Lei mas que infelizmente, a meu ver, tendo sido adoptado por muitos contribuintes em relação a outras instituições já atrás referidas, não o foi pelas comunidades religiosas. Penso que o tempo virá dar razão mais tarde ou mais cedo aos objectivos destes preceitos no que respeita às confissões religiosas.

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Finalmente a Lei vem dispor sobre a criação, composição e competências da Comissão da Liberdade Religiosa, órgão de consulta da Assembleia da República e do Governo, com participação de representantes de várias confissões radicadas e de dois representantes da Igreja Católica, com um conjunto de amplas competências, algumas das quais por manifesta falta de meios não puderam até agora ter execução (designadamente as funções descritas na alínea e) do artº 54). Posteriormente e com considerável atraso, que, naturalmente se reflectiu na plena entrada em vigor da Lei, foram publicadas as normas respeitantes ao registo das pessoas colectivas religiosas (Decreto-Lei nº 134/2003) e as necessárias adaptações ao novo quadro instituído pela Lei, da assistência espiritual e religiosa em certos ambientes (serviço nacional de saúde, forças de segurança e forças armadas e estabelecimentos prisionais) todas apenas com entrada em vigor no ano de 2009 e, nalguns casos, em parte por dificuldades próprias de organização, noutras situações pela deficiente interiorização da importância do acesso a este tipo de assistência, ainda a funcionar com algumas deficiências.

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A Lei foi aprovada por maioria na Assembleia da República, tendo sido por mim apresentado o respectivo Projecto já então como deputado, pois não houve possibilidade, dado o longo período que durou a audição das várias confissões, de proceder à sua discussão e votação até fins de 1999.

Interessante é certamente seguir as discussões e votações, reproduzidas parcialmente neste número da revista. Penso ainda hoje que muitos dos votos contrários e das abstenções foram motivados não pelo teor da Lei mas pelo regime especial para a Igreja Católica nela já previsto, bem como à já referida prioridade que muitos davam ao inicio da revisão da Concordata. A leitura desta e a comparação dos dois textos, para além do argumento já referido da necessidade urgente de criar um estatuto digno, não discriminatório e de igualdade na diversidade, veio a confirmar a necessária prioridade a conceder à elaboração da Lei da Liberdade Religiosa. Logo que aprovada esta na Assembleia da República em 2001 foi aprovada igualmente uma Resolução, recomendando ao governo que desse início à sua respectiva revisão, o que veio a ter lugar em 2004. O meu juízo sobre a qualidade da Lei e o contributo que deu para uma sã convivência em igualdade e dignidade entre as diversas confissões e os seus crentes é, naturalmente, apenas a minha opinião. A reação das diversas confissões religiosas à Lei e aos seus efeitos é afinal o primeiro juízo que devemos ouvir para melhorá-la ou mantê-la na sua integridade. A revisão da Concordata e a sua clara aproximação ao regime criado pela Lei veio, sem dúvida dar razão acrescida aos que defendiam, como era o meu caso, a prioridade da Lei em relação à Concordata. Desde logo para preencher o vazio legal em que viviam as outras confissões e que era necessário e urgente resolver. Mas também por, necessariamente, o regime concordatário ter de seguir rumo idêntico a não ser nas matérias interessando especial e unicamente à Igreja Católica tudo sob pena de, não sendo assim, poder haver uma clara ofensa de princípio constitucional da igualdade. A Lei criou, aliás, abertura à celebração de acordos entre o Estado e outras comunidades religiosas, para precisamente regular de forma convencional questões que só a elas digam respeito.

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Refiro a propósito as palavras do Dr. Jorge Sampaio, na altura Presidente da República que ao promulgar a Lei enviou uma mensagem à Assembleia da República da qual consta o seguinte:

“A Lei agora aprovada pela Assembleia da República é fruto de um labor de estudo, reflexão e consensualização que mereceu ….o acordo genérico das diferentes confissões religiosas.” E mais adiante, “A Lei da Liberdade Religiosa agora aprovada pela Assembleia da República é em meu entender, um diploma globalmente positivo que resolve de forma equilibrada, e em conformidade aos princípios constitucionais, muitos dos delicados problemas que se colocam à garantia de liberdade de religião e culto das confissões religiosas.” E ainda acrescenta, “É profundamente convicto da sua oportunidade e mérito que decidi promulgar um diploma que reputo da maior importância para a coerência, completude e estabilidade do direito das religiões no Portugal democrático”. E termino com uma referência às palavras do actual Presidente da República, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, em cerimónia recente de homenagem ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes: “Não há nações, etnias, religiões, culturas, civilizações que sejam umas mais do que outras e que não mereçam todas e todos o mesmo respeito da dignidade da pessoa, da sua indestrutível natureza, da sua inexpugnável diferença”. Penso que a Lei da Liberdade Religiosa foi fiel às mensagens dos dois Presidentes. Há agora que ser fiel à sua mensagem de tolerância e igualdade, princípios que nortearam a sua elaboração, em prol dum clima de paz, diálogo e mútuo respeito entre as diversas religiões e comunidades religiosas existentes no país.

Lisboa, novembro de 2021

José Vera Jardim

Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa

Este texto encontra-se escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico escolhido pelo autor.

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